The Project Gutenberg eBook of O esqueleto, by Camillo Castelo Branco

This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook.

Title: O esqueleto

Romance

Author: Camillo Castelo Branco

Release Date: September 9, 2022 [eBook #68932]

Language: Portuguese

Produced by: The Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by The Internet Archive)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O ESQUELETO ***

Collecção ANTONIO MARIA PEREIRA


VULGARISAÇÃO DOS MELHORES LIVROS

DAS

LITTERATURAS PORTUGUEZA E ESTRANGEIRAS


Romances, Contos, Viagens, Historia, etc., etc.


Volumes in-8.ᵒ de 160 a 200 paginas, em corpo 8 ou 10, excellente edição, em optimo papel. Preço de cada volume 200 réis brochado, ou 300 réis elegantemente encadernado em percalina. Para as provincias accresce o porte do correio.


Volumes publicados

N.ᵒ 1—Tristezas á Beira-Mar, romance de Pinheiro Chagas, 1 vol.
N.ᵒ 2—Contos ao Luar, por Julio Cezar Machado, 1 vol.
N.ᵒ 3—Carmen, romance de Merimée, traducção de Mariano Level, 1 vol.
N.ᵒ 4—A Feira de Paris, por Iriel, 1 vol. (2.ᵃ edição).
N.ᵒ 5—O direito dos filhos, George Ohnet, 1 vol.
N.ᵒ 6—John Bull e a sua ilha, traducção de Pinheiro Chagas, 1 vol.
N.ᵒ 7—O juramento da duqueza, romance historico por P. Chagas, 1 vol.
N.ᵒ 8—A lenda da meia-noite, romance phantastico, por P. Chagas, 1 vol.
N.ᵒ 9—A joia do vice-rei, romance historico, por Pinheiro Chagas, 1 vol.
N.ᵒ 10—Vinte annos de vida litteraria, por Alberto Pimentel, 1 vol.
N.ᵒ 11—Honra d’artista, romance de Octavio Feuillet, traducção de Pinheiro Chagas, 1 vol.
N.ᵒ 12—Os meus amores, contos e balladas, por Trindade Coelho, 1 vol.
N.ᵒˢ 13 e 14—A aventura d’um polaco, por Victor Cherbuliez, traducção de Maria Amalia Vaz de Carvalho, 2 vol.
N.ᵒ 15—Os contos do tio Joaquim, por R. Paganino, 1 vol.
N.ᵒ 16—As batalhas da vida, contos por Guiomar Torrezão, 1 vol.
N.ᵒ 17—Noites de Cintra, romance por Alberto Pimentel, 1 vol.
N.ᵒˢ 18 e 19—Em segredo, romance, trad. de Margarida de Sequeira, 2 vol.
N.ᵒˢ 20 e 21—A irmã da Caridade, por Emilio Castellar, traducção de L. Q. Chaves, 2 vol.
N.ᵒ 22—Migalhas de historia portugueza, por Pinheiro Chagas, 1 vol.
N.ᵒ 23—A Cruz de Brilhantes, por A. Campos, 1 vol.
N.ᵒ 24—Contos, de Affonso Botelho, 1 vol.
N.ᵒ 25—Contos phantasticos, por Theophilo Braga, 1 vol.
N.ᵒ 26—O mysterio da estrada de Cintra, por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, 1 vol.
N.ᵒ 27—O naufragio de Vicente Sodré rom. historico de P. Chagas, 1 vol.
N.ᵒ 28—Vid’airada, por Alfredo Mesquita, 1 vol.
N.ᵒ 29—O Bacharel Ramires, por Candido Figueiredo, 1 vol.
N.ᵒˢ 30 e 31—Amor á antiga romance de Caiel, 2 vol.
N.ᵒ 32—As Netas do Padre Eterno, por Alberto Pimentel.
N.ᵒ 33—Contos, de Pedro Ivo, 1 vol.
N.ᵒ 34—O correio de Lyão, por Pierre Zaccone.
N.ᵒ 35—Vida de Lisboa, por Alberto Pimentel.
N.ᵒ 36—Historias de Frades por Lino d’Assumpção.
N.ᵒ 37—Obras primas, por Chateaubriand.
N.ᵒ 38—O Exilado, romance historico, por Mauricia C. de Figueiredo.
N.ᵒ 39—Poema da Mocidade, por Pinheiro Chagas.
N.ᵒˢ 40 e 41—A Vida em Lisboa, por Julio Cesar Machado.
N.ᵒˢ 42 e 43—Espelho de Portuguezes, por Alberto Pimentel.
N.ᵒ 44—A Fada d’Auteuil, por Ponson du Terrail, traducção de Pinheiro Chagas.
N.ᵒ 45—A Volta do Chiado, por Beldemonio (Eduardo de Barros Lobo).


Requisições á Parceria Antonio Maria Pereira
Rua Augusta, 50, 52, 54—LISBOA


COLLECÇÃO ECONOMICA

Volumes de in-16.ᵒ, de 240 a 320


ROMANCES DOS MELHORES AUCTORES

A 100 réis o volume (pelo correio 120 réis)

* N.ᵒ 1—Aventuras prodigiosas de Tartarin de Tarascon, seguidas de Tartarin nos Alpes; por A. Daudet.
* N.ᵒ 2—Pedro e João, por Guy de Maupassant.
* N.ᵒ 3—Sergio Panine, por Jorge Ohnet.
N.ᵒ 4—O Sonho, por Emilio Zola.
N.ᵒ 5—Soror Philomena, por Edmond e Jules Goncourt.
N.ᵒ 6—O medico assassino, por Octavio Féré.
N.ᵒ 7—Os milhões vergonhosos, por Heitor Malot.
* N.ᵒ 8—O amigo Fritz, por Erckmann Chatrian.
N.ᵒ 9—Vogando, por Guy de Maupassant.
* N.ᵒ 10—Um romance de mulher, por Pierre Mael.
* N.ᵒ 11—Vontade, por Jorge Ohnet.
* N.ᵒ 12—O Nababo, por A. Daudet.
* N.ᵒ 13—Um coração de mulher, por Paul Bourget.
* N.ᵒ 14—Beatriz, por Rider Haggard.
* N.ᵒ 15—O crime, por Gabriel d’Annunzio.
* N.ᵒ 16—Lise Fleuron, por Ohnet.
N.ᵒ 17—Os dois rivaes, por Armand Lapointe.
N.ᵒ 18—O ultimo amor, por Jorge Ohnet.
N.ᵒ 19—Um Bulgaro, por Ivan Tourgueneff.
N.ᵒ 20—Memorias d’um suicida, por Maxime du Camp.
N.ᵒ 21—Forte como a morte, por Guy de Maupassant.
* N.ᵒ 22—A alma de Pedro, de J. Ohnet.
N.ᵒ 23—Camilla, de Guérin-Ginisty.
N.ᵒ 24—Trahida, de Maxime Paz.
N.ᵒ 25—Sua Magestade o Amor, por A. Belot.
N.ᵒ 26—Magdalena Férat, por Emilio Zola.
N.ᵒ 27—Os Reis no exilio, por A. Daudet.
N.ᵒ 28—Divida de odio, por Jorge Ohnet.
N.ᵒ 29—Mentiras, por Paul Bourget.
N.ᵒ 30—Marinheiro, por Pierre Loti.
N.ᵒ 31—A montanha do Diabo, por Eugenio Sue.
N.ᵒ 32—A Evangelista, por A. Daudet.
* N.ᵒ 33—Aranha Vermelha, por R. de Pont Jest.
N.ᵒˢ 34 e 35—Odio antigo, por Jorge Ohnet.
N.ᵒ 36—Parisienses!... romance, por H. Davenel.
N.ᵒ 37—Ao entardecer!... rom., por Iveling Ramband.
N.ᵒ 38—A confissão de Carolina, romance.
N.ᵒ 39—Um casamento no mosteiro, por Alfredo Assolland.
N.ᵒ 40—Os Parias, original de Francisco da Rocha Martins.
N.ᵒ 41—O abbade de Favières, romance, por J. Ohnet.
N.ᵒ 42—A agonia de uma alma, romance, por Ossip Schubin.
N.ᵒ 43—Memorias d’um burro, por Madame Ségur.
N.ᵒ 44—A nihilista, por Catulle Mendés.
N.ᵒ 45—O grande Industrial, por George Ohnet.
N.ᵒ 46—Morta d’amor, por Albert Delpit.
N.ᵒ 47—João Sbogar, por Carlos Nadier.
N.ᵒ 48—Viagem sentimental, por Sterne.
N.ᵒ 49—O milhão do tio Raclot, por Emile Richebourg.

Todos os vol. com este signal * estão esgotados mas vão ser reimpressos.


OBRAS

DE

CAMILLO CASTELLO BRANCO

EDIÇÃO POPULAR


V

O ESQUELETO


VOLUMES PUBLICADOS


I—Coisas espantosas.
II—As tres irmans.
III—A engeitada.
IV—Doze casamentos felizes.
V—O esqueleto.


CAMILLO CASTELLO BRANCO


O ESQUELETO

ROMANCE


TERCEIRA EDIÇÃO


LISBOA
Parceria Antonio Maria Pereira—Livraria-editora
Rua Augusta, 50, 52, 54
1902


LISBOA
Typographia da Parceria Antonio Maria Pereira
Rua dos Correeiros, 70 72


[Pg 1]

PREFACIO

Em quanto á influencia do romance nos costumes, estou mais que muito desconfiado de que o romance não morigera nem desmoralisa.

Porém, admittida a ponderação que lhe alvidram os exhortadores dos pais de familia, não sei decidir como se ha de escrever o romance fautor da sã moral. São dois os expedientes: levar os personagens viciosos ao despenhadeiro; ou crear anjos n’um paraiso sem serpente.

Na primeira especie, mostra-se a lucta de virtude e crime: natural e concludentemente triumpha a virtude. É o costume com sacrificio, ás vezes, da verosimilhança.

Na segunda fórma de romancear, a virtude recebe as ovações sem batalha. O romancista põe peito á reformação das obras de Deus, e corrige-as. Quando os seus personagens se avisinham de algum sujo aguaçal, em que é uso a gente commum salpicar as botas, atam-lhe asas de serafins, e largam-lhe trella por esse azul dos ceus dentro, até lhes vir a geito poisal-os em alegretes de flores.

São estes os romances que moralisam, ou os outros? É a minha duvida.

[Pg 2]

Convém mostrar as repulsões do crime lá em baixo, onde a providencia social lhes cavou a paragem; ou é melhor conduzir, por entre hortos amenissimos, os nossos personagens engrinaldados, e mettel-os no ceu finalmente?

Um homem de bem, proprietario de um dos primeiros jornaes d’este paiz, costuma editar os meus romances, com a previa clausula de não serem historias de crimes, que toquem directa ou indirectamente com a probidade da vida conjugal, ou revelem desdouros da honra domestica.

Ha poucos dias, tivémos esta pratica:

—Querem os pais de familias que suas filhas ignorem a corrupção, que lavra nos pantanos da sociedade—observou-me o meu amigo.

—Os pais de familia, contestei, não conseguem isso, em quanto não acharem o caminho da lua, onde presumo que não ha costumes, nem romances. E será preciso que se mudem para lá com as filhas, menores de dez annos, e não levem as mães, porque as mães, maximamente virtuosas, sempre teem que contar ás filhas a historia escandalosa das mães culpadas.

—Mas não se ganha moralisação para os espiritos brandos e virginaes das leitoras, em dar-lhes novellas de adulterios—redarguiu o cavalheiro.

—Ganha, quando se lhes mostram os infortunios acapellados em volta da mulher que se deshonra. Ganha, porque as filhas do pai acautellado sabem que as ha, conhecem-nas, e apertam a mão das deshonradas; concorrem aos salões com ellas; sabem o nome e a culpa do homem que as requesta; observam-lhes uns exteriores de felicidade; e espantam-se de as verem ostensivamente satisfeitas, e, de mais a mais, acatadas com uma urbanidade, que as não estrema das honestas. Então é que o romance ganha muito, levando ao conhecimento das donzellas, até certo ponto innocentes, que o desdouro, cujo horror não as apavorou nos salões, tem angustias secretas, e infamias estrondosas. Parece-me isto, meu amigo.

—Acho-lhe rasão—obtemporou o honrado e illustrado editor dos meus livros—mas que quer, se os pais de familia intendem que suas filhas desconhecem a existencia de certos crimes? E desadoram romances que revolvam essas sentinas hediondas?

[Pg 3]

Aqui ficou a contenda amigavel. Não procurei pai de familias nenhum para argumentarmos. Fiquei-me a scismar se devia queimar este volume que estava escripto, no intuito de mostrar o squalor de uma chaga social, sem a minima pretenção de lhe pôr o cauterio. Não queimei; mas protesto extrahil-o da circulação, se um dia me persuadir de todo em todo que esta coisa de romances, escriptos assim, peoram a humanidade, e alvorotam a quietação dos pais de familia.

[Pg 4]


[Pg 5]

I

Era justa e plausivel a admiração que infundia no espirito dos portuenses, nada espantadiços de mulheres formosas, uma franceza que, poucas vezes, se via no Porto, ahi pelos annos 1834 até 1839. Sabia-se que esta dama vivia n’uma quinta dos arrabaldes da cidade, e para ali viera com um fidalgo portuguez, regressado da emigração em 1835, sujeito pacifico, estranho ás victorias da liberdade, e tambem estranho aos reposteiros das secretarias. Era Nicoláo de Mesquita.

Da procedencia da franceza é que ninguem sabia. Geralmente duvidava-se da honestidade de tal contubernio; isto, porém, não implicava ao quasi respeito com que os galãs mais audaciosos da cidade eterna encaravam a gentil amazona, ao lado do cavalheiro grave, sombrio, e sympathico. Outras vezes, a estrangeira entrava no Porto sósinha, com[Pg 6] um lacaio; apeiava no hotel do Pêxe,[1] saía a provêr-se de objectos de luxo nas lojas de modas, seguida do criado, e voltava ás suas flôres e bosques, que deviam de alegrar-se, vendo chegar a sua bella e solitaria rainha.

O cavalheiro conhecia poucas pessoas no Porto, e tão friamente as praticava, que ninguem ousava perguntar-lhe miudezas de sua vida particular.

Em 1838, saía a franceza do estabelecimento de uma modista, e estremeceu fitando em rosto um homem, que empallidecera ao encaral-a surprehendido. Era este homem o chanceller do consulado francez.

Ella estugou o passo a evitar a aproximação do seu patricio: era superfluo o susto. O chanceller ficára empedernido, e extatico.

Passava um amigo, e disse-lhe, sorrindo:

—A sua patricia tem causado muitos d’esses spasmos aos portuguezes...

—Não é possivel...—disse o francez abstrahido.

—Não é possivel?!—replicou o outro.

—A impressão que me fez aquella mulher não creio que a possa receber quem a não conhece.

—E conhece-a o senhor?

—Pois não! É a mulher de um dos meus melhores amigos. Eu já sabia que ella fugira de Bruxellas com um portuguez; mas não esperava encontral-a. Onde vive ella?

—Na Cruz da Regateira, a meia legua do Porto,[Pg 7] com um fidalgo transmontano, chamado Nicoláo de Mesquita.

O chanceller escreveu na sua carteira, e disse:

—A mulher do meu amigo Ernesto Froment, um dos primeiros fabricantes de Lyão, rico e gentil, moço e honrado, pundonoroso e amigo d’esta infame, como não sei que haja outro! O homem com quem ella fugiu foi hospede de seu marido. Sinto que em Portugal se produzam villões d’este calibre!... Froment cuida que ella está na America. Não lhe direi eu que a vi sem vingal-o, se ha vingança honrosa a tirar de similhante affronta!

O francez retirou-se apressado.

Dias depois, Nicoláo de Mesquita era procurado na serena solidão dos seus arvoredos por dois cavalheiros desconhecidos: um era o consul francez, o outro pessoa importante da sociedade portuense.

O chanceller desafiava Nicoláo, em nome de um marido infamado.

O portuguez tergiversou na resposta. Obrigado a responder explicitamente se nomeava testemunhas, disse:

—Eu não embaraço que madame Froment vá para seu marido, se lhe apraz. Bater-me com um cavalheiro, em quem não reconheço direitos a pedir-me contas, não o faço, sem alienar o juizo que tenho.

O consul redarguiu com azedume. Nicoláo de Mesquita sorriu-se, e replicou:

—Respondi. Os cavalheiros excedem as suas funcções, e collocam-me n’uma posição desagradavel. Estas disceptações costumam resolver-se melhor nas estradas.

O portuguez da provocação ficou-se; mas o consul mordeu os beiços até sangrarem.

[Pg 8]

A senhora Froment, assim que os estranhos visitantes sairam, correu assustada a indagar a causa.

Nicoláo respondeu glacialmente:

—Depois de seis annos, um amigo de teu marido manda-me desafiar. Não me bato.

—Quem te desafia? É o chanceller? Não acceites, que elle é temivel!—acudiu ella.

O orgulhoso abespinhou-se, e disse severamente:

—Não ha homens temiveis para mim. Não acceito, porque é preciso muito coração para que um homem se bata por amor de qualquer mulher.

Pungente grosseria!

A franceza emudeceu transida. Bem o presentia ella; mas ainda lh’o não tinha ouvido. Emboscou-se entre as arvores a chorar. O orgulho!...

É certo que Nicoláo de Mesquita estava enfastiado, arrependido, e devorado de ancias de liberdade para retemperar o coração em amores novos. Pensava nas delicias de uma vida honesta; falsa virtude, que vem sempre com o enojo da mulher, que a sociedade honesta repelle. Seis annos era muito para ter sempre em florescencia affectos, que sairam de um tremedal. As idealidades do vicio são ephemeras; o orgulho póde fingil-as; mas, d’alma a dentro, não ha imperio que senhoreie o atroz pungimento do tedio. O sorriso é um tregeito vaidoso, que intenta escarnecer a censura do mundo, ou rebater a commiseração.

Nicoláo de Mesquita amára a mulher do amigo, que lhe aligeirára os annos do exilio. Infamia irritante em animo até d’aquelles que propriamente se sentem mordidos do remorso de um delicto similhante! Amára até ao absoluto despreso de si mesmo.[Pg 9] Seguira-a de Lyão á Belgica. E d’aqui se fugira com ella para Portugal, em quanto o marido fôra a Paris pressurosamente a cuidar em negocios urgentes de sua industria.

Depois, ainda um anno se não tinha passado, e já Nicoláo media a profundeza de sua ignominia, e espedaçava-se ás garras do opprobrio de si proprio. Tardia honra, que nunca pode chamar-se rehabilitação: penitencia, que no conceito do mundo terá remido os arrependidos; mas que no juizo da Providencia deve de ser apenas começo de expiação, começo de expiação muito longa.

Chegado a Portugal, Nicoláo ainda tinha mãe. Repugnou-lhe entrar em sua casa com uma mulher, mais perdida aos olhos d’elle que aos da sociedade, se a conhecesse. Já lhe parecia que o apresental-a como sua esposa era injuriar as virtudes de sua mãe, e injuriar-se a si. Não mais se levantará deante do homem, que a estimou, a mulher assim desprezada.

Alugou a quinta nos arrabaldes do Porto, e ahi ficou.

A franceza era a mulher coherente com o seu crime. A mudança da physionomia do amante, a nudeza da phrase baixa e sêca, a nenhuma poesia do gesto e da palavra, os longos silencios interpollados de suspiros, os vincos da fronte, os sorrisos contrafeitos, as abstracções e respostas incongruentes, que mais carecia ella para cahir em joelhos aos pés do algoz da sua felicidade, e pedir-lhe a morte?

Não se lembrou d’isso. Era mulher, e franceza. Ao pungimento da deshonra botaram-se os fios no habito de a praticar. Caíra de tão alto, que já não media com a vista a altura da queda. As mulheres[Pg 10] que chegam até aqui, tocam a extrema do pudor.

D’ahi em diante, se choram, não é remorso, é a aspide do orgulho que as morde.

Margarida Froment acceitava a liberdade do amante, em proveito do amor decadente. Cuidava ella que as pompas no trajar remoçariam o affecto envelhecido. Vestia-se e galleava a primor. Achava-se linda. Aos vinte e oito annos não invejava o frescor das suas quinze primaveras. Offerecia-se assim aos olhos de Nicoláo, e muitas vezes cuidou que triumphava quando queria. Esta vaidade era-lhe um esteio. Em quanto um demonio amigo lhe desse tal escudo, contava ella com a victoria sobre o fastio do amante.

Quando a tristeza a alquebrava mais, era se, no lavor de enfeitar-se, lhe vinha á lembrança que seu marido a tinha amado muito, ainda desenfeitada.

Tristeza de vaidade dorida, e mais coisa nenhuma que possamos chamar castigo.

Os castigos, ao chegarem, rasgam por outras fibras mais sensiveis.

O fidalgo, que pendia aos quarenta annos, pensava em sacudir o jugo; mas as correias apertavam-n’o tanto e em tantas voltas, que era impossivel desdal-as sem despedaçar os restantes liames da sua dignidade.

Abandonal-a era coroar a infamia.

Dar-lhe recursos e bons conselhos, muitas vezes lhe quiz propôr este accordo; mas receiava a recusa, e a desordem inevitavel d’essa hora em deante.

Os obstaculos saturavam-lhe de fel novo o amargôr do enfado.

Até que, no termo de seis annos, appareceu o[Pg 11] chanceller, não sei se tolo, se sublime, a desaggravar o amigo, do mesmo modo que um inimigo o faria, se quizesse ajuntar á desgraça a irrisão. Os francezes usam uns processos especiaes de honrar os amigos.

Nicoláo de Mesquita era valoroso; porém, reflexionador. Dissera elle: é preciso muito coração para que um homem se bata por amor de qualquer mulher. Essa sua maxima arrefecia as fervuras da coragem; do pundonor não havemos de dizer, que esse tinha claudicado, e ficara tolhido para todos os effeitos da dignidade, logo que elle seduziu a mulher do homem, incapaz de reputal-o infame.

Não se quiz bater com testemunhas: era natural que evitasse bater-se sem ellas.

Absteve-se de ir ao Porto, e reflectiu ponderosamente no escape de taes aperturas. Achou que era tempo de espesinhar considerações de menor alcance. Propoz á franceza uma separação temporaria, e urgente á quietação de ambos. Margarida ouviu-o de boa fé. Acceitou alguns mil cruzados; residencia no Porto, se lhe desprazia viver na quinta; e a segurança de se reunirem na provincia, assim que a entrevada mãe de Nicoláo passasse a melhor vida. Annuiu a franceza, dizendo em tom lastimoso que de bom grado, e com o coração cheio de lagrimas, se immolava á tranquilidade do amante.

Nicoláo foi para Traz-os-Montes, e Margarida Froment para uma casa ricamente alfaiada na Torre da Marca.

O chanceller, perdida a esperança de tirar os olhos do scelerado á ponta de florete, escreveu ao amigo, contando-lhe o seu intento, e o encontro inesperado.

[Pg 12]

Ernesto Froment accusou a carta recebida, e não falou da mulher. Parece que tinha lá tres, todas mais fieis, e póde ser que mais formosas.

Por este lado, o acaso—não ouso dizer a Providencia—se amerceara do esposo trahido. Quem dos dois soffria mais, ou presentia o emborrascarem-se as porvindouras tormentas, era Margarida.

NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Foi no palacio dos viscondes de Balsemão. Este palacio, onde se hospedou Carlos Alberto, é hoje do visconde da Trindade. Habent sua fata... os palacios!


[Pg 13]

II

O morgado da Palmeira cuidou que facilmente se desatavam os vinculos tenazes do amor-habito. Este amor é tão entranhado e subtil em alguns temperamentos, que até resiste á lima roaz do tedio. Se a mulher fastidiosa desapparece dos olhos fatigados de a verem, não sei de que refolhos da alma rebenta um espinho levemente doloroso, quando inesperadamente fere; mas com o rodar de dias, crava-se, punge, e doe tanto como a saudade da mulher que mais se ama e deseja.

Esta dôr sentiu-a elle, quando se viu no Vidago, ao pé do leito da mãe entrevada, sem sociedade que o distrahisse, além do reitor que o mortificava com perguntas sobre paizes estrangeiros.

Mulheres, n’aquella povoação, não havia uma que lhe prendesse o olhar, nem o fizesse descer á requesta, em competencia com os seus criados. Perguntava[Pg 14] á desmemoriada mãe pelas formosas primas, que deixára, em tal e tal casa. A velha respondia-lhe que umas estavam acabadas, outras mães de filhos, e outras na sepultura. Nicoláo de Mesquita espantava-se de achar extincta a formosura das primas da sua creação. Os homens que não descaem ou fingem não descair da mocidade tão de pressa, assombram-se da mudança que dez annos fazem no rosto e na alma das mulheres suas contemporaneas.

Foi isto grande parte na saudade, que por pouco o não impelliu ao Porto. Se fosse antes de reaccender-se na chamma do seu antigo amor a Margarida, uma nova enchente de tedio lhe apagaria as faiscas instantaneas. Estes amores são relampagos. Nas trevas, que se carregam depois, ha um abafar de coração, angustia incomparavel com a tristeza da saudade.

Elle adivinhava este segredo, que todos sabemos de animo frio, e todos ignoramos, se a paixão nos desluz a razão experimentada nos desvarios proprios e nos alheios. Ainda assim, póde ser que o presagio o não demovesse; conteve-o, por ventura, o receio de expôr-se ás iras do chanceller. Margarida, em quanto a perplexidade do amante durou, recebeu cartas muito amoraveis, que lhe consolaram a vaidade. Respondia ella que a chamasse a viver obscura entre arvores, sem mais alegrias que as das avesinhas, e a certeza de ser precisa á vida d’elle. Estas supplicas demonstram a singeleza ou o errado artificio de Margarida. Se ella tivesse respondido friamente, resignando-se com a ausencia, Nicoláo iria buscal-a. Nós entendemos sempre que a resignação é renuncia. O ciume faz então prodigios[Pg 15] que nivellam o mais descaroado orgulho com a allucinação de Werther ou Othello.

Permaneceu o morgado na indecisão, até que, um dia, foi a Chaves concorrer a um baile, com que seu primo Martinho Xavier de Sousa Vahia celebrava o natalicio de sua filha primogenita Beatriz. Tinha dezeseis annos esta menina. Rosto e candura do ceu. Alegria de borboleta na primavera entre as alvissimas flores do espinheiro.

Nicoláo dançou com sua sobrinha... ou prima. Elle antes queria que Beatriz lhe chamasse primo. Passou a noite: ninguem vira dançar o morgado da Palmeira com outra dama. E a rainha da festa uma vez apenas esvoaçara na sala amparada, senão levemente presa por um dos anneis louros do seu cabello á espadua de outro homem.

De Nicoláo de Mesquita diziam as mulheres:—Parece que tem vinte annos! Como está moço, e que airosidade na dança!

—Pois tem perto de quarenta!—Atalhava um moço de vinte, com um sorriso e abanar de cabeça desdenhoso.

Acabou n’esta noite a indecisão de Nicoláo, respeito a madame Froment.

Recolhendo ao Vidago, encontrou uma carta em que ella amorosamente o ameaçava de ir procural-o, sem consentimento prévio. Apressou-se elle a responder-lhe que se contivesse, a não querer contrarial-o.

Dois dias passados, tornou para Chaves, a cumprir a promessa de quinze dias de hospedagem em casa de seu primo Vahia: quinze dias de jantares e saraus, em que Nicoláo de Mesquita impressionou muitas damas com o leve incommodo de contar[Pg 16] anecdotas joviaes, costumes estrangeiros, amores celebrados, aventuras estranhas, coisas de chorar e de rir, iguarias para todos os paladares.

Beatriz era das que folgava das historietas facetas. Casos de lagrimas enterneciam-n’a até lhe molestarem os nervos. Pediu ella a seu primo contos engraçados. E Nicoláo, que nunca em sua vida tivera graça, transverteu-se por milagre de amor, e fez rir a filha de seu primo. A sós comsigo, o morgado da Palmeira, que vira muito e brilhante mundo, quasi que de si mesmo ria.

Voltou a casa onde o chamára o aviso de estar a mãe em perigo de vida. Assistiu-lhe á morte, fez-lhe enterro pomposo, encerrou-se por oito dias, pagou as visitas, e voltou para Chaves.

D’este successo não deu parte a Margarida nem respondeu ás cartas, que encontrára, queixosas do seu silencio. A esposa de Ernesto Froment tinha morrido para o amante como para o marido. A Providencia ordenára á formosa de Chaves que lançasse a prevaricadora no fogo expiatorio, não lavareda devorante, mas brazido lento, que lhe fosse queimando fibra por fibra os orgãos todos onde a vida humana pode soffrer e morrer mil vezes. Nicoláo lembrava-se d’ella com susto, e ás vezes com remorso; o susto de a vêr atravessar-se em seus designios; o remorso de atiral-a a um caminho, sem saida que não seja garganta de voragem.

Adeante! Nicoláo de Mesquita conhecia milhares de exemplos. Em Paris, cada homem dos admirados e invejados no bosque de Bolonha, no café Tortoni, nos centros da mocidade insigne, podia contar dezenas d’aquellas historias, laudas da biographia[Pg 17] dolorosa que as mulheres das salas repetiam sem horror.

O horror das mulheres das salas era para as victimas.

Homens sacrificados é que elle não conhecêra. Homens que immolassem os melhores annos da sua mocidade a um dever, que o mundo chama um escandalo. Homens que, em cada primavera do coração, arrancassem os renovos promettedores de muitas alegrias, e os atirassem fenecidos aos pés de uma como estatua, incapaz de avaliar a renunciação, ou, peior ainda, persuadida do dever do sacrificio.

N’isto cogitára elle em todos os dias dos seis annos de captiveiro.

Agora, na liberdade, era preciso ser homem como todos, ser forte para não ser infeliz e ridiculo: porque a desgraça dos penitentes, que não podem nobilitar, com alguma sombra de moral commum, o grandioso holocausto de sua liberdade, é irrisoria.

E depois, quem sabe?

Margarida voltará para França, onde tem o marido, e a mãe. Se o marido a recebe, feliz culpa que a mette ao caminho da rehabilitação! Se a rejeita, a mãe lhe abrirá os braços e o sanctuario da familia lhe purificará o espirito. Esta moralidade, subitamente formada no animo do morgado, é uma zombaria da virtude. Faz-se muita moralidade assim; a sociedade ás vezes applaude-a, e sae em auxilio dos moralisadores.

Com estas hypotheses combatia Nicoláo de Mesquita o impertinente remorso, quando ia para Chaves. Porém assim que se refugiou sob os olhos tutelares[Pg 18] de Beatriz, a chimera da consciencia fugiu espavorida.

Martinho Xavier perguntára a sua filha se o primo de Vidago lhe dizia particularmente palavras indicativas de algum sentimento mais forte que o do parentesco e amisade.

Beatriz córou. O pae ficou satisfeito.

E, n’outro ensejo, perguntou-lhe:

—Gostas do primo Nicoláo? Sê sincera, minha filha.

—Não desgosto... balbuciou a pomba.

—E, se elle quizesse ser teu marido, acceitarias de boa vontade?

—Querendo meu pae...

—Eu não quero, nem deixo de querer. Consulto a tua vontade.

—Eu...

—Acceitas?

—Pois sim...

—Mas—tornou Martinho Xavier—tu, antes da vinda de Nicoláo, parece que acceitavas a côrte do primo de Fayoens, que foi creado comtigo.

Beatriz córou e calou-se. O pae achou prudente calar-se tambem, n’este artigo melindroso, e volveu ao essencial.

—Nicoláo perguntou-me se o teu coração estava livre. Respondi que o suppunha desprendido de affeição seria. Quiz elle saber se tu quererias ligar a tua mocidade aos annos já adeantados de um homem, que te amaria como esposo, e estremeceria como pae. Vou dar-lhe a tua resposta, se é que lh’a não déste.

A menina fez um gesto de assentimento.

[Pg 19]

O morgado da Palmeira, no dia seguinte, disse a Beatriz:

—Quer meditar algum tempo antes de ser minha esposa, prima Beatriz?

—Já respondi, primo Nicoláo.

—Despede-se sem saudades da sua mocidade? Não deixa impressão que a possa magoar?

—Não...

—Nenhum homem que lhe inquietasse o coração?...

—Nenhum...

—Acredito-a, Beatriz. Pois saiba que ha-de ser venturosa, quanto os anjos podem ser n’este mundo. Hei de obrigal-a com extremos de amor a ser minha amiga. Vêr-me-ha invelhecer, e então sentirá por mim affecto de filha. O homem, na minha edade, sabe como se faz a felicidade de uma mulher. Entrego-lhe o coração maculado, mas ainda forte de vida, a vida do coração, que é a poesia das almas enthusiastas. Se eu me sentisse gasto e insensivel, a prima Beatriz, com o segredo que teve de influir um sagrado fogo no gelo da minha vida moral, havia de fazer o menor milagre de remoçar-me. Será feliz, minha prima: juro-lh’o, beijando-lhe esta mão pura!

Beatriz cedeu facilmente a mão, para não prejudicar o ritual do juramento.

Se Deus fosse carne, e tivesse labios susceptiveis de obedecerem ás contracções convulsas dos musculos faciaes, ria-se sardonicamente d’aquelle juramento.

O lance, digno de ser pintado com as branduras de Bernardin de S. Pierre, foi interrompido por um criado, que apresentava a Nicoláo de Mesquita uma[Pg 20] carta, vinda em mão propria, de Villa Pouca de Aguiar, distante de Chaves tres ou quatro leguas.

O morgado viu o sobrescripto, e mudou de côr.

Era a lettra de Margarida Froment, que havia chegado a Villa Pouca na tarde do dia anterior.

O contheudo eram duas palavras: ESTOU AQUI.

Beatriz ergueu-se em ponta de pés. Adoravel curiosidade! Viu; mas não entendeu. Era em francez. Encarou no primo e disse sobresaltada:

—Que é?!

—Um amigo que me chama a Villa Pouca, tartamudeou.

—E porque não vem cá? replicou a innocente com a cavillosa dialectica de uma senhora já esquecida do tempo em que passou pelas varzeas floridas da innocencia.

—É um francez, meu amigo, que vae de passagem para Hespanha, e precisa de recursos.

—Não se assignou?! redarguiu candidamente Beatriz.

—Não, porque... porque é perseguido em Portugal, e receiou que se desencaminhasse a carta.

—E vae, primo?

—Sem demora. Devo-lhe obsequios.

Estas palavras já foram ditas com toda a quietação de animo. Beatriz socegou; mas, depois que Nicoláo saiu, inquietou-se e mandou, a occultas do pae, um criado a Villa Pouca, espiar os passos do morgado da Palmeira.

Amava-o: estou em crêr que o amava.

Nicoláo de Mesquita ia chammejando de raiva a Margarida. Esporeava o cavallo que devorou as leguas em furiosa desfilada. Soffreava a brida instantaneamente, para meditar no que faria. Baralhavam-se-lhe[Pg 21] os planos, todos miseraveis, senão abjectos.

Apeou á porta da estalagem.

A franceza esperou-o no topo da escada, abrindo os braços. Nicoláo apertou-lhe a mão, e disse-lhe glacialmente:

—Que é isto?

Margarida transfigurou-se. Deixou cair mortalmente os braços, e disse então dorida e irritada:

—Para que veio aqui?

—Pois a tua carta que significa? Diz.

—Nada. Respondesse: «Não conheço a desgraçada, a perdida, a infame que me escreve. Desgracei-a eu, perdi-a eu, infamei-a eu; mas não a conheço.» Respondesse assim, senhor Nicoláo de Mesquita. Antes isto, que repellir a mulher que de braços abertos lhe offerece o coração traspassado de dôres.

—Vem cá, Margarida! tornou o morgado, simulando meiguice. Vem conversar commigo. Tu és injusta, ou estás enganada.

A franceza abriu a porta do seu quarto. Nicoláo sentou-se a limpar as bagas de suor. E ella ficou em pé defronte d’elle, hirta, sublime, formosa, e formidavel de odio, de amor, de desesperação, de ternura, um indefinivel conjuncto de demonio da soberba, e anjo da agonia.

E elle estava como se a não visse, fitando-a nos olhos coruscantes. Latejavam-lhe as fontes batidas de dentro por clavas de ferro. Seria um atroz pezadelo, se não fosse um abafar de vergonha e rancor.

Margarida esperou alguns segundos, e disse:

[Pg 22]

—Conversemos, pois.

Nicoláo ergueu-se de golpe, e exclamou:

—Desprézo a ironia!

—Isso é uma miseria, senhor Nicoláo, retorquiu serenamente a franceza. Conversemos, pois!


[Pg 23]

III

Reprovo a sua vinda aqui! disse Nicoláo empregando o vous do despeito ou da cerimonia, que, n’este dialogo em francez, era, de parte a parte, odio.

—Já sei, respondeu Margarida. Reprova que eu viesse. Reprovada e maldita sou eu de toda a gente. Como todas as almas me fugiam, vim acoitar-me na sua. Agora vejo que estou sosinha no mundo. Se eu quizer amigas, hei de ir procural-as á ultima escaleira da degradação.

—Que desatino!—exclamou o morgado.—Faltaram-lhe meios com que viver honestamente?

—Honestamente vivia eu em casa de meu marido, senhor Nicoláo de Mesquita! O senhor prégou-me a desmoralisação, e agora está-me doutrinando a honestidade! Que escarneo! O seu dinheiro não pode rehabilitar a mulher que a sua perversa indole[Pg 24] abysmou! O senhor faz mulheres perdidas, não refaz honestas!

—Pois bem!

—Pois bem o que?

—Faça o que quizer.

Margarida fitou-o arquejante de colera, e levou com impetuoso frenesi as mãos aos olhos, murmurando estas palavras, que elle não ouviu:

—Covarde e infame!

Nicoláo erguera-se, saira á saleta contigua, aspirando haustos de ar, e baforando ruidosamente as expirações fumegantes. A franceza atirára-se ao leito, afogada de soluços, e clamando:

—Estás vingado, Ernesto, estás vingado, meu infeliz marido!

Nicoláo ouvira isto, e estorcia em desespero os dedos de ambas as mãos enclavinhadas sobre o peito.

Encostou-se ao batente da porta do quarto, e contemplou-a. Teve dó. Lembrou-se do que fôra aquella mulher em casa de seu marido. O contentamento, a estima publica, os regalos, o respeito de amigos, a consideração das mulheres honestas, o acanhamento com que a tratavam as deshonestas, o orgulho e paixão do esposo. Lembrou-lhe tudo, vendo-a assim soluçante, a confessar a sua culpa, e a sentir na consciencia o travor do calix expiatorio. E, por sobre tudo isto, o lembrar-se Nicoláo da sua deshonra d’elle! aquellas lagrimas a cairem-lhe no coração! e o terrivel irremediavel da desgraça de tres victimas, que elle fizera, contando-se pela mais atormentada das tres!...

Acercou-se de Margarida e disse-lhe com brandura:

[Pg 25]

—Não chores. Tens no mundo um amigo, Margarida!

A franceza levantou a face brilhante de lagrimas e escarlate febril. Fixou a vista immovel n’um ponto da parede fronteira, e permaneceu silenciosa largo espaço.

O morgado, observando-a assim, fez um tregeito de impaciencia. Era o fastio, a luctar com a commiseração, e a dominal-a.

A sombra de Beatriz passou entre ambos. Seguiram-n’a os olhos d’alma de Nicoláo. Os da face ficaram postos em Margarida; mas sómente viam n’ella o estorvo, a miseria repulsiva, as lagrimas accusadoras. Duas idéas se travaram a repellões no animo do morgado: romper violenta e definitivamente com a franceza ou enganal-a com blandicias e promessas. Venceu o mais vil dos expedientes.

O maximo sacrificio, que Nicoláo podia fazer á sua paixão pela prima, era compôr o gesto de carinhos; modelar a voz pelo tom vehemente do coração ingrato, mas arrependido; repetir as phrases que seis annos se não repetiram aos ouvidos da franceza.

N’este intuito, ajoelhando deante de Margarida, irrompeu n’uma lamuria destoada da accentuação da verdade, um declamar de actor pessimo, uma coisa que, na consciencia propriamente do declamador, o devia de estar envilecendo!

Margarida foi cruel. Riu-se! castigou-o atrozmente envergonhando-o em rosto, quanto elle o estava no seu intimo senso.

Nicoláo de Mesquita ergueu-se de salto, e sentiu ao correr dos braços um prurido nervoso, umas fervuras de sangue, que lhe recurvavam os dedos; era[Pg 26] a convulsiva ancia de esganar a mulher que o comprehendera e escarnecia.

—Que infame riso é esse? exclamou o morgado cavamente, chispando áscuas dos olhos e beiços.

—É o riso da dignidade! respondeu a franceza, sem se desmentir na postura.

—A dignidade de madame Froment! redarguiu elle, espirando um frouxo de riso sarcastico.

—Condemna-se, insultando-me, homem sem alma! replicou Margarida. Madame Froment era uma digna esposa até ao dia em que seu marido foi deshonrado por quem elle recebêra em sua casa.

—Quem a ouvisse cuidaria que eu me servi do punhal de Tarquinio!

—Foi mais cynico, e vilão, e covarde, senhor Nicoláo! As suas armas foram mais perfidas.

—Mas Lucrecia não se matou!...

—Não! bramiu ella furiosa, não se mata, porque é necessario que o senhor veja como eu me debato e agoniso no lodaçal em que me deixa. Havemos de expiar ambos, ouviu, senhor Mesquita? Havemos de nos espedaçar um ao outro! Eu acceito a vida com os horrores todos, que me esperam... acceito-a com a condição de o vêr castigado.

Nicoláo riu-se e sahiu do quarto, atirando com as melenas lustrosas de suor para a nuca.

Seguiu-o, instantes depois, Margarida, e disse-lhe serenamente:

—Venho responder ao seu riso.

—Deixe-me! bradou o morgado.

—Deixo, tornou ella. Está o senhor livre de mim; a Providencia é que não o deixará... Ver-nos-hemos!

E saiu da saleta, desceu ao pateo da estalagem,[Pg 27] e ordenou ao arrieiro, que tirasse o cavallo da estrebaria. Entretanto pagou as despezas da hospedagem, e sentou-se n’um banco de pedra, com os braços cruzados sobre o seio, e a face pendida sobre elles.

Nicoláo de Mesquita desceu pouco depois e reconheceu um criado de Beatriz, que saía apressado do pateo. Sobresaltou-se, cuidando que era espionado, e surprehendido em flagrante de mentira e perfidia. Passou por deante de Margarida, como se não a visse, e saiu a rua procurando o criado, que não viu. Voltou ao pateo, já quando a franceza cavalgava. Quedou-se a contemplal-a estupidamente, n’um indescriptivel spasmo de brutificação. Margarida passou rente com elle, estalejando o chicote na anca da cavalgadura. Tinha elle saido da villa, quando Nicoláo tirou fóra o cavallo, e picou á redea solta no seguimento de Margarida. Não saberia dizer elle que intento o impulsava. Chegou de par com ella, colheu as bridas de impeto, e perguntou:

—Onde vaes, desgraçada?

—Á sorte! respondeu a franceza.

—Pára e reflexiona, Margarida!...

A franceza parou, sorriu sardonicamente e disse:

—Bem! Aqui estou. Que quer de mim?

A pergunta conturbou o morgado. Bruxuleava uma luzinha de piedade ainda n’aquelle animo afflicto. Era verdadeira afflicção a d’elle! A pergunta demandava uma só resposta digna, e consolativa. Essa nem já insidiosamente podia elle dal-a. A sobranceria de Margarida rebatia algum expediente compassivo. Se ella chorasse, ganharia temporariamente uns exteriores de estima, o supremo sacrificio praticavel pelo homem, que faz obedecer á delicadeza[Pg 28] o fastio; sacrificio de que vivem resignadas, senão felizes, muitas mulheres, as virtuosas principalmente.

Não deu tempo ás reflexões d’elle nem ás nossas a repetida pergunta da franceza:

—Que quer de mim?

—Que domine esse feroz orgulho, que a perde!

—Bella resposta, senhor Nicoláo! replicou Margarida, sacudindo as rédeas com um tremor nervoso da mão. Deixar meu marido foi uma virtude do coração, como o cavalheiro lhe chamava; a virtuosa não se perdeu então; perde-se agora porque é orgulhosa até á ferocidade... é isso? que escarneo, senhor Mesquita!...

Susteve-se, esperando qualquer resposta. As desgraçadas, n’estes lances, usam uma logica irrespondivel. Nicoláo tinha a lingua preza—consintam a figura—por dois dedos da sua prima Beatriz. Expressão compadecida não vingava nenhuma com que applacasse o irritamento de Margarida. Assim que no animo lhe pungia a commiseração, ahi estavam logo os dois dedos de Beatriz a entalarem-lhe na lingua o termo brando, a claridade mesmo da mentira.

A franceza, sobre-excitada pelo silencio significativo do morgado da Palmeira, disse com energia e sem lagrimas:

—Eu, senhor, não vim queixar-me da sua ingratidão. Bem sabe que o deixei apertar-me cinco annos a corda na garganta, sem soltar um gemido. A sua consideração por mim morreu, quando a sociedade me desconsiderou. O senhor, desde o momento em que deixou de vêr ao meu lado o estimulo do seu crime, não soube que fazer aos loiros da[Pg 29] victoria. Eu, ao lado de meu marido, era uma mulher disputada pelo amor d’elle; escondida ás pedradas do mundo, perdi o valor que me davam os respeitos sociaes. As pedradas mais certeiras e dolorosas eram as suas, senhor Nicoláo. E não me queixei, nem isto é queixar-me. Da vilania é que eu me dou por affrontada. Deixou-me no Porto com vil astucia, e nem por dignidade propria sustentou a mascara. Era a vida de sua mãe que repellia a mulher perdida da honesta casa da Palmeira: morreu sua mãe, e o senhor, aturdido pela dôr da orphandade, não poude dispôr da cabeça para me dar parte do seu lucto...

—Não admitto remoques sobre objectos tão serios! interrompeu iracundo o morgado.

—O senhor não póde considerar-se um objecto serio! acudiu de prompto a franceza. Ridicula é a sua aleivosia, senhor Nicoláo! Ridiculo, se não quer que diga infame, é o seu silencio de vinte dias ás minhas cartas! Ridiculo, é esse falso pundonor com que vem em defeza da honestidade dos seus lares! Ridiculo é o seu amor dos quarenta annos á candida sobrinha de Chaves que...

Nicoláo cresceu sobre os estribos, levou a mão direita á testa escaldante, e baforou fumaradas de rancor. Abrasava-o dentro o sarcasmo do amor dos quarenta annos. Tortura mais lacerante nem a inquisição poderia invental-a para uso de mulheres inexoraveis como Margarida! Teve-lhe medo ella quando o viu assim roxo e vulcanico a chammejar pelos olhos, inteiriçado sobre o sellim, pavoroso, e ainda ridiculo, no rigor da palavra, e no entender da franceza.

O desfecho d’este relanço devia ser tambem[Pg 30] irrisorio. Nicoláo de Mesquita recaiu de golpe sobre o sellim, retorceu de violento empuxão o pescoço do cavallo, deu-lhe de esporas com frenesi, e despediu n’uma corrida desapoderada por aquella rechan do Valle d’Aguiar fóra, e tão cosido ás crinas do fumegante alasão, que dava uns longes de Mazeppa, arrebatado pelo corcel creado na vertiginosa phantasia de Byron.

E Margarida Froment ria-se, em quanto o pasmado arrieiro exclamava:

—O cavallo endoideceu! Vae-se esbarrar com dez milheiros de diabos!

A franceza sorriu ainda, e disse serenamente:

—Vamos para o Porto.

Nicoláo havia transmontado o horisonte, fechado por uma gandra. Nem uma só vez voltara o rosto. Espicaçava-o um demonio zombeteiro, cascalhando as palavras: Ridiculo é o seu amor dos quarenta annos...

Quem disse a Margarida que Nicoláo amava a sobrinha de Chaves? Os romancistas, desconsiderados ou distrahidos, faltam com a cortezia devida aos leitores, descuidando-se em responderem a estes reparos justos, com que a critica amoravelmente nos dá o seu beliscão.

A franceza, quando ia caminho do Vidago, pernoitou em Villa Real. Ao arraiar da manhã, cavalgou, e fóra da villa, n’uma esplanada de monte, chamado o «Arcabuzado», parou a examinar um mau retabulo, em que um pincel de 1811 contava á posteridade o caso triste do espingardeamento de um soldado desertor, cinco minutos antes de chegar de Lisboa o pae do padecente com o perdão da junta governativa. Este infausto successo contou-lh’o,[Pg 31] em frente do painel, um mancebo, que desde a hospedaria a seguira, sobre o seu irrequieto cavallo. Não ousaria elle intrometter-se a dar explicações, se a franceza, por gesto convidativo, o não animasse a sair-se d’aquelle spasmo mudo, que as mulheres formosas incutem nos provincianos, gente, pelo commum, contemplativa até ao extasis.

Concluida a historia do painel, o moço alinhou o cavallo com o de Margarida, quanto a estrada o permittia, e foi dizendo quem era e para onde jornadeava. Modestamente omittiu na noticia da sua pessoa que era um fidalgo do Valle d’Aguiar, senhor do solar e castello d’aquelle nome, descendente por varonia de Duarte de Almeida, o celebrado alferes da bandeira, que, a defendel-a com mãos e dentes, perdêra os dentes e as mãos na batalha de Tóro, em 1476. Fallou, porém, no seu castello, que a franceza traduziu château, «casa-campestre», coisa de nenhuma importancia archeologica. Ricardo de Almeida ignorava a lingua franceza, o que vinha a ser uma falta para dar do seu castello solarengo uma cabal idéa.

Margarida perguntou-lhe se conhecia Nicoláo de Mesquita.

—É meu proximo parente; respondeu Ricardo de Almeida, e de prompto conjecturou acertadamente quem era a sua companheira de jornada, por ter ouvido dizer que o do Vidago tinha vivido no Porto com uma estrangeira.

—Tem-n’o visto? perguntou ella.

—Visitei-o quando lhe morreu a mãe...

—Pois a mãe de Nicoláo morreu?! acudiu Margarida com alvoroço.

—Ha tres semanas.

[Pg 32]

Margarida mordeu o labio inferior.

—Vossa excellencia conhece meu primo? perguntou Ricardo por delicadeza.

—Alguma coisa, respondeu ella abstrahidamente, e disse logo com vivacidade:

—Elle está em Vidago?

—Quando eu sai de minha casa, ha quatro dias, tive noticia de que elle estava em Chaves.

—Chaves é longe?

—Nove leguas, minha senhora.

—Que faz elle em Chaves?

—Namora uma sobrinha, com quem provavelmente vae casar.

Margarida fitou nos olhos o interlocutor, e disse:

—O senhor sabe quem sou, e graceja comigo.

—Desconfio que vossa excellencia é uma senhora que veiu da emigração acompanhando Nicoláo de Mesquita; porém, de nenhum modo ousaria gracejar com uma senhora, que me parece infeliz na sua sorte.

Margarida, por espaço de uma legua, não proferiu palavra. Ricardo tinha menos espirito que o necessario para divertil-a da sua introversão.

Assomaram ao alto da serra do Mezio, d’onde se avistava a magnifica chan do valle de Aguiar, e o castello dos Almeidas, negrejando sobre um morro de rochas na quebrada das montanhas do Alvão.

—O meu castello é além, disse Ricardo apontando.

—É uma fortaleza feudal? perguntou Margarida.

O fidalgo deu a data da fundação do castello, e contou a façanha de Duarte de Almeida, modelada pela inventiva com que ella anda cantada em verso no Romanceiro Portuguez do senhor Ignacio Pizarro[Pg 33] de Moraes Sarmento. A franceza parecia escutal-o.

A meio do valle, Ricardo perguntou á dama se queria ser acompanhada.

—Separa-se aqui?

—A minha estrada é esta da esquerda.

—Pois adeus, cavalheiro!

—Se vossa excellencia, por distracção, quizer alguma vez honrar aquelle castello...

—Muito agradecida... As mulheres, fadadas com o meu infortunio, nunca podem distrahir os olhos do ponto negro da sua desgraça. Adeus.

Margarida, lá ao longe, olhou terceira vez ao longo do caminho, que deixára, e viu immovel o fidalgo castellão no local onde se despediram.

—Não envelheci ainda! disse ella entre si.

Foi-lhe immensa consolação este desabafo da vaidade!

[Pg 34]


[Pg 35]

IV

Margarida, na volta de Villa Pouca, reparou no castello, e pensou no descendente dos ricos-homens de Aguiar, dizendo em sua consciencia: «Amal-o-hia eu, se podesse... O coração da mulher não se engana... Aquelle moço amava-me hontem...»

Custa a crêr o soliloquio!

Ainda não ha meia hora que ella viu, ennovelados em poeira, o cavalleiro e o cavallo sumirem-se para sempre, e já tão cedo se preoccupa do affecto inspirado a um estranho, que hontem vira! Que coração e juizo tem esta creatura! É um coração e juizo exoticos: coisas de França; que em Portugal—terra onde mais sinceramente e ajuizadamente se ama e morre d’amor—nenhuma senhora, em caso similhante, faria monologos d’aquelles.

[Pg 36]

Ao mesmo tempo, Ricardo de Almeida, empinado sobre uma pinha de rochas, contiguas ao castello apontava um oculo á estrada que descia de Villa Pouca, e monologava tambem: «É ella... e vem sósinha...»

O cavallo estava sellado, ao sopé dos rochedos. Ricardo desceu do miradouro, cavalgou, e foi sair ao caminho na encruzilhada onde se despedira. A franceza reconhecera-o a galopar na clareira de uma agra. Fez-se um brilhante dia no seu espirito! Ia alegre como bem póde ser não fosse, ainda que arrancasse o homem amado ás presas da menina de Chaves. A alvorada de um amor novo é uma aurora de junho perfumada de flores, gorgeada de passarinhos, sonora de murmurios no coração ennoitecido, e regelado pela borrasca de uma paixão infeliz. Era uma alegria que a vingava! Na infancia do seu amor de donzella, nenhuma hora sentira de tão excitante e alvoroçada felicidade!

Ricardo apeou, atirou as rédeas á mão do lacaio, e adeantou-se ao encontro da franceza, dizendo com a voz tremula do sobresalto interior:

—É tarde para vossa excellencia ir pernoitar a Villa Real. No espaço de tres grandes leguas não encontra pousada. Venho offerecer-lhe a minha casa, onde tenho minhas tias para a receberem.

—Acceito muito agradecida—respondeu Margarida, estendendo o braço á mão convulsa do fidalgo. Ainda mesmo que sobejassem hospedarias na estrada, eu acceitaria a sua hospedagem, senhor Ricardo.

O mancebo cavalgou, e deu o passo a Margarida no estreito caminho que levava ao Pontido.

Iam ambos concentrados: ella, no enlevo da consideração[Pg 37] que recebia; elle, no seu amor. Devemos cuidar assim da franceza; porque não ha contentamento comparavel ao da mulher desestimada da sociedade, quando se lhe depara prova de respeito, urbanidade sem mescla de amor aviltante. Parecia-lhe á dama que estava no tempo em que a respeitavam, e talvez a amavam os amigos da sua familia, sem exclusão dos amigos de seu marido, facto que nos escandalisa muito a nós, e medianamente agastaria a esposa de Ernesto Froment.

Quanto ao enlevo amoroso de Ricardo de Almeida, havemos de inferil-o naturalmente de um successo, que prende com esta historia. Fôra o caso que elle, por veredas transversaes, no dia anterior, chegara, primeiro que Margarida, a Villa Pouca. Alojára-se na unica estalagem da terra, e no quarto immediato ao que devia occupar a franceza. Ouvira-a fallar de um portador que fosse de noite a Chaves. Desvelára a noite, espiando a resposta. Dera tento da chegada de seu primo Nicoláo. Ouvira o dialogo na alcôva e na saleta. Até os soluços da franceza ouvira, quando o morgado, fóra do quarto, expedia uns sons roucos da colera que o afogava. Assim que Margarida desceu ao pateo, Ricardo saira pelo quintalejo da estalagem, e fôra montar o cavallo, que tinha acautelado de suspeitas em outra casa. Desgarrando da estrada, voltou ao Pontido, e subiu á crista das fragas com o oculo, tremendo que a reconciliação se fizesse entre Nicoláo e Margarida. Ora isto, se não era amor, e amor á antiga, coevo talvez do castello senhorial do rico homem, não sei dar-lhe nome, a não querer o leitor que isto fossem ciladas do demonio, em conformidade com as interpretações de santos e doutissimos sujeitos. Quer[Pg 38] anjo, quer demonio que lhe instillasse no peito o nectar ou a peçonha, o exacto é que Ricardo de Almeida apresentou a suas venerandas tias D. Margarida Froment, sem dizer quem era, d’onde vinha, e para onde ia. Caso unico no solar dos Almeidas.

Perguntava D. Simôa ao sobrinho, em quanto D. Sancha entretinha a hospeda suspeita:

—Mas onde conheceste, menino, esta dama? Como veio ella parar aqui lá d’esses mundos de Christo?

—Sei que é um anjo: viria do ceu!—respondeu Ricardo.

—Do ceu?!... Vê lá bem, menino! Olha que teu tio avô, o senhor bispo de Coimbra, dizia que as mulheres assim galantes eram mensageiras do inimigo.

—Ora minha tia...—volvia o moço afagando-a.—Receba sem escrupulos a pobre senhora, que é tão galante como desgraçada.

—Então que tem ella, menino?—instava D. Simôa com malicia.

—A sua alma pura, minha tia, não póde comprehender o mal que fizeram a esta senhora. No entanto, eu responderei ás perguntas de vossa excellencia assim que ella sair ao seu destino.

—Mas...—redarguiu a velha—o mal que lhe fizeram has de remedial-o tu?...

Esta interrogação abona a sagacidade de D. Simôa; a innocencia não direi, com medo de errar. As Sanchas e Simôas dos solares provincianos, por via de regra, tinham tempo para tudo: tempo para Deus e tempo para os primos. Cada uma tinha o seu frade que a absolvia e lhe dava noticias de[Pg 39] todas as devoções com indulgencia plenaria. A balança de S. Miguel estava sempre no oiro fio com estas damas, que mortificavam Deus e o demonio ao mesmo tempo. A Deus, sophismavam as velleidades com as indulgencias do Espirito Santo; ao demonio faziam figas por sobre as espaduas anchas dos frades respectivos. Se as donas do castello de Aguiar tinham sido d’esta laia, não sei; asseveraram-me, porém, que ellas foram enterradas de palmito e corôas de rosas brancas: isto diz muito em credito d’aquellas senhoras. No tocante a cheiro de santidade, as opiniões na freguezia divergem.

Como quer que fosse, D. Simôa, n’aquella noite, inventou uma enxaqueca, e recolheu-se á sua alcova. D. Sancha saiu da sala para ir ver a mana, e voltou á sala com outra cara. O certo é que a franceza achou-se sósinha á ceia com Ricardo, que estava odiando as velhas.

Margarida sem presumir de aguda, entendeu tudo e condoeu-se do mal abafado soffrimento de Ricardo.

—Não se afflija por amor de mim—disse ella. Eu acceito o menos preço de suas tias, sem azedume. Com que titulos se apresenta á estima de duas senhoras desconhecidas uma mulher que viaja sósinha!?... Muito sentida vou, se as delicadas attenções do cavalheiro o fizeram cair no desagrado de suas tias!...

—Eu sou independente, minha senhora—respondeu Ricardo.—Minhas tias, n’esta casa, teem um pequeno patrimonio, e o direito de se retirarem com elle. A minha emancipação começa de hoje.

—Por Deus!—atalhou Margarida, simulando pesar.—Não dê desgostos ás pobres senhoras![Pg 40] Olhe que ellas não fizeram mais do que fariam quaesquer outras. Eu conheço um pouco a vida de provincia em França, e creio que em Portugal é identico o modo de sentir. Recebem-se sempre desconfiadamente as forasteiras, que se não recommendam logo com appellidos heraldicos, nem denunciam pela libré de seus criados procedencia illustre. Ambos peccamos por leviandade, mr. Ricardo de Almeida: vossa excellencia errou em convidar a mulher que não póde explicar honestamente a sua vida, e eu pequei em acceitar o convite, como se a consciencia de maior dignidade me habilitasse a relacionar-me com duas damas da alta nobreza e, a meu ver, das primeiras virtudes.

A essencial feição da indole de Margarida Froment era a ironia; mas, a compostura de rosto com que desfechava os remoques, não lh’a deixava entre-vêr facilmente. Ricardo, pelos menos, recebeu como ingenua a phrase laudatoria das virtudes de suas tias; e, sorrindo com um tregeito especial de beiços, deu vislumbres de incerteza em quanto á primazia das mesmas virtudes.

O fidalgo ergueu-se de golpe, e tangeu uma campainha.

Entrou á sala um escudeiro.

—A criada de sala?—perguntou Ricardo.

—Está no quarto das fidalgas.

—Que venha aqui.

Entrou a criada.

—Conduza esta senhora ao seu aposento—disse Ricardo—e conserve-se no quarto proximo, esperando as ordens que a sr.ᵃ D. Margarida lhe der.

—Mas as fidalgas...—balbuciou a aia.

—Ordenei!—atalhou o moço—e, voltando-se a[Pg 41] Margarida, disse:—Quando vossa excellencia quizer recolher-se...

—Irei já; mas dispenso os serviços da sua criada—observou a franceza.

Ao romper da manhã, Margarida estava preparada, como se recolhêra á alcôva. Parecia ter chorado, e velado o restante da noite. Á mesma hora, Ricardo mandava preparar os cavallos, e enfardar a sua bagagem. Quando sentiu movimento no quarto da franceza, esperou-a na ante-camara e disse-lhe:

—Resolvi ir ver o Porto. Se vossa excellencia me consente, irei em sua companhia.

—Que mais posso eu desejar?—disse Margarida—Mas... eu vim trazer a desordem a esta casa... Que pesar, meu Deus!

—Veio apenas trazer uma noite de amargura a um homem que a présa deveras, minha senhora. De resto, eu vejo melhor o mundo depois que vossa excellencia aqui entrou.

As velhas tinham sido avisadas dos preparativos do sobrinho. Ergueram-se espavoridas e tresnoitadas a procurarem Ricardo.

Pediram-lhe contas da sua inesperada resolução, e elle respondeu-lhes com uma mesura de cabeça, e passou. D. Sancha exclamou, e D. Simôa quiz ir á sala dos retratos accusar a degeneração do neto. Os retratos teriam medo, se as vissem com os josésinhos côr de cidra enfiados pelas mangas, e as estrigas do cabello estupentudas. D’ahi a pouco, ouviram a estropeada dos cavallos no pateo, e o rugido do alteroso portão rodando nos gonzos. Foram á janella e viram a franceza de par com o sobrinho, e uma carga de bahus no seguimento da[Pg 42] escandalosa cavalgada. Desmaiaram-se reciprocamente nos braços uma da outra, e assim estiveram até horas de almoço, depois do qual mandaram chamar os parentes circumfusos nas proximas seis leguas.

Lembrou D. Sancha que o primo Nicoláo de Mesquita, como homem que tinha visto muito mundo, seria o mais habil para convencer Ricardo a fugir dos braços da aventureira franceza, com quem se fôra por essas terras fóra. Foi chamado o capellão para notar e escrever a carta e assignal-a em nome das senhoras que não sabiam escrever. O egresso franciscano fez uma exposição pavorosa do escandalo, citando, com referencia á franceza, todo o mal que Santo Agostinho e S. João Chrysostomo haviam dito das mulheres.

Este periodo é notavel:

.................................................

«Aqui tendes, caro sobrinho, o desdouro que a vontade do Senhor nos reservava á nossa velhice. Uma forasteira, vinda de França, por instigação de Satanaz, rouba-nos a menina dos olhos, o nosso Ricardo, que tão humilde nos tinha sido até agora, e tão bem comportado, que não consta em todas estas freguezias que elle botasse a perder filha de caseiro. Suppõe a gente que elle arranjou esta tentação lá por Villa Real, onde esteve quatro dias. Mas clama justiça do céo vir elle com ella para esta casa, onde não ha memoria de entrar mulher desconhecida! Chama-se ella Margarida, e pelo donaire e modos bem se vê que é mulher affeita a correr mundo. Nunca vimos creatura com tanto palavriado! Aqui ninguem nos póde valer como o nosso parente Nicoláo. Lembrae-vos que[Pg 43] sois do mesmo sangue do nosso Ricardo; pois que vossa bisavó era irmã do bisavô do nosso sobrinho. Elle dizia que vós sois um homem de grande entendimento e sabedoria, porque tendes experiencia do mundo. Se estimaes esta familia, que tambem é a vossa, fazei-nos o favor de ir a Villa Real, ou onde elle estiver com a tal aventureira, e despersuadi-o do peccado e da loucura. Lembrae-lhe a honra da sua linhagem, e trazei-o para sua casa antes que a franceza lhe derranque a alma, etc.»

Este é o periodo em que Sancha e Simôa choraram torrencialmente, e o egresso tambem.

Partiu um criado com a carta para o Vidago, ou para onde Nicoláo de Mesquita estivesse. Do Vidago passou a Chaves, a procural-o em casa de Martinho Xavier. Foi entregue a carta ao morgado de Palmeira, a tempo que elle estava amollentando os asperrimos ciumes de Beatriz, informada do encontro em Villa Pouca, pelo espião que mandára. Nicoláo tinha inventado não sabemos que romances á conta da mulher, que o criado de Beatriz affirmára ser linda como as estrellas e mocetona de uma vez, modo seu de exprimir a maxima perfectibilidade da belleza mulheril. A prima repellia desabridamente as humilimas explicações, que reviam absurdeza, e deficiencia de estudo previo. Chegou, porém, a carta, com a indicação de onde vinha.

—Que me quererão estas serêsmas do Pontido? disse Nicoláo.

Leu, e no decurso das duas primeiras paginas fradescas, resadas em voz alta, interrompeu-se exclamando:

—Que vem a ser isto?!

Relanceou os olhos sobre a terceira pagina, e[Pg 44] viu as palavras franceza Margarida. Mudou de côr, e leu d’ahi em diante mentalmente. Beatriz desconfiou, e foi, irreflectidamente, com liberdade de noiva, e indelicadeza de menina que não ganhou no collegio premios de civilidade, espreitar o dizer da carta. Nicoláo furtou-se á curiosidade e augmentou a suspeita. A menina saiu da sala com arrebatamento, e foi dizer ao pai:

—Já não quero casar com o tio Nicoláo. (Já era tio!)

—Porque, menina?!

—Porque sim... É um infiel!

—Ora, creança!... Saibamos isso por miudos.

Beatriz contou o encontro com uma mulher em Villa Pouca, e o recebimento da carta, que elle escondêra, depois de ter lido uma porção d’ella a dizer mal das mulheres.

Martinho Xavier riu-se dos amuos da menina, e foi entender-se com o primo.

Nicoláo, depois de se ficar pasmado uns tres minutos no periodo que transladamos, quiz dispor as suas idéas, em ordem a conjecturar o abstruso enlace de Margarida com Ricardo de Almeida, duas pessoas que nunca se tinham visto. Este reparo denota que Nicoláo não conseguira coordenar as suas idéas. Pois as duas pessoas não se haviam de ter visto, ao menos quando uma era roubada pela outra?

Respondia elle a esta pergunta do siso-commum, quando Martinho Xavier entrou, dizendo:

—Que vem a ser isto, primo Mesquita? A Beatriz está zangada. Que lhe fizeste? que mulher é essa com quem estiveste em Villa Pouca? E essa carta, em que se diz mal das mulheres que vem a[Pg 45] ser? A pequena foi dizer-me que não quer casar comtigo!

Nicoláo reflectiu, e achou um miraculoso expediente de justificação. Deu a carta a ler ao primo dizendo:

—Eu duvidei contar a tua filha uma historia de honestidade muito equivoca. Ahi verás que me chamam as tias Almeidas para reduzir o sobrinho a deixar uma mulher que o perde. Esta mulher é a mesma que veiu a Villa Pouca para captar a minha estima, e mover-me a induzir meu primo Ricardo a casar com ella. Aqui tens, primo Xavier, como eu me vejo enredado n’uma teia, que me faz malquisto de tua filha. Se queres, explica-lhe tu o que é isto. Eu não sei fazel-o sem cuidar que ultrajo o seu pudor.

Martinho expediu uma sincera gargalhada, e exclamou:

—Dá-me a carta, que eu vou pacificar a pobre menina.

D’ahi a pouco, Beatriz entrou muito agraciada á presença de Nicoláo, e disse, toda affagos:

—O primo perdoa-me, pois não perdoa?

—E, por amor do seu ciume, cada vez a adoro mais, Beatriz!—respondeu o morgado ternamente.

[Pg 46]


[Pg 47]

V

Nicoláo respondeu ás tias Almeidas que as suas occupações o estorvavam de ir moralisar o primo Ricardo. Consolava-as, porém, com a certeza de que o sobrinho prodigo voltaria cedo curado da sua hydropisia amorosa, depois de algumas sangrias copiosas nas algibeiras. O egresso, lendo este paragrapho, exclamou:

—Isto que elle diz é assim, fidalgas. O senhor Nicoláo bem se vê que andou muito mundo!

As velhas sentiram-se alliviadas, e accenderam velas de arratel a Santo Antonio, e outros bem aventurados que privam na côrte celestial.

Este acontecimento estupendo, passada a rija impressão do choque, deu largas ao espirito do morgado. Mulher que tão facil e estupidamente passára ao dominio d’outro homem, estava definida.[Pg 48] Espinho de remorso de havel-a abandonado seria baixesa e indignidade consentil-o na alma. Arrependido estava elle de a não ter abandonado ha muito, por umas verduras de pundonor, em que elle victimára seis escuros e dissaboridos annos de sua vida. Tudo pelo melhor! Azavam-se-lhes as coisas para um viver tranquillo e desapertado de responsabilidades e reminiscencias perturbadoras.

Cuidaram logo em tirar dispensa de parentesco para o casamento. Nicoláo andava alegremente na faina de renovar as alfaias da casa de Palmeira, e lustrar as velhas, que provavam as antigas pompas do solar dos Mesquitas. N’este lidar, em que o coração tomava a melhoria do seu cargo, o morgado remoçava, puerilisava-se, tinha tolices perdoaveis, que Beatriz era digna de enlouquecer qualquer homem amado. As mulheres lindas confessavam que ella era formosa: as mulheres são evangelhos, quando tal dizem d’outra. E, alem de formosa, rica. Fidalga, está dito tudo, se o timbre das armas de Fayões e de Palmeira, e das Olarias, é o mesmo timbre dos Sousas Vahias cuja representante é Beatriz. Em quanto a puresa, não ousariam os serafins esquadrinhar-lh’a. É o elo interposto á flor e á estrella em materia de innocencia. Tivera escassamente uma sombra de cortejo de seu primo Raphael Garção Cogominho, decimo quarto senhor de Fayões. A bonina da serra não fica mais pura, quando um cordeirinho a bafeja, do que ficou Beatriz com uns beijos que lhe havia dado o primo nas faces purpurejadas. Afóra isto, que é nada, o maná dos israelitas não choveu mais candido e impolluto das amphoras do ceu. Assim se desculpa a exultação de Nicoláo nos preparativos para os esposorios[Pg 49] mais fallados e invejados d’aquella redondeza.

As pessoas que tinham visto os requebros de Beatriz por seu primo Raphael maravilharam-se da transferencia, e mais ainda da conformidade do moço de Fayões.

Era este mancebo filho unico de paes opulentos, e o mais galhardo e galan rapaz d’aquellas terras. Tinha peccados grandes, que os invejosos das suas proezas desejariam esconder, se podessem. A humanidade, sua conhecida, dividira-se em dois bandos: os homens contra, as mulheres por elle. Raphael não se queixava; punha peito aos adversarios, excepto o coração que esse andava repartido e desfibrado pelas defensoras. Era coisa de prodigio a paz em que tantas odiando-se reciprocamente, viviam com elle, e saiam a enristar, não lanças, mas linguas—as mais perfurantes e contundentes armas conhecidas—em honra de Raphael Garção Cogominho, quando algum barbaro desdenhoso lhe desluzia no garbo com que esporeava o ginete a galões e trancos, ou na adamada denguice com que requestava toda a mulher indistinctamente.

E muitas o amavam, áquem e além Tamega, por essa Gallisa dentro. No entender dos sisudos censores de seus maus costumes, faltava-lhe a fibra susceptivel do coração que se doe das inconstancias d’uma mulher. Em confirmação d’este juizo, depunha o ter ido Raphael para Hespanha em seguimento de uma andaluza, que apparecêra na feira de Santo Antonio em Villa Real, tocando pandeiro e castanhetas. Alguem conjecturou que Beatriz accedêra a casar com o tio por despique do primo; varias senhoras, no proposito de desdoural-a, affirmavam[Pg 50] que ella optára pelo mais rico, sem levar em conta a differença das edades, e os dissabores futuros. Tudo isto eram vozes do mundo, que se banqueteava em casa de Martinho Xavier e se enfrascava nos melhores vinhos a brindar o prospero enlace do extremado cavalleiro de Palmeira com a encantadora Beatriz. A verdade, porém, das rompidas intelligencias da menina e de Raphael já está dita: fôra um brincar da borboleta com uma flôr de madre-silva; mais lyrismo não tem anachreontica nenhuma, se a anachreontica fôr das mais honestas.

O morgadinho de Fayões nunca pensára em casar-se. Tinha então vinte e quatro annos; muito dinheiro, muita saude, leitura de Clarisse Harlowe, da Nova Heloisa, do D. João, e outros modelos de algozes de corações. É o que elle tinha lido em dois annos que estivera em Coimbra.

Não obstante, a pureza da filha de Martinho Xavier enfreou-lhe a indole; póde ser tambem que a desconfiança do pae lhe contraminasse algum intento menos honroso. Disputal-a a Nicoláo de Mesquita, sem o proposito de desposal-a, era um desaire; soffrer era uma semsaboria indigna dos Tenorios e Lovelaces e Saint-Preux das suas leituras. Felizmente que a andaluza lhe barateou um sorriso, e encareceu um beijo na feira de Villa Real. Este duro osso do officio irritou-lhe a vaidade. A hespanhola pareceu-lhe uma Esmeralda, como Victor Hugo a encontrára inventada por um escriptor castelhano. Alli por Villa Real andavam uns Claudios Froulos a quererem seduzir-lh’a. Esporearam-lhe o ciume. Não havia que vêr. Seis mulheres bonitas de Chaves, dezenas d’ellas do alto da provincia, duzias de[Pg 51] galanteios incipientes e decadentes, todas foram sacrificadas á funambula do pandeiro e das castanhetas.

Varias pessoas lamentaram a sorte d’este mancebo no banquete nupcial de Beatriz e Nicoláo. Os mais penetrativos convivas olhavam de esconso a noiva, e o marido tambem; todavia a menina escutava as lastimas como se as não comprehendesse. O anjo estava como estrangeiro entre aquelle gentio, que fallava a linguagem barbaresca das paixões deshonestas.

No dia seguinte, os esposados foram para o Vidago, com grande comitiva. No trajecto de tres leguas estoiraram constantemente bombardas e foguetes. As festas continuaram na casa de Palmeira tres dias e tres noites. A grandeza de quinze leguas ao sul, e tres ao norte, a entestar com a Galliza, confluiu com suas librés a honrar a mais cheia lua de ambrosia, que ainda tiveram noivos desde que as luas se ingerem ridiculamente nos noivados.

As senhoras do Castello d’Aguiar, tias de Ricardo, saiam da liteira a visitarem o seu parente de Vidago, e a senhora D. Beatriz que ainda era parente d’ellas, em razão de haver casado Mem de Sousa, em 1410, com D. Briolanja de Almeida. Além da etiqueta, moveu-as ao sacrificio poderem fallar do sobrinho Ricardo, e pedirem consolações ao homem experiente.

D. Sancha, assim que o ensejo se lhe ageitou, rompeu em pranto desfeito n’estes termos:

—A felicidade que estaes gosando, sobrinhos, perdemos a esperança de que o nosso Ricardo a venha gosar!

—Que noticias tem vossa excellencia de Ricardo?—atalhou Nicoláo.

[Pg 52]

—Não nos escreve o ingrato! Ha tres mezes que foi, e não voltou.

—Pois não sabem onde elle foi parar com essa mulher?

—Sabemos, sabemos... Estão no Porto. Ricardo tem escripto aos feitores das quintas, a mandar ir dinheiro. Não fazeis uma idéa, sobrinho, do dinheiro que tem ido!... Se assim vae, Deus nos feche os olhos antes de o vermos empenhar os vinculos. Agora soubemos que elle mandou vender os foros de Barroso por quatro mil cruzados, e a melhor quinta da Terra quente! Haverá um mez que o senhor padre Ambrosio, nosso capellão, foi de nosso mando ao Porto a ver se o convertia. Quereis vós saber, meus sobrinhos, o que elle viu? Elle aqui está que o conte. Diga lá, senhor padre Ambrosio.

O egresso sibilou uma pitada, assoou-se, dobrou o lenço de quadradinhos, embolçou-o na algibeira da batina, compoz o rosto, ageitou as mãos sobre a proeminencia do estomago, e tirou estas palavras do peito:

—Assim que cheguei ao Porto, fui a casa das senhoras Noronhas, primas de suas excellencias, para o fim de me ellas mandarem ensinar as ruas, e a morada do fidalgo. Saíu comigo o capelão a indagações, e soubemos que elle estava a banhos de mar na Foz, com a maldita estrangeira. Aluguei um jumento, com o devido respeito, e puz-me a caminho para a Foz. Eis que, á saída do Porto, vejo vir o senhor Ricardo n’uma carroça descoberta, com a franceza á sua direita, e dois lacaios, um adeante e outro atraz, sentados na dita carroça. Fiquei passado. Quiz chamal-o, grudou-se-me a lingua[Pg 53] ao ceu da bocca! Elle passou sem dar tino de mim; e eu fiquei perplexo, verdadeiramente perplexo! Que hei de eu fazer? Deixei ir o jumento, com o devido respeito: fui á Foz, resolvido a esperar que elle voltasse. Teria eu andado obra d’um quarto de legua, eis que ahi torna a carroça n’uma galopada, que parecia um esquadrão de cavallaria. Parei. O senhor Ricardo viu-me, a carroça pára, e elle diz: «Por aqui, padre Ambrosio? Isso que é?»—«Venho em cata de vossa excellencia»—disse eu.—N’isto, saltou elle á estrada, e apropinquou-se de mim, ajudando-me a desmontar, e perguntou-me: «Ha novidade em casa? Morreu alguma das tias?»

—Vejam que perverso aquelle!—interrompeu D. Sancha.

—A perguntar se morremos!—accrescentou D. Simôa, com uma visagem de quem promette viver muito.

—Se vossas excellencias permittem, disse o padre Ambrosio, continuarei a minha exposição.

—Póde continuar, disseram unanimemente as velhas.

—Não, excellentissimo senhor, não morreu, graças a Deus, nenhuma de suas tias. Teem padecido muito, mas vivem para honra da familia dos Almeidas. Temos que fallar largamente, senhor Ricardo.

«Pois bem, padre Ambrosio», disse elle, entre na minha carruagem.—«Muito obrigado, muito obrigado», disse eu. «Ha de entrar»—teimou o fidalgo; e, pegando-me d’este braço, fez-me subir, e sentar mesmo ao lado da franceza hombro com hombro. O senhoras e senhores! eu suava por todos os orificios!

[Pg 54]

Beatriz soltou uma convulsão de riso indomavel, Nicoláo de Mesquita cravou os dentes nas borlas do chambre. As senhoras Almeidas pasmaram do descôco de Beatriz. O narrador abriu a bocca, e ficou-se espantado. Esse silencio, e estas visagens eram cócegas a nova casquinada de Beatriz. A senhora ergueu-se de salto, e fugiu sala fóra com as mãos nas ilhargas.

—Ella de que se riu, sobrinho?! perguntou D. Sancha.

—É flato, respondeu Nicoláo.

—Ah! coitadinha! disse D. Simôa. Mandae-lhe fazer um chá de ortelã e tilia.

—Aquillo passa-lhe, tornou o morgado. Queira continuar, senhor padre Ambrosio.

—Vinha eu dizendo que...

—Entrou no carro...—lembrou Nicoláo.

—Justamente, e alli vamos nós por aquella estrada além, que eu não sei para onde me levavam, nem dava tino de mim. Ia afflicto! Aquella mensageira de Satanaz ao pé de mim! Nunca volvi o rosto para a ver! Que diria o mundo, vendo um homem com estas vestes sacerdotaes, sentado á beira d’aquella mulher! Eu levava o meu capote de camellão, puxei-o para deante afim de esconder a batina, mas a cara havia de denunciar a minha vergonha: eu ia como um pimento em toda a extensão da palavra! O fidalgo perguntou se eu gostava de andar em carruagem. Respondi-lhe que não e o demonio da franceza disse não sei que, lá na sua amaldiçoada linguagem, e o senhor Ricardo riu-se. Eis que chegamos ao portão da casa do senhor Ricardo. A mulher do peccado deu um salto para fóra, que parecia um passaro a saltar, deixando[Pg 55] ver os laços dos sapatos, e umas fitas pretas encruzadas nos artelhos! Assim a vestira o inferno para perdição das almas. Assim apparecia o demonio entrajado aos santos da Thebaida! Porque a verdade ha de dizel-a minha bocca indignada: Satanaz nunca fez mulher mais guapa para recrutar almas n’este mundo! Eu tinha-a visto de passagem na casa do Pontido, quando ella pernoitou lá, e achei que era bem composta de feições; mas agora d’esta vez pareceu-me muito mais galharda. Nunca vi outra nem espero que os meus olhos tornem a ver mulher assim!... Santa Maria Egypcia, e Santa Margarida de Cortona, que eu já vi pintadas, quando eram peccadoras, dou-lhes a minha palavra que não tinham tantos adornos infernaes!... Vamos adeante. O senhor Ricardo levou-me a uma sala espaçosa, e toda adornada de cadeiras de almofada, e ricos escabellos de seda. Fez-me sentar n’um, em que cuidei que ia por elle dentro, e o fidalgo riu-se, e explicou-me o caso, dizendo que o assento era de molas.—«Tudo delicias do peccado!»—exclamei eu, erguendo-me; e elle, o perdido, exclamou tambem: «delicias da civilisação, padre Ambrosio!» Então, comecei eu o meu discurso, que levava meditado, e que não repito, para não enfadar vossas excellencias. O meu discurso foi attinente ao proposito de o accordar do seu lethargo. Citei-lhe o divino e o humano. Invoquei as sombras illustres dos Almeidas, dos Mesquitas, dos Coelhos, dos Pizarros, todos ascendentes d’esta nobilissima familia. Ouviu-me em silencio. E quando eu esperava que dos olhos lhe rebentasse o pranto da contricção, ouviu-se uma campainha, e elle, cortando-me o final do discurso, disse: «padre[Pg 56] Ambrosio, vamos jantar, que está na mesa.» Escandalisei-me d’esta especie de mangação; e disse: «—Na casa do impio não comerás nem beberás!»—São palavras da biblia santa. Peguei na bengala e no chapéu para saír. Eis que elle me enrosca o braço no pescoço, e diz: «Ha de jantar, que tenho que lhe dizer.» A resistencia era impossivel, que o senhor Ricardo, desde menino, foi sempre despota. E de mais a mais, eu estava a cair de debilidade, porque não tinha comido ao almoço. Deixei-me levar. Eis que vejo a estrangeira sentada á mesa! Vieram-me outra vez os suores. Fiquei sentado defronte d’ella. Foi ella que me fez o prato, e me perguntou se eu queria mais. Comi iguarias que nunca vi na minha vida! A sôpa não a pude levar. Tinha uns pedacitos de animalculos, que lá chamam camarões. A maldita comia uns bichos crus com sumo de limão!

—Credo! exclamou D. Sancha.

—Creio que se chamam ôstras!—continuou o padre, e teve logo de se interromper, porque D. Simôa, engulhada com a descripção infanda dos bichos crus, estava a luctar com o vomito.

Passado o incidente enjoativo da senhora, mediante um copinho de licor de amendoa, padre Ambrosio continuou:

—Omitto a descripção dos outros horrores, que presenciei n’aquelle jantar de canibaes. Eu apenas comi d’uma peça de carne assada, e de um pato, ou coisa que o parecia. No fim do jantar, o senhor Ricardo levou-me para o seu quarto, e perguntou-me por vossa excellencia.

—Por mim! disse Nicoláo.

—Sim, senhor. Quiz que eu lhe dissesse se vossa[Pg 57] excellencia tinha casado, ou estava para casar. Respondi-lhe que vossa excellencia andava n’esses preparativos. Ora agora, o que eu não sei é porque elle deu uma grande risada, quando lhe eu disse que as fidalgas tinham mandado pedir ao senhor morgado que empregasse todos os meios para salvarem o sobrinho das garras da franceza! Isso foi um rir, que não tinha fim. Depois, quiz saber o que vossa excellencia tinha feito. Eu contei-lhe a resposta que o senhor morgado dera ás excellentissimas senhoras suas tias, e elle então disse umas palavras, que eu não me atrevo a repetir.

N’este momento entrou Beatriz á sala, e Nicoláo ergueu-se ao encontro da senhora. Visivelmente queria elle rematar alli a exposição do padre; mas o narrador repetiu ainda:

—Palavras, que eu não me atrevo a repetir.

—Vinde cá, sobrinho, ouvide isto...—disse D. Sancha.

—Dispenso saber o que Ricardo disse, atalhou precipitadamente Nicoláo. Em summa, o que eu infiro da narrativa do senhor padre Ambrosio é que meu primo Ricardo resistiu á sua eloquencia.

—Mas que rasão, tornou o clerigo, teria elle para dizer que vossa senhoria é um... não ouso dizer.

—Pois digo eu, ajuntou D. Simôa. O que elle disse foi que o nosso sobrinho Nicoláo era um infame... Vêde vós!

—E que havia de pagar dente por dente, e olho por olho...—ajuntou o capellão.

—Basta! interrompeu o morgado com desabrimento. Eu despreso o que esse miseravel disse!

—Mas que mal lhe fizeste tu a elle, primo? perguntou Beatriz.

[Pg 58]

—Nenhum, minha querida. Que mal poderia eu fazer-lhe?! Agastaram-n’o contra mim as expressões que escrevi a minhas tias com referencia ao desatino d’elle. Bem! prohibo que em minha casa se deprima ou se louve o homem que me insulta. Préso muito vossas excellencias, minhas senhoras, mas não sei que lhes faça, nem ha que fazer contra os desvarios de seu sobrinho. Quando elle voltar, eu irei pedir-lhe explicações do epitheto com que me brindou. No entanto, peço que me não perturbem a felicidade que devo a este anjo.

E, dizendo, aconchegou do seio Beatriz, e ella, encostando o ouvido ao seio esquerdo, disse admirada:

—Com que força o teu coração palpita, primo!


[Pg 59]

VI

Acabaram-se os festejos no Vidago.

Principia a vida serena, que Nicoláo de Mesquita anhelára.

Está a casa de Palmeira sósinha, em meio da sua muralha de cedros e alamos. Rodeiam-n’a por mais longe extensos almargeaes, relvas amenissimas, montados crespos de sovereiros. A estrada passa arredada. Nenhuns rumores do mundo alli vão quebrar os scismadores silencios. Este é o éden, qual preluzira ao morgado nos entresonhos, que lhe adoçavam os aborrimentos do seu viver com a franceza nos arrabaldes do Porto.

Anciára elle então um enlace honesto, uma virgem transferida do resguardo da pureza á adoração da vida conjugal, uma companheira para todas as[Pg 60] horas da vida pacifica, doirada de alegrias innocentes, honrada na consciencia propria e no conceito do mundo.

Parece que a Providencia déra tudo, e mais ainda, ao homem que não esperava o minimo das suas modestas, mas tardias ambições.

Para os quarenta annos, uma menina com dezeseis.

Para o coração escalavrado, um coração em flôr apenas desabrochado ao inculpavel beijo de um primo.

Para uma fortuna desfalcada por grandes desbarates, um grande patrimonio de filha unica.

Nicoláo subjugára a mais liberal das fadas, ou pactuára com o anjo das trevas a felicidade d’este mundo a troco da eterna perdição da alma? Nada d’isto. Era a natural absurdeza das coisas sub-lunares, como ellas se nos figuram quando as encaramos superficialmente e pela rama.

Em harmonia com o seu ideal de felicidade domestica, o morgado restringiu ao minimo a sua convivencia, não pagando as visitas, e faltando aos convites. Apenas Martinho Xavier ás temporadas vinha de Chaves ver a filha, ou algum velho parente, que se retirava anojado da insipida existencia dos senhores do Vidago.

Martinho Xavier encarava na filha, e perguntava-lhe, a occultas do marido:

—Tu és feliz?

E ella, com os olhos assaltados de lagrimas, respondia, n’um tom de amarga ironia de si mesma:

—Sou...

O pae contristava-se; mas dissimulava. Se a occasião lhe dava uma aberta dizia ao genro:

[Pg 61]

—Vocês vem a enfastiar-se d’este modo de viver!... Por que não vens estar com tua mulher em Chaves alguns dias, primo Nicoláo?

—Porque nos sentimos completamente felizes no nosso paraizo terreal—respondia o morgado.

—E receiaes ser desgraçados lá?

—Não, primo Xavier; porém, a nossa casa é aqui; e o entrarmos nos vãos prazeres da sociedade corre perigo de acharmos depois monótona a solidão. Deixa-nos assim estar, que Beatriz sente como eu; affeiçoou-se á quietação d’este viver, que te parece melancolico, e, se me não engano, prefere-o aos bailes da tua Chaves.

—Não sei... murmurou Martinho.

—Por que dizes que não sabes?

—Porque ella tem dezesete annos, e foi creada com as inoffensivas regalias da sociedade culta.

—Bem sei; mas uma senhora, que toma este sério e melindroso estado, renuncía ás regalias frivolas e chimericas de um baile, e de um conciliabulo de murmurações com as outras mulheres.

—Não me pareces o homem que viveu em França, na Belgica, na Inglaterra...

—É por lá ter vivido que penso assim, primo Xavier.

—Não é isso...

—Então que é?

—É o estares gasto, primo.

—Estarei para as impressões stultas e prejudiciaes, mas para amar tua filha tenho a energia d’alma dos vinte annos. Desmente-me Beatriz?

—Não: pelo contrario, diz que tu a adoras.

—Pois bem: que outro galardão querias tu como pae?

[Pg 62]

—Nenhum outro, primo Mesquita. O que eu receio, repito, é que esta serenidade desfeche em fastio...

—Não receies, meu amigo. Eu sinto-me ditoso n’este sequestro da sociedade, e encho do meu contentamento o coração de minha mulher. Temos horas de passeio, de conversação e de leitura. E depois, ajuntou Nicoláo sorrindo, possuimos bons estomagos, e dormimos muitas horas, e accordamos alegres. Esta é que é a verdadeira, a legitima, a sadia, a patriarchal existencia de nossos avós, primo Martinho Xavier.

—Está bom...—murmurou o pae de Beatriz, concluindo com erguer os hombros, fechando as palpebras.

Passaram seis mezes. Voltou Martinho Xavier, e attentou no rosto desbotado da filha.

—Tu padeces, Beatriz? perguntou o pae fagueiramente.

—Não, senhor: vivo triste. Que oito mezes tão vagarosos! Parece que estou ha oito annos a olhar para estas arvores. Passam-se dias e semanas que eu não saio de casa! Onde hei de eu ir? Ver correr a agua do Tamega? Estou farta de ver o Tamega. D’antes ia á missa aos domingos, mas o primo Nicoláo está a dormir até tarde, e nem á missa vae. Eu deito-me ao escurecer, e elle fica a jogar o voltarete com o reitor e com o administrador do concelho até ás onze. Depois vae cear, e obriga-me a cear tambem. Que vida, meu pae!... Eu sou realmente muito amiga de meu primo, mas não sei de que nos serve a riqueza aqui mettidos n’este ermo, sem ver ninguem! Tenho tantas saudades do papá, e da nossa casa, e das minhas amigas! A Therezinha[Pg 63] Pizarro fala de mim! Que mais feliz foi a Laura Canavarro, que me escreveu de Lessa da Palmeira, onde está a banhos, e já foi a dois bailes no Porto! E a Francisquinha de Villalva casa com o primo Raphael?

—Ora, menina! o primo Raphael está cada vez mais azougado d’aquella cabeça! Chegou de Hespanha ha dois mezes, esteve em casa uns quinze dias a recompôr a saude, pediu a Francisca de Villalva, e lá foi levado para Basto porque viu nas aguas de Verim uma menina da casa de Viade, e de Basto irá atraz de outra menina de qualquer casa. É um doido desmarcado!

—Elle falou-lhe de mim?

—Falou; perguntou-me se estavas contente.

—E o pae que lhe disse?

—Que havia de eu dizer-lhe?! que estavas contentissima.

—Fez bem. Não quero que elle se vingue.

—Vingar-se de quê? Pois tu deste-lhe motivo de odio?

—Não... mas...

—Explica-te.

—O pae bem sabia que elle me fazia a côrte.

—Uma brincadeira...

—Pois sim, mas, se eu fosse constante... vinha a casar com elle.

—Deus te livre, filha! Aquelle homem hade ser o flagello da mulher com quem casar...

—Quem sabe!...

—Sei-o eu. Antes infeliz com teu primo. Este, ao menos, é um esposo leal, inseparavel de ti, bom administrador de casa, e respeitado de todos. O outro vem a dar cabo do que tem, e está-se deshonrando[Pg 64] todos os dias com toda a casta de extravagancia. O que lhe vale é ter pae, que vae tendo mão na manta, e a grande herança que teve de uma tia; senão a grande casa de Fayões estava espatifada. Minha filha, dá louvores a Deus por teres casado com um homem, que te livra de casares com Raphael. Quando mais não seja, só por isto fizeste um optimo casamento.

Beatriz calou-se. Vinha entrando o marido com uma enorme pêra de sete cotovellos.

—Veja que prodigiosa pêra, primo Xavier! disse elle.

—É admiravel!

—Tenho magnificas fructas! Mandei fazer enxertos de pereiras francezas. D’aqui a dois annos o pomar mais rico de Traz-os-Montes ha de ser o nosso. Tu verás, Beatriz! Em França ha, no genero pêra, duzentas e tantas variedades.

—Porque não vaes mostrar Paris a tua prima? atalhou Martinho.

—Ora essa!—acudiu Nicoláo.—Se deixavamos a nossa casa para ir ver as paredes das casas dos outros!... Beatriz está farta de ver Paris nas estampas, que eu lhe explico perfeitamente. Pois toda a terra é mais para se ver na copia que no original!

—Ao menos vae até Lisboa ver a parentella que lá temos—replicou o fidalgo flaviense.

—Peior! redarguiu o genro. Minha mulher dispensa ver o D. José, da memoria do Terreiro do Paço, e as parentas contemporaneas da memoria. Quando cheguei de Bruxellas em 1834, fui procurar os numerosos Mesquitas que por lá estão em Lisboa, e achei uma gente exquisita, que me perguntava[Pg 65] se nós cá na provincia tomamos chá. As mulheres pareciam girafas empalhadas. Pelos modos e edade, creio que desde minha bisavó as nossas parentas de Lisboa embalsamaram-se em vida, e ficaram repimpadas nas suas poltronas, á espera da trombeta do juizo final. Querias tu que eu fôsse mostrar essa parentella gothica a minha mulher? Deus a livre, que a pobresinha havia de cuidar que a mettiam n’um salão subterraneo de Pompeia a conversar com as mumias de alguma familia, surprehendida, em oração mental aos deuses, pela onda do betume.

—Está decidido que não saes de Vidago—retorquiu Martinho.

—Isso não sei; mas por emquanto a necessidade não obriga, salvo se Beatriz o exigir.

—Eu queria, ao menos, ir estar em casa do pae algum tempo...—disse a senhora.

Nicoláo involuntariamente franziu o sobr’olho, e disse:

—Já se vê que não estás o melhor possivel com teu marido...

—Falsa interpretação, acudiu o pae. A menina não dizia isso, primo. Saudades da casa paterna implicam o bem-estar com o marido?

—É conforme...—atalhou Nicoláo.—Pois sim, iremos a Chaves.

—Não vamos, não, primo, atalhou Beatriz despeitada, simulando conformidade.

—Então vamos ou não vamos? perguntou o marido, entre risonho e contrariado.

—O que fôr da tua vontade—respondeu ella affavelmente, sopesando o despeito, como quem, apezar do melindre maguado, queria ir.

[Pg 66]

De feito, ao outro dia partiram para Chaves.

Beatriz cobrou as côres e a alegria dos olhos, assim que viu a janella do seu quarto, e os craveiros em flor, que ella cultivára. Parecia-lhe a ella que amava mais seu marido alli. Appareceram-lhe as amigas da infancia, alegres, buliçosas, esplendidas de vida, contando-lhe os seus amores, as suas esperanças, as venturas de outras amigas. E Beatriz escutava a chilreada d’estas avesinhas com os olhos aguados, e o coração cerrado. Por supremo esforço, desprendia um sorriso, e então era peior, que as lagrimas rebentavam para afogar a falsa expressão do seio angustiado.

Correu logo a noticia da vida desventurosa de Beatriz. Os tios d’ella afoitamente invectivaram Nicoláo pela reclusão e estiolamento em que tinha os dezoito annos da pobre menina; accrescentando que para escura sorte a havia creado o pae com tanto mimo.

Isto agastou grandemente o morgado. A resposta foi asperrima, e contraditada com assomos de ira e excessos de palavras. O resultado foi Nicoláo, ao fim de quatro dias, ordenar a sua mulher que se despedisse, para no dia seguinte voltar a Palmeira.

Beatriz obedeceu silenciosamente. Desde este momento, a casa dos Vahias parecia de lucto. Nicoláo deixou ir sua esposa despedir-se em companhia do pae, pretextando impedimento de saude.

Estava Beatriz em casa de suas primas Canavarros, quando Raphael Garção entrou, vindo de Basto.

Viu Beatriz, fez pé atraz, e não teve mão de si, exclamando:

—Como está mudada, prima!

[Pg 67]

Beatriz abaixou os olhos com immensa dôr.

—E eu que a considerava tão afortunada!—tornou Raphael.

—E quem te disse a ti que ella o não é?!—interveiu Martinho Xavier, de má sombra.

—Diz-m’o aquelle rosto, que era formoso e ridente como o do anjo da alegria!—respondeu impavidamente o leitor de Richardson e Byron.

—Pode-se padecer do corpo, e ser-se feliz da alma...—contrariou Martinho.

—Isso não sei—contraveio o morgado de Fayões.

—Sei eu.

—Pois muito estimo que a mudança de rosto de minha prima seja uma leve doença, tornou Raphael.

Martinho Xavier levantou-se, dando signal de saida á filha, que abraçou tristemente as primas, e estendeu a mão a Raphael, sem o fitar no rosto.

Ao outro dia, partiram para o Vidago aquellas duas almas que providencialmente se tinham unido por occultos designios, que me não edificam, nem provam o bom regimento e ordenação d’este globo. Seja perdoada esta mingua de admiração ao mal afiado acume do meu espirito. O ver successivamente a desgraça propria e as alheias dispara afinal n’uma cegueira de entendimento. É o que eu penso de mim, sem com isto me querer ingerir n’um cantinho d’este romance.

Nicoláo de Mesquita sentia-se mudado. Via-se interiormente. Ha uma visão interior, intuspecção dolorosa em que a gente vê estar-se-lhe a alma enrugando, apanhando e envelhecendo. Queria desabafal-a em caricias á mulher; mas faltava-lhe o ar expansivo, aquelle dilatar-se o coração para receber[Pg 68] as lagrimas refrigerantes da mulher que nos ama, e perdôa as faltas, o desamor e as iniquidades.

Concentrou-se.

Póde ser que ella o divertisse da sua introversão, se o acariciasse, mas Beatriz soffria mais que o marido, e começava a detestal-o. A precisada de caricias era ella, que duas angustias apertavam: a saudade, e o terror do porvir: o passado amor, renascido com a presença de Raphael: e o supplicio adveniente com o rancor, que ella sentia empeçonhar-lhe o intimo d’alma e a consciencia de sua irremediavel desgraça.

Sem embargo d’isto, os dois esposos viam-se a todas as horas, e trocavam expressões vãs.

—Porque soffres, prima?—perguntava elle.

—Eu não soffro.

—Mas que tristeza é essa?

—Sinto-me adoentada. E tu que tens, Nicoláo?

—Nada, Beatriz.

—Mas estás tão pensativo!...

—Medito na nossa sorte, e vejo que nos enganámos. Esta vida solitaria não quadra ao teu genio. Tu querias os brinquedos de solteira; e eu casei tarde para lhes achar prazer.

O silencio de Beatriz irritava-o; mas a delicadeza continha-o.

E, por este theor, travavam curtos dialogos, que rematavam em raiva suffocada.

Um dia, Beatriz não saiu do leito para a mesa do almoço. Nicoláo mandou-lhe a bandeja ao quarto pela criada. D’ahi a pouco foi elle, e viu intacto o almoço.

—Porque não comes?—perguntou elle.

—Não posso—respondeu seccamente a senhora.

[Pg 69]

—Queres que chame um cirurgião?

—A minha doença não a curam cirurgiões: ha de curar-m’a... bem cedo a morte.

Nicoláo riu-se sarcasticamente.

Sentou-se Beatriz no leito, e escondeu entre as mãos o rosto, para abafar soluços.

O marido contemplou-a com azedume, affastou-se.

Saiu; foi emboscar-se no arvoredo da quinta; e meditou meia hora.

Quando cessou de meditar, sentia saudades de Margarida Froment!

[Pg 71]


[Pg 70]

VII

Saudades de Margarida Froment?

A pergunta póde abonar a candura, mas não abona a experiencia de quem se dignou fazer-m’a.

Saudades de Margarida, porque havia sido amada apaixonadamente.

Porque era ainda bella, quando foi abandonada.

Porque houvera um homem que a tomára despresada nos braços, e a mostrava ao mundo com soberba de a possuir.

Porque esse homem era moço, gentil, fidalgo, e requestado das mais extremadas formosuras da provincia.

Porque esse homem, em vez de escondel-a nas sombras d’umas arvores, galeava pomposamente com ella, offuscando os olhos pavidos da moral publica.

[Pg 72]

Porque Margarida tinha prodigiosas graças, de que Nicoláo se estava lembrando agora.

Porque Margarida, sobre ser espirituosa, era um talento que bastava a entreter e lisongear o mais cubiçoso espirito.

Porque Margarida lhe havia sido leal até o momento de ser grosseiramente repellida.

Porque chorava, quando elle cruamente a odiava.

Porque era bella, digamol-o segunda vez, porque era bella.

E mais que tudo, porque era de outro.

Aqui estão os porquês da miseria do coração de Nicoláo de Mesquita, barro commum da humanidade, miseria deploravel, que importa chorarmos todos, por ser nossa a miseria, e não sabermos como se póde com lodo e lagrimas reconstruir uma coisa melhor do que a fez o Creador.

Peregrina belleza era Beatriz; esposa casta e paciente nenhuma se lhe avantajava; mulher para o ideal, e anjo para a sensação, nenhuma como ella; virtudes, graças, lagrimas do seio sem macula: tudo que mais prende o amor, e a misericordia quando o amor se extingue; tudo superabundava na esposa de dezesete annos; mas Beatriz era de Nicoláo indissoluvelmente, e Margarida estava sendo de Ricardo.

Que repulsivo confronto entre as duas mulheres!

Que mal premiada a honra, sujeita a comparações tão aviltantes!

Ora, a saudade do morgado da Palmeira excruciava-o. Era um ferro candente a fistular-lhe as entranhas. Da quinta do Porto, onde se anojára cinco annos, recordava-se como Lucifer do ceu. Parecia-lhe que Beatriz era o archanjo do montante de fogo,[Pg 73] a repulsal-o eternamente das delicias do coração. Fugia de si mesmo como corrido de sua ignominia. Punha os olhos supplicantes no oratorio de sua mãe. Apertava ao seio a esposa, como se esperasse apagar a flamma infernal em contacto da mulher pura. Margarida arrancava-o pelos cabellos dos braços da esposa, arrastava-o até se assentar com elle n’alguma amenidade das florestas, e ahi lhe dizia as phrases embriagantes dos primeiros mezes da sua paixão em Bruxellas, ou, debulhada em lagrimas, se queixava da ingratidão com que elle desamparára a mulher, por amor d’elle perdida, sem amigos, sem marido e talvez sem pão.

Era um supplicio expiador! Nicoláo conheceu que era preciso Deus para a misericordia, logo que lhe reconheceu a mão no peso do castigo. Não bastava o amor desesperançado: cumpria que o remorso lhe envenenasse o sangue: remorso de infamar um amigo e de lhe atirar ao gozo dos homens a mulher infamada!

Tinha momentos de contemplal-o com pavor Beatriz. Falava-lhe, e elle estremecia, articulando desatinos. Punha-lhe a mão no rosto abrazeado, e elle repellia os afagos, e voltava depois a procural-os, chorando.

Beatriz mandou secretamente chamar o pae.

Assim que Nicoláo presentiu Martinho Xavier no pateo de sua casa, saiu enraivecido, e voltou depois envergonhado da sua raiva, sem dar tino da razão da fuga nem da vergonha.

A attribulada senhora contára ao pae a incomprehensivel agitação do marido. Martinho chorava abraçado á filha, quando Nicoláo entrou. O lance foi[Pg 74] acerbo! Nicoláo acercou-se de ambos, abraçou-os, e disse com voz balbuciante:

—Eu fiz a vossa desgraça e a minha. Perdoae-me!

Beatriz condoeu-se. O pae levou-o nos braços á sala immediata, gesticulando á filha que os não seguisse, e perguntou:

—Isto que é, primo Mesquita? Que mal te fazemos nós?

—Queixei-me eu de ti ou de Beatriz?—disse maviosamente o morgado.

—É arrependimento de te haveres casado?

—É... Arrependimento de infelicitar a tua filha digna de uma alma estranha aos vicios e ás villanias atrozes.

—Pois bem, Nicoláo... remediemos o remediavel. Se a presença de minha filha te atormenta, eu levo-a para minha casa, que tambem é tua e d’ella. Se o amor tornar, vae buscal-a; se, sem Beatriz, viveres mais tranquillo, ella que fique em Chaves.

—Não!... atalhou o morgado.—A minha desgraça não se remedeia assim, nem d’outro modo. É um anathema! e um calix intransitivo. Hei de bebel-o trago a trago!...

—Santo Deus!—acudiu Martinho Xavier—que segredo é esse da tua vida? Se eu te visse na sociedade, cuidaria que te apaixonaste, primo! E então appellaria do teu coração para a tua honra.

—E se eu não tivesse honra!...—exclamou Nicoláo, e saiu impetuosamente da sala.

Martinho perguntou á filha:

—Teu marido recebe cartas suspeitas?

—Não, que eu saiba, meu pae. Recebe jornaes, e raras vezes tem cartas de França.

[Pg 75]

—E essas cartas sabes o que ellas conteem?

—Sei, porque são de um portuguez, e nada dizem de suspeito. Só, aqui ha tempos, li uma, que falava n’uma Margarida, e entendi que era a franceza do Ricardo de Almeida. Vim a saber que ella era casada, porque diz assim, pouco mais ou menos: «o marido de Margarida está gordo e devasso; e desforra-se.» Não percebi isto, nem me importou. Perguntei ao primo se a tal franceza era casada, e elle respondeu-me bruscamente que não sabia, nem eu me devia importar com as cartas que elle recebia. Porque me pergunta o pae se elle recebe cartas suspeitas?

—Nada, filha.

—Desconfia que elle ame outra mulher!—instou ella alvorotada.

—Desconfiei.

—É impossivel! exclamou Beatriz—Quem hade ser? Aqui ninguem vem; nós não vamos a parte nenhuma.

—Então que suppões tu d’esta pasmosa torvação de teu marido?

—Que me aborrece.

—Não é assim.

—É, meu pae. Elle não póde deixar de sentir por mim o que eu sinto por elle.

—Pois não o amas, Beatriz?

—Como hei de eu amal-o n’este martyrio? Sabe lá o que eu soffro ha dez mezes! E então, nos ultimos tres, não tenho refrigerio... Uma hora abraça-me, outra repelle-me. Já temi que elle endoudecesse... Meu pae,—proseguiu ella com vehemente fervor de supplica—tire-me d’aqui, leve-me para si,[Pg 76] restitua-me uma parte da satisfação que eu tinha de viver, antes d’esta fatalidade!

—Paciencia por alguns dias, filha!—replicou o pae enternecido a pranto.—Isso não póde ser assim. O mundo assacaria aleivosias deshonrosas para todos. Já agora tem força por mais algum tempo; é o teu bom pae que t’o pede.

—Terei—disse resignada Beatriz.

Martinho deteve-se alguns dias no Vidago e saia com frequencia a longos passeios de cavallo com o genro. Da mesmeidade dos annos, da amizade da infancia e sobre tudo da necessidade da expansão, resultou que o morgado da Palmeira, n’um d’aquelles passeios, communicasse ao primo os pormenores todos da sua angustia. O assombro de Martinho Xavier foi afflictivo. Pôde muito comsigo que não lançasse em rosto ao marido de sua filha a protervia, a perfidia, a villania com que tramára o engano, do encontro com a franceza em Villa Pouca; e mais ainda o villipendio do emparelhar o amor de sua filha com o de uma collareja transmissivel de homem para homem. Era santa a indignação do pae!

Ouviu-o silencioso, e apenas lhe disse:

—Vence-te, se poderes; se te não poderes vencer, dá-me minha filha, e vae disputar essa mulher a teu primo Ricardo, que eu creio que lh’a tiras; e elle ou outro, quando estiveres saciado, t’a virão tirar.

Nicoláo pungiu-se e arrependeu-se da revelação.

Exigiu-lhe o juramento de calar o segredo a sua mulher. Martinho Xavier respondeu:

—Quando se trata de affrontar minha filha, escuso de jurar que não hei de affrontal-a. O que te[Pg 77] peço é que a deixes ir estar quinze dias em minha companhia.

—Pois sim, mas dispensa-me de acompanhal-a. Espero que a solidão e meditação me curem. Logo que eu me sinta mais tratavel, irei buscal-a, e passarei comtigo algumas semanas. Iremos todos a Madrid; eu mudarei de vida, entrarei outra vez no mundo; e darei á minha pobre Beatriz o contentamento que lhe roubei.

—Deus te ouça!—exclamou jubilosamente Martinho Xavier.

Beatriz cuidou de abafar de alegria, quando o pae lhe noticiou a ida. Tratou de emmalar os seus adornos com tal prestesa, e de tamanho afogadilho, que de sobra denotava a levesa dos dezesete annos, e a facil transposição do seu espirito da dôr para o contentamento. Nicoláo despediu-se d’ella com os olhos a reverem lagrimas. Os de Beatriz nem de leve se marejaram. Partiram.

N’este mesmo dia abriu Nicoláo de Mesquita a Coalisão, jornal portuense, e, acaso, relanceando a vista ao folhetim, depararam-se-lhe as palavras Margarida Froment. Leu o folhetim, que se intitulava:

Á BEIRA-MAR

Era uma mescla de verso e prosa, consoante o gosto dos litteratos amphibios d’aquelle tempo. Começava assim n’este estylo fraldoso e apopletico, vulgarmente chamado biblico:

«.........................................

«E o teu cantar é saudoso como o das filhas de Israel ás abras das aguas plangitivas do Euphrates.

«E as harpas eolias gemem bafejadas por teus labios, como a cythara de Saul.

[Pg 78]

«Oh Agar, sentada nas areias estuosas do deserto de Berzabé! Canta, canta, oh filha das lagrimas!

Ai! quantas vezes, ó triste,
Esse teu amargo pranto
Desafogaste no canto!
Ai! quantas vezes sentiste
Mais precisão de chorar!...
Ai! canta, canta, que ha lagrimas
No teu dorido cantar!

.............................................

Ao cantar te acode a infancia
Com seus sorrisos e flores;
Feres notas que te falam
Como falavam amores,
Outras são gemidos d’alma;
Mas todos teem seu gozar!
Ai! canta, canta, anjo triste,
Quando quizeres chorar!

.............................................

«E o archanjo d’aquelles hymnos tem sobre a terra um nome. Na linguagem de homens chama-se Margarida Froment; mas, nos archivos do céu, o nome que tem é Martyr do Coração.

«Por que o teu seio foi alanceado fibra a fibra pelo primeiro precito, que te esculpiu um anathema na fronte, onde os raios fulgidos do sol desciam a roubar seu esplendor!

«E esse maldito de Deus feriu-te na aza de anjo, ó pomba dos paramos olympicos, e tu caiste ao tremedal da humanidade.

«Ó Margarida! quem sabe ahi dizer sobre a terra a alegria das tuas angustias!

«E eu vi-te por uma d’essas noites esplendidas, como as sonha o arabe no dulcissimo torpor dos seus magicos narcoticos!

[Pg 79]

«Illuminava o inferno d’este mundo, oh houri, enviada pelo Deus dos ismaelitas.

«A tua belleza era o arrebol matutino.

«E os teus olhos afuzilavam torrentes electricas como os relampagos abertos da mão de Jehovah nas cumiadas do Sinay.

«E os teus labios desprenderam um cantar, cuja maviosidade fazia chorar os anjos no ceu, e os demonios no inferno.

«E o homem, que te havia roubado aos braços do esposo, esse não chorava, porque uma aragem da região glacial das trevas lhe tinha congelado as glandulas, e o sangue nos pulmões, e fizera d’aquelle coração um cinerario hediondo, como os pomos de Pentapolis!

«Oh Margarida, que dôr será a tua, insondavel e immensissima, quando o coração te paira por terras de França, e vês a mãe que te carpe, e o marido que aperta ao seio o inutil punhal de sua vingança!...

«Ai! canta, canta, que ha lagrimas
No teu dorido cantar!
Ai quantas vezes sentiste
Mais precisão de chorar...
Ai! canta, canta, anjo triste!»

.............................................

Seria crueza dar a copia integral do folhetim, que ao deante, era muito mais puxado do peito, e menos intelligivel.

O poeta datara-o na Foz em outubro de 1840.

Uma local do mesmo numero da gazeta, dizia:

«Á beira-mar. Com este titulo publicamos hoje um folhetim de um nosso amigo, que tão brilhantemente[Pg 80] se estreia. As letras patrias devem esperar d’este mancebo fructos tão sasoados quanto as flores são bellas. Á parte o talento senão genio, do mavioso poeta, devemos confessar que o motivo de sua inspiração não podia sair com menos de uma obra prima. Tambem nós tivemos a honra e o jubilo de escutar hontem á noite a voz melodiosissima de mad. Margarida Froment, dama já conhecida por sua belleza e intelligencia. Agradecemos cordealmente ao cavalheiro Ricardo de Almeida o convite que nos proporcionou ajuntarmos o nosso brado de admiração ao de tantos, que se gosaram o prazer de ouvir a hospeda de sua excellencia. Do folhetim do nosso jovem amigo infere-se que ha profundas e ao mesmo tempo sublimes dôres no coração d’esta senhora. Ai da consciencia do refalsado caracter que privou a sociedade de uma gloria!

«Que o mundo é inexoravel com as desgraçadas, que, ainda abatidas do ceu, roçam as nuvens com a fronte. Silencio! Saudemos o formoso anjo da harmonia, e não perguntemos a Deus por que não teve mão d’esta filha querida, ao despenhar-se!»

Nicoláo de Mesquita leu a chorar as ultimas linhas d’esta noticia.


[Pg 81]

VIII

Ricardo de Almeida sentiu no seu braço o tremor do braço de Margarida, quando, por noite de lua cheia, passeiavam á Beira-Douro, no sitio de Sovereiras, em S. João da Foz. N’aquelle relanço perpassára por elles um encapotado.

A franceza vira uns olhos faiscantes por sobre a fimbria avelludada da capa: eram os olhos de Nicoláo de Mesquita. Voltára o pescoço para observar-lhe o andar: reconheceu-o.

—É o Mesquita! murmurou ella assustada, amiudando o andar.

—Devagar! disse o fidalgo do Pontido. Que importa que seja?!

—Dizes bem... Que importa que seja?

Nicoláo voltára no encalço d’elles apertando o pé. Ricardo de Almeida deu tino d’isto, e affroixou o passo. Margarida tirava por elle com força.

[Pg 82]

—Que significa este medo? perguntou o moço, offendido da inquietação da franceza.

—Nada, meu amor, disse ella.

Ricardo parou, e Nicoláo foi ávante.

—Queria vêr-te indifferente á apparição d’este homem! observou Ricardo com intenção, e gesto magoado.

—Creança! ciciou ella com encantador sorriso. A indifferença é o despreso, e eu odeio.

Entraram silenciosos em casa, e viram ao longe o vulto na esplanada que entesta com a fortaleza. Ricardo saiu rebuçado e armado. O do Vidago já lá não estava. Deteve-se o indiscreto cioso nas travessas visinhas de sua casa.

Eram onze horas.

A franceza abriu as janellas, sentou-se ao piano, e cantou uma romança franceza. As vibrações da voz eram desnaturaes. Havia a paixão da saudade n’aquelle cantar.

Nicoláo de Mesquita escutava-a da janella do hotel, e Ricardo da escuridão de uma viella intransitada.

Calou-se a voz.

O marido de Beatriz sentou-se a escrever a quinta folha de uma carta a Margarida. O castellão de Aguiar foi de manso, por sobre tapetes, até ao piano de Margarida, e surprehendeu-a com os cotovellos apoiados no teclado, e o rosto entre as mãos. Tocou-lhe no hombro: ella expediu um grito argentino como a mais alta das notas que acabava de cantar, e surriu-se por lhe ser mais prompto o riso que as lagrimas.

—Tu amas Nicoláo? perguntou Ricardo com uma precipitação infantil.

[Pg 83]

—Que semsaboria! disse Margarida, e abaixou a fronte carregada.

—Porque estás triste? Que recordas?

—O tempo em que eu era feliz, meu amigo.

—Com Nicoláo?

—Não: com minha mãe, com meu marido, com a estimação propria, e com a estimação do mundo.

—E é Nicoláo quem te desperta essas recordações?

—Naturalmente... Foi elle quem tudo me roubou.

—Então não o amas? voltou elle com muita ternura, beijando-lhe as mãos.

—Nem que elle me restituisse tudo o que perdi.

No dia seguinte, o jockey de Nicoláo apresentou a Margarida, na ausencia do amo, uma carta volumosa.

—Quem te deu isto? perguntou a franceza.

—Um criado do hotel inglez.

Margarida leu as vinte laudas; quando a vista se lhe turvava, depunha a carta e enxugava os olhos. Finda a leitura, escreveu na margem da ultima folha: Esta carta é o prefacio da minha vingança. Lacrou-a e devolveu-a pelo jockey, dizendo:

—Se trouxeres outra, envio-te com ella a teu amo.

Assim que Ricardo entrou, Margarida foi cariciosamente aos braços d’elle, e disse:

—Vamos. Tens medo de fraquear, Margarida?

—Não. Se eu podesse fraquear, a mudança de terra seria debilitar-me, em vez de robustecer-me.

Na tarde d’este dia, Nicoláo de Mesquita viu passar em carro Margarida e Ricardo, caminho do Porto. Esperou-os no regresso até noite alta. Era uma[Pg 84] cabeça perdida, a esta hora, a do miserando homem! Sabia que tinha duas pistolas entre mãos, e que sobre sua cabeça ia estalar a maior e ultima tempestade. O alvor da manhã bruniu-lhe o rosto livido de um verniz embaciado de cadaver. Ao raiar do sol foi para casa, que Margarida e Ricardo não voltaram.

Ás dez horas, estava febril no leito. Na sala do hotel, proximo do seu quarto, conversavam algumas vozes. Eram cavalheiros da provincia. Dizia um:

—O Ricardo e a franceza embarcaram para Lisboa ás nove horas.

—Gasta como um principe o transmontano!

—Que fortuna tem elle?

—Dizem que está vendendo.

—A mulher vale bem a pena de gastar-se a fortuna, e ficar a gente com a doce recordação de a ter tido a ella.

—Não pensou assim Nicoláo de Mesquita, o antigo possuidor.

—Nunca vi esse leão.

—Conheci-o eu. Foi elle quem a tirou ao marido. Teve-a por ahi com modesto recato. Depois, foi casar-se na provincia com a mais bonita creança que os meus olhos viram em Chaves, e nas primeiras cidades da Europa. Aquillo é que é saber viver!

—Mas a Margarida Froment é uma grande mulher!... confessem!...

—Confessamos, mas quem a faz maior é o patavina do Ricardo! Estas soirées que elle dá são de um ridiculo monumental! Apresentou-m’a como sua hospeda! Que baboseira! A gente faz-se tola, e vae ser apresentado á hospeda...

—Assim é que se faz o escandalo por grosso.

[Pg 85]

—Quando elle tiver vendido as ameias de um castello, que tem na provincia, a hospeda muda de hospedaria.

—Tomáras tu que ella mandasse preparar aposentos em tua casa...

—Pagando-m’os.

—Maganão! por tua vontade não espera ella que o Ricardo venda os torreões do solar dos Almeidas por quem sempre o Tejo chora...

—Era publica e notoria a tua paixão.

—Gostava d’ella: não ha nada mais humano.

—Mas parece que não mareaste bem n’aquelle rumo... Foste a pique, eim?

—Ha derrotas que são triumphos. Fez-me o favor de me offerecer a sua amisade fraternal.

—Que irmã! É uma honra ser irmão d’aquella Margarida...

—Confessemos que a mulher é leal. Ave rara n’esta terra!

—E mais rara nas aves arribadas de França.

O fallarío proseguiu. Nicoláo ouvira tudo encostado aos alisares da porta.

Entrou um novo interlocutor, que foi muito festejado. Era Raphael Garção que chegava de Chaves.

—Aqui está quem conhece Ricardo de Almeida... Sabes que elle foi hoje para Lisboa com a franceza?

—Foi! ó diabo! eu vinha conquistar a franceza! disse Raphael. Nunca a vi! E eu não posso ser mais que Cesar. É preciso vêr para vencer; por em quanto, apenas fiz o que pude: cheguei.

—Vens mal informado! É de uma fidelidade, que toca o limite do escandalo. Vinhas a isso?

[Pg 86]

—Algum de vossês conhece Nicoláo de Mesquita? perguntou Raphael.

—O antecessor de Ricardo?...

—Como antecessor de Ricardo?! Que tem a franceza com o Mesquita?

—Estás em dia!... Pois não sabes que o Mesquita veio de França com esta mulher?

—Na provincia ignora-se essa coisa... Pois... Vocês teem a certeza...?

—Vi-os eu no Porto, em 1834 até 1839. Isto é do dominio universal desde a rua da Reboleira até á viella de Fradellos, na cidade invicta!

—Sabem se elle está por ahi, o Mesquita?

—Não.

—Deve estar, e eu vim procural-o. Saí de Chaves a buscal-o em casa. Disseram-me que elle tinha saído para Villa Real. Em Villa Real tive noticias que elle passára em Amarante. Em Amarante disseram-me que o tinham encontrado em Baltar. O homem está aqui e agora me convenço de que a franceza não é estranha a esta mysteriosa jornada. Pobre Beatriz! Lembras-te d’aquella minha prima que te mostrei em Chaves, Albuquerque?

—Ainda ha pouco falei d’ella. Que linda mulher! Já sei que ella casou com o Mesquita. Não lhe fazias tu a côrte n’aquelle tempo?

—Amei-a com o unico amor nobre e santo que tenho experimentado; mas, como tudo que é nobre e santo não apega n’esta lama do mundo, assim que a vi despregar o vôo para as serenas regiões do matrimonio, agarrei-me ao pandeiro de uma andaluza, e fui terras de Castella dentro, em conquista d’aquelle gallego coração, que só me comprehendeu, depois que eu lhe mostrei um porte-monnaie[Pg 87] maior que o coração. Quando voltei, achei minha prima casada com o primo Nicoláo. As melhores flores d’aquelle rosto estavam amortecidas; mas ainda assim, não sei de outra mais linda. Ha de haver seis dias que cheguei a Chaves, e encontrei grande agitação em casa do tio Martinho Xavier. Era Beatriz que estava em perigo de vida a lançar golphadas de sangue...

Abriram-se de golpe as portas de um quarto, e appareceu Nicoláo de Mesquita, com as faces incendidas e os cabellos descompostos. Volveram todos áquelle ponto os olhos, e Raphael Garção vacillou em reconhecel-o.

—O sr. Raphael Garção pode entrar no quarto de Nicoláo de Mesquita—disse o morgado n’um tom solemne, que pareceria ficção theatral, se elle não estivesse febricitante.

O de Fayões entrou como espavorido d’aquelle aspecto esgazeado.

—Minha mulher que tem? perguntou Nicoláo com a respiração anciada.

—Não a vi. Encarregou-me o tio Martinho de procurar o senhor Mesquita, e dizer-lhe que a prima Beatriz estava em perigo. Quiz desempenhar o recado, e vim dar-lh’o ao Porto.

—Eu parto sem demora. O senhor Raphael Garção vae dar-me sua palavra de honra de occultar de minha prima que me encontrou aqui?—disse solemnemente Nicoláo.

—É escusada a solemnidade do juramento, senhor Mesquita.

—Dirá que me foi procurar á quinta da Murça.

—O que vossa excellencia quizer que eu diga.

—E, se ella tiver morrido, meu Deus! exclamou[Pg 88] o morgado. Pois o ceu ha de castigar-me assim, por eu não saber esconder n’este perdido coração aquelle anjo! Oh!... que infernaes abysmos eu tenho cavado em redor de mim!... Hei de afinal despedaçar-me, como aquella maldita vaticinou!... Alli fóra, senhor Raphael, contaram-lhe o meu opprobrio! Não sabe, não sabe que aviltada alma é a minha!... Eu vim aqui por amor de uma mulher perdida, que passeia orgulhosamente a sua devassidão á luz do sol. É uma condemnação de que não póde salvar-me a mulher sem nodoa, a doce e celestial creatura, que eu amo tanto!... Deus não m’a ha de levar! Tão nova e tão linda!... Como eu a adoro, senhor Garção!... Creia que eu amo minha mulher com o ardentissimo fogo de um remorso, que me está sendo a tortura dos reprobos!...

Raphael ouvia-o espantado. A gesticulação e o cavernoso do clamor impressionavam; mas Raphael era futil de mais para ponderar a ingente dôr, que se desentranhava em termos de tragedia velha.

O leitor naturalmente faz o que não fez o frivolo morgado de Fayões; é capaz de rir-se, e perguntar-me que especie de doidice é a de Nicoláo de Mesquita.

É uma especie de doidice, que se chama a razão humana. Á gente de juizo pode offendel-a a resposta paradoxal; mas os philosophos, que tambem são uma especialidade de doidos, hão de admittir-m’a em sã e escorreita dialectica.

Levantemos o véu, onde elle não estiver roto, de sobre o coração do morgado da Palmeira.

Chegára elle da Foz com a alma lanhada de remorsos, e a cabeça estonteada de uma vertigem de[Pg 89] amor. Estas duas paixões exacerbavam-se uma á outra. Sem a saudade o remorso seria chimera.

Margarida, era, ou parecia, feliz: despontaram-se logo os espinhos do remorso. Ficou o amor. Repelliu-o Margarida devolvendo-lhe a carta com um sarcasmo: esvaiu-se o amor. Logo, nem amor, nem remorso.

Outras duas paixões o assaltearam logo: o orgulho e o rancor. Estas paixões queria Nicoláo de Mesquita desabafal-as pelas boccas das pistollas; porém como as victimas se furtaram á hecatomba, sobrevieram as agonias da vingança mallograda, e logo a febre. Ora, desde que as doenças moraes se consubstanciam no corpo e se submettem ás prescripções da pathologia medica, a individualidade da alma anniquila-se, e a paixão, degenerada em desconcerto dos systemas sanguineo e nervoso, ou se cura medicinalmente, ou mata, com o pseudonymo de congestão cerebral, febre typhoide, ou qualquer nomenclatura significativa de que a pessoa sem duvida nenhuma, está bem morta. Os convalescentes d’estes ataques—e raros são os que succumbem—assim que o sangue lhes funcciona normalmente, sentem-se por egual alliviados de alma e corpo. A vertigem, que os quebrantou, deixa leves estragos no espirito, remediaveis com a mera acção do tempo. Nicoláo de Mesquita, agudissimamente affectado, como se viu, fez crise em menos de vinte e quatro horas, porque a seu favor conspiraram calmantes muito efficazes. A palestra dos provincianos, desdourando Margarida embaciara-lhe o prestigio. Bem sabem que thermometro é este do prestigio para graduar a temperatura do coração humano. Ao mesmo tempo, os encarecimentos á formosura de[Pg 90] Beatriz, sem palavra que a desairasse, sobredouravam a aureola na fronte da esposa virtuosa. Depois, n’este conflicto, entre o odio a Margarida, e o amor escandecente a Beatriz, chega a nova da perigosa enfermidade. Nicoláo, se podesse escrever o relatorio das suas sensações e revoluções sanguineas e um medico as pozesse em termos de se lerem com um embrechado de nomes gregos, a gente não entendia nada; mas acreditava que se deram grandes phenomenos no coração do morgado. O capitalissimo de todos é que elle, depois da explosão que lhe ouvimos, não fallou mais em Margarida Froment, e galopou noite e dia arrebentando cavallos, até chegar a Chaves.

Beatriz estava á janella, quando seu marido e Raphael apearam.

Nicolau expediu, ao vel-a, um grito de jubilo. No topo da escada tomou-a nos braços, e beijou-a soffregamente. Era um phrenesi de ternura assustador!

Estava ella encantadoramente desmaiada. As mulheres assim pallidas, se a pallidez é symptoma de irem breve a outros mundos, devemos crer que o seu creador começa então a namoral-as para depois as levar para si.


[Pg 91]

IX

O assustadiço amor de pae encarecêra a doença de Beatriz. O perigo de vida fôra uma ligeira hemorrhagia nazal, que não deu tempo a glorificarem-se as sciencias medicas de mais um triumpho.

Observou o morgado um ar de resentimento assim no rosto da esposa como no de Martinho Xavier. Á cordealidade dos abraços responderam-lhe glacialmente, e ás perguntas sobre a enfermidade de Beatriz davam umas respostas ironicas e enfastiadas.

Raphael Garção, no bom intento de conciliar os animos, contou que fôra á quinta de Murça procurar o primo, e o encontrára doente, com o medico á cabeceira; e ajuntou que por pouco o não matára com a noticia da perigosa enfermidade da prima Beatriz.

O mentiroso radiou uma luz nova nos olhos de Martinho Xavier, e entreabriu nos labios de Beatriz[Pg 92] um sorriso de indulto. Nicoláo, assim que o lanço se lhe ageitou, apertou-lhe a mão e disse:

—Graças, meu bom amigo!

—Mentir como o diabo, diz Voltaire—respondeu o de Fayões.—A verdade póde ser a ventura dos predestinados; porém nós, miseros peccadores, carecemos de mentir a torto e a direito, primo Mesquita.

—Sem deshonra propria, nem damno alheio—acrescentou o do Vidago.

—Ah! vossa excellencia quer moralisar-me? O lobo despe a pelle, e enverga a sotaina? Primo Nicoláo, quem tem uma mulher como Beatriz...

—Cale-se que podem ouvir-nos...

—Deixe estar que eu hei de castigar o Ricardo. Quem lhe ha de empalmar a franceza hei de ser eu. Assim que me constar que ella está no Porto, vou lá: quero inscrever o nome de Margarida Froment n’uma casa em branco, que deixei entre a Aldonza Lourenzo do pandeiro, e uma primeira tragica do theatro de Amarante. Orçam na moralidade.

Arrugou-se a fronte de Nicoláo de Mesquita. Pezara-lhe o ultrage: é que elle vira n’aquelle momento Margarida Froment, encostada ao braço de seu marido, oito annos antes, repartindo recursos e consolações pelos operarios da sua fabrica de Leão, enfermos, e de mãos postas a orarem pelo anjo da caridade.

Esbordava-lhe o coração de lagrimas, quando se arredou friamente do sarcastico mancebo. Foi intermittencia momentanea.

Martinho Xavier abriu as suas salas, n’aquella noite, á sociedade flaviense. Beatriz dançou com[Pg 93] seu marido, como ha vinte annos se fazia na provincia sem irrisão. Raphael distinguiu-se no solo inglez, e aprimorou-se n’uma gavota com sua prima. A gentil senhora respirava a peito cheio o ar tepido e balsamico das salas. O setim da cutis retingiu-se-lhe. O marido parecia-lhe outro homem e as flores das jarras figuravam-lhe as primeiras da sua nova primavera. Dava ares de creança; e o marido consolava-se de vêl-a assim.

Seguiram-se outros bailes, e Nicoláo de boa vontade em todos. Balbuciou Beatriz o desejo de residir em Chaves. Em poucos dias, se passaram as preciosas decorações do palacio de Palmeira para outro de Chaves. Martinho Xavier estava em permanentes acções de graças ao Senhor dos Milagres! Via a filha feliz e o genro transfigurado.

No viver intimo, a mudança da indole de Beatriz fôra menos sensivel do que devêra presumir-se. Aquelle temperamento, fóra da quentura dos salões esfriava. Recebia os affagos do marido, como se elle meramente fosse o tio Nicoláo. Ella mesma não sabia dar-se conta da atonia da sua alma. Parecia-lhe que o tinha amado um anno antes, sem dar tento de uns cabellos brancos, que lhe listravam o bigode, nem da calvicie incipiente que lhe affeiava um tanto a cabeça. Calculava, computava os annos, e chegava á exactissima deducção de uma coisa que a mortificava: e era que o marido havia de ter cincoenta e dois annos, quando ella tivesse trinta. Nicoláo era intuitivamente advertido d’estas secretas meditações. Revelava-lhes a razão esclarecida; mas, assim mesmo, confiava bastante de si para deixar-se avassallar de uma suspeita indecorosa a sua mulher. Erro palmar dos homens, que foram[Pg 94] muito queridos até aos trinta annos, e se presumem encouraçados e invulneraveis ás injurias do tempo e ás desgraças, que não pouparam propriamente os deuses olympicos, e outros mais importantes deuses terrestres.

Chegado o verão d’aquelle anno de 1841, o morgado da Palmeira foi passar a sasão estiva no seu solar, convidando a acompanhal-o algumas damas e cavalheiros parentes, sem olvidar-se de Raphael Garção, por quem cobrára grande estima. Se alguma hora lhe sombreou o espirito a lembrança ingrata de que fôra Raphael o espertador do coração de sua mulher, acudiam-lhe á memoria as palavras ouvidas no hotel da Foz com referencia ao puro e respeitoso amor que lhe sagrára. As suspeitas fugiam logo envergonhadas, e a confiança restabelecia-se, cimentada nas virtudes de Beatriz, e nas mil diversões amorosas do morgado de Fayões.

Por outro prisma via as coisas Martinho Xavier, sem embargo do conceito que formava da filha. Raphael é que para elle significava o supremo patife das duas provincias do norte, juizo, a meu vêr, moderado, attentos os adulterios, seducções e barganterias femeaes, que corriam por sua conta. Assim, pois, era certo surgir, como por encanto, Martinho Xavier á beira da filha, logo que Raphael Garção se avisinhava d’ella sem testemunhas de acrisolada probidade. Este resguardo não o revelava elle ao genro; porém, visando ao scôpo com a pontaria n’outro alvo, desfazia nas qualidades do sobrinho, e contava os adulterios com taes visagens, que um marido cioso, na posição de Nicoláo, teria desde logo horror do seu proprio infortunio, enforcaria a mulher.

[Pg 95]

O morgado ouvia as tenebrosas historias, e dizia:

—Ha-de ser a quarta parte do que diz o mundo, primo Martinho. Não sejamos vulgo. Eu, antes de emigrar, gosei fama de ter um harem na minha quinta da Ribeira d’Oura, e de ter obrigado cinco paes de familia a enclausurarem as filhas, e de ser a causa funesta de alguns maridos aferrolharem as esposas infidas na casa do Ferro[2]. Pois, meu amigo, sob minha palavra de cavalheiro te assevero, que antes de emigrar, apenas tinha galanteado uma tecedeira, a qual tecedeira galanteava ao mesmo tempo o meu padre capellão, e veiu por fim a casar com o meu lacaio. Eu era isto, quando tu e os outros hypocritas—disse elle sorrindo—me chamaveis o terror das familias. Pois argumenta de mim para Raphael Garção. Que sabemos nós positivamente? O que elle nos conta, com a fatuidade propria da sua edade. As atoardas que correm, quem as verifica? Os maridos infelizes? Que é d’elles?

—Calam-se—respondeu Martinho Xavier.

—Isso não é nas nossas montanhas, primo. Os maridos ultrajados, quando se calam, fazem fallar a bocca das clavinas.

A discrição do pae de Beatriz rematava aqui o dialogo. Nicoláo permanecia alguns minutos pensativo, e ia de um relanço insuspeito devassar o coração de sua mulher, e espiar os olhos do hospede. Encontrava-os sempre distraidos um do outro, ou conversando as mais innocentes praticas, na presença de Martinho.

[Pg 96]

N’um d’aquelles dias, ergueram-se alegres vozes subitamente na casa de Palmeira. Foi por que, findo o almoço, Nicoláo de Mesquita, tartamudeando de commovido, annunciou que sua esposa sentia os primeiros indicios da maternidade. Foram as senhoras beijal-a nos braços do pae, e os cavalheiros brindaram clamorosamente o vigesimo quinto senhor de Palmeira. Ao terceiro dia, ao setimo, e ao decimo quinto, depois da nova, celebraram o jubilo com trez bailes, e trez jantares, e trez ceias. Concorreram os poetas de Villa Real, de Chaves, de toda a terra em que Deus plantára um poeta, com capacidade de fazer um soneto.

Beatriz era infantilmente amimada por seu marido, que chorava alvoraçado pela deliciosa expectação da paternidade! Andava elle a inventar-lhe incommodos, para ter o goso de a desvelar com branduras e melindres, que excediam a seriedade de um marido. Receava que a chilreada dos passaros lhe turvasse o somno matutino, e mandava á noite espancar a passarinhada das copas dos chorões. Cuidou que o aroma das flores damnificasse á geração e mandou cavar os alegretes e taboleiros sobpostos ás janellas do seu quarto. Com estas competiam outras crendices não menos irrisorias.

Assim que as chuvas de outubro ameaçaram, cuidou-se na mudança para Chaves.

Martinho Xavier contrastava a alegria de todos. Definhava-se a olhos visto, e respondia com estranho aspeito aos cuidados de Beatriz, e com rancoroso gesto ás delicadas attenções de Raphael.

Fôra o caso que elle, n’uma ante-manhã, ouvira abrir subtilmente uma porta envidraçada do quarto de Raphael, e o vira passar ao jardim, e sumir-se[Pg 97] entre uns maciços de murta, e voltar, instantes depois, a fechar-se no quarto. Isto preoccupou-o em dolorosas conjecturas.

Assim que foi dia claro, desceu Martinho Xavier ao jardim, fez umas voltas na visinhança dos maciços, e emboscou-se n’elles, sem ser visto. Examinou os recantos, esquadrinhando algum vestigio. Dois vasos de porcellana ladeavam a entrada de uma gruta, comada de maracujás e baunilhas. Meditou, e desistiu de atinar com o intento de Raphael. Saiu, reflectiu ainda, e retrocedeu. Levantou um dos vasos, e viu que a terra secca, rebordando-lhe o fundo, indicava que não fôra bulido. Examinou o outro, e descobriu claros indicios de ter sido deslocado e, na terra em que elle assentava, o signal de ter alli estado um corpo mais liso, pois que o restante da terra estava crespo das saliencias do vaso. Inferiu que estivera alli uma carta. Assim se explica a maceração do rosto do fidalgo, e a severidade com que tratava a filha, e repulsão odienta com que afastava de si o sobrinho. Quinze dias se erguêra de noite, esperando a alvorada, e mallogrando-se-lhe as vigilias.

Ao anoitecer, porém, da vespera da mudança para Chaves, viu elle sair a filha apressada de entre os maciços, e responder ao marido que chamava de uma janella. Ao mesmo tempo descobriu a distancia, mal embrenhado n’um bosquete de amoreiras, o morgado de Fayões, olhando na direcção das murteiras. Correu Martinho Xavier, encoberto pela ramagem, a erguer o vaso suspeito. Encontrou uma carta. O papel caiu-lhe das mãos convulsas. Quiz sair; mas o tremor das pernas forçou-o a sentar-se no banco de cortiça, que adornava o interior[Pg 98] do caramanchel. Cerrára-se a noite. Ouviu fremir a folhagem perto. Era Raphael Garção, que saltava por entre uns buxos defesos á observação da casa. Acercou-se o moço lestamente do vaso, levantou-o, palpou, esteve um instante suspenso, deixou-o baixar; mas, ao tempo que o pousava, sentiu uma pressão de ferro nas vertebras cervicaes, e bateu em cheio com o rosto no gradeamento do caramanchel. Reconheceu a mão que o sopesava, quando ouviu a palavra:

—Infame!

—Meu tio! murmurou elle—por quem é!...

—A tua morte, villão!—bradou suffocado o pae de Beatriz—a tua morte, villissimo lacaio, seria um escandalo, quando não, havia de arrancar-te a collada. Ouve-me bem, canalha! se esta noite não te despedires com qualquer pretexto, e o sol de ámanhã te vir n’esta casa, maldito seja eu, se te não matar. Entendeste-me bem, biltre?

—Cumprirei a sua vontade—respondeu Raphael.

—Ámanhã minha filha e meu genro vão para Chaves—tornou Martinho Xavier.—Se você não quizer ser azorragado debaixo dos olhos d’ella pelos meus criados, não passe mais debaixo das suas janellas. Martinho Xavier cumpre o que promette.

Saiu o pae de Beatriz, e encerrou-se no seu quarto. Abriu a carta, leu-a, e desafogou-se n’uma profunda expiração de contentamento.

Dizia assim a carta:

«Meu pae desconfia. A tristeza d’elle não póde ser motivada por outra coisa. O ar carrancudo com que me falla é mais uma prova. Reparo que tambem te encara com maus olhos. Sejamos cuidadosos,[Pg 99] meu primo. Eu amo-te muito; mas não te posso sacrificar mais do que as minhas lagrimas. Deus me livre que o tio N. suspeite que eu te amo. Se tu vês que será util conviveres menos em minha casa, poupa-me algum grande dissabor. Tem sempre comtigo a certeza de que eu te quero muito, e que, se por agora não posso ser para ti mais que irmã, póde ser que um dia seja o mais que posso ser, e o que Deus não quiz que fossemos... tua esposa! Quem sabe, meu R!... Ha acontecimentos tão inesperados!... Lembra-te que tenho dezoito annos, e elle... Adeus, adeus, que o tio não me deixa uma hora sósinha. Vou ver se ainda posso levar a carta.»

Era rasoavel o contentamento de Martinho Xavier.

[Pg 100]

NOTAS DE RODAPÉ:

[2] O Ferro era por aquelle tempo, no Porto, um recolhimento, ou carcere, paradeiro das adulteras.


[Pg 101]

X

Á hora da ceia, faltou Raphael Garção.

Nicoláo soube que elle estava no seu quarto, e pedia desculpa de não comparecer á mesa. Foi elle buscal-o: encontrou-o emmalando o fato.

—Isso é que é pressa de entroixar, primo Raphael!—disse o morgado,—deixe isso, que tem tempo. Nós só vamos ámanhã por tarde.

—Mas eu vou partir esta noite, primo Mesquita.

—Como assim? Venha contar-nos essa aventura á mesa, que está Beatriz á espera. Temos empreza! não póde deixar de ser...

Travou-lhe do braço, e levou-o, exclamando, ao entrar na casa da ceia:

—Fui encontral-o a dobrar a roupa, e saberão que se despede á meia noite!

[Pg 102]

Beatriz encarou-o com affectuosa melancolia. Martinho Xavier fitou a filha. Raphael não poz olhos em nenhum.

O morgado proseguiu em tom de galhofa:

—É negocio de damas! Alguma victima saudosa que, do leito dos paroxismos, chama o seu algoz querido para perdoar-lhe!

Confrangia-se o animo de Martinho. O sorriso de Beatriz era um partir-se-lhe a alma, forçada a fingir-se estranha á saida do primo, e arrependida de lhe ter aconselhado a ausencia.

—Agora acredito, minhas senhoras e senhores, tornou o morgado, que é séria e respeitavel a magua do nosso Raphael! É a primeira vez que o vejo quebrado de cores e cabisbaixo! Então, primo, se a jornada é longa, cumpre comer. Coração a um lado e estomago a outro. D. João de Marana e o amado de Clarisse comiam ás horas, e o Byron ceiou optimamente no dia ou na noite em que uma das suas martyres se afogou no canal de Veneza!... Então, Beatriz, não te serves de nada? Primo Xavier, ordena a tua filha que coma... Com que então, á meia noite, primo Garção?

—É verdade...—respondeu Raphael, affectando com violento artificio, o seu natural alegre.

—E quando volta a Chaves?

—Não sei, primo.

—Não sabe?! Agora vejo que a façanha é complicada de incidentes e estranhos casos!... Pois bem, meu amigo, permitta-me fallar-lhe com sisudesa... A melancolia do seu ar faz-me desconfiar da importancia do passo. Reflexione, primo. Se é um presagio que o quebranta, escute-o. Se o pundonor o não impelle, fique. Distinga entre dever e[Pg 103] dever. Olhe que nós pomos na balança das obrigações, muitas vezes, a nossa deshonra. Nem sempre as mulheres devem obrigar-nos a tudo, que uma errada consciencia nos aconselha.

Martinho Xavier morria de abafos, se não exclamasse:

—Que discurso tamanho para tão pequeno assumpto! Ora, primo Mesquita, não pregues aos peixes. Deixa-o ir para onde elle quizer!

—Pois eu decerto o deixo ir para onde elle quizer; mas o admoestal-o como amigo e parente entendo eu que é um dever tão meu como teu, primo Xavier. As nossas idades e sobretudo a minha experiencia...

—Pois sim, de accordo—replicou o pae de Beatriz amaciando a voz, receoso de denunciar a causa da sua colera—farto de admoestal-o estou eu, e estão todas as pessoas de bem... É malhar em ferro frio. Deixal-o, deixal-o, que o mundo ha de ensinal-o. Quando chegar aos meus annos, elle chorará os que desbaratou na libertinagem.

Correu breve e triste a ceia. Ao levantarem-se da mesa, Raphael despediu-se de Beatriz, sem atrever-se a olhal-a em rosto, porque o pae, á beira da filha, não o desfitava. Beatriz articulou umas palavras banaes, sêccas e tão contrafeitas, que por si mesmas, á custa de muita arte, a denunciariam a um marido precatado. Do tio Martinho, não pôde despedir-se, que, a disfarce, saíra da sala. Nicoláo seguiu-o ao quarto, offereceu-lhe dinheiro, se o necessitava, e conseguiu arrancar-lhe um imaginoso segredo da sua aventura. Pelos modos, uma menina de Basto, não podendo occultar dos pais o testemunho de sua desgraçada paixão, fugira de casa,[Pg 104] e invocava o pae do filhito que lhe estremecia no seio. Mentir como o diabo, tinha dito Raphael pela bocca de Voltaire.

Á meia noite saiu o pae do menino, que estremecia no seio da tão coitada de Basto, e Nicoláo, em termos patheticos, foi contar a Beatriz a revelação do primo. A senhora fingiu compadecer-se das calamidades da menina do filhinho, e aproveitou o ensejo para chorar as suas saudades na presença do marido, que se desentranhou em consolações distractivas, que não fosse ella perigar por demasia de sensibilidade. A sorte de tantos maridos espertos! Faz pena vêr a despotica ingerencia que tem a comedia nos lances mais graves! A humanidade a chorar e um histrião a cobrir a toada do choro com o tilintar do barrete! É triste, mas necessario isto ao regimento da sociedade.

Saíram para Chaves no dia seguinte.

Beatriz ia triste, e recolhida. As caricias do esposo enfastiavam-n’a. O pae, nada blandicioso, fazia-lhe mal com o seu olhar, e dizia-lhe á puridade umas phrases amphibologicas de que ella ficava sentida, sem ousar pedir esclarecimentos.

As palavras que mais a pungiram e intimidaram foram estas:

—Ai, de ti se teu marido se me queixa da tua frieza! Terás em mim um verdugo, e não um pae.

A ameaça logrou menos do que devêra esperar-se. Beatriz desconfiava que o pae lhe surprehendesse o coração n’algum descuidoso olhar ou gesto a Raphael; porém, quando assim fosse, as provas contra a sua honestidade eram nenhumas, e ella facilmente se defenderia das suspeitas calumniosas.

Era de vêr que a retirada de Raphael havia de[Pg 105] ser descontada na affeição ao marido. A esposa criminosa, ou propensa ao crime, costuma dar, pelo menos, ao marido um millesimo do amor que prodigalisa ao amante. Se, todavia, o amante lhe foge, nem o quinhão diminutissimo do marido lhe deixa. Isto tambem é triste, e atroz!

Nicoláo attribuia as securas e enojos de sua mulher aos mysterios phenomenicos da geração. Tambem elle tinha accessos biliosos de impaciencia, irritados pelos caprichos de Beatriz; mas soffreava-se, affastando-se. Queixar-se é que não. No entanto, Martinho Xavier, lendo-lhe no rosto alquebrado o desgosto da má vida intima da casa, abstinha-se de interrogal-o, e dizia á filha:

—Tu não me attendeste; mas afinal será tarde, quando caires em ti. Já te disse que, em te faltando a estima do marido, não contes com a estima do pae, Beatriz?...

—Que quer isso dizer, meu pae? atalhou ella. Tantas ameaças, tantas ameaças! Que crimes tenho eu?

—As mais criminosas intenções!... Silencio! silencio!... ouviste Beatriz! Muito juizo para remediar o mal feito... Se assim não fôr...


Raphael Garção estava na sua casa de Fayões. Quizera distanciar-se de Chaves, sair a uma viagem longa, distrahir-se, esquecer-se; mas não pudera. Estava alli preso pela corrente de um grande amor a sua prima. Era o primeiro, o unico, porque não amára outra, desde que nos labios d’ella, ainda solteira, depozera, como n’um altar, as primicias do seu coração. Sem os estorvos, póde ser que outra mulher o roubasse ás froixas glorias de uma[Pg 106] facil proesa; mas depois do aviltante castigo do tio, e da vergonha com que saiu da Palmeira, queria elle superar as difficuldades para sentir-se remunerado do seu vilipendio. Era isto a um tempo galardão ao amor, e galardão á vingança. Eram os vinte e dois annos, e a má índole, acerada pela educação que tivera, á lei da natureza bruta. Não sei tambem se eram o Lovelace, e o Saint-Preux, e o D. João Tenorio. Era tudo, incluindo n’esta mistura o elle ser homem, feito á similhança e imagem de... Fóra com a blasfemia!

Empenhou-se Raphael, mediante os serviços de algum amigo de Chaves, em fazer entregar a Beatriz uma carta explicativa da sua rapida saída de Palmeira, o degredo que se elle impozéra na triste soledade de Fayões. Uma dama das mais acreditadas de Chaves foi a portadora da carta.

Então sómente comprehendeu Beatriz o valor das ameaças de seu pae, e o gume do perigo em que estava sua honestidade, e talvez sua vida, se á mão do marido passasse a carta de Raphael.

Nicoláo ganhou com este descobrimento por um lado, e perdeu pelo outro. Os ganhos eram os exteriores affectuosos com que a mulher o indemnisava dos desdens passados. As perdas foram restabelecer-se a correspondencia epistolar entre Beatriz e o primo.

A illustre alcôfa d’esta correspondencia andava espiada por Martinho Xavier, á conta de ser irmã de um particular amigo e contubernal parasita de Raphael. D’esta espionagem, confiada á aia de Beatriz, velha de rija tempera de virtude, resultou ser a correctora cupidinaria avisada para não voltar a casa de Nicoláo de Mesquita, sob pena de ser publicada[Pg 107] como negociadora de amores adulteros. O aviso foi dado face a face por Martinho Xavier, que tinha brutalidades de fidalgo montezinho.

O que elle não podia era contraminar a corrupção dos criados. Beatriz continuou a receber cartas do primo; e Nicoláo a experimentar as caricias de sua senhora. Ó Azaïs!...

Decorreram uns seis mezes de vigilancia assidua do fidalgo. Rondava as portas do genro até alta noite. Assalariára olheiros em Fayões para lhe segredarem os passos do morgado. Espicaçava o zelo da velha covilheira de Beatriz para a não largar de vista; quando o marido saísse a fiscalisar o grangeio das quintas.

Por este tempo deu Beatriz um menino aos carinhos doidos de seu pae. Em honra do menino, volvidos quinze dias, encheram-se as salas de mulheres, de musica, de poetas, de flores, e de alegria cerimoniosa. Esta segunda era coadjuvada pela garrafeira. A commissão de parentes, encarregados dos convites, incluira as senhoras Almeidas do Castello de Aguiar. Com muito sacrificio foram de liteira as velhinhas, amolgadas por grandes desgostos. Nicoláo, quando as viu, teve arrepios de espinha dorsal. Interrogou a commissão, a qual respondeu que os Almeidas do Valle de Aguiar eram os mais preclaros parentes de ambas as familias. Hospedaram-se estas senhoras em casa de Martinho Xavier, que acinte as levou para obstar a que palavreassem na presença de Beatriz ácerca de Margarida Froment e Ricardo de Almeida. Isto, porém, não tirou que a dama, assim que esteve a sós com ellas e o capellão adjunto, lhes desse azo á expansão das lastimas.

[Pg 108]

Disse D. Sancha que o sobrinho estava em Lisboa, desbaratando os bens e que os livros todos tinha vendido, e já havia antecipado rendas de trez annos.

Ajunctou D. Simôa que uma só esperança tinham de o resgatarem da escravidão do demonio, desfigurado na franceza, e vinha a ser o patrocinio de um santo, parente da familia, que tinha sido grande peccador como Ricardo, e depois, tornára sobre si, e acabára a vida santamente: o qual santo era S. Gil de Santarem.

Que S. Gil de Santarem era parente das senhoras D. Sancha e Simôa não ha duvida nenhuma, e vae demonstrar-se para confusão dos praguentos.

Estamos em tempo do senhor rei D. Affonso Henriques, que santa gloria haja.

Depois da milagrosa victoria de Ourique, os barões da comitiva do rei conquistador recolheram a suas terras, ganhadas a montante, e Deus sabe como. O bravo rico-homem de Galliza, Fernão Martins de Almeida, despediu-se com um aperto de guante dos seus primos e amigos Lourenço Viegas e Martim Moniz, e foi-se a matar corças e ursos nas suas tapadas do Valle de Aguiar. Fatigado de matar e comer ursos, cuidou em casar-se com a filha de D. Payo Mendo Gil, senhor das terras de Cavallaria, termo da cidade de Vizeu junto á villa de Vouzella. Preferiu o castellão residir no solar de sua mulher, e deixou as suas terras a cargo de irmãos. D’este consorcio nasceu D. Tareja Gil, a qual casou em 1184 com Ruy Paes de Valladares, do conselho d’el-rei D. Sancho I, seu mordomo-mór, e alcaide-mór do castello de Coimbra. Estes são os bem-aventurados paes de Gil Rodrigues,[Pg 109] conhecido e venerado do leitor pio por S. Gil de Santarem, ao qual o divino Garrett denominou o Fausto portuguez.

Nada menos que este santo, inquestionavel parente das senhoras Almeidas, estava empenhado em arrancar o seu consanguineo dos braços satanicos da franceza. No entanto, alguns mezes haviam passado, depois do voto das senhoras a seu tio frei Gil, sem que o energumeno voltasse, cumprido o seu fadario. Sem embargo, ellas esperavam, e razão era que esperassem. Alguem faria o milagre, se não fosse o santo feiticeiro, antigo pactuario do demonio: que estes milagres, nos tempos correntes, bastam a fazel-os algumas lettras a vencer na mão de um usurario. A onzena tem convertido mais perdularios do que a vida mirifica de S. Gil.

O certo e naturalissimo era que Ricardo de Almeida tinha esbanjado metade dos seus haveres, e perto iria n’aquelle desperdicio. Sustentava em Lisboa a lauta vida do Porto, e redobrava de extremos com Margarida a cada requestador que lhe varava ao coração o stylete do ciume. Os galãs lisboetas eram mais arrojados e tentadores, mais ociosos e pertinazes que os do Porto. Ricardo via isto pelos seus olhos de amante desconfiado, e de são juizo para entender que o facil para elle não seria extremamente difficil para o restante da humanidade.

Este receio era injurioso a Margarida Froment: era sinceramente; mas o não menor castigo das mulheres na condição da franceza é inspirarem suspeitas aviltadoras áquelles mesmos que as estremecem, e authorisarem o galanteio de quem quer que meramente as deseja.

[Pg 110]

Seja como fôr, as senhoras D. Sancha e Simôa choravam lagrimas como punhos, quando Martinho Xavier saiu do salão do baile a procurar Beatriz que tambem chorava com as velhas.

Uma paixão explora veios de lagrimas desconhecidos. Chorava, porque amava, a mal-sorteada senhora!


[Pg 111]

XI

A espionagem, sem intermissão, de Martinho Xavier gerou no animo da filha um secreto e mal disfarçado odio. Bem queria ella sacudir o jugo; mas a mordaça, a carta fatal, estava em mão de seu pae: ella mesma a viu quando se lhe queixou amargamente de a privarem da companhia d’aquella amiga interventora na correspondencia. O pae, sem proferir um monossyllabo, mostrara-lhe a carta, e voltára as costas.

Planeou a sua emancipação Beatriz com um expediente assim natural que insuspeito. Revelou desejos ao marido de voltar a Palmeira, á suave quietação da sua casa. Nicoláo abraçou alegremente a proposta, e exultou de ouvil-a motivar assim o intento:

—Agora, que tenho o meu filho, basta-me este[Pg 112] prazer, e o teu amor ás necessidades da minha alma. Já me fatigam tantos parabens, tantas visitas, tantas etiquetas! Apeteço a solidão comtigo e com elle. Mudei inteiramente, primo Nicoláo. Os filhos parece que envelhecem a gente! E de mais eu quero que o nosso Martinho seja creado ao ar do campo, e não n’estas estufas da cidade. Verás como eu agora me dou bem na aldeia! Quero ir comtigo ás quintas, e gosar a doce liberdade de uma aldeã. Estás contente da minha reforma?

—Se estou, filha!...—clamou o marido, apertando-a contra o coração—se estou contente, eu, que por amor de ti, e contra o meu genio, tenho andado n’estas balburdias de bailes e jantares! Eu tambem espero que o nosso filhinho te aformoseie os quadros aldeãos, que tão aborrecidos te pareceram. Um filho é uma estrella que nos alinda o ceu da terra em que vivemos. Sempre esperei que desejasses voltar para Palmeira com esta creancinha. As mães experimentam um santo egoismo de sua felicidade, quando são mães pelo coração, que as ha tão frivolas, minha querida prima, que apenas se dizem mães por terem sentido os soffrimentos da maternidade.

—O peior, atalhou ella, é que meu pae vae zangar-se com a nossa partida...

—Porquê? zangar-se!...

—Que queres? A amizade do meu pae é extremosa até á importunação! Eu não devia dizer isto; mas olha, primo, já me impacientam tantos cuidados comigo! Em solteira, deixava-me mais liberdade!...

—É que teu pae adora-te, Beatriz!

—Bem sei; mas os excessos de ternura incommodam.[Pg 113] Tenho marido e filho para amar e presar: não posso attender ás extremosas pieguices de meu pae. Agora ha de elle cuidar que eu vou enfastiar-me na aldeia, e começa ahi com os seus discursos a demover-te de irmos.

—Seria escusado, que nós iremos, prima.

—Pois então, Nicoláosinho, se elle nos contrariar não o contradigas, para o pouparmos a maior magua. Vamos preparando a partida de nosso vagar, e evitemos questões.

—Pensa bem, Beatriz... Teu pae tem singularidades estranhas, que destoam do meu genio...

—Muitas!...

—Este odio entranhado, que elle tem ao primo Raphael, é absurdo!

—De certo.

—Sei que o pobre moço está em Fayões, e não voltou a nossa casa. Precisamente o rapaz foi magoado da rudeza com que teu pae o tratou á ceia, na ultima noite.

—Parece-me que sim.

—Já perguntei ao primo Martinho porque não tornaria Raphael a Chaves, desde que lá estamos. Respondeu-me que não valia a pena notar-se a falta d’elle. Quiz convidal-o para o baile do baptisado, e teu pae respondeu-me formalmente que não!

—Caprichos...

—Ruins caprichos! Eu transigi para obviar resentimentos; mas... Tu has de consentir, filha, que eu te confesse uma culpa... sim?...

—Que é, primo?

—Não podendo justificar a antipathia de teu pae com Raphael, cheguei a conjecturar se elle desconfiaria de alguma infame intenção de teu primo...

[Pg 114]

—Infame intenção! a que respeito?

—A respeito de ti...

—Ora essa!... Tu enlouqueceste?

—Não, menina, confesso-me.

—Pois não te perdôo, Nicoláo!—exclamou ella irada sobre posse, e escarlate por effeito da surpreendente suspeita.

—Perdoas, que eu,—tornou caricioso o marido—tanta justiça te fiz que nem levemente indaguei... para não dar direito a que alguem te suppozesse um instante criminosa. Nem com esta prova de respeito ás tuas virtudes me perdoas?

Beatriz deixou-se beijar e sorriu.

Nicoláo continuou:

—Em prova da confiança que me mereces, assim que estivermos em Palmeira, convidarei Raphael.

—Não quero! atalhou Beatriz com vehemencia. Magoas-me cruelmente se o fizeres.

—Compreendo o teu pundonor, tornou Nicoláo, soberbo do pundonor de sua esposa.

N’este dia, disse o morgado ao sogro:

—Vamos passar algum tempo á aldeia.

—Fazeis bem, respondeu Martinho; Beatriz precisa de bons ares, que está com má côr.

—E, talvez, lá fiquemos, se ella quizer.

—É natural que não.

—Pois enganas-te primo: ella mesmo aventou a idéa da mudança.

—Sim. Ella?!

Martinho Xavier ficou pensativo largo espaço, e replicou:

—Foi subita essa determinação de Beatriz?

—Disse-m’a hoje.

[Pg 115]

—Está bom...

—O filho operou uma tal mudança no espirito de Beatriz—tornou Nicoláo.

—Deve ser isso... disse abstraidamente Martinho Xavier.

—Encheu-me de jubilo esta grave transformação aos dezoito annos.

—São raras estas transformações, tornou o outro meditativo.

—Vaes comnosco?

—Vou, respondeu Martinho energicamente. Vou sem duvida.

—Estimamol-o deveras.

Relatou Nicoláo a sua mulher a substancia d’este dialogo, e a resolução no pae.

—Vae comnosco? exclamou ella com irreflectido transporte. Forte perseguição?... É de mais?... Para que me casei eu? Ou bem sou filha, ou sou esposa!

—Podes ser ambas as coisas dignamente; acudiu o marido.

—Ora!...—redarguiu ella com arremeço; e, caindo em si, ajuntou abatendo a voz: Deixal-o ir... que eu para Chaves não volto... Se meu pae não podia viver sem mim, para que me casou?... A minha scisma é esta. Sim! para que me casou?

—N’isso tens razão, prima.

—Pois não tenho? Quer affagos e cuidados, que eu não posso repartir. Sou esposa e mãe; e além d’isso preciso olhar pela minha casa.

—Pois, meu amor, deixal-o ir; trata-o com amizade de filha, e mostra-te feliz, que elle te deixará viver em tua casa.

Grande parte d’esta pratica foi communicada a[Pg 116] Martinho Xavier pela aia de Beatriz. O fidalgo aguardou occasião de encontral-a a sós, e disse-lhe:

—Sei que intenções te levam para Palmeira.

—Sabe... que intenções?!...

—Não admitto interrogatorio... Quero ser ouvido em silencio. Resolvi acompanhar-te para te defender do abysmo. Mudei. Não vou. Escuso de ir. O abysmo está aberto. Vaes cair, desgraçada! E tão depressa caires, irei mostrar-te lá com o dedo a teu marido: «Ella ahi está despenhada. Quiz salval-a, e não pude. Agora escarra-lha na cara, que tu não tens esposa, nem eu filha!»

—Meu pae!—exclamou ella afflicta.—Meu pae, eu não sou criminosa!

—Vaes sel-o.

—Juro-lhe que não!

—Mentes a ti propria. Raphael está recebendo cartas tuas; um dos teus criados entrega-te cartas do libertino, do carrasco da tua honra.

—É falso...

—Falso é o teu juramento, Beatriz! Não me desmintas, que eu justifico-me na presença de teu marido.

—Por quem é... por alma de minha mãe!... bradou ella soluçando.

—Tua mãe foi uma santa. Se está no céo e te vê a consciencia, lá mesmo ao ceu lhe mandaste um inferno, coração perdido! Ficas sabendo que eu vigio as tuas acções e as de Raphael. Escuso de seguir-te a Palmeira. Eu hei de saber pontualmente a hora a que te precipitas. Então me verás!...

Voltou o rosto ás lagrimas da filha e saiu.

Dias depois, preparadas as bagagens, e posta a[Pg 117] hora da partida, foi Nicoláo avisar o sogro. Martinho Xavier estava de cama com febres, e differiu a sua ida para mais tarde. Observou o morgado que elle, ao apertar-lhe a mão, chorava. Foi despedir-se da filha á cabeceira do leito; e, n’um instante que ficaram sósinhos, disse-lhe o pae:

—Se Deus me levasse agora d’este mundo, furtava-me á formidavel angustia que me preparas.

—Juro-lhe que não.

—Antes do terceiro juramento, perder-te-has—murmurou Martinho Xavier.

Despediram-se.

Beatriz saiu no proposito de esmagar o coração debaixo do peso da honra. Estava aberta uma egreja, e ella entrou a pedir á Virgem que lhe désse forças, e orou longo tempo. Ergueu-se consolada e forte.

Escreveu a Raphael supplicando-lhe que lhe não escrevesse mais, que a deixasse morrer de saudades, mas sem o stygma de uma vilipendiosa desgraça. Prometteu-lhe amal-o no céu; e pela vida de seu filho, jurou que se mataria antes de ultrajar seu marido.

Esta carta era uma rehabilitação.

Foi para Palmeira. Ia doente e amargurada. Parece isto contra-senso. Devia ir jubilosa de sua valentia. Não é assim. As mulheres, depois d’estes triumphos, caem desfallecidas. O que lhes dá forças a ellas são as fragilidades.

Passados quinze dias, espantou-se ella do silencio de Raphael, e disse entre si: Não me tinha amor! Passado um mez, disse: Tenho-lhe odio!

Martinho Xavier convalesceu rapidamente, assim que lhe deram uma alegre nova.

[Pg 118]

Foi a Palmeira, e, na presença da filha, fallou assim a Nicoláo:

—Não sabes a façanha de Raphael?

—Não sei nada. Aqui não tem vindo ninguem d’esses sitios.

—Pois ouve lá...

—É o caso da menina de Basto?

—Que menina de Basto?! Essa historia não sei eu. O que eu sei é que chegou a Chaves um coronel de cavallaria, casado com uma senhora de fina educação, e vinte annos, ou coisa assim. A senhora deu-se mal com os ares de Chaves, e foi para a quinta de S. Lourenço, proxima a Fayões. Em menos de quinze dias, Raphael tomou conta da esposa do coronel, e foi para Hespanha. Pergunto eu agora a meu primo Nicoláo, se o mundo diz a vigesima parte da verdade?

—Aquillo é um lastimavel doido!...—observou o morgado com pena.—E ella parece-me mais doida ainda! Se elle bem soubesse que futuro o espera com as disciplinas da vingança!...

Beatriz ouvira a historia, com immobilidade de estatua. Á reflexão do marido fez um gesto forçado de assentimento. Assim que o filho vagiu no berço, correu para junto d’elle, chorou em ancias abafadas nas roupas do berço, que embalava para se lhe não ouvirem os soluços.

—Mentirá meu pae para me desvanecer? pensava ella comsigo, e, ao mesmo tempo, resava á Mãe de Jesus, pedindo-lhe o esquecimento do homem fatal.

Não mentira Martinho Xavier.

Raphael, assim que recebeu a ultima carta de Beatriz, chorou o tempo desbaratado n’uma esperança,[Pg 119] além da qual se carregaram assentadoras borrascas. Doeu-se da força d’alma com que ella o despedia, e tirou a injudiciosa illação de que era mediocremente amado, porque as grandes paixões querem o estampido, e o sêvo das grandes desgraças. Nenhum dos seus romances fazia menção honrosa de heroes que se deixassem morrer da peçonha do ideal. Olhou o moço em si; viu-se com vinte e tres annos, futuro largo, vinte primaveras ainda a reflorirem-se. Enojou-se da inercia de seis mezes, em que deixara anazarem-se as suas ardentes faculdades. Saltou para o sellim do melhor cavallo, desfilou por montes e valles, visitou primas, que elle denominava o seu medalheiro de estudos numismaticos, restaurou galanteios antigos, antigos de seis mezes; e, n’esta andadura, foi dar á quinta de S. Lourenço, onde vivia um general reformado, com trez sobrinhas.

Apresentaram-lhe a hospeda, esposa do coronel, nem formosa nem sympathica, mas interessante pela melodia com que vibrava a escala chromatica em cada dezena de palavras que dizia: era lisboeta a dama. O galanteio começou alli, sem advertencia do general. Continuou nos quatorze dias subsequentes, cuidando o dono da casa que a namorada era uma de suas sobrinhas. O coronel, porque era marido, receava que o general se enganasse: revelou as suas duvidas, e o bravo do Bussaco respondeu que tinha em bom uso a espada com que espostejara um esquadrão de francezes. Em bom uso estava de certo a espada; virgem, talvez. Descançava o coronel na espada do seu amigo, quando a esposa lhe ia arrebatada no arção da sella do mais possante murzello de Raphael.

[Pg 120]

Aqui está a simples historia, que, posta em escriptura por mais aparada penna, faria chorar os leitores.

Muita gente ri-se d’isto. Outra levanta os olhos ao ceu: contempla o imperturbavel movimento dos astros, interroga o Creador, e diz:

—E então?

A Providencia responde, depois que os interrogadores estão esquecidos da sua audacia sacrilega.


[Pg 121]

XII

Este enorme escandalo estrondeou tres semanas, e caiu á voragem silenciosa dos factos consummados. Corridos tres mezes, a fugidiça estava em Lisboa com a mãe; e Raphael Garção, de volta de Hespanha, entrára ás escondidas em Fayões, e lia romances no seu gabinete. O coronel, corrido do vexame, pedira transferencia para o Alemtejo.

Raphael tinha pae e mãe, que incessantemente offereciam ao Eterno o calix de suas dôres em desconto do peccado da má educação, que haviam dado ao filho. A mãe, temerosa do juramento que o general fizera de matar Garção com a espada do Bussaco, alternava, com o marido, sentinella ao filho para elle não sair de casa. O velhaco, assim que as atalaias, por noite velha descuravam a sobre-rolda[Pg 122] e ressonavam, saltava da janella ás espaduas do criado confidente, e ia refrigerar a cabeça, exercitar a força musculosa, e beber a sorvos os perfumes da manhã.

Assim devia presumir-se até de madrugada de um dia em que elle voltou com as costas crivadas de chumbo e uma orelha farpada. Extrairam-lhe as balinhas, e cicatrisaram-lhe as orelhas. Passados dias entrou n’um recolhimento de Villa Real uma filha de um boticario de Fayões, e então se aventou que Raphael Garção topára no pharmaceutico a fôrma do seu pé, como lá dizem.

Martinho Xavier foi a Palmeira contar este escandalo supplementar. Nicoláo riu-se e disse:

—Ha doidos que se fazem perdoar e estimar! As tolices de Raphael têem graça.

—É preciso ouvir-t’o, para se crer que fallas de Raphael com tão absurda sympathia!—censurou Martinho.—E jámais, ajuntou a meia voz, na presença de tua mulher: Isso desauthorisa a gravidade de teus annos e estado, primo Mesquita!

—Valha-te Deus, Martinho! redarguiu o morgado. Tu vens a ser muito rabujento, homem! Pareces um ancião com o barbaçudo aprumo de um patriarcha! És inexoravel com os moços e principalmente com teu sobrinho!... Quantas capas deixaste tu ficar por mãos impudicas, ha vinte annos, quando te eu conheci o primeiro casquilho de Chaves e seu termo?

—Não pratiquei desafôros! Atalhou Martinho.

—Graças á tua boa indole, e ao captiveiro do coração em que te teve seis annos a minha bella prima com quem casaste. É preciso perdoar aos rapazes, que não podem reconstruir o seu temperamento,[Pg 123] nem remediar aos vinte e tres annos os vicios da educação. Raphael não é despresivel, quanto se te figura; é digno de dó. Vem pagar o que eu não sei bem se é culpa d’elle. Os doidos da bitóla de Raphael teem sempre o mau sestro de encontrarem doidos da mesma natureza. Cumpre ponderar esta notavel attenuante, primo Xavier. O mundo não faz d’isto cabedal, nem desconta. Se Raphael attentasse em mulheres morigeradas, não descobria a esposa do coronel, nem a filha do boticario.

—Foram seduzidas! bradou Martinho.

—Pois isso é claro! Toda a mulher precisa que a seduzam; e se a não seduzem, trata ella de seduzir-se a si mesma.

—Regra geral, portanto!

—Regra geral para as mulheres desviadas do caminho da honra.

—E entendes que Raphael tão somente pode perder as desviadas?

—Cuido que sim.

—E as honradas são invulneraveis?

—Como o calcanhar do heroe de Homero.

—Estás gracejando... Chega-me aqui o ouvido.

Nicoláo inclinou-lhe a orelha, e Martinho segredou:

—A Margarida Froment estava desviada do caminho da honra quando a perdeste?

Nicoláo retraiu de salto a cabeça, e não respondeu.

Beatriz descórou, suspeitando loucamente uma revelação horrivel.

Cessou a polemica.

Estavam no mez de junho.

[Pg 124]

Beatriz lembrou um passeio á feira annual de Santo Antonio a Villa Real. Martinho Xavier acompanhou-os.

Nicoláo e a mulher compravam objectos de oiro n’uma barraca. Raphael Garção passava e viu-os, e parou. Casualmente voltou a face Beatriz, e expediu um grito. Vira-o, e tremêra no braço do marido. O morgado olhou em roda de si, e perguntára:

—Que foi?

—Pisaram-me...—disse Beatriz.

—Canalha! bradou rancorosamente o morgado no rosto das pessoas mais chegadas ao balcão do ourives.

Passaram a outras barracas.

—Espera! disse com alvoroço Nicoláo.—Queres tu vêr o primo Raphel?!

—Onde? perguntou ella serenamente.

—Além! aquelle sujeito de jaqueta de alamares, e botas á Frederico.

—Parece-me que é.

—Vamos ter com elle.

—E se o pai está por ahi?

—Que importa?

—Bem sabes que nos faz um sermão.

—Ouviremos o sermão com devota paciencia. Vamos ouvir este sublime doido... Elle olha para nós... reconhece-nos...

E chamou-o com um aceno.

Raphael avisinhou-se: faltava-lhe ar, como se o coração, dilatado pelos arquejos, lhe tomasse todo o peito.

—Venha cá, D. João, venha cá!—disse com alegre sombra Nicoláo—que é feito de si, homem perdido?

[Pg 125]

Raphael cortejou grave e cerimoniosamente a prima; abraçou o morgado, e respondeu solemne:

Homem perdido... é o nome que justamente me frisa. Perdido como todos os homens que atiraram o coração ás sarças de desesperança.

—Que estylo!—atalhou Nicoláo, e que merencorio gesto você está fazendo! Tire lá essa mascara dos quarenta annos, e seja rapaz emquanto seu tio Martinho não apparece por ahi.

—Está cá meu tio?

—Está... respondeu Beatriz, levantando do chão os olhos em que Raphael viu um vidrado de lagrimas.

—O primo Raphael que faz aqui? perguntou o morgado.

—Nem eu sei, sinceramente lh’o digo.

—Sei eu, e bom será... que o boticario de Fayões o não saiba...

O moço não abriu leve sorriso; abaixou os olhos e murmurou:

—Seja generoso, primo Nicoláo. Eu não espero da sua mão a esponja do fel. Creia que tenho sido muito desgraçado, e perdoe-me não ter podido ser feliz.

Apertou a mão da prima, abraçou ligeiramente o morgado, e afastou-se velozmente.

Nicoláo quedou-se immovel e silencioso.

D’ahi a segundos disse a Beatriz:

—Creio que teu primo é sinceramente desgraçado!...

—Parece... Como está magro e pallido!

—E talvez não tenha um amigo!... um amigo sincero que o defenda de novos pricipicios... Quem me dera poder vellar o destino d’este rapaz!

[Pg 126]

—Pobre moço!... murmurou Beatriz, embebendo as lagrimas no lenço.

—Não te afflijas assim, menina. Se eu lhe não fallar, hei de escrever-lhe. Está em excellente idade para rehaver os creditos perdidos, e depois, é rico; a riqueza é meia rehabilitação, quando não é rehabilitação inteira e mais metade.

Caminhando, encontraram Martinho Xavier, que crescia para elles com a vista derramada, e amarello.

—Que tens? perguntou Nicoláo.

—Nada... respondeu Xavier, ferindo a filha com repetidos olhares penetrativos.

—Que tens, homem? viste o monstro?

—Que monstro?

—O Raphael, o tigre, a basilisco?—perguntou o morgado, sorrindo.

—Vi... e tu tambem?

—Esteve ainda agora comnosco. Eu queria que tu o ouvisses...

—Para que?

—Está revirado. Falla como um S. João, que vem do deserto ao povoado prégar o agite penitentiam! Confessou os desvarios que o infelicitaram, e fugiu de nós sem nos dar tempo a consolal-o.

—Faltava-lhe a hypocrisia! atalhou Martinho.—Cerrou a mêda agora, não tem duvida. O fecho da abobada é a hypocrisia!

—Que inexoravel e cru homem tu és, primo!

—Sou, sou flagello inquebrantavel de infames—bradou Martinho com espanto dos transeuntes.

—Está bom... disse brandamente Beatriz. Não questionem... Meu pae, perdoe a quem é infeliz,[Pg 127] e despreze-o. Vamos embora d’aqui... As minhas compras estão feitas. Vamos para Palmeira, Nicoláo.

—Pois não has de ir á noite ao theatro, filha?

—Não... se me amas, partamos já.

Emquanto Beatriz se vestia de amazona para cavalgar, Nicoláo disse ao sogro:

—Sinto, meu primo e amigo, sinto amargamente a necessidade de te dizer que me fazes soffrer mais do que pode a minha paciencia por causa de teu sobrinho. Para mim e para tua filha é extrema a satisfação e honra que nos dás com a tua convivencia; mas tambem é certo que nos amarguras com a excessiva intervenção de tua vontade em nossas acções e amisades. Eu comprehendo bem que aborreças teu sobrinho; porém, confesso-me insufficiente para avaliar o direito com que tens embaraçado que eu o receba em minha casa, e lhe prove que o estimo por gratidão e parentesco. Peço-te encarecidamente que absolvas estas reflexões, e por tua parte modifiques esse irreflectido zelo de minha casa, onde eu não receio que entrem homens de costumes soltos, porque sei eu castigal-os, quando elles se esquecerem do que devem á sua dignidade e á minha.

Martinho Xavier lançara-se sobre uma cadeira, e escondera o rosto entre as mãos, soltando estas gementes palavras:

—Meu Deus, meu Deus!

—Que tens tu? perguntou Nicoláo commovido.

Beatriz entrou na sala, e viu o pae enxugando as lagrimas, e o marido inclinado á face d’elle.

—Que é?! disse ella agitada.

—Não sei...

[Pg 128]

—Vão, e adeus!—murmurou Martinho, erguendo-se com energia.

—Ficas em Villa Real?

—Fico: tenho ahi uns cavallos em ajuste. Só poderei ir ámanhã ou depois.

—Queres que esperemos, Beatriz? perguntou Nicoláo.

—Esperemos...—respondeu ella desopprimida da abafação do susto.

—Não, que eu vou direito a Chaves—contrariou Martinho Xavier.

—E quando voltas a Palmeira?

—Quando poder.

Saiu adeante d’elles, apertando convulsivamente a mão da filha, quando se ella inclinou a beijar a d’elle.

—É mysterioso teu pae!...—ponderou Nicoláo.

—Pois que te disse?

—Ouviu-me umas observações duras de se ouvirem, e chorou, como viste... E não póde deixar de ser o que eu já suppuz... Teu pae é ludibrio de alguma intriga a teu respeito.

—Intriga?

—Sim... Levaram-n’o a uma terrivel suspeita... de ti e de Raphael. Faz mal em se não declarar. A injuria reflecte-se em mim... Eu queria mostrar-lhe a elle, ainda mais que ao mundo, a tua innocencia.

—Pois alguem me considera culpada?!—atalhou extremamente resentida Beatriz.

—Não digo tanto; mas com capacidade para culpada.

—Quem?... Eu mereço isto!... Pois tu podes presumir?...

[Pg 129]

—Se eu podesse presumir, não t’o diria, minha querida prima. Esperava... Facilitava-te as occasiões; e, quando t’o dissesse, a tua bocca não poderia defender-se. Comprehendeste-me bem?

—O ar com que me estás fallando, Nicoláo...

—É a primeira vez que reparas n’este ar. Deus permittirá que seja a ultima.

—Desconfias da minha lealdade, Nicoláo?

—Já respondi, Beatriz. Não desconfio. A tua agonia de morte começaria desde a desconfiança.

Repostos na bonançosa vida de Palmeira, ataram o fio quebrado das serenas alegrias, que irradiavam á volta do berço da creancinha. Bonançosa vida, escrevi eu, porque os exteriores condiziam com a palavra; todavia, no recondito d’alma de Beatriz, estava o aspide roedor, que lhe torvava os sonhos de infernaes alegrias, ou horridas visualidades. Abria os olhos molhados de culposas lagrimas, e seccava-as ao bafejo do filhinho. Seguiam-se no dia as intermittencias da noite. Uma hora, relampagueava-lhe a esperança uma luz vividissima, ao clarão da qual divisava a imagem de Raphael. Outra hora sentia atravez do seio uma vibração glacial, como se a larga lamina de ferro lhe abrisse bulhões de sangue: n’esta visão infanda era a imagem do marido que lhe avultava descomposta pela vertigem do odio. Refugiava-se ainda sob a egide do anjo, a creancinha, que inclinava o rosto á face d’ella, e balbuciava a primeira syllaba das suas reminiscencias do ceu.

Martinho Xavier lá estava em Chaves. Decorreram dois mezes, e elle não voltou á Palmeira. Foram visital-o e levar-lhe o neto e afilhado. Acharam-n’o quebrantado com o pezo de mais dez annos.[Pg 130] Encaneceram-lhe os cabellos, arrugaram-se-lhe as faces, amortiçou-se a luz dos olhos, arados pela bafagem ardente, que não tinha respiradouro. Para elle a perdição da filha era um anathema indeclinavel. Entrou-se do convencimento de ser ella o instrumento providencial do castigo de Nicoláo de Mesquita. A deshonra de Ernesto Froment havia de ser vingada. A sua amada Beatriz, a innocente das perversidades do marido, obedecia ao sobre-humano impulso da indefectivel justiça. Minguava-lhe illustração para combater o prejuizo. Accusava de injusta a Providencia quando lhe genuflectia, e subpunha a cabeça de sua filha a uma absurda fulminação.

Á força de apprehender n’isto, desordenou-se-lhe a intelligencia por uns paradoxos de fatalismo, que implicavam á religiosidade do seu caracter.

Encarava de fito na filha e chorava. Affagava o neto, e perguntava-lhe:

—Entendes tu a minha dôr, anjo do ceu?

Descaía um severo olhar sobre Nicoláo, e dizia-lhe:

—Não devias casar nunca, sem saldar contas com a Providencia.

O marido de Beatriz suspeitou da inteireza intellectual do sogro. Era para isso. Quiz arrancal-o da solidão do seu quarto, e trazel-o para Palmeira. Foi invencivel a resistencia muda do precoce velho, que apenas contava quarenta e oito annos. Quiz Beatriz ficar em Chaves, e o pae rejeitou o alvitre, como desnecessario á sua morte.

Voltaram a Palmeira.

Parece que lhes soavam n’alma de ambos as medonhas alvoradas de um dia de infinita calamidade.[Pg 131] O ceu era o mesmo, a creancinha brincava entre elles com as flôres inverniças; ao passo que os paes, sem se revelarem, olhavam sobre o menino com os olhos lagrimosos.

—Porque choramos nós?—perguntava Nicoláo.

[Pg 132]


[Pg 133]

XIII

Chegou ao Vidago a noticia do apalavrado casamento de Raphael Garção com a morgada de Santo Aleixo, bella e rica, de primeira stirpe; transmontana, e costumes irreprehensiveis.

—Aqui tens, Beatriz, disse Nicoláo, como teu pae se illudiu com o descredito de Raphael. Quando as cem trombetas atroam a provincia a divulgar escandalos, offerece-se ao generalissimo da desmoralisação um casamento de primeira ordem!...

—É verdade... admira... ella é bonita...—gaguejou Beatriz, humedecendo os labios calcinados do fogo da alma.

—Será elle tão desastrado que regeite a proposta? É de esperar que não. Aquelles ares de reforma, que lhe vimos, não podem ser hypocrisia, como[Pg 134] teu pae diz. Hypocrisia comnosco porque e para que?

—Sim... para que!...

—Vou escrever-lhe a felicital-o, e instigal-o a casar-se...

—Não faças isso, atalhou Beatriz. Sabes tu se elles serão felizes? Deixa-os lá. Se elle um dia se arrepender, escusa de lembrar-se de que o aconselhaste.

—Pensas com acerto, mas sempre quero saber d’elle mesmo se é certo o projecto.

—Isso lá...

—Vejo-te inclinada a julgar de teu primo desfavoravelmente, Beatriz!

—Não... eu... o que entendo é que... a mulher casada com o primo Raphael não ha de ser feliz... porque... é muito cedo para achar prazer á vida tranquilla, que tem sido o que tu sabes em tão pouco tempo... E pode ser que eu me engane... Oxalá...

Escreveu Nicoláo ao morgado de Fayões. Ao outro dia, mostrou a resposta a Beatriz, exclamando:

—O rapaz passou de uma demencia vulgar a uma demencia exquisita! Ha seis mezes era um libertino. Agora não se sabe o que é. Vê lá a resposta de Raphael.

Leu Beatriz:

«Meu presado amigo e excellentissimo primo.

«Agradeço os sinceros emboras que se digna enviar-me; lamento, porém, que se baldassem os seus bons desejos emquanto ao meu casamento: As raias da minha doudice não vão tão longe. Todo o tolo tem as suas demarcações.

[Pg 135]

«É certo que pessoas da familia de Santo Aleixo propozeram a meu pae o enlace a que vossa excellencia allude. Meu pae consultou-me, e eu rejeitei. Mas, porque, a rejeição divulgada seria offensiva ao orgulho dos visigodos de Santo Aleixo, resolveu a discrição que se deixasse correr o boato da minha annuencia, até esquecer a proposta. Esta é que é a verdade.

«Dir-lhe-hei agora porque não caso: é porque não amo; nem casarei, porque não hei de amar nunca. Se me pergunta em que lamaçaes deixei ficar o coração, abaixo a cabeça, e peço licença para lhe dizer que ainda não prostitui o amor. Entrei nos lamaçaes, é isso verdade, saí sujo, como era forçoso sair, e mais nada. Quanto ao coração, sonhei uma vez que ouvira uma mulher dizer-me: guarda-m’o para m’o restituires no ceu. Foi isto um sonho; porem eu guardo o meu amor para os amores do ceu. O que é a felicidade senão sonho?!

«Meu presado primo, a minha mocidade acabou; foi tempestuosa, mas curta.

«Adeus. Peço á minha excellentissima prima a graça de receber os meus respeitos, e a vossa excellencia a sincera e profunda convicção de uma inalteravel amizade. Sou, etc.»

—Que te parece o espiritualismo do rapaz? perguntou Nicoláo á esposa que disfarçava o tremor das mãos.

—Que singularidade!... tartamudeou Beatriz.

—Estou em crêr que lhe extrairam o sangue máo que elle tinha, com os grãos de chumbo das costas! tornou Nicoláo sorrindo. Hei de mandar esta carta a teu pae.

[Pg 136]

—Para que?! interrompeu ella com ancia. Tu já sabes que meu pae lhe chamou impostor...

—Por isso mesmo: quero convencel-o.

—Vaes inquietal-o, primo... Que nos importa a nós o juizo que forma o pae? Raphael não solicita amizade d’elle... para que has de tu solicital-a!

—Tens razão, menina. Farto de disputações estou eu.

Facilmente salta ao espirito do leitor a repugnancia de Beatriz. Bem lembrada estava ella da carta surpreendida pelo pae. As ultimas linhas de Raphael eram a resposta. Martinho Xavier se as lesse, saltaria do leito, e correria furioso ao Vidago para esconjurar a procella sobranceira.

Nicoláo, como quem se diverte, replicou em longa carta, recheiada de jocosidades, ácerca do sonho e da reserva do coração para as nupcias celestiaes. Gracejava a respeito do ceu, e de muitas outras figurações, que os padres e os amantes inventam, no intuito de irem apanhando o melhor que podem as bellas coisas da terra. A escrever, Nicoláo de Mesquita remoçava aos espiritos dos vinte annos, com seus laivos de facecia um tanto cynica.

Leu esta carta a Beatriz, e viu que lhe desagradava.

—Em parte não a entendo—disse ella—bem sabes que eu sei quasi nada, e tu empregas ahi palavras que eu não conheço; mas parece-me que tu não sentes o que dizes, quando fazes zombaria do ceu e dos padres para escarnecer a tal mulher do sonho...

—Pois de certo, Beatriz, redarguiu o marido ingenuamente, eu escrevo isto como brincadeira de nenhum peso no animo de Raphael. A minha ideia[Pg 137] é o passatempo de uma correspondencia que deve ser preciosa por parte de um rapaz de espirito, perdido nas supremas regiões do bello.

—Então sim... compreendo agora que...

Se ella continuasse em voz alta a idéa, diria: que é este um meio honesto de eu ter semanalmente uma carta indirecta de Raphael. Assim foi.

Ao fim de dois mezes, Nicoláo de Mesquita possuia um interessante epistolario, que o recreava infinitamente. A remontada poesia de Raphael denotava um espirito igualmente apaixonado que opulento dos atavios do mais selecto romancista. A erudição tambem não lhe era esquiva: marchetava as suas cartas de sentenças, hauridas de prosadores e lyricos que melhor trataram os theoremas do espiritualismo.

Beatriz estava contente. A occultas do marido, relia, decifrava, e illucidava as phrases obscuras. Sobejava-lhe agudeza de coração para adivinhar até as citações francezas.

Isto durou assim n’este remançoso contentamento conjugal, até que Martinho Xavier inesperadamente appareceu em Palmeira.

Antes de vêr a filha, e sem consentir que o lacaio recolhesse os cavallos, chamou o genro ao bosque do jardim, e disse-lhe:

—Tens tido uma correspondencia de dois mezes com Raphael.

—Tenho.

—Com que fim?

—Nenhum fim, um divertimento... coisa de nenhuma significação.

—Peço-te que me mostres as cartas de Raphael.

[Pg 138]

—Immediatamente: sobe, que a leitura é demorada.

—Não subo: espero aqui.

—Os cavallos ficam no pateo?!

—Ficam: não me demoro.

—E não vens vêr tua filha?

—Ainda não; traz-me as cartas.

Beatriz tremeu e descorou, quando viu Nicoláo tirar da papeleira o masso das cartas.

—Que é?! perguntou ella agitada.

—Que ha de ser?... a demencia de teu pae... Quer vêr as cartas.

—Disseste-lhe...

—Não, não lhe disse coisa nenhuma; foi elle que m’as pediu... Affliges-te, filha?... Isto dispara em nada, Beatriz!

Assim que o marido saiu, tomou o filho nos braços, e correu os salões da casa, sem atinar com algum intento.

Martinho Xavier leu vagarosamente as cartas, pedindo a traducção dos dizeres em francez.

Acabada a leitura exclamou:

—Este homem é um infame!

—Porque?

—Porque estas cartas são uma cilada á tua honra e á minha, e á honra de minha filha.

—Explica-te, primo Xavier! acudiu com arrebatamento Nicoláo.

—Expliquei-me de mais ao marido de minha filha... Agora... agora, Nicoláo de Mesquita, lavei as mãos! Arranquei da consciencia o ultimo espinho. Fiz o que pude, disse o que podia dizer. Faz o que a tua dignidade te ordenar.

[Pg 139]

Ia retirar-se; mas o marido de Beatriz susteve-o, exclamando:

—Has de repetir-me essas palavras em presença de minha mulher.

—Não! não!—exclamou o velho movido a lagrimas—Não! que eu matal-a-ia se ella ousasse injuriar esta dignidade de pae que a defende! Tua mulher está sem macula na face, Nicoláo, pelos ossos de meu pae t’o juro! Mas perante mim, se ella ousar mentir-te, o braço de pae vingará a tua honra.

Saiu impetuosamente, e saltou á sélla com o vigor frenetico dos vinte annos.

O morgado estacou. Atormentava-o um dilemma cruelissimo: era sua mulher criminosa, ou seu sogro mentecapto?

Subiu ao quarto de Beatriz: encontrou-a com o filho no collo, e o rosto purpureado da escandecencia das lagrimas mal enxutas. Contemplou-a silencioso, e ella não pôde supportar os coriscos dos olhos d’elle.

—Que segredo da tua deshonra tem teu pae, Beatriz!?—perguntou elle com terrivel placidez.

—Da minha deshonra? nenhum! Eu nunca trahi os meus deveres...

—Não é sómente a deshonestidade a quebra dos deveres. Pergunto eu que ha entre ti e Raphael Garção?

—Nada, absolutamente nada existe. Morto veja eu n’este instante o filhinho em meus braços, se eu te minto!

Nicoláo recordou mentalmente as palavras de Martinho Xavier: Tua mulher está sem macula na face; pelos ossos de teu pae t’o juro. Refrigerou-se-lhe o sangue. O juramento da esposa, sobre a vida do[Pg 140] filho, podia muito com elle. Saiu a passo lento do quarto; fechou-se no seu gabinete, e repassou detidamente as cartas de Raphael Garção.

Julgal-o-hieis desencavernado do antro de Trophonius, quando saiu do quarto. Era uma amargura de semblante em que facil se prevê que nunca mais se ha de abrir um riso. Nicoláo vira tudo, adivinhára tudo a um clarão do inferno, e tambem vira a essa luz o vulto de Ernesto Froment. Porém, o que elle vira e adivinhára era pouco para considerar-se tão punido quanto offensor. Via o fundo do abysmo; mas via-o de alto. Sua mulher era amada; mas o amador esperava galardoar-se no ceu. Isto, se não consola, offende medianamente um marido. Era ainda incerto que ella o amasse; era ainda perdoavel que ella o tivesse amado em solteira; seria até possivel e quasi desculpavel que ella lhe promettesse esposal-o na bem-aventurança. Meditou estas e outras coisas entre as arvores, e voltou ao gabinete a relêr as cartas. Recordou os relanços em que sua mulher fizera especial reparo, quando elle as lia. Notou, combinou, inferiu, e confortou-se com as noventa e nove probabilidades da pureza de sua esposa, salvando o espirito d’esta conclusão purificante.

Voltou ao quarto de Beatriz, e disse-lhe com brandura, mas torvado o aspeito:

—Mataste a minha felicidade... e a tua. D’hora ávante seremos dois desgraçados que se contemplam. Vives, porque a tua honestidade ainda não está morta. Foi a alma que peccou; convém que a alma soffra. Quando os corpos estão manchados, então é honra espedaçal-os. É occasião de te contar que, ha cento e tantos annos, houve n’esta casa[Pg 141] uma adultera. Deitou-se uma noite tranquillamente ao lado do marido, e foi ao outro dia tirada do leito para ser amortalhada. As cinzas d’ella estão alli na capella no jazigo da esquerda. Não se recolheu ainda áquella sepultura nenhum cadaver. Eu quizera que não fosses tu a companheira dos ossos da unica adultera d’esta familia em quinhentos annos sabidos.

—Mas eu estou innocente, meu Deus!—exclamou Beatriz, tirando pelas madeixas com tresvariada angustia.

—Bem sei—disse soturnamente o marido.

—Pois, se sabes, porque me insultas?

—Eu conversei comtigo, Beatriz: os lacaios é que insultam. Meu terceiro avô não me consta que insultasse a minha terceira avó, que está alli no jazigo do lado esquerdo.

—Pois bem!... mata-me e mata-me já, que eu do fundo de minha alma te abomino, e perdôo. Esta creança te amaldiçoará em meu nome.

Era sublime o exaspero de Beatriz, com o filho nos braços, contorcendo-se em altos gritos. Nicoláo tirou-lhe a creança, apertou-a ao seio, beijou-a, lavou-a de lagrimas, e exclamou:

—Tu não me amaldiçoarás, meu filho!... Porque tu és meu filho, és, sinto-te entranhado em meu coração!...

D’ahi a horas, o morgado ordenava aos seus criados que preparassem as liteiras para jornada longa.

Dois dias depois, os fidalgos de Palmeira sairam caminho de Lisboa. E Raphael Garção recebia da mão de uma mulher entrajada de mendiga estas linhas:

«Vamos para Lisboa. Meu pae denunciou tudo.[Pg 142] Sou uma martyr. Não me esqueças, anjo da minha vida. Eu perdoei-te, e amo-te mais que nunca. Maldito seja este homem, que me ameaça com a morte!... No ceu, no ceu nos veremos, meu R. Adeus. Sei que não torno a ver-te.»

Raphael Garção, á terceira leitura, disse entre si:

—Verás!


[Pg 143]

XIV

Appareceu em Chaves Raphael Garção despedindo-se de viagem para França. Deixou um bilhete a seu tio Martinho Xavier, mostrando-se pesaroso de não poder abraçal-o. Notou no seu remember dezenas de encommendas das senhoras flavienses, novidades de Pariz, que ellas haviam de estreiar nas bodas da morgada de Santo Aleixo. O boato corrente era que o morgado de Fayões ia comprar a Pariz o presente de noivado, e encravar os brilhantes e adereços de sua mãe em feitios modernos.

Saiu Raphael por Hespanha, e entrou em Portugal pela Extremadura. Chegou a Lisboa, e informou-se da residencia de Ricardo de Almeida. Margarida Froment é quem dava nome ao transmontano em Lisboa. No hotel de Italia, na rua de S.[Pg 144] Francisco, onde Raphael se alojara recatadamente hospedava-se um diplomata francez, conhecido da sua compatriota.

Ao outro dia, o morgado de Fayões escreveu a Ricardo de Almeida, marginando a carta com a recommendação de reserva. Chamava ao hotel de Italia o seu primo e amigo. Tudo primos! Pode chamar-se o romance dos primos esta novella!

—Que fazes em Lisboa?—perguntou o fidalgo de Aguiar.

—Vim aqui para esconder-me.

—Vens fugido?

—Não, homem: venho na piugada de uma mulher que me fugiu com a alma, e o marido com ella.

—Casada!... Agouro-te desgraça!...—atalhou gravemente Ricardo.

—Ah! tu estás assim?!... Onde tens tu vivido, rapaz? e com quem tens vivido, velhaco?

—Larga resposta me pedes, e mais tarde t’a darei. Vamos ao ponto. É conhecida a mulher?

—É a prima Beatriz Vahia.

—A mulher de Nicoláo!... Então o homem está a contas com a Providencia mais cedo do que eu esperava!...

—A Providencia não entra n’isto, homem!... Tu sabias que nos amavamos eu e ella?

—Parecia que sim...

—O tio Martinho casou-a...

—Porque tu a deixaste casar: logo, não amavas a prima Beatriz.

—Olha se podes ouvir-me sem grande dispendio das formulas do raciocinio: esse «logo» cheira-me a lente de prima! Bem sabes que perdi dois annos de Coimbra, porque não pude fazer exame de logica.[Pg 145] Será moda em Lisboa fallar-se de mulheres em syllogismo? Quando eu vinha por aqui passar ha cinco annos, não havia logica para esta casta de gente!... Saberás, pois, primo Almeida, que Beatriz está em Lisboa, e eu quero que me saibas onde está Beatriz. És capaz?

—Sou, se me tu disseres onde está o marido. Tu cuidas que em Lisboa é coisa notoria a chegada do morgado de Palmeira!

—Ora não faças a terra maior do que ella é;—replicou Raphael.—Eu cheguei hontem á noite, e, meia hora depois, sem sair do quarto, sabia onde morava madame Margarida Froment.

—É que as francezas bonitas dão mais nos olhos dos lisboetas, que os morgados de Traz-os-Montes.

—De accordo; mas achas difficil saber-se onde está o Mesquita?

Se não se hospedasse em casa de parentes, é facil pela relação policial das hospedarias.

—Cuida-me disso, e fallemos agora de ti. És feliz, rapaz?

—Sou.

—Dois annos! uma mulher dois annos!... Tu achaste a coisa que os poetas andam a sonhar ha seis mil annos! Dois annos de felicidade com a mesmissima e identica creatura!... Que segredos tem ella? Belleza offuscante, e espirito de endoidecer a gente, não é? Responde alguma coisa, homem!... Parece-me que te vejo no castello d’Aguiar a fazer a côrte por um oculo de vista larga a uma pastorinha, que lavava os pés no regato!... Aposto que ainda te não desbarataste!

—Ainda não; mas fiz coisa peior: desbaratei o melhor da minha casa.

[Pg 146]

—Já sei: isso consta ha muito por lá... As tias Almeidas e o capellão choram por toda a parte os teus desperdicios. Então estás pobre? queres dinheiro?

—Pobre ainda não: tenho trem, e um palacete, e soirée ás terças feiras.

—Vives sardanapalamente! E, por sobre tudo isso, a franceza, que tu amas! Devéras amas? falla a verdade.

—Amo, porque me não merece confiança nenhuma.

—Esse porque é especie nova para mim! Oh diabo! eu costumo desprezar as mulheres pela razão por que tu as amas!... Isso não é amor, dou-te a minha palavra de homem que leu Byron, Balzac, Henri Beile, e todos os praxistas ad hoc.

—Então que é?

—É uma peçonha composta de uma grande dóse de orgulho, e outra grande dóse de tolice. Perdoarás: fallemos rudemente como lá nas nossas montanhas. Ella atraiçoou-te?

—Não...

—Que tu saibas...

—Sei que não; mas tem um ideal.

—A boas horas! Cuidei que estas creaturas não consumiam d’isso, e andavam satisfeitas com vestidos e diamantes e carruagem! De mais a mais, a despeza do ideal!

—Tu rebaixas muito a mulher, primo Almeida!

—Eu!?... tu é que m’a puzeste debaixo dos pés, dizendo-me que ella te não merecia confiança.

—Mas posso ser injusto.

—Ah! então diz-me isso. O certo é que a zelas muito porque a amas desmarcadamente, eim!

[Pg 147]

—Suspeito que ella, se Nicoláo de Mesquita a requestasse, me deixaria.

—Logo... (cá vem a logica, se permittes uma excepção) logo: a mulher não tem vergonha.

—É barbara a conclusão! Tu ignoras o passado d’esta senhora...

—Sei tudo: contou-me tudo o Mesquita, no mesmo dia em que tu saiste da Foz com ella para Lisboa.

—E elle ainda a ama?

—N’aquelle dia estava cheio de amor! Tocava as raias do delirio e da irrisão. Aturei-o duas horas e levei-o a casa.

—E depois?... atalhou com arrebatamento Ricardo.

—Depois, esqueceu-a, e fez-se amantissimo da mulher. Foi uma desgraça para nós ambos a reconsideração.

—Porquê?

—Porque estavas livre da franceza tu, e eu amaria desassombradamente a prima Beatriz.

—Virá elle a Lisboa com intenções?

—Não sei, mas parece-me que ninguem vem conquistar, ou reconquistar uma mulher com outra ao lado. Esta conjectura é uma calamidade para ti: francamente, Ricardo! Quem te levasse hoje esta mulher, salvava as reliquias da casa dos Almeidas, e rehabilitava os teus creditos para entrares no molde de vida que melhor enquadra ao teu genio. A tua propensão é o casamento, primo Almeida; os homens pegadiços como tu são os eleitos da bem-aventurança matrimonial. Tu consomes com esta mulher porção de sentimento, que na vida honesta, e á sombra das suas arvores gigantes, te daria[Pg 148] mananciaes de prazeres. Se eu tivesse a tua alma, bem sei onde a felicidade me esperava. Já estive recolhido seis mezes a trabalhar na refundição da minha indole, e fiquei mais aleijado. Se Deus me pedir contas a mim do que eu sou, hei de eu pedil-as á natureza, e veremos quem fica a dever. Mas tu, homem que podes amar dois annos a mulher de que desconfias, que amor não darias ao coração puro de uma esposa!

—Sinceramente te digo que já pensei n’isso.

—Ah? tu já pensaste n’isso? Então não amas a Margarida.

—Bem se vê que não podeste fazer exame de logica, primo Garção, retorquio sorrindo Ricardo.

—Meu amigo, conheces a regra geral de alveitaria que diz: cavallo que não vê é cego? Pois este axioma em força de verdade corresponde a est’outro: Homem, que, ligado a uma mulher pensa na felicidade que outra póde dar-lhe, não ama a mulher com quem vive. Pilhei-te em flagrante absurdo! Isto só o faz quem não póde fazer exame da arte de raciocinar. Parabens, primo! Dás-me esperanças de te vêr sair d’esta ingloria estagnação em que te apodrece a alma e o patrimonio. Sae d’isto, que é improprio da tua idade. Fecha os olhos. Deixa por descuido aberta a porta da gaiola, e o rouxinol que vá cantar a outros sinseiraes. Homem! olha que o dinheiro é uma cousa importante. Estás nos vinte e seis annos. Que farás aos trinta? Que heranças esperas? Nunca pensaste n’isto?

—Já.

—E que vês no teu futuro, quando hypothecares a ultima geira?

—Vejo um par de excellentes pistolas.

[Pg 149]

—Essa visão é judiciosa, e não sei realmente desvanecer-t’a. Aqui é que eu queria o egresso que te ensinou o cathecismo. O que eu posso dizer-te, desprendido de toda a pretenção philosophica, é que tu és um asno pyramidal, se continuas assim; e não haverá pyramides que perpetuem a tua asneira, se te matas depois de teres assim vivido. Depois do que, tenho a dizer-te que disponhas da minha casa como tua, e vás saber onde mora a prima Beatriz.

—Pois sim, e fallaremos depois—disse Ricardo de Almeida, e saiu com animo agitado pelo impulso das phrases ora graves, ora picarescas, do morgado de Fayões.

Poucas horas depois, voltou o castellão de Aguiar noticiando que Nicoláo de Mesquita se hospedára n’um hotel francez da rua dos Romulares.

—Obrigado, primo! Venceste a primeira batalha: agora seguem-se os triumphos! exclamou Raphael.

—Que tencionas fazer agora?

—Vou mandar o meu criado alugar uma casa fronteira. O hotel francez necessariamente está defronte de alguma casa.

—Sem questão; mas se a casa tem inquilinos?

—O meu criado leva um mandado de despejo em vinte e quatro horas.

—Estás a mangar!...

—Ninguem manga com o dinheiro, primo Almeida. Imagina tu que no quinto, ou quarto andar do predio mora um empregado publico, que vae rebater duas cedulas para pagar um semestre da casa, que alugou por cincoenta mil réis. O meu criado offerece-lhe quarenta soberanos, e diz-lhe: «rua, dentro de vinte e quatro horas!» Antes das doze,[Pg 150] o empregado publico saí com seis cadeiras e duas panellas, e eu entro com esta ponderosa alfaia de um coração em chammas. Impugna lá se podes!

—E depois?

—Essa pergunta é um disfructe! Depois a casa tem janellas, e eu tenho olhos, e Beatriz, essa então bem sabes que magicos, que peregrinos olhos tem! Deixo as omissões á tua discrição. E agora vai-te embora que eu vou dar credenciaes ao criado. Á noite vou a tua casa.

O ladino agente voltou antes da noite, com a certeza de ter as chaves do terceiro andar na casa defrontante com o hotel, ao escurecer do dia seguinte. Apresentou o titulo de sublocação, e o recibo do signal.

Fechou-se Raphael n’uma sege, e foi ao largo do chafariz de Andaluz passar a noite com o primo Almeida.

Estava Margarida Froment ao piano. Recebeu o apresentado friamente, e disse-lhe pouco depois:

—Ricardo passou com vossa excellencia algumas horas do dia...

—Não ha duvida, minha senhora.

—Facilmente conheci que o senhor Garção exerce uma sinistra influencia no animo de seu primo.

—Porque, madame? Sinistra influencia!...

—Certamente, que elle entrou em casa com uma linguagem nova.

Raphael relanceou os olhos ao primo, e disse entre si: «Este homem será mais inepto do que eu presumo?»

E, replicando a Margarida, disse:

—Bem vê, minha senhora, que a minha idade[Pg 151] não authorisa a dirigir o espirito de ninguem, particularmente de uma pessoa, que vossa excellencia domina com absoluto imperio.

—Agradecida! tornou ella com ironico sorriso.

—Eu não previa tão aspero acolhimento d’esta dama! disse Raphael ao primo. Que significa este desastre?

—Imaginação d’esta senhora! respondeu Ricardo.

—Imaginação e dignidade! acudiu em tom grave a franceza.

Raphael lembrou-se do verso de Molière, que já occorreu ao leitor e sorriu-se para dentro.

Margarida vibrou vertiginosamente o teclado do piano e levantou-se a aspirar o aroma de umas flores, que adornavam o marmore da jardineira.

Raphael ia-se aborrecendo da sua posição, quando Margarida, brincando com uma camelia, deu dois passos com um meneio de muito garbo, e disse ao hospede com requebro maviosissimo de voz:

—Vossa excellencia veiu a Lisboa buscar seu primo?

—Não, minha senhora: o meu prazer seria trazer-lh’o, se elle estivesse longe de vossa excellencia.

—O tom da lisonja esconde uma desconsideração. Perdoo-lh’a, porque as mulheres na minha posição nem sequer merecem que a desconsideração se vista de palavras usadas nos salões.

—Oh! minha senhora! acudiu Raphael, balbuciando.

Entrou um escudeiro annunciando uns sujeitos da primeira plana genealogica.

Margarida pôde ainda accrescentar a meia voz, em quanto Ricardo saiu ao encontro dos cavalheiros:

[Pg 152]

—Está enganado, senhor Garção! eu não espero que me abandonem.

—Isso que prova, minha senhora? respondeu o morgado de Fayões.


[Pg 153]

XV

De relance, disse Raphael a Ricardo que ia sair para esquivar-se a apresentações. E ajuntou:

—Estrago tudo, se me faço conhecido em Lisboa. Como hoje não é terça-feira, cuidei que estarias só. Adeus. Faz os meus cumprimentos á tua amiga. E apparece.

No decurso do seguinte dia, o criado de Raphael comprou a mobilia de um quarto, e recolheu-a, ao fechar-se a noite, na casa fronteira ao hotel. Antemanhã, prevenido com chave de trinco, entrou Raphael, e pregou cortinas na janella destinada a observatorio. Instruiu o criado sobre cousas do estomago, e fechou-se a continuar a carta que daria um opusculo de cincoenta paginas em oitavo francez. Era a historia do seu amor desde os quinze[Pg 154] annos até áquella hora de ineffavel amargura. Ás nove horas levantou mão de sobre a setima pagina do sexto caderno, e foi encostar-se á vidraça encortinada. Esperou impacientado uma hora. Todas as janellas estavam abertas, e ao maior numero tinham chegado mulheres e homens. Nicoláo era madrugador e Beatriz tambem; mas nem a sombra lhes vira no interior dos quartos. Ás dez horas assomou a uma janella uma criada com trajes da provincia. Suspeitou o moço que fosse a ama do filho de Beatriz, e animou-se. D’ahi a momentos chegou Nicoláo á beira da ama, e affagou o menino dando-lhe para brincar as borlas do chambre.

Saiu a ama e ficou o morgado da Palmeira encaracolando as guias do bigode, e baforando fumaças do charuto.

Fitou-lhe Raphael o binoculo por entre o resquicio das cortinas justapostas ás vidraças; e viu, no interior da saleta ou ante-camara, Beatriz reclinada nas almofadas de um canapé, e a ama sentada no tapete com o menino, que brincava com os longos anneis do cabello da mãe.

Nicoláo volveu o rosto para dentro, disse breves palavras, e voltou a debruçar-se no peitoril da janella. Depois, retirou-se, ficando Beatriz no canapé. Passado um quarto d’hora, saiu o morgado á saleta de chapéu, vestindo as luvas; e apertando a mão da mulher, inclinou-se a beijar o filho e saiu.

Beatriz levantou-se da postura inclinada, e sentou-se. A ama saiu á janella mostrando ao menino um papagaio da casa proxima. A creança dava valor aos bracinhos, e festejava com tregeitos e risos as cascalhadas do passaro. Beatriz veiu á janella gosar da alegria do filho. Raphael estremeceu: era outra[Pg 155] mulher sua prima; mas tambem formosa a outra mulher figurada.

Tinha sido redonda e purpurina de rosto; agora emaciava-lhe a palidez um rosto oval. Alvejavam-lhe agora os labios, que o escarlate do rubi enrubescera. A transparencia das cartilagens do nariz era tal que se mostrava ao alcance do oculo. Posto que melindrosa de compleição, havia sido abundante de carnes, ou os ossos tão delicados que se escondiam sob uma subtil epiderme. Raphael descobrira-lhe no despeitorado do roupão de velludo azul a magreza do pescoço e as saliencias das claviculas. Não podia desfitar as lentes d’aquella encantadora mulher, que todavia já não era a sua prima Beatriz.

Saiu da janella a ama, e fitou a senhora, enlevada n’uns sons de piano, que lhe davam rebates de saudade de alguma bella e triste memoria do seu passado.

Raphael depoz o oculo, reflectiu um instante, e correu a vidraça com estrondo. Beatriz relançou a vista á janella que se abrira; ergueu-se de salto, do peitoril da sua; admirou anceada o homem que lhe sorria; levantou machinalmente as mãos em postura supplicante, e desprendeu um ai estridente.

Raphael fez pé atraz, logo que viu a orla do vestido da ama, que vinha correndo. Beatriz affastou-se ao interior da saleta, e caiu no canapé. Pouco depois, levantou-se, contemplou fixamente a janella fronteira, entreviu Raphael que se approximava da primeira luz, e sorriu. A ama atravessou a ante-camara, e Beatriz recolheu-se ao interior da casa onde devia de estar a alcova.

Posto que a gentil visinha não fosse exactamente[Pg 156] a linda Beatriz, o morgado de Fayões sentia-se apaixonado d’ella, e radioso de jubilo.

Esperava-o o almoço, foi para a mesa, e lembrou-se das palavras de Nicoláo de Mesquita: «coração a um lado; estomago a outro». Almoçou como almoça toda a gente que se levanta feliz, e como os infelizes que não jantaram no dia anterior.

—Não saias, disse elle ao criado.

Ao meio dia, voltou Beatriz á janella: vestira-se a primor de graça e simplicidade. Os caracoes ondeavam-lhe nas espaduas estremecidas pela viração do mar. As rosas encarnaram-se nas faces. Os labios coloriram-se dos reflexos do rosto. A prima Beatriz estava passando por mais milagrosa transformação que a primeira.

Assim que viu Raphael, retraiu-se ao meio da saleta, e fez-lhe um gesto de espanto e uma pergunta por acenos. O primo respondeu, mostrando-lhe uma carta, e chamando ao seu lado o criado conhecido de Beatriz. Ella mostrou irresolução temerosa, e o criado, brevemente instruido, atravessou a rua e subiu ao terceiro andar do hotel.

A esposa de Nicoláo chamou a ama á janella, e disse-lhe:

—Entretém o menino com o papagaio.

Depois foi ao mainel da escada correspondente ao terceiro andar, recebeu a carta, e disse ao criado:

—Ámanhã á mesma hora, respondo. O primo que tenha muita cautella... Eu não volto hoje á janella, senão á tarde.

Raphael desceu as vidraças e cortinas. Mandou comprar os ultimos romances francezes, e saboreou as horas na leitura e na meditação, com intervallos de espionagem.

[Pg 157]

Viu de uma vez Nicoláo de Mesquita passeando na saleta, e gesticulando com os braços desabridamente.

Era um dialogo violento com sua mulher...

Assim que entrou fez reparo no ataviamento de Beatriz, e disse:

—Maravilha! Desde que estás em Lisboa, é a primeira vez que te vestes e penteias com esmero!

—Não cuidei que se fazia notar uma coisa tão insignificante, primo! objectou ella com amavel sombra.

—Pois não! Nem pallida, nem quebrantada, um ar de excellente saude!

—Parece que folgavas com vêr-me pallida! Estarás chorando a esperança perdida de me veres brevemente morta?

—Pelo contrario... respondeu ironico, folgo muito de te vêr tão vivedoura...

Um exquisito instincto impelliu á janella Nicoláo de Mesquita, e todas as janellas lateraes e fronteiras foram mais ou menos examinadas.

Beatriz entendeu a disfarçada analyse, e, olhando por sobre o hombro d’elle, viu hermeticamente fechadas todas as janellas de Raphael.

—Tive hoje carta de teu pae, disse o marido, com melhor phisionomia e brandura de voz.

—Como está elle?

—Melhor. Diz que vem a Lisboa.

—Oxalá...

—Dá-me a noticia do proximo casamento de Raphael com a Angela de Santo Aleixo.

—Sim?...

—É verdade.

Nicoláo fixava de perto o semblante da prima, e[Pg 158] satisfactoriamente observava a quietação e a côr inalteravel da indifferença.

—Raphael, continuou elle, foi a Pariz comprar as prendas do casamento.

—Deve trazer-lhe coisas lindissimas! observou Beatriz com um sorriso frivolo.

—Vou jurar que elle não volta cá tão cedo. Pariz é o engodo, e o tonico das almas estragadas. Quando elle achar o deleite que tem em si aquelle bello inferno de Pariz, esquece a morgada de Santo Aleixo, e acha em cada franceza feia uma mulher superior ás mais formosas de Portugal.

Beatriz magoou-se; não se magoaria, antes de lêr a carta de Raphael, em que elle, indelicadamente, contava as scenas occorridas com Margarida Froment, antes e depois do casamento de Nicoláo.

O despeito respirou estas imprudentes expressões:

—Bem sei; as francezas são muito amaveis; mas é triste que os amantes das francezas sacrifiquem as mulheres que nasceram e viveram felizes e amadas em Portugal.

—Que quer dizer isso, prima? interrogou elle, avincando a fronte.

—A consciencia que te responda.

—Como sabes tu que...?

Susteve-se, e murmurou com retrincado sorriso:

—Bem sei... bem sei... O infame havia de preparar o terreno... Faremos contas mais tarde...

—Que contas? atalhou Beatriz, fingindo-se ultrajada pela suspeita.

—As contas que se liquidam com os traidores!

—E tu já as deste, primo? não deves nada?

—Abstenha-se de interrogar-me, senhora! A perfidia...[Pg 159] não ousa tanto. Abaixa a cabeça, e cala-se! Entendeu?

—A perfidia!... teimou ella com azedume. A perfidia!... sempre a palavra injuriosa!... As perfidias despresam-se, primo Nicoláo! Eu tenho o patrimonio de minha mãe com que posso viver. Quando quizer separemo-nos!

—Póde ser... concluiu o marido, saindo da sala.

Ao fim da tarde, Raphael escassamente divisou atravez da vidraça Beatriz, que lhe fizera signal de não abrir a janella.

O amor subtilisara-lhe a esperteza. Desconfiou que Nicoláo, alvorotado pelo esmerado trajar d’aquelle dia, de qualquer angulo da rua a estaria espionando. A suspeita era acertada. O criado de Raphael vira o morgado da Palmeira, encoberto pelos cunhaes das casas esquinadas, a espreitar as janellas do hotel.

Á noite, Raphael Garção foi encerrar-se no seu quarto do hotel de Italia, onde era conhecido pelo nome do seu criado, que tirára passaporte em Hespanha. Raras vezes um espirito leviano prevê tão miudamente as superveniencias nocivas ao bom exito de uma empreza! Cada Fausto acareia as simpathias de um diabo invisivel, que o aconselha, até á hora definitiva em que lhe toma conta da alma, se é que uma alma, infernada por mulheres, póde servir de pasto aos griphos das alimarias do reino escuro.

Encontrou Raphael o primo Almeida, que o esperava sobremodo attribulado.

—Que tens tu? perguntou o de Fayões. Foi a franceza que te deu tratos de polé! Aposto!

[Pg 160]

—Coisa peior.

—Fugiu-te?!

—Não: surprehendi na algibeira d’um criado uma carta para ella do Mesquita. Facilmente se conhece que Margarida o auctorisou a escrever-lhe, respondendo á primeira que recebeu. Apresentei a carta á franceza, e ella, a infame, leu-a placidamente, e disse: «Sem contradicção, esta carta é para mim.»

—E tu mataste-a?

—Zombas com a suprema desgraça, Raphael?

—Não: congratulo-me com a suprema felicidade! Despediste-a?

—Não... foi ella quem se despediu.

—Oiro sobre azul. Então já lá vae!...

—Teria ido, se me não dissesse isto: «Sou culpada; mas criminosa, não. Respondi a um desventurado, que está pagando as dôres que eu recebo das tuas mãos!»

—Oh! acudiu Raphael com afflicção, que atrocissima lembrança! Disseste-lhe que eu amava Beatriz!

—Não.

—Por tua honra?

—Por minha honra.

—Estava perdida a minha pobre prima! A franceza, por vingança ou por interesse, accusava a mulher ao Mesquita... Seria uma fatalidade!...

—Socega, que eu não lhe fallei em Nicoláo: era de interesse meu occultar os dissabores do homem que ella ainda ama. O que Margarida não póde perdoar é ser elle feliz.

—O caso é que ella ficou...—volveu Raphael.

—Pedi-lhe eu que ficasse, emquanto o coração a não impellisse a outro homem.

—E ella ficou? Não sei qual dos dois é mais admiravel![Pg 161] Vocês devem ter um pelo outro a maior desconsideração!... Está claro que te não podes arrancar da mulher...

—Eu não sei o que está claro.—disse Ricardo de Almeida.—Escura sei eu que está a minha alma como as trevas dos condemnados. Eu saí de casa allucinado, e procurei-te para te contar a minha deliberação: como te não encontrei, nem te quiz procurar na rua dos Romulares, desisti do teu parecer, e mandei desafiar Nicoláo de Mesquita. Ámanhã ás onze horas é procurado pelos padrinhos.

—Então é certo que endoudeceste?—exclamou Raphael Garção.—Em primeiro logar, a mulher por quem te bates, se o duello fosse uma coisa elevada e seria, baixava-o á infima irrisão. Em segundo logar, Nicoláo de Mesquita não se bate, e humilha-te, respondendo que as Margaridas Froments tão sómente merecem paladinos, que se desafiem a vêr quem gasta mais com ellas. Em terceiro logar, quando te batesses... Que armas jogas? Ha dois annos não jogavas nenhuma...

—Nem hoje.

—Pois então, Deus haja misericordia da tua alma, porque Nicoláo de Mesquita é professor em todas as armas, sem excepção de côr ou feitio! Ahi vaes tu offerecer o peito ao estoque ou á bala, tu, Ricardo de Almeida, um rapaz de futuro, um dos mais estimaveis e nobres moços da provincia! E assim te deixas morrer irrisoriamente por amor ou desprezo—não sei o que é—de uma mulher despejada, que te abandonou! Abre a tua alma a um raio de luz, desgraçado! Crava as proprias unhas no coração ou na cabeça, e arranca de lá essa ignominia, que te sacrifica a uma coisa que não póde ser amor!...[Pg 162] Tu vaes d’aqui procurar os padrinhos, e retirar a proposta. Depois, vens residir n’este hotel, e desimpedir a porta de tua casa para que a franceza saia livremente sem as angustias da despedida. O dever, a dignidade é isto!

—Tenho vergonha de retirar a proposta—replicou Almeida.—Em Lisboa um caso d’estes é a perda irreparavel da reputação.

—Da valentia!

—Da honra.

—Então é a honra convencional que te move, já não é o ultraje...

—É tudo. Não desisto... Emquanto a morrer, sinceramente, com todas as veras de minha alma te digo que me não importa. Antecipo um acabar mais obscuro... porque eu, em me vendo pobre, já te disse que me suicido... Além de pobre, desprezado d’esta mulher, que nem o coração me deixou...

—Tens ainda um grande coração, porque podes chorar, meu rico Ricardo—atalhou Raphael abraçando-o.—De hoje em deante és meu irmão! Hei de disputar-te ao diabo e vencerei!


[Pg 163]

XVI

Ás onze horas do dia immediato, um criado do hotel apresentou a Nicoláo de Mesquita dois bilhetes de uns sujeitos que esperavam na sala. Eram nomes de tomo na velha fidalguia d’estes reinos.

Desceu o morgado da Palmeira á sala. Um dos cavalheiros com a graça amavel e affectuosa de quem vae convidar um amigo para um alegre festim, disse que elle e o seu amigo D. Fulano de tal haviam sido encarregados pelo primo Ricardo de Almeida de fazerem expressa ao excellentissimo Nicoláo de Mesquita, cavalheiro que elles propoentes conheciam de nome, e de mui illustre parentella em Lisboa, a sua resolução de pleitear com as armas no campo da honra o direito de repellir uma affronta.

[Pg 164]

—Affronta, ajuntou Mesquita, que vossas excellencias terão a bondade summa de nomear.

—Cartas escriptas a uma dama, que vive em companhia do cavalheiro offendido, madame Margarida Froment.

—A dama de que se trata, disse o morgado, é uma mulher que eu sustentava minha amante, estabelecida em residencia minha no Porto, no dia 26 de outubro de 1839, ás tres horas da tarde; e ás quatro horas, pouco mais ou menos, d’esse dia, e anno, o senhor Ricardo de Almeida senhoreou-se d’ella. Qual dos dois entendem vossas excellencias que foi o affrontado?

—Não viemos munidos de instrucções para responder a vossa excellencia.

—Instruidos vossas excellencias, recebo as suas ordens, pedindo licença para observar-lhes que tenho em minha companhia minha mulher, e o local é inconveniente para o proseguimento d’estas negociações. Vossas excellencias consentirão que os cavalheiros, chamados a representarem-me n’esta indiscreta pendencia, se encontrem em logar designado por vossas excellencias.

Reunidos os quatro agentes, dois nomeados por Nicoláo, em casa de um d’elles, saiu D. Fulano a colher instrucções de Ricardo de Almeida, e voltou confirmando o declarado por Nicoláo de Mesquita, com pequenas variantes, que não alteravam a substancia. Em consequencia do que, lavrou-se acta com os seguintes considerandos:

«Os abaixo assignados, incumbidos de accordarem mutuamente na deliberação a tomar sobre um conflicto de honra entre o senhor Ricardo de Almeida e Noronha Valladares Riba-fria de Aguiar Falcão[Pg 165] Athayde, morgado do Pontido, e o senhor Nicoláo de Mesquita Sotto-mayor Sepulveda Cão e Aboim da Nobrega e Neiva, Morgado da Palmeira do Vidago;

«Considerando que a franceza Margarida, actualmente, e desde 1839, contubernal de Ricardo de Almeida, era considerada em dominio de Nicoláo de Mesquita, ao tempo em que foi requestada pelo segundo dos citados cavalheiros possuidores;

«Considerando que Nicoláo de Mesquita foi o primeiro ferido no seu coração, ou no seu amor proprio, termos equivalentes na questão subjeita;

«Considerando que o primeiro affrontado entendeu acertadamente que os pleitos de honra são objectos sacratissimos em que as leviandades de uma mulher desdoirada não devem preponderar;

«Considerando que Margarida, ipso facto, se havia constituido materia primi capientis[3], e desde logo coisa apropriavel sem desaire de quem quer que fosse, nem titulo de propriedade valido;

«Considerando que Nicoláo de Mesquita havia dado o exemplo de cordura e desprendimento quando lhe foi extorquido um dominio, que elle voltava a requestar, sem offensa de Ricardo de Almeida, nem das leis consuetudinarias;

«Considerando que a unica pessoa presumivel de offendida seria Margarida, offensa que não se deu, por ella mesma affoitamente se gloriar de ser a pessoa[Pg 166] a quem endereçava a carta, o corpo de delicto na questão litigada;

«Considerando, finalmente, que a dignidade de dois cavalheiros não deve baixar a contender sobre materia que nunca se pode provar honrosamente discutida;

«Os abaixo assignados resolveram que não ha offensa, nem leve desdouro, cuja desaffronta nobilite as armas nas mãos dos cavalheiros, de quem receberam authoridade para esta ou outra deliberação.—Lisboa, e casa de D. João d’Ornellas Themudo, 20 de junho de 1842.»

Seguem as assignaturas.

Ricardo de Almeida recebeu a copia d’esta coisa e gemeu surdamente angustiado pela humilhação, que aviltava a mulher dos seus sacrificios. Ponderou na crueza e alarvaria de certas palavras escusaveis na formalidade da acta: os padrinhos offenderam-se do reparo, sairam abespinhados, e consultaram os reinicolas em duellos sobre se deviam desafial-o.

Nicoláo de Mesquita riu dos considerandos, como fórma e como substancia; achou-os magnificos de ironias e patuscada; agradeceu infinitamente os serviços dos seus bons amigos; os quaes, azoados com o riso equivoco do Mesquita, por um cabello que o não desafiaram tambem.

Os cavalheiros signatarios por parte de Ricardo, bem que lhe desculpassem a defeza de Margarida e o tratassem com deferencia e amizade em publico, não voltaram mais a casa d’elle, onde jantavam e passavam d’antes as noites com frequencia. Motivaram este procedimento, allegando que se achavam mal com Margarida Froment nas salas de um amigo. Os sabedores d’este acume de pundonor imitaram[Pg 167] os praxistas da elegancia e dos brios: ninguem volveu ao palacete de Andaluz.

Queixou-se Ricardo ao primo Raphael dos briosos devassos; e o de Fayões invectivou contra os considerandos, lamentando não poder sahir a publico e desafiar, um a um, ou todos quatro de pancada, os signatarios da indecorosa acta. E d’aqui passou a lastimar Margarida Froment, com uns termos tão compungidos, que propriamente Ricardo se espantava do reviramento.

A mudança era racional. Raphael era mais meditativo que o commum dos homens das suas manhas e costumes. Cogitara elle que se a franceza, embora estranha ao seu amor á prima, se reconciliasse com Nicoláo, facilmente lhe diria que Raphael Garção lhe fôra apresentado por Almeida. Assaltado por tal medo, cuidou em dominar egoistamente o fraco espirito de Ricardo, persuadindo-o a sair com ella de Lisboa para o Porto, ou para o estrangeiro, em ordem a que Nicoláo de Mesquita não lograsse a vingança desde muito planeada.

O morgado do Pontido, obtemperado muito á vaidade, e já pouquissimo ao amor, conveio em retirar-se á sua casa da Foz no Porto, e differir opportunamente a desligar-se de Margarida, cujo descredito o enojava. Deploravel orgulho de homem, que julga purificar com a sua estimação a mulher empéstada no conceito dos outros!

Propoz elle á franceza a saída para o Porto.

—Não vou—respondeu ella firme e rapida.—O desprezo dos teus amigos não me afugenta de Lisboa; o mais que pode é afugentar-me de tua casa.

—Desprezo os meus amigos—replicou Ricardo. Vamos... porque...

[Pg 168]

—Porque vamos?—acudiu Margarida ás suspensivas reticencias.

—Porque desconfio da tua lealdade.

—Aqui?... Porque has de ter mais confiança lá?...

—Confessas, pois...

—Confesso que te sou pesada, e que me pesa de o ser. Eu surprehendi muitas vezes o teu espirito, e resignei-me. Esperei que elle fallasse: foi teu primo que te ensinou a eloquencia do tedio. Morri desde logo para ti, porque tudo esmaguei na minha queda, mesmo o meu orgulho, esta luz do ceu ou do inferno que nunca deixa escurecer a dignidade das peccadoras apedrejadas, que não encontram Jesus. Os teus amigos sabiam que impunemente podiam offerecer aos teus olhos um libello injurioso que tu deixaste mal guardado para que eu me podesse vêr n’aquelle espelho, e admirar a continuação da tua generosidade em baixar até ao esterquilinio onde me atiraram. Convenci-me de que sou a mulher descripta n’este papel em que a minha baixeza corre parelhas com a tua. É impraticavel a nossa convivencia. Reciprocamente nos desprezamos, Ricardo.

—Queres, portanto, dizer...

—Que nos desliguemos.

—Por que voltas aos amores antigos?

—Não te dou contas das minhas tenções: bem sabes que ha dois annos e meio as não dei a Nicoláo de Mesquita.

—O que me espanta é que vivesses dois annos commigo!...

—Por que te espanta?

—Precisamente ninguem te inquietou... disse elle afiando o sarcasmo com o riso.

[Pg 169]

—Espera!

Margarida abriu uma papeleira, e tirou de um falso alguns massetes de cartas, que desatou, e derramou sobre a jardineira.

—Lê as cartas recebidas em Lisboa pela mulher, que ninguem inquietava. Ahi reconhecerás a lettra dos teus principaes amigos. Ahi estão cartas dos signatarios da acta do duello, que se não fez porque Margarida é coisa apropriavel, sem titulo de propriedade valida. Vae agora perguntar a cada um dos teus amigos se possue carta da Margarida. São grandes fidalgos, e alguns—especialmente os que não te pediam dinheiro—são ricos e prodigos. Vae perguntar-lhes se a mulher, a materia que nunca se póde provar honrosamente discutida, baixou até elles, quando lhe rastejavam os pés, acceitando o desprezo, com a mesma abjecção com que traiam o amigo. Vae...

—Basta!—Exclamou Ricardo, engriphando os dedos nos punhados de cartas, que atirou ao pavimento.—Basta, Margarida, que eu estou expiando infernalmente crimes que não pratiquei! Segue-me, segue-me por piedade, e fujamos de Lisboa, senão fizeste de mim um assassino!

—Por minha causa não o serás, Ricardo. Attende-me bem: estas coisas são providenciaes. Eu sou escrava de um impulso sobrenatural. Não sei quem me leva nem onde vou. Ha oito dias que eu desprezava Nicoláo de Mesquita...

—E hoje?...—atalhou com ancias Ricardo.

—Hoje... nenhum de nós sabe que fatal magnetismo nos arremessa um contra o outro, como dois ebrios que se despedaçam a rir...

—Pois tu vaes para Nicoláo?!

[Pg 170]

—Não sei para onde vou.

—Sabes que elle é casado...

—Sei: que me importa a mim saber o que elle é? Casada era eu, e feliz, e rica e abençoada de todas as esposas e de todas as mães!...

—Que perdição a tua, que estrella, santo Deus! Exclamou em lagrimas Ricardo.

—Compadeces-te? Que faria... se visses a minha alma!...—soluçou Margarida.

—Oh! mas não vás que eu amo-te!

—Não mintas... Deus quer que d’aqui a uma hora me desprezes. Tu amaste-me sem saber por que: hoje odeias-me, sem poder justificar o teu odio. A carta de Nicoláo? Não pode ser! Que viste n’esta carta? Um homem que dizia: «A tua compaixão suavisou a minha dôr. Não me abomines, não peças a Deus o meu castigo, que eu já sinto na garganta a mão vingadora de teu marido!» O restante da carta que era? lagrimas, supplicas, reminiscencias do tempo em que me vira presada da sociedade, e pura como elle já não vê sua mulher. Podeste abominar-me tu, e tolerar que os teus ignobeis amigos me insultem por causa de similhante carta? Oh! se elles tiverem irmãs, ou esposas, alguma hora lhes passará no espirito a imagem de Margarida Froment, que não pode delir com lagrimas o appellido de seu esposo!

—Não vês que choro e que te amo, Margarida!—clamava de mãos postas Ricardo, inclinado aos joelhos d’ella.

—Dignidade, meu amigo! disse ella, erguendo-o.—Dou-te este nome com a sinceridade e honestidade de uma santa. Acceita-o que não pódes ser mais nada para mim.

[Pg 171]

E saiu da presença de Ricardo. Elle seguiu-a a brados dilacerantes, e ella acolheu-o nos braços, murmurando:

—Ouve-me, meu amigo. Eu pensei hontem em suicidar-me. Se hoje não visse o papel assignado por quatro miseraveis estaria morta a esta hora. Salvou-me aquella ignominia, Deus sabe para quantas mais atrozes. Nicoláo de Mesquita, n’este momento, sabe que eu vou pertencer-lhe...

—Infame!—exclamou Ricardo arrancando-se-lhe dos braços.—Que infame és tu, mulher sem pejo, que te vaes vender ao homem que te abandonou!

—Vender não, meu amigo—atalhou ella com a brandura de um sorriso sem nome nas expressões variadas da agonia.—Eu não me vendo: compro o direito de me espedaçar lentamente.

—Não te entendo, miseravel!—rebramiu Ricardo com os punhos cerrados, e os braços ameaçadores.

—Espero que me não insultes como um homem vil!—disse Margarida, retraindo a face aos punhos convulsos do allucinado.

Ricardo caiu na tormentosa consciencia da sua indignidade, e fugiu da vista da franceza, que soluçava como na ultima entrevista com Nicoláo, na estalagem de Villa Pouca.

No esplendido salão do seu palacete, Ricardo examinava um par de pistollas, e substituia por outros os fulminantes oxidados.

[Pg 173]

NOTAS DE RODAPÉ:

[3] Aos redactores da acta, modelo de continencia da linguagem no genero, agradecemos o latim, sem o qual a não poderiamos trasladar na integra.

O AUTHOR.


[Pg 172]

XVII

Ás dez horas da noite d’esse dia, Ricardo de Almeida fez pavor a Raphael Garção, quando lhe entrou no quarto, no hotel de Italia, tartamudeando offegante umas phrases sem tino, cortadas por soluços.

Atirou-se aos braços do primo com desalento mulheril, e chorou mais copiosamente do que a razão critica das senhoras viris concede que chore um homem.

Com espaçosas intercadencias de anciado silencio, contou Ricardo o violento dialogo com Margarida. O morgado de Fayões escutou-o com o desprazer que incutem as debilidades do coração alheio aos homens de rija tempera, e disse:

—Eu repito as palavras de Margarida: «agora dignidade, Ricardo.» Sae de Lisboa. Não te aconselho[Pg 174] que busques diversões ao espirito no grande mundo, nem aqui nem n’outra parte. Os homens da tua convivencia devem ser odiosos em Lisboa: os infames foram elles; mas o ridiculo és tu. Fóra de Lisboa tambem te aconselho que desistas de distracções, que as não encontrarás. Nas salas ha alegrias, o mais afiado golpe que te póde atirar a indifferença. Vae para a tua aldeia, concentra-te, padece, esquece á força de ninguem te suscitar reminiscencias d’ella. Isto é duro de ouvir-se; mas quem te prometter outras consolações, engana-te primo. Dignidade sobretudo. Eu amava Beatriz com a paixão de homem de minha indole, que seis mezes se esconde a devorar-se na duvida, e a purificar-se para merecel-a. Ao fim de seis mezes, Beatriz desenganou-me. Invoquei o meu dever! e antes de trinta dias, estava distrahido, não te direi honestamente, mas estava curado da ferida, que já não podia sangrar, sem desdouro da minha consciencia... Nota lá, primo Ricardo que a nossa provincia está recamada de bonitas mulheres, portuguezas de lei, materia excellente com o espirito necessario. Lembro-te o que já te disse, respeito ao desfalque de tua casa, ao infortunio de não ter nenhuma, e á tua inhabilidade para recuperares o grande patrimonio sacrificado. Se resistes ás admoestações, que te faz um doido no seu lucido intervallo, maldigo a hora em que me intrometti nas coisas da tua vida.

Ricardo parecia attendel-o com uma fixidez de olhar espavorido: é provavel que o não ouvisse. N’este comenos, entrou no quarto o criado de Raphael, alvoroçadamente.

—Que tens?!—perguntou o amo.

[Pg 175]

—Acaba de entrar na hospedaria o senhor Nicoláo.

Raphael ergueu-se, relanceando a vista ás pistolas.

—Entrou com elle uma senhora—continuou o criado.

Ergueu-se Ricardo de salto, exclamando:

—É ella!... é Margarida!

—Eu estava no quarto do porteiro—continuou o criado—quando elles saltaram de uma sége. Poucos minutos antes, tinham chegado uns gallegos carregados de malas, e disseram que as mandava um senhor, que ás quatro horas tinha falado com o dono da hospedaria. Eu escondi-me assim que o conheci, e dei tino de que a mulher, que entrou com elle, falava estrangeiro.

Ricardo fez um salto arrebatado á porta. Raphael reteve-o, exclamando:

—Alto ahi, mentecapto! Que vaes fazer?

—Apunhalal-os.

—É justo; mas manda saber primeiro o numero do quarto em que os has de matar—replicou o de Fayões com agastada ironia.—Se não tivesse compaixão de ti, despresava-te, Ricardo!

E, voltando ao criado, mandou-o observar o que podesse.

—Vamos sair ambos—tornou elle ao primo, que arquejava prostrado no sophá.—D’aqui a pouco, o Mesquita sabe que estou em Lisboa, se o não sabe já. Pobre Beatriz! Calcula a minha afflicção, Ricardo! Trata-se da honra e talvez da vida d’aquelle anjo... e, todavia, olha se me vês mudar de côr! Que miseraveis somos! Attraimos o raio da desgraça, e choramos como mulheres, assim que ouvimos[Pg 176] o trovão! Ergue-te d’ahi, coisa, que pareces homem! Vaes comigo para outro hotel?

—Irei.

—E brevemente iremos para a provincia, que Beatriz não se demora em Lisboa, ou é fechada em algum convento.

Pouco depois, voltou o criado, informando que Nicoláo tomara o segundo andar do hotel, e que os criados andavam a mudar a bagagem dos hospedes para o primeiro, e a trastejar ricamente os quartos. Accrescentou que a estrangeira era franceza, segundo ouvira dizer, e se chamava Margarida, porque elle mesmo espreitára e ouvíra o senhor morgado da Palmeira chamal-a assim.

Ricardo escutava-o com o ar estupido de um surdo-mudo.

—Fecha as minhas malas, ordenou Raphael. Queres tu, Ricardo? Vamos para tua casa. Vou ser teu hospede! Tens tu champagne, ou absyntho, ou a demencia engarrafada em casa? Vamo-nos embriagar, e depois reflectiremos. Se entramos com a razão n’este labyrintho, estamos perdidos. Valeu?

—Vamos, disse Ricardo.

—Conduz as bagagens ao largo de Andaluz, tornou Raphael ao criado. Os gallegos que te guiem. Paga a conta no hotel, e voltarás depois a saber, com disfarce, se o sr. Mesquita se demorou, ou pernoitou aqui.

Sairam cautelosamente, e mandaram parar a sége perto da casa de Ricardo. Informou-se o morgado com os criados. Margarida Froment, ao escurecer, fechára os seus bahus, e mandára entregal-os a gallegos. Ás nove horas e meia, parára uma carruagem particular com libré defronte do palacete, e o[Pg 177] guarda portão vira, á claridade das lanternas, que estava dentro um homem embuçado fumando. Margarida saiu, sem dar palavra aos criados, e saltou ao estribo.

Depois ouviram-n’a dar um ai já dentro, quando se fechava a portinhola da carruagem que despediu á desfilada.

—Quem dá aqui ordens, sou eu! disse jovialmente Raphael. Sôr escudeiro, mande pôr a ceia, se ha ceia n’esta casa. Os melhores vinhos! ordem ao escanção!

Sentaram-se á mesa. Ricardo emborcava á competencia com o hospede os licores mais excitantes.

Raphael comeu á proporção do liquido. Ricardo difficilmente deglutia, e cada bocado lhe anceava entalado. A revezes, aguavam-se-lhe os olhos. O de Fayões exclamava:

—Execração e bebedeira estupida áquelle que puder chorar coisa que não seja vinho!

Antes de finda a ceia, Ricardo perdêra as côres rubras da vinolencia, e desfallecêra prostrado em serena embriaguez. Garção e dois criados transportaram-n’o ao leito.

A embriaguez do hospede era de outra especie: carecia de ar e agitação, de algum enorme desatino ou façanha de estrondo. Crepitaram-lhe no peito fumegante umas lavaredas de amor incendiario a sua prima. A cabeça alcoolisada chammejou. Sobresaltou-o uma vertigem. A sége estava ás ordens. Mandou que a levasse um raio á porta do hotel de Italia. Chamou o criado. Era meia noite. Perguntou-lhe se Nicoláo ainda estava. Disse o criado que elle dera ordem ao bolieiro para chegar á uma hora. Raphael mandou picar para o largo do Corpo Santo.[Pg 178] Apeou. Entrou no pateo do hotel francez. Subiu ao terceiro andar. Abriu a porta da sala: era Beatriz que esperava e suppunha seu marido. Raphael entrou, sem dar tempo a que o vissem os criados. Era a primeira vez que ali entrava. Beatriz caia-lhe convulsa de medo nos braços; e elle abrazava-lhe a cutis livida com os labios, que reviam lume.

—Nicoláo não póde demorar-se, ó primo!... tu perdes-me; eu morro ás mãos d’elle!—murmurou abafada Beatriz.

—Nicoláo vem á uma hora.

—Por que o sabes? onde está elle?

—Com Margarida, no hotel em que eu morava.

—Com a franceza!...—exclamou ella espavorida.

—Sim!... com a franceza, que ha duas horas tirou de casa de Ricardo... Abençoado crime, que me restitue a tua alma inteira! Era o destino!... Eras minha, anjo da infancia! As penas do infinito inferno para a minha alma, se eu deixar de amar-te n’este mundo e no outro... Olha como é bella a nossa vida!... Oh! tu não endoudeces de prazer, Beatriz?...

—Ó Raphael!... tu atterras-me!...—clamou ella, afogando-lhe no peito as altas aspirações, que saiam gementes.—É possivel que eu esteja em teus braços, ó meu amor!... Que alegria e que medo eu sinto!... Foge, que não vá ser este o primeiro e ultimo instante da minha felicidade!... Foge, Raphael!... Oiço chorar o meu filhinho... isto é agouro... a creança chama-me... é o anjo que me está accusando...

A eloquencia persuasiva de Raphael contra as[Pg 179] appreensões de Beatriz, era de todo o ponto nulla em quanto á expressão, mas de seus labios mudos resaltavam scintillas, que offuscavam os olhos de Beatriz. Fechou-os ella para não vêr o incendio; mas o mixto de lacerante peçonha e prazer vertiginoso que lhe escaldou as veias, só havemos de comparal-o á infernal deleitação da primeira mulher, que um dia pôde dizer: «Caí; mas vinguei-me.»

Decorridos cincoenta e oito minutos, Raphael entrava na sége, a tempo que a carruagem de Nicoláo de Mesquita parava á porta do hotel.

O marido de Beatriz entrou com alegre sombra na sala e á esposa que não ousava encaral-o, disse:

—Estás zangada, filha? tens razão; demorei-me com os primos Albuquerques, forçado por etiquetas aborrecidas... Por que te não deitaste, priminha?

—Não era meu costume...

—Pois, sim, mas de hora em deante, quando eu me demorar além das onze horas, deita-te, sem susto da minha demora. Alguns amigos conseguiram de mim que eu os coadjuvasse n’umas conspirações politicas contra o conde de Thomar. É forçoso contribuir para a salvação da patria, quando menos tempo nos resta para viver n’ella. Os annos trazem comsigo o amor da patria; e por este motivo, póde ser que eu me detenha por fóra, extraordinariamente; e desgosta-me muito se me esperares; porque não estou por lá descançado. Fazes-me isso, sim, prima?

—Pois sim... deitar-me-hei.

—Bonita! o menino como tem passado a noite?

—Bem.

—E tu que fizeste? Lêste?

[Pg 180]

—Li.

—Gostas das Meditações de Lamartine?—disse elle, tomando o livro de sobre a almofada do canapé.

—Muito... São tristes...—respondeu ella.

—Qual te fala mais ao coração?

—A Tristeza.

—Bem sei...—acudiu elle, recitando de cór:

De mes jours pâllissans le flambeau se consume,
Il s’éteint par degrés au souffle du malheur,
Ou, s’il jette parfois une faible lueur
C’est quand ton souvenir dans mon sein se rallume.

—Mas—proseguiu o morgado—o que ha no teu coração é o souvenir do poeta de Elvira.

—Ha.

—Qual?!...

—A recordação do anjo da minha mocidade.

—Teu primo?—atalhou irado o marido.

—Não... o anjo da minha innocencia.

Nicoláo sorriu-se, compondo o desmancho do rosto, e disse com maviosidade:

—Queria vêr-te feliz, prima!

—Feliz... como tu?

Esta pergunta deu-lhe uma pancada na alma. A reflexão combateu o preconceito, e respondeu:

—Sim, feliz como eu, que te adoro, e te perdôo as maguas todas com que por vezes perturbas a immensa felicidade de te haver merecido...

—São quasi duas horas...—observou Beatriz, depois de uma longa expansão de termos affectuosos do marido.

—Queres dormir, prima?

—Se eu podesse... doe-me tanto a cabeça!...

[Pg 181]

—Pois sim, vae, meu amor: eu espertei com o muito café que bebi, e aproveito a vigilia para ir escrever aos feitores. Vou alugar um palacete onde o encontrar. Aqui estamos incommodados com a pequena casa, e a bulha da rua. Gostas de ficar em Lisboa alguns mezes?

—É-me indifferente.

—Dizem que teremos bello theatro lyrico. Tomarei um camarote de assignatura. As primas Camaras e as primas Mesquitas irão comtigo, quando os embaraços da politica me não deixarem... Diz-me cá, prima... Tu desejarias ser viscondessa do Vidago? Offerece-se-me excellente occasião, assim que o ministerio cair. Vê lá, queres?

—O que tu quizeres, primo... O que eu agora muito queria era dormir... Sinto-me tão desfallecida!...

—Pois vae, filha, vae; mas ama-me muito, sim? Vem dar-me um beijo... e até ámanhã.

Nicoláo abancou a escrever aos feitores. Eis aqui o specimen de uma das cartas aos feitores:

«Ainda me sinto estremecer debaixo da electricidade dos teus olhos... Abro ao acaso as Meditações de Lamartine, e leio no Canto d’amor:

«Laissez-moi respirer sur ces lèvres vermeilles
«Ce souffle parfumé!... Qu’ai je fait?
«..........................................

«Parle-moi!... que ta voix me touche!
«Chaque parole sur ta bouche
«Est un écho mélodieux!...

«.......................................................»

Esta carta começa lyrica de mais para um feitor!

[Pg 182]


[Pg 183]

XVIII

Ricardo de Almeida, quando Raphael entrou, dormitava anciado, bracejando, e resmoneando sons desligados. Á cabeceira estava o escudeiro, homem de annos, marido da alma que aleitára o fidalgo, e servo dos Almeidas desde a infancia. O velho chorava e dizia a Raphael:

—Saberá vossa excellencia que é a primeira vez que vejo assim meu amo turvado do juizo. Mal hajam as desgraças que vem todas juntas!

—Isto não é desgraça, homem!—contestou Raphael Garção.—As bebedeiras são ás vezes os purgantes da alma. Tu nunca purgaste a alma, meu velho?

—Sempre cuidei, respondeu o mordomo, que as almas se purgavam no purgatorio; mas a de meu[Pg 184] amo, ou eu me engano, ou cae direita no inferno. Estou a ver que lhe não chega a hora do arrependimento, como ao seu santo parente fr. Gil de Santarem. Vossa excellencia sabe a vida d’este parente do senhor morgado?

—Has de contar-me isso depois do café. Manda-me fazer café, que seja polvora, e alegra-te, que o fadario de teu amo está a quebrar-se.

—Deus o ouça, meu senhor!—disse o velho, e foi á cosinha filtrar alegremente o café.

Raphael estirou-se n’uma flacida ottomana, e sentiu-se na mais feliz hora da sua vida. O excedente da felicidade vulgar parecia-lhe sonho. Coordenava as reminiscencias de tres quartos de hora, e convencia-se da real existencia da sua fortuna após um arrojo que o coração não praticaria sem a escandecencia dos vinhos. Erguia-se de impeto, e mirava-se n’um espelho, como quem admira o dilecto da melhor fada, e o invejado dos mais bemfadados galans. A felicidade do coração corrompido põe o homem n’estes ridiculos arrôbos de si mesmo.

Chegou a bandeja do café. Raphael fez-se servir reclinado nos coxins, e disse:

—Se me dispensas, velho amigo, de ouvir a historia de S. Gil, meu maior e de teu amo, pede-lhe por nós nas tuas orações, e conta-me alguma coisa de Margarida.

Ricardo sentou-se espavorido, e rouquejou um brado que parecia um romperem-se-lhe as fibras da larynge:

—Margarida!?

—Que é lá?—acudiu Raphael.—Uma chavena de café, primo Ricardo!

O moço circumvagou os olhos esbugalhados, lembrou-se,[Pg 185] reconheceu-se, no aperto da desesperançada angustia, e exclamou:

—Que perdição!... que horror me faz a vida!...

O mordomo saiu entalado de suspiros. Raphael deu-lhe a chavena, e exortou-o a esperar a boa crise mais rapida que o regular.

—A materia bruta de sensibilidade—explicava elle—ha de gastar-se mais depressa em ti, que a consomes com maior energia que o vulgar dos homens.

Ricardo saltou oscillante do leito, e abriu as janellas do quarto, aspirando a tragos a viração da antemanhã.

—Estou melhor—disse elle.—Que soubeste de Margarida?

—Soube que Nicoláo saiu de lá fixamente á uma hora.

—Onde estiveste?... aqui?

—Não: estive com a prima Beatriz.

—No hotel?

—Sim, no hotel.

—Como a fortuna te bafeja!—disse com tristeza Ricardo.

—A fortuna só desampara os fracos. Devias saber isto do nosso Virgilio: os fracos e os tolos, accrescento eu ao illustre poeta. Tu, meu amado primo, funestamente acumulas fraqueza...

—E tolice—concluiu Ricardo.

—Estava eu a procurar um termo com mais euphonia; mas tu o disseste. Os dois annos, immolados á franceza, poderás tel-os dourado de faceis e doidas alegrias, á mistura com alguns precalsos inevitaveis, dos quaes a gente se paga usurariamente com delicias. Olha que n’este mundo ha unicamente[Pg 186] um estudo sério e digno de vigilias: é salvar a cabeça do coração. Na cabeça é que estão os olhos que descortinam o futuro. A cabeça é quem vê o primeiro barranco em que é honra saltar, e o segundo em que é parvoiçada cair. Certos sujeitos, quando cuidam que o ideal os eleva, burrificam-se. Chegada a occasião de se destramarem habilmente de uma rede, escouceiam, enredam-se mais, e descambam na lama. Felizes aquelles que podem, como tu, dizer á desgraça: «Atraz, maldita, que eu tenho vinte e cinco annos!» De que bordo estás, Ricardo, que fazes?

—Retirar-me ámanhã de Lisboa, ou matal-a.

—Sou de voto que te retires. Vae convalescer e volta ao mundo. Regenera os teus haveres, e torna a dissipal-os, se o bom anjo da tua indole te não apegar á dôce vida que deixaste. Eu preciso d’esta casa, mobilada como está, com as carruagens e cavallos.

—Tudo ahi te fica—disse Ricardo.

—Depois que me disseres o custo de tudo. Convém que saibas que minha tia-avó, fallecida ha dois annos, conservára intactos os cofres de meu tio-avô, governador do Brazil. Fui seu herdeiro. Achei cento e cincoenta mil cruzados em ouro. Gasto estes cabedaes, com a certeza de que sou o forçado herdeiro de uma casa que rende quatorze contos de réis. Já sabes que se a tua mobilia e trens podem valer dez mil cruzados, ou vinte, este dispendio nem levemente altera os meus planos. Se me queres obsequiar, crê que me não obsequeias com o emprestimo d’estes objectos: incommodas-me.

—Como quizeres—conveiu Ricardo.

—Agora presumo que o Mesquita não sae tão[Pg 187] cedo de Lisboa, a menos que Margarida me não denuncie. A vida em hospedarias arrisca a segurança das minhas excursões. Sou, portanto, o dono d’isto, e tu és desde agora o meu hospede, e bom é que o sejas por pouco, se é que desistes de dar o ultimo pregão da tua miseria.

Repontava a estrella d’alva. Raphael mandou atrellar os cavallos, e despediu-se, até á noite, de Ricardo. Saiu e recolheu-se á casa da rua dos Romulares. Dormiu bem-aventuradamente cinco horas, ergueu-se como as innocentes avesinhas em manhã de abril, festivo, illuminado de interiores contentamentos, trauteando cançonetas hespanholas. Foi espreitar á janella: viu Nicoláo á beira da esposa: elle bem assombrado e risonho; ella esmaiada da côr e melancolica. Beatriz entreviu-o de um insuspeito lanço de vista. Córou até ás orelhas; alindou-se, purpurejou-se quanto pode o pejo de uma recordação, alanceada pelo espinho do crime sem remorso.

Os espinhos do remorso quebrára-os o marido por mão de Margarida Froment. A natureza moderna tem as coisas assim concertadas, para se não renovarem as penitentes da idade media. É verdade que ha menos santas; mas tambem ha mais quem incense as peccadoras. O inferno lucrou, e o ceu creio eu que perdeu quasi nada.

Á uma hora, saiu Nicoláo, e entrou o criado de Raphael com um bilhete que era uma lamentação, aprasando para as dez da noite o ensejo de poder verter-lhe no seio lagrimas que o suffocavam. Seguiram-se horas de enlevo em mutua contemplação. Por volta das trez da tarde, Beatriz parecia desafogada das lagrimas impertinentes: surria, tregeitava,[Pg 188] inventava mimicas eloquentissimas do coração. Entrou o marido beijando-a carinhoso. Raphael jantou, dormiu, sonhou phantasias deleitosas que eram, ainda assim, pallidos arremêdos das alegrias verdadeiras.

Ao fechar-se a noite, foi o morgado de Fayões á casa de Andaluz. Pagou a Ricardo de Almeida a conta que o mordomo lhe apresentou. Fez novas exortações á coragem vacillante do primo, incitou-o a gosar-se de sua mocidade, recobrando-se das duas primaveras desfloridas. Affirmou-lhe que o desastre, visto a dois mezes de distancia, havia de afigurar-se-lhe um manancial de venturas subitamente aberto no seio da desgraça.

Ao outro dia, Ricardo de Almeida embarcou para o Porto com o seu mordomo, e d’alli, fechando os olhos a todos os logares despertadores de memorias saudosas, passou á sua casa do Pontido.

As tias não sairam a recebel-o nos braços porque a noticia inesperada abalou-as de modo, que desfalleceram abraçadas uma n’outra. Ricardo beijou as mãos das transportadas senhoras, que logo alli prometteram erguer um altar na capella da casa consagrada ao seu parente S. Gil.

Encerrou-se o morgado. A sua culpa estava expiada. Margarida fôra ingrata. A Providencia seria injusta, se prolongasse o supplicio do homem, que nenhumas dôres causára com o seu desvario. Se déra escandalo, os escandalisados escarneciam-n’o e vingavam agora a moral publica. Foi por isso que o ceu se abonançou. A solidão restituiu-lhe, a pouco e pouco, a memoria dos seus prazeres simples. Attentou na delapidação dos seus bens. Desempenhou[Pg 189] os hypothecados, restaurando rendas bastantes a um decente passadio.

Padre Ambrosio, o virtuoso egresso, perdoára-lhe o descredito em que tinham andado na Foz as suas vestes, roçadas pelas sedas da pactuada do inferno. Havia elle sido chamado para Mirandella, onde tinha um irmão, chegado do Brazil, com centenares de contos. Foi visitar o irmão, e sobrinhas; mas voltou ao Pontido, cuja casa lhe déra, em 1833, hospitalidade de parente, e disvelos de familia muito sua. O brazileiro foi visitar o irmão, e levou comsigo uma das tres filhas. Ricardo de Almeida quiz honrar o irmão de seu mestre, e saiu a recebel-o no pateo, e a receber na portinhola da liteira a mão da brazileira. Depois, voltou ás suas graves cogitações, aos longos passeios nas montanhas do Alvão, ás fadigas da caça, e aos chumbados somnos das noites infinitas do inverno.

A brazileira via sorrir aquelle mancebo pallido com a graça dos infelizes que não podem queixar-se. Perguntou a D. Sancha o segredo d’aquella serena e affavel melancolia. O egresso fez uma narrativa dos infortunios do fidalgo, com tanto engenho que não feriu de leve o pudor da sobrinha.

Laura, a brazileira, ficou amando o moço triste. Despediu-se d’elle sem poder fital-o, e bem-disse a lagrima que a denunciava.

O irmão do padre Ambrosio saiu encantado da lhaneza e cordealidade com que fôra acolhido por familia tão illustre. «Se eu fosse fidalgo, escrevia elle ao irmão, daria a minha Laura e cem contos de réis a esse bello moço, que me captivou, e fez para sempre triste a minha filha. Alguns meus amigos e companheiros de trabalho e fortuna teem[Pg 190] comprado a fidalguia para hombrearem com as raças nobres; mas eu tenho sido o primeiro a rir d’elles, e serei o ultimo a comprar nobreza, quando todos formos nobres, o que vem a succeder, se não houver diluvio por estes vinte annos. Não digas isto ao teu discipulo, que não vá elle afugentar á minha custa a sua tristeza. A tanto não me sacrifico eu, nem a nossa Laura quer que a sacrifique.»

Uma carta de Ricardo a Raphael, dois mezes depois, desenvolve e remata o episodio, necessario ao contexto d’estas biographias. Dizia assim:

«É constante ainda o boato da tua residencia em Paris. As damas de Chaves esperam as encommendas. Teus paes soffrem com a falta das tuas noticias. Apenas receberam a carta, que mandaste lançar á caixa em Pariz. A Angela de Santo Aleixo, para que ninguem possa duvidar de que tu vens casar com ella, casou antes de hontem com o morgado das Boticas.

«O tio Martinho Xavier já desconfiou da lealdade do teu passaporte para França. Desconfia tambem tu da espionagem d’elle em Lisboa.

«Eu não dou nada pela duração da tua felicidade. Já de cá te imaginei enfastiado. A mim dizias-me tu assombrado: «Dois annos a mesma mulher!» Eu digo-te sem assombro, por que te conheço: «Dois mezes o mesmo anjo!»

«Agora, se queres, fallar-te-hei de mim. Caso. A historia da felicidade é uma palavra só. Não caso com prima nenhuma. É a filha de um homem que enriqueceu a trabalhar. Saiu de Mirandella com um chapéo braguez e uma véstia de cotim. Entrou em Mirandella com quatrocentos contos, e trez filhas,[Pg 191] e a jaqueta e o chapéo, que ainda mostra aos duvidosos da sua origem.

«Laura é brazileira, é galante, faz dezoito annos, escreveu-me com pouco esmero de grammatica, e incluia as cartas abertas nas do pae. Agora está em nossa casa, e minhas tias amam-n’a. Eu estimo-a, e creio que virei a amal-a. Sei que se affligem os nossos parentes com este alcance. Se meu avô Duarte de Almeida não morresse mutilado de mãos e dentes, a opinião de nossos primos é que elle viria estrangular-me e morder-me. Estes primos compraram-me as quintas ao desbarato, e promettem revender-m’as pelo duplo. Pedirei a meu avô Duarte de Almeida que os sove a ponta-pés, visto que não pode dispôr das mãos, assim como tu dispões do teu irmão agradecido, Ricardo.»

Raphael Garção, lida esta carta, ponderou, e disse entre si: «Parece-me que Ricardo é mais feliz do que eu!»

E, com intervallo de um soliloquio mental, fallou com o seu demonio, e disse-lhe: «É crivel que eu esteja enfastiado de Beatriz?!»

—Pois não é?!—respondeu o demonio.

[Pg 192]


[Pg 193]

XIX

Raphael Garção enfastiado de Beatriz!...—Castigo do ceu!—Dispensemos a intervenção do ceu nas baixezas que o não exaltam. Temos cá em baixo a comesinha e espalmada explicação de tudo que é feio, triste e nauseativo.

Enfastiou-se Raphael Garção por sete razões:

1.ᵃ Ninguem o estorvava de ir vêr sua prima duas horas de cada noite, regularmente.

2.ᵃ As horas do dia, passadas na sua residencia clandestina da rua dos Romulares, começaram a parecer-lhe longas, e a casa mal arejada, e os visinhos do quarto andar insupportaveis com o strupido do rapazio.

3.ᵃ Beatriz exigía-lhe que elle passasse o dia alli, receiando que outra mulher o estorvasse instantaneamente de a vêr a ella.

Observação á rasão terceira: Se Beatriz lhe dissesse[Pg 194] que a sua assiduidade n’aquella janella punha em risco o segredo, Raphael cuidaria que o terceiro andar estava perfumado de caçoulas orientaes; e que o tropel dos meninos de cima era um soido das harmonias dos astros.

4.ᵃ razão. As substancias alimenticias chegavam sempre frias e derrancadas á rua dos Romulares, por virem do largo do Chafariz de Andaluz. Esta razão é vergonhosa!

5.ᵃ Dormia Raphael trez a quatro escassas horas em cada noite, para entrar com a aurora na casa fétida. Pesava-lhe a cabeça, a miudo; e, á decima quarta noite de visita ao hotel, se se descuida, bocejava na presença de sua prima.

6.ᵃ Era curiosissimo de touros e côrtes, e não podia ir ao curro nem ao parlamento.

7.ᵃ Queria conversar, queria gente, queria dar jantares, e fazer brindes mysteriosos a Beatriz; mas o relacionar-se era victimar a sua felicidade ás suspeitas de Nicoláo de Mesquita.

Estas razões encadearam-se no fim do primeiro mez, e estavam já na forja os élos de outras sete, quando Nicoláo de Mesquita alugou e mobilou um palacete no largo de S. Sebastião da Pedreira.

Raphael melhorou de vida. Livrou-se do terceiro andar. Dormia nove horas. Comia o seu jantar em bom estado. Além d’isto, morava perto de Beatriz, e saia de noite a beber bons ares pela estrada de Palhavã até ao Campo Grande.

De mais a mais, Beatriz, perdido o susto, e identificada ao facto assustador, em vez de ir passar as noites com suas primas Camaras ou Mesquitas, descia pela travessa dos Carros, e volitava da sege de praça a uma porta do jardim de seu primo, e ahi se[Pg 195] espantava da velocidade instantanea das duas horas costumadas.

Isto durou um mez, a beneplacito do coração de Raphael.

Coincide com esta época o conciso dialogo, que elle teve com o seu anjo mau no final do anterior capitulo, depois de haver lido a carta de Ricardo de Almeida.

O morgado de Fayões ficava em casa, quando sua prima ia ao theatro. Não o affligiam ciumes, nem saudades, nem anceios de vel-a sobreluzir entre a constellação das estrellas de S. Carlos, as quaes—digamol-o de fugida—se não tivessem luz propria, seriam invisiveis á luz da sala.

O que elle queria era ir por si, e não por ella.

Reflexionando comsigo, dizia elle:

—O mais aperreado dos tres sou eu. O marido está com Margarida Froment, nectarisando a existencia com as delicias da segunda edição do seu amor. Beatriz está no theatro a vêr-se formosa na face das outras, e a saborear-se nas melodias de Verdi. Eu estou aqui a resolver-me do sophá para a poltrona; e, se quizer ao menos vêr o ceu estrellado, quando não ha nuvens, hei de bater os dentes de frio por essas ruas, onde não conheço viva alma!

O corollario do discurso era algum axioma, dos que elle tinha composto para uso do seu primo Ricardo.

Queixou-se uma vez delicadamente d’este sequestro do mundo á prima. Beatriz amuou, e doeu-se de não ser bastante a dar-lhe mundos encantados de extasis e fontes inexhauriveis de poesia. Desfez-se a nevoa, ao calor de um osculo, no breve aguaceiro[Pg 196] de mimosas lagrimas. Gongorisemos estas lindas coisas do coração.

A despeito, porém, de Beatriz, Raphael deu em ir a S. Carlos, quando ella ia, indagando préviamente se o primo Nicoláo passava a noite no hotel de Italia. Furtava-se ao reconhecimento de rapazes conhecidos da universidade, e sumia-se entre a mó de alguns sujeitos gordos, que faziam perder a individualidade a todo o homem magro.

Beatriz, guiada pelo coração que lhe fallou aos olhos, apanhou-o, e assustou-se; porém, como o visse a contemplal-a, perdoou-lhe.

Assim, pois, melhorou algum tanto mais a vida de Raphael Garção, e decorreram dois mezes suavemente, sem variante notavel.

Em março d’aquelle anno de 1843, disse Nicoláo á senhora que precisava de ir a Santarem com alguns correligionarios politicos preparar o terreno para uma revolução, tendo de demorar-se n’esta diligencia forçada trez dias. Beatriz ageitou o rosto a uns ares tristes, e o marido licenciou-a, como lenitivo á saudade, a ir passar algum dia a casa das primas Camaras, em Bemfica.

Contou ella, exultando, o caso ao primo.

—Bella occasião de irmos passar um dia a Cintra!—exclamou Raphael!

Ficaram pactuadas as delicias de Cintra.

Nicoláo despediu-se á tarde da esposa, e foi, senão mentiu, para Santarem.

Ao alvorecer toda risos a manhã do outro dia, Beatriz saiu fóra da barreira, que lhe ficava á porta, entrou na carruagem de Raphael; e elles ahi vão á competencia com o jubilo dos passarinhos, estrada fóra.

[Pg 197]

Chegaram a Cintra. Parou a carruagem á porta do Victor. Raphael apeiou-se, foi dentro procurar um quarto alegre e espaçoso com vistas sobre os arvoredos das quintas subjacentes.

Dizia um criado que os quartos principaes estavam tomados; e apenas dispunha de um sem janella, mas limpo como todos.

Objectou o morgado que vinha com elle uma senhora, e em tal caso iria buscar hospedagem n’outra parte.

N’isto, abriu-se uma porta de um quarto proximo, e saiu á sala de entrada Nicoláo de Mesquita.

—Por aqui, primo Garção?!—disse o de Vidago sem sombra de mal-querença.

O choque perturbou o sangue frio de Raphael por momentos. Fez-se logo, porém, a reacção dos imperterritos espiritos.

—É verdade, primo Mesquita!... Vossa excellencia aqui!... Eu julgava-o ha muito em Palmeira. Cinco mezes em Lisboa!

—Aqui estou embaraçado por coisas da politica. Afinal caí n’este lodaçal commum. E vossê d’onde vem?

—De Pariz. Cheguei hontem á tarde. Venho vêr Cintra e vou breve para a provincia.

—Veio só?... perguntou, Nicoláo, surrindo.

—Porque pergunta se vim só?—replicou Raphael atalhando.

—É porque ouvi dizer ao criado que trazia uma senhora.

—Ah!... sim... eu trago uma senhora...

—Não se atrapalhe, homem! Quem vem de Pariz não póde deixar de trazer uma mulher...—tornou Mesquita com o rosto aberto e alma lavada.

[Pg 198]

—Mas vossê não vai casar com a Angela de Santo Aleixo?! Que destino ha de dar o primo á creatura que leva?

—Hei de pensar n’isso, primo...

—Afinal—volveu o marido de Beatriz—o visionario desistiu das nupcias celestiaes!...

—Que remedio!...

—Bem lh’o disse eu, seu rapazola!... Fica por cá hoje?

—Provavelmente... Vossa excellencia vem com a prima Beatriz?

—Não: vim só...—Beatriz—continuou Nicoláo com o semblante menos ridente—vive toda entregue aos ministerios caseiros e ao amor do filho.

—Queira vossa excellencia fazer-lhe os meus cumprimentos, que eu parto ámanhã talvez, e peço me dispense de procural-os. Adeus.

—Então já?...

—Vou em busca de outra pousada.

—Olhe cá! a companheira é parisiense?

—Não primo, é de Marselha... Adeus!...

—Ah! sim? são bellas mulheres essas...

Raphael já estava no rocio ou patim do hotel, e Nicoláo acompanhava-o, dissimulando o intento de vêr a franceza.

O morgado de Fayões transpirava de afflicto, e sentia-se estupido para inventar um obstaculo á desastrosa coincidencia!

Beatriz reconhecêra a falla do marido, e tremia na mais natural e horrente perplexidade.

Estava tolhida de pavor.

Raphael parou, torcendo o bigode, e friccionando a concha da orelha esquerda. Parece que tinha uma idéa salvadora na orelha esquerda.

[Pg 199]

Chamou o cocheiro e disse-lhe:

—Desanda a carruagem, e pára á porta de outra hospedaria, que ahi está em cima á direita.

—A senhora vae?—perguntou o criado.

—Vae.

—Maganão!—disse o Mesquita, batendo-lhe no hombro—vossê não quiz que eu visse a mulher!

—Essa é boa, primo Nicoláo!... Que tem que a veja!... Eu confio bastante n’ella e no primo!...—respondeu jovialmente o morgado de Fayões.

—Póde confiar, que eu puz ponto nos desvarios—concordou o do Vidago.—Agora, a minha dama é a politica.

—Cuidado com as perfidias d’essa dama, primo! Eu antes me quero com as devassidões das outras.

—É por que vossê não tem amor patrio, e está na sua época de desperdiçar as forças do espirito.

—Diz bem, meu amigo, e, se me dá licença, vou dormir um pouco para recuperal-as. Apparece?

—Não sei se poderei: espero aqui uns politicos que vem de Lisboa.

—Pois então divirtam-se: e até á vista, primo Nicoláo.

Beatriz não quizera apeiar, sem entender a estranheza d’aquelle encontro. Sentia uns angustiosos apertões de medo, que os criados não compreendiam.

Raphael entrou na carruagem, e disse:

—Já para Lisboa!

E contou o simples caso da apparição de Nicoláo. Beatriz aquietou-se, e riu, quando o primo lhe contava o comico dialogo com o marido. Mas o susto sobreveiu, quando Raphael conjecturou que[Pg 200] Margarida, áquella hora, poderia revelar coisas que os perdessem.

No entanto, Margarida Froment, que despertára no momento em que Nicoláo entrava no quarto, perguntou-lhe:

—D’onde vens?

—De encontrar aqui um parente, que chegou hontem de França.

—Está cá?

—Vinha procurar quarto; mas não o encontrou digno da franceza, que trazia comsigo.

—Viste-a? É galante?

—Não a vi. O rapaz tem medo que lh’a bebam os ares.

—Então elle é velho?!

—Tem vinte e quatro annos. Já te fallei n’elle. É o Raphael Garção.

—Ah, disse Margarida com um sorriso indefinivel.—Esse teu primo é aquelle que amou tua mulher?

—Justamente.

—E veiu agora de Pariz?

—Sim.

—Ha quanto tempo estava elle em França?

—Ha cinco ou seis mezes.

—Cuidei que o vira ha trez em casa do Ricardo... Que figura tem? É um rapaz magro, de melenas escuras, bigode, e uma cicatriz na face esquerda?

—Tal qual... Tu viste um homem assim?! interpellou o morgado, atrigando-se.

—Vi... ha trez mezes, poucas noites antes de sair da casa do Almeida.

—Mas é a primeira vez que me fallas d’elle!...

[Pg 201]

—Não sei para que havia de fallar-te de um homem, que me não importa!

—Mas eu disse-te que suspeitava...

—Que suspeitavas de um primo de tua mulher que estava em França. Como me não disseste o nome d’elle, nem a época em que tinha ido, eu não podia suppôr que a visita de Ricardo era o primo de quem me fallavas... Que pensativo estás, Nicoláo!...

—O que eu penso é uma horrenda coisa!... balbuciou cavamente o morgado, e saiu.

—Onde vaes?! acudiu Margarida.

—Não me sigas... espera-me, que eu tenho a cabeça perdida...

Foi á porta da hospedaria que Raphael indicára ao cocheiro. Perguntou se alli não parára uma carruagem. Informaram-n’o que estivera lá um trem com uma senhora, obra de dez minutos; e partira de grande batida, assim que chegou um sujeito, e disse ao cocheiro: «Já para Lisboa.» Pediu os signaes da senhora: Disseram-lhe que era magrinha, branca de neve e tinha uma capa de casimira escarlate.

—Maldição! rugiu o morgado com os dentes cerrados.

Voltou ao Victor, e mandou pôr os cavallos á carruagem. Foi ao quarto de Margarida, e exclamou:

—É horrivel o que acontece!...

—Que é, filho?! perguntou a franceza, mais agitada que o natural.

—Vamos para Lisboa!... Já!... Eu tenho sido atraiçoado!...

—Por mim, santo Deus? exclamou a franceza.

[Pg 202]

—Não, por minha mulher.

—Tens provas?!

—Era ella que vinha com o infame! Era ella, e eu vou arrancar-lhe o coração!... e apunhalal-o a elle!

—Reflexiona, meu anjo!—redarguiu Margarida Froment.—Tu estás desvairado! Pois tu viste-a?

—Não. Fugiram. Branca, magra, e capa escarlate!... Era ella! Está morta, juro-te que morre hoje, se não estiver escondida nos abysmos do inferno!

—Que pequena alma!—observou a franceza.—Quando assim fosse, não terias a coragem de Ernesto Froment?

Nicoláo fitou-a com spasmo de furioso, e bramiu:

—Porque me dizes tu isso?

—Porque meu marido, como sabes, não me veiu procurar onde me tu trouxeste. Sei que vive feliz, e esquecido da deshonra, e de sua mulher.

—Eu não sou Ernesto Froment! exclamou irado. Sou Nicoláo de Mesquita.

—Egual a Ernesto Froment perante a desgraça, acrescentou Margarida.

—Basta!

—Falta-me dizer umas breves palavras, tornou ella. Eu não hei de ir andar comtigo atraz de tua mulher. Vae, e deixa-me aqui ficar. Se quizeres, volta, ou manda-me buscar, depois de teres concluido essa empreza.

—Vem, que eu, á entrada de Bemfica, mando-te levar ao hotel. Vem, Margarida, se não estás apostada a tirar-me o resto da minha razão!

—Pois sim, vamos.

Que supplicio no trajecto d’aquellas cinco leguas,[Pg 203] tão vagarosas! Que confrangimentos de alma, e revolutear de viboras assanhadas no peito!...

Parou a carruagem em Bemfica, onde moravam as primas Camaras.

Nicoláo mandou o cocheiro conduzir Margarida ao hotel, e encaminhou-se por uma azinhaga á quinta das primas.

Bateu ao portão. Houve grande demora em abrirem-lhe. Chegou uma criada a uma janella gradeada do muro, e perguntou:

—É vossa excellencia, senhor Mesquita?

—Sou: a senhora D. Beatriz está cá? disse elle offegante.

—Está sim, meu senhor.

—Está?! reperguntou com espanto.

—Já disse que está... Eu vou pedir a chave para abrir o portão.

Ia grande alvoroto nos quartos das senhoras Camaras.

Beatriz estava em convulsões; e uma das primas casada dizia-lhe:

—Que mulher esta!... Ó tola, animo, que está tudo prevenido, criadas e tudo!... Tira essa capa, e cobre-te com a minha azul, que é a irmã da tua. É uma cautella, que tu não sabes se elle te viu...

—Sacudam-lhe o pó do chapeu! disse outra senhora Camara, tambem casada.

E o marido d’esta senhora accrescentou:

—Porte-se com coragem, prima Beatriz.

O tardio abrir-se do portão deu tempo a tudo isto.

Quando Nicoláo avistou a escadaria do palacete, já sua mulher, entre as senhoras Camaras, estavam[Pg 204] no patim, vozeando um alarido de alegre recepção ao primo Mesquita.

O reparo que elle fez logo foi na capa, que lhe saiu azul. Ainda assim a cara denotava o inferno interior.

—Não foste a Santarem?! perguntou Beatriz com jovial admiração.

—Assim, assim!—applaudiu a meia voz uma das senhoras casadas.—Falla-lhe n’esse tom.

Nicoláo subiu a escada, ainda esbofado.

—Vieste a pé?! disse Beatriz. Que canceira é essa! Tu d’onde vens? de Lisboa? como ficava o menino? Viste-o, filho?

—Muito bem! disse á puridade uma senhora Camara, a outra senhora Camara, ambas casadas com maridos espertos.

O morgado sentou-se n’um banco de ferro. Era a mais inclassificavel das phisionomias benemeritas de um estudo phisiologico.

—Que tens tu? volveu Beatriz. Querem vêr que te aconteceu com o demonio da politica alguma desgraça!

—A que horas saiste hoje de casa? perguntou abruptamente Mesquita.

—De manhã cedo, respondeu uma das senhoras Camaras, porque nos veiu pôr a pé a travêssa da prima, eram seis horas e meia.

—Essa pergunta que significa! inquiriu Beatriz, arrugando a testa.

—O primo está afflicto! A sua pergunta quer dizer alguma coisa! observou outra senhora.

Beatriz entrou de repelão na sala, encarando-o com uma sobranceria de quem esmaga a affronta sob os tacões das botinhas.

[Pg 205]

—Entre, primo Mesquita, pediu o marido de uma das senhoras. Vossa excellencia está preoccupado.

—Peço perdão! disse Nicoláo. Eu devo confessar, visto que Beatriz se retirou offendida, que uma gravissima suspeita me trouxe aqui.

—Suspeita injuriosa á pobre senhora? perguntou a prima Carolina.

—Eu suppuz que minha mulher esteve em Cintra, ha trez ou quatro horas.

—Que horror! exclamou uma; e as outras, com as mãos no rosto, conclamaram:

—Que horror! Deus de misericordia!

—Em Cintra!?

—Ha trez horas!?

—Haveria olhos infames que tal vissem!

—Quem lhe disse isso?

—Como se ataca a honra de um anjo!

Fallavam todas a um tempo. O proprio sujeito, que era marido, cruzou os braços, abanou a cabeça, e disse:

—Que hedionda calumnia!

—Venha pedir perdão á prima Beatriz! disse uma dama de cincoenta annos, que tinha ao seu lado uma filha de vinte e outra de dezoito. Vá pedir perdão á innocente menina! Em Cintra!? Pois ella chega aqui ás seis horas e meia, a pé, coitadinha, que não tinha trem, nem o achava áquella hora... e esteve em Cintra ha quatro horas!... Que mundo, que mundo!...

Nicoláo ergueu-se, e foi pelo braço do cavalheiro a um quarto, onde Beatriz se refugiara com uma das senhoras.

Estava ella com a pallida fronte apoiada na palma[Pg 206] da mão, e os olhos no regaço, sobre a mão da sua amiga, que a confortava.

Nicoláo acercou-se d’ella, tocou-lhe na face, e disse commovido:

—Então, filha!... perdoas-me?

—Não quero saber o que hei de perdoar-lhe, respondeu Beatriz com severidade.

—Perdoa, perdoa—disse uma senhora Camara, que não averiguamos se era casada—perdoa, porque as desconfianças são a prova do amor.

Eram seis horas da tarde. Ia o jantar para a meza. Nicoláo pediu desculpa de não poder assistir. Foi para Lisboa, e ficou de mandar á noite a carruagem buscar sua mulher.

Entrou de boa cara no hotel de Italia, e disse a Margarida.

—Sou um asneirão! Beatriz estava desde as seis horas e meia da manhã em casa das primas Camaras! Pobre mulher!

—E pobres homens...—ajuntou Margarida com um sorriso perverso—pobres homens os ciosos como tu!...


[Pg 207]

XX

O papel, que Beatriz representava com as comediantes Camaras, não ajustava ao seu caracter. A senhora, obrigada a valer-se das primas, e a promover o escarnecerem-lhe o pae do seu filho, sentia-se humilhada, e ridicula, em seu marido, rebaixado á condição dos Sganarellos e Dandins de Molière.

As senhoras Camaras, até á hora em que Beatriz lhes appareceu, exorando que a defendessem de alguma suspeita de seu marido, consideravam-n’a esposa immaculada, e abstinham-se de conversarem licenciosamente deante d’ella. Beatriz, ao arrancar de repente a mascara, não sentiu a dôr do impuxão; mas depois, quando ouviu as chacotas allusivas ao marido enganado, teve vergonha, e condoeu-se d’elle.

[Pg 208]

Figurava, para desopprimir-se, as perfidias do esposo, a ida para Cintra com a franceza, o desapêgo d’alma com que a tratava, e o ar ameaçador com que, por mero orgulho, lhe prescrevia os deveres. Isto podia muito com ella; mas não a rehabilitava aos olhos das senhoras, que, desde aquella hora, na ausencia do marido de uma, a fizera confidente de passagens mais ou menos analogas, e algumas peores de devassidão e escarneo marital.

Beatriz saiu á noite, anojada d’ellas e de si. O marido não estava em casa, nem lá tinha ido averiguar dos criados. Os criados de Mesquita vendiam o seu silencio a Raphael Garção, e lastimar-se-iam na hora em que se rompessem as ligações da fidalga com o mais generoso dos mortaes, que elles haviam conhecido, relacionado com suas amas.

Escreveu no mesmo ponto Beatriz ao primo, relatando o successo de Bemfica, salvos os relanços irrisorios. Raphael deu louvores á sua estrella, e disse comsigo: «É necessario acabar com isto, antes que estalle borrasca! Não desprezemos este aviso!»

Beatriz, porém, afervorava-se mais em ternura desde que presagiára algum desastre. Lembrou-se que Nicoláo, com as provas da deslealdade d’ella, era homem talvez para matal-a, ou repellil-a com desprezo. O pae, o severo Martinho Xavier, aferrolhal-a-ia n’um convento, ou vingaria o marido, n’um rapto de furioso odio. Beatriz precisava contar com o refugio e amparo do homem amante, corajoso, rico, e affrontador de todos os respeitos sociaes por amor d’ella. Faltava-lhe animo e impudor, digamol-o assim, para prevenir Raphael no sentido[Pg 209] dos seus presagios. O bizarro moço acudiu ás balbuciações da prima, anhelando a hora em que ella se despenhasse dos respeitos vãos do mundo aos braços defensores do esposo de sua alma. Alentou-se o espirito da senhora. Achou-se mais destemida, e mais segura na rampa da sua perdição.

Escreveu o morgado da Palmeira ao sogro, e dizia-lhe n’um post-scriptum: «Aqui vi Raphael, que chegou de Pariz. Leva uma franceza. Doido até á morte!»

Martinho Xavier respondeu:

«No tocante a Raphael Garção ouso pedir á tua bondade que me não falles mais. Eu fallei muito a respeito d’este homem. Hoje a ti peço, aos mais ordeno que me não fallem n’elle.»

Martinho Xavier, velho amigo do governador civil de Lisboa, sabia, mediante as faceis pesquisas policiaes, onde morava Raphael em Lisboa. Concluiu muito mais além do que a alçada da policia devassou, e calou-se para não ir elle hastear o patibulo da deshonra da filha.

Nicoláo de Mesquita ponderou em nada as palavras do sogro.

Revieram dias serenos, serenos de sobejo para a lethargia de Raphael. Sensação nova para elle! até saudades dos paes o inquietavam! Parecia-lhe que na provincia havia de amar mais poeta, e mais intensamente sua prima.

Este constrangimento adoentou-o sem artificio. Beatriz deu tento de sua tristeza, e considerou-se desamada. Chorou e fez-se aborrecida. A mulher, nas condições de Beatriz, nada vence com lagrimas, e ás vezes dissolve com ellas os filamentos que a prendem á estima que se desfaz. Raphael[Pg 210] queixou-se amargamente da injustiça e da ingratidão.

—Avalias mal, disse elle, um homem dos meus annos, e com o meu temperamento, que está, ha sete mezes, privado da liberdade, e até de ar, no centro de Lisboa, rodeado de prazeres, attraido pelas diversões de que amante nenhum se abstém.

—Eu cuidei que eras assim feliz!... atalhou ella seccando as lagrimas ao incendio do subito arrependimento.

—Feliz... de certo fui e sou; mas custa-me que tu chores, quando eu me queixo que não posso com esta vida... Tens tu força de mover teu marido a ir para a provincia?

—Eu não tenho força nenhuma, primo...

—Experimenta, Beatriz: diz-lhe que estás doente: póde ser que elle te deixe ir para Palmeira. Se elle quizer ficar com a franceza, que te faz isso?

—A mim que me ha de fazer?!... Pois sim, eu lhe pedirei que me deixe ir para Palmeira... E perdoa-me, disse ella, enternecedora, perdoa-me, Raphael, que bem conheço que estás doente, e aborrecido como eu de Lisboa. Quem me dera nas minhas arvores, e á margem do meu Tamega!... Amei-te com tanto coração n’aquelles sitios!... Tenho saudades da gruta em que eu ia buscar as tuas cartas e levar as minhas! Conheço todas as plantas d’onde tu colheste uma flôr, que deixavas cair entre as murtas para eu a murchar ao calor do meu seio. Tambem te lembras?

—De tudo, minha filha!...—disse Raphael commovido.—De tudo me lembro em que teus olhos pousaram um instante. Voltaremos nós áquelle[Pg 211] ceu?... Vêr-nos-ha uma d’aquellas noites estrelladas da nossa terra?

Estavam mais liricos que o seu costume. O morgado de Fayões era alma pouco puxada á fieira do idillio. As estrellas distraiam-n’o mediocremente, e a lua incommodava-o com demasias de luz, nas suas escaramuças nocturnas á pacifica honestidade dos infelizes, como o pharmaceutico, e o coronel, e outros de lacrimavel memoria. No tocante a Beatriz, até áquella hora, minguára-lhe tempo aos devaneios pelo azul dos céus da sua terra e canteiros do seu jardim. Nos romances, que lêra, se alguns amantes se detinham em palestras concernentes ás estrellas, e sombras de platanos, admirava-se ella da impertinencia dos authores, que tão pouco, em certas conjuncções, conheciam o coração de duas pessoas apaixonadas, ardentes, novas, doidas, escondidas uma n’outra como dois anjos, que não entendem o mundo.

Desde este dia, ou noite, Beatriz ficou pensando sempre em voltar á aldeia. Tambem ella esperava que o seu Raphael centuplicasse os carinhos, além, n’aquelles convidativos bosques, onde parece que o coração se dilata, e enche do amor dos mil amores que a natureza espira.

Pediu ao marido que a levasse a Palmeira, se elle queria passar o verão em Lisboa.

Nicoláo respondeu que não podia ir, nem viver sem ella.

—E se te eu disser que me sinto deperecer, e brevemente morrerei em Lisboa?—replicou ella.

—Não morrerás, menina. Pelo contrario, a vida da aldeia ser-te-ia hoje um incessante fastio.

—Como quizeres, primo...—tornou Beatriz[Pg 212] com despeito.—Ainda assim, has de consentir que eu, se me sentir peior, escreva a meu pae, pedindo-lhe que me venha buscar. Tenho um filho, e quero viver para meu filho.

—Pois vive em Lisboa, priminha, que estes ares são purissimos, se me não engano.

—Tu nunca te enganas, meu primo—retorquiu, surrindo amargamente;—mas tambem não enganas ninguem.

—Explica-te!

—Mais tarde...

—Porque não ha de ser já?!

—Porque ainda se não gastou a paciencia... Não me faças mais perguntas, visto que eu tenho a delicadeza de te não responder. Se um dia me queixar, não ha de ser de ti.

Nicoláo recolheu a colera e a interrogação imprudente. Compreendeu que Beatriz lhe conhecia deslealdade; e, do aprumo glacial com que ella o invectivou, tambem inferiu que não era amado.

Resignou-se, e protestou acautelar-se, visto que ainda era tempo. As cautelas consistiram em sondar e precatar a fidelidade dos criados. Ia bem n’aquelle rumo!

Passados dias, voltou Beatriz a pedir-lhe que a levasse para Palmeira. Nicoláo respondeu:

—Póde ser na semana que vem.

Escreveu a um amigo de Chaves, perguntando-lhe se Raphael Garção tinha casado com a Angela de Santo Aleixo. Disseram-lhe que Angela havia casado, quatro mezes antes, com o morgado das Boticas, e que o morgado de Fayões ninguem sabia d’elle, porque não escrevia a ninguem.

—Então que é isto?—perguntava Nicoláo á sua[Pg 213] razão esclarecida.—O homem disse-me em Cintra que ia para casa, e ninguem sabe d’elle!... Não negou que ia casar com Angela, e Angela estava casada!... Mas, se elle estivesse em Lisboa, e Beatriz o soubesse, seria um contra-senso querer ella ir para a provincia! Isto não falha aos dictames de uma razão escorreita! Já sei o que é: o doido escondeu-se por aqui, ou no Porto, ou na provincia com a franceza. É o que é. Martinho Xavier sabe-o, e, irado contra esse escandalo, prohibe que lhe fallem n’elle. Minha mulher é estranha a tudo isto. Vejo-a doente, e receio que ella se queixe ao pae. Sabe a minha vida misteriosa, e, se eu a contrario, é capaz de me denunciar. Martinho Xavier vem a Lisboa, e toma conta da filha. Remediemos as eventualidades. Vou para Palmeira com minha mulher, e preparo residencia á franceza na minha quinta de Ribeira d’Oura. No inverno seguinte, deixo Beatriz em Chaves com o pae, e volto a Lisboa com Margarida.

Beatriz recebeu a nova da partida. Avisou Raphael, que antecedeu oito dias a jornada, entrando outra vez em Hespanha. A mobilia da casa de Andaluz foi vendida em globo, em nome do seu criado. O desabafado moço cuidou que saia de Lisboa com um pulmão desfeito, e o outro atacado de tuberculos.

Entrou Raphael Garção em Chaves, com dois caixotes de encommendas de Pariz, mandadas comprar no Chiado. Andou entregando os objectos ás primas, com as quaes fallava difficilmente o portuguez. As senhoras achavam-n’o assim mais interessante. As donzellas gostavam de ser chamadas mamasélles e chères cousines, pronuncia que feria os[Pg 214] ouvidos lusitanissimos das velhas. De Chaves foi para Fayões, onde se espantou de não encontrar cincoenta e tantas cartas, que havia escripto a seus paes, de differentes cidades do mundo. Os velhos choravam abraçados n’elle, como se o filho, por milagre de Jesus, quebrasse a campa. Julgavam-n’o como morto, não obstante Ricardo de Almeida, compadecido d’elles, lhes haver asseverado, de mez a mez, que Raphael Garção vivia. O morgado queixou-se acremente da inconstancia da prima de Santo Aleixo, e protestou casar-se por vindicta com a mais rica herdeira.

Passados dias, foi visitar Ricardo ao castello de Aguiar. Viu Laura, a pomba do ceu, que depuzera o ramo de oliveira no coração do amante de Margarida. Inclinou-se com ingenuo respeito deante da mulher, que o recebia com um surriso de estima. Sabia ella quanto seu esposo devia a Raphael Garção, perdido no conceito publico, e ao mesmo tempo bajulado dos paes, querido das mulheres, e invejado dos homens. Ricardo pintára-lhe vantajosamente o caracter de Raphael, omittindo o desdouro dos seus amores adulteros. Laura uma vez lhe revelára a esperança de vêr uma das suas irmãs casadas com o morgado de Fayões. Ricardo singelamente lhe disse:

—Não penses em tal. Raphael ha de morrer solteiro, porque ha de morrer novo.

Regosijou-se a dama brazileira de vêr Raphael com saudavel exterior, e uns vislumbres de espirito fatigado de correr mundo á procura das aventuras vãs e estragadoras do coração. Julgava ella que as leviandades do fidalgo eram amar sem destino, gastar o sentimento em affectos inconsequentes, e com mulheres devastadas pelas paixões, falsas paixões[Pg 215] que desluzem as illusões candidas da alma, como as côres postiças corroem a natural purpura do rosto.

Largas horas praticaram os dois amigos em passeios na serra, por onde Raphael tragava saude, e renovava o sangue. Fallava de Beatriz com saudade, por que a distancia lh’a aureolava com o resplendor de outros tempos. Revelava os seus intentos a Ricardo, que, sem fortalecer o discurso com axiomas, lhe pedia que rompesse uma alliança, promettedora de cortar-se mais tarde com mais doloroso golpe.

—E cuidas tu que Beatriz não morre, deixando-a agora eu?—dizia entre piedoso e fatuo o de Fayões.

—Cuido que não morreria, primo Raphael. Merecia a pena experimentares quinze dias.

—Fez-te barbaro a felicidade, Ricardo!... Assim, queres tu que eu faça uma fria e selvagem experiencia na vida da mulher que me ama, e que tem posto a risco a honra e a vida por amor de mim?

—Não, primo... O que eu queria era induzir-te a salvar-lhe a honra, que a vida não tem marido que lh’a tire.

—E, depois,—redarguiu Raphael, que querias tu fazer de mim?

—O mesmo que tu indirectamente fizeste do teu primo Ricardo.

—Levar-me ao casamento?

—Levar-te á honra, e a honra depois que te inspirasse, meu amigo.

[Pg 216]


[Pg 217]

XXI

Chegaram os fidalgos ao Vidago. Beatriz entrou contente na enorme gruta de arvores seculares, que emboscavam a casa de Palmeira.

Quinze dias depois, Margarida Froment, com o seu mordomo e criadas, aposentavam-se na quinta da Ribeira d’Oura. Nos arredores corria que esta dama, com suas aias, e mordomo, vestidos á bizarra, era uma illustre estrangeira, que viajava, e parára alli, embellesada nos encantos do sitio.

Martinho Xavier não visitou a filha, e, respondendo ao genro, que lhe annunciava a chegada, nem promettia ir vel-o, por estorvo de enfermidades, nem o convidava a ir a Chaves. Nicoláo de Mesquita azedou-se da indelicadeza, e disse á mulher que o pae era uma creatura intractavel.

[Pg 218]

Informou-se o morgado do viver de Raphael. Colheu que vivia muito no Pontido com Ricardo, e com os amores começados de uma cunhada de Ricardo, dotada com duzentos e cincoenta mil cruzados. Varreram-se-lhe as suspeitas do pensamento. Foi á Ribeira d’Oura; deteve-se oito dias, e voltou forçado pelas conveniencias, e já não pelo ciume.

N’este espaço de tempo, Raphael Garção passou trez dias no palacete de Palmeira, e revistou com Beatriz, nas cálidas horas das noites de julho, os maciços das murtas, os alegretes das flores almejadas em Lisboa, os arvoredos cerrados, as margens do Tamega rumoroso. Noites lindas, scismadoras como as do tempo ido, mas que differentes ao espirito de Raphael! Poesia espontanea, essa fenecêra como as flores de então. A poesia de agora, tirada á força da fantasia, era toda arte de coração fatigado. Beatriz é que era sinceramente ditosa.

Raphael estava alli e pensava em Amelia, irmã de Laura, trigueira como sua irmã, olhos mais ardentes, espiritos mais scintillantes, cheia de graça na conversação, e de meigas puerilidades no seu amor.

Acontecia, porém, que o pae de Amelia desconfiava do caracter de Raphael. Repugnava-lhe o tom galhofeiro do primo de Ricardo de Almeida. Achava-o mundano de mais; bom para as salas; verde de mais para a vida intima. Não obstante, ligeiramente contradizia a propensão da filha.

Raphael não podia romper de vez o enlace com Beatriz; promettia, porém, ser forte e honrado, assim que o casamento se tratasse.

Aqui o temos, pois, transtornado, e seduzido pelo exemplo da felicidade do primo. As differenças de[Pg 219] genio, que mezes antes observára elle, entre si e Ricardo, tornaram em identidade de aspirações. Dizia-lhe o castellão de Aguiar que principiasse a sua reforma, renunciando ás abominaveis intelligencias com a esposa de Nicoláo de Mesquita. Raphael mentiu, protestou despedir-se d’ella cavalheiramente, recolheu-se a Fayões; e assim que houve nova da segunda ida de Nicoláo á quinta da Ribeira d’Oura, voltou para Vidago.

Martinho Xavier sabia os passos do genro, e os do sobrinho. Ao genro perdoára; ao sobrinho não pudera. Um dia, chamou dois valentes filhos de um caseiro das suas terras de Barrozo. Deu a cada um seu bacamarte; e, ao cerrar da noite, ordenou-lhes que o esperassem fóra de Chaves, com um cavallo á redea. No sellim iam afivelados coldres de pistolas de alcance.

Á meia noite, haviam caminhado quatro leguas. A casa acastellada de Fayões negrejava como um morro de fragas, a um oitavo de legua distante.

Martinho parou e disse:

—Á uma hora devem aqui passar dois homens a cavallo. Se o que vier á rectaguarda fizer algum movimento com armas, atirem a matar. Ao que vier na frente não lhe ponham mão. Se acontecer matar o criado, fujam, e esperem-me além Tamega. Eu lá irei ter.

Antes da hora marcada aos criados, que se embrenharam n’uma bouça, ouviu-se perto o strupido de cavallos no declive pedregoso da calçada. A estrada achanava-se ao cimo da ladeira.

Raphael Garção viu ante si um cavalleiro, quedo e immovel como estatua.

—Quem é?—perguntou engatilhando uma pistola.

[Pg 220]

—Sou Martinho Xavier, pae de Beatriz.

—Meu tio!—exclamou Raphael, abaixando o braço da pistola.

—Arreda lá com o parentesco, infame villão!—bradou o velho.—Vae perguntar a tua mãe que lacaio te deu o sangue plebeu que te gira nas veias!

—Essa affronta não fere minha mãe, senhor Xavier! respondeu o de Fayões erguido nos estribos.

O criado de Raphael, seu companheiro e guarda desde os quinze annos, esporeou o cavallo com um bacamarte em punho.

—Alto ahi!—ordenou Raphael ao seu valente criado.

O homem susteve o impeto do cavallo, e recebeu no mesmo ponto, duas balas em cheio peito. Oscilou sobre a sella, inclinou a cabeça ao pescoço do empinado cavallo, e, destribado caiu morto em terra.

—É uma espera de assassinos?—exclamou Raphael, abocando a pistola ao peito do tio.

—Como quizeres, canalha! Vaes agora morrer tu, ás mãos de um velho, que deshonraste. Desfecha, corôa a tua vida com o homicidio! Mata quem te vae varar esse perverso coração!... O pae de Beatriz deve morrer ás tuas mãos!

Raphael abaixou a arma apontada, e disse:

—Atire! aqui me tem mais perto!...

E impelliu a trancos o cavallo para a frente, e quasi ao alcance do braço de Martinho.

O velho retirou o dedo convulso, que premia o gatilho.

—Antes quer que os seus criados me assassinem?—exclamou Raphael.—Pois então que atirem elles![Pg 221] Um homem innocente está alli morto no chão; matem agora o criminoso; desculpem-se de uma barbaridade com um acto de justiça. Salvem a honra de seu amo, que o sangue do meu criado não lhe póde lavar as nodoas!

Martinho Xavier fraquejara. Aquelle silencio era uma estrangulação que lhe afogava na garganta a voz. Contara comsigo para uma desaffronta, que, nas cogitações do seu quarto, lhe parecêra heroica. A presença do cadaver, e o animo frio de Raphael conturbaram-n’o.

—A deshonra de minha filha!...—balbuciou elle. E as lagrimas romperam-lhe em torrentes, e a pistola caiu-lhe da mão.—A minha amada filha... prostituida... por um sobrinho de seu pae... pelo companheiro da sua infancia, que eu tinha em meus braços, quando ambos se beijavam... E pudeste, Raphael, tu, pudeste perdel-a, quando devias guardar a dignidade dos teus, respeitar a esposa de um amigo, a filha de um velho, que te estremecêra como pae... Tu, filho de uma irmã de minha mulher!... Maldito sejas!... Deus não quer que eu possa castigar-te... Divina Providencia, eu vos entrego este criminoso!... Castigae-o vós!

Martinho Xavier desandou o cavallo, e partiu vagarosamente. Carecia de forças, para accelerar a carreira.

Raphael desmontou, ergueu pelos hombros o criado, quiz acostal-o á riba da estrada; mas o corpo inerte resvalava com a cabeça pendida, e os braços desarticulados. O collete e a camisa fumegavam ainda queimados pelas buchas dos bacamartes. O morgado tirou as mãos ensanguentadas; e desistiu de esperar signal de vida.

[Pg 222]

Voltou a Fayões a chamar criados com uma maca de carregar. Transportou-o a casa, e não deixou que fosse avisada a justiça. Amortalhou-o e depositou-o na capella do palacete. Foi suffragado com a decencia das pessoas da sua familia, e distinctamente sepultado ao pé do jazigo dos Cogominhos Garções.

Quinze dias depois d’este successo, Martinho Xavier enfermou gravemente, e prohibiu que Beatriz fosse avisada. Sem embargo, chegou a Palmeira a nova da perigosa doença do fidalgo. Nicoláo de Mesquita, sopesando o despeito, foi com a esposa e o filho a Chaves.

Era irrecusavel o accesso ao quarto do enfermo. Sentou-se com transporte de ira o velho, quando viu a filha. Contemplou-a com os olhos arraiados, e acovados nas orbitas azues. Apontou-a com o braço tremente e murmurou:

—O crime!... a lividez patibular do crime!... A maceração da consciencia no rosto que foi tão bello!... Vae-te, amaldiçoada!... Olha que pesa sobre ti uma vida innocente, que eu fiz matar!

Nicoláo, que se detivera consultando os medicos, acudiu aos brados roucos de Martinho, e viu sua mulher ajoelhada aos pés do leito, e lavada em lagrimas.

Assim que o intreviu no reposteiro, o velho carregou a fronte, e bradou:

—Quem te chamou aqui, devasso? Vae para as vergonhosas delicias da mulher, que achaste mais digna quando era mais perdida. Vae cumprir a tua expiação, e não venhas ser testemunha da minha. Dei-te essa desgraçada, que ahi está, cuidando que a guardarias no santuario de um amor digno. Não[Pg 223] podeste, porque vinhas do crime sordido, havias de voltar ao mesmo abysmo, e arrastal-a comtigo! Vão-se ambos da minha presença, e... despedacem-se!

Nicoláo estava corrido na presença das pessoas que o acompanharam ao quarto. Retrocedeu taciturno, perguntando aos medicos se seu sogro estava doudo. Os medicos, suspeitosos da justa supposição do morgado, entraram ao quarto a examinar-lhe os olhos e os movimentos. Martinho compreendeu-os, e disse placidamente:

—Eu não estou doudo, meus amigos. Escusam de examinar-me. Se vêm lagrimas, são de desgraça, e não de demencia. Peço-lhes o favor de me deixarem repousar... E, se ahi está alguma senhora, queiram pedir-lhe que venha transportar d’ahi essa creatura.

E apontou para Beatriz, que desfallecêra.

Levada nos braços de duas damas, a filha de Martinho Xavier cobrou o alento, e, expediu, com vibrantes gritos, repetidos golfos de sangue. O marido sentou-se ao lado do leito onde a depuzeram, e encarou-a com feroz catadura. É que das palavras de Martinho se convencêra que a filha fôra accusar a ligação com Margarida Froment. Como os deixassem breve tempo sósinhos, o marido acurvou-se ao ouvido da esposa, e disse-lhe:

—Que esperavas lucrar tu com a denuncia, desgraçada?

—Qual denuncia, miseravel?—perguntou ella, erguendo-se de salto.

—Falla baixo! e responde: que lucraste?...

—Sae dos meus olhos, que te detesto!—exclamou Beatriz voltando-se de repellão.

Replicou Nicoláo com uma convulsão de riso sarcastico,[Pg 224] e saiu da alcôva. Entraram senhoras a rodearem o leito de Beatriz. Encararam n’ella com assombro, sem ousarem interrogal-a.

—Meu pae?—perguntou ella.

—Está socegado.

—Morrerá?!—tornou Beatriz muito commovida.

—Talvez não: os doutores dizem que a molestia é moral; mas a causa toda a gente a ignora. Sabe-se que saiu á noite, ha quinze dias; voltou de madrugada; fechou-se no quarto; e adoeceu, como se vê.

Uma das melhores amigas de Beatriz inclinou-se-lhe ao ouvido, e, pedindo venia ás outras, perguntou-lhe:

—Tu sabes da morte do criado de teu primo Raphael?

—Não—respondeu Beatriz agitada.

—Pois mataram-n’o na mesma noite em que teu pae saiu; meus irmãos dizem que a doença do tio Martinho está ligada a este acontecimento.

A senhora concentrou-se, e não respondeu nem esclareceu a tal respeito coisa nenhuma.

Reinou de novo um silencio de pesames mortuarios no quarto; porém, na saleta proxima, alguns cavalheiros conversavam com Nicoláo.

Dizia um d’elles.

—Este anno tem sido fertil em casamentos. As melhores herdeiras foram empalmadas; mas o melhor dote, que veiu para estes sitios, entre Chaves e Villa Real, foi o de Ricardo de Almeida. Cem contos em moeda!

Revelava outro:

—Cem contos de réis a cada filha, sendo trez as que tem o tal ricaço de Mirandella, negreiro segundo[Pg 225] dizem. Sabem vossês que uma das filhas vae casar... com quem imaginam?

—Isso é sabido, acudiu outro. Casa com o Raphael Garção...

Um estridente grito de Beatriz agitou de encontro á porta do quarto os cavalheiros. Nicoláo entrou com elles, e viu sua mulher debatendo-se freneticamente nos braços de duas senhoras. Erguia-se ella a prumo, estorcendo-se e inteiriçando-se em afflictivas ancias. Depois, ao recair, quebrada de forças nos braços amparadores, bolçava sangue, e recurvava as unhas sobre o peito, como se quizesse arrancar um cauterio do coração.

Uma só pessoa compreendia cabalmente aquella agonia. Era o marido.

[Pg 226]


[Pg 227]

XXII

Chega uma hora, em que a mulher, esfacelada pelas cordas em que estrebuxa, quando a mão inexoravel do dever lh’as estira e reaperta, sente em si a desesperada ousadia de pregoar á face do proprio marido o seu amor maldito. Se o insulto á moral se não desprende então dos labios febris da energumena, é porque em todo o coração, congestionado de sangue peçonhento, como que se abre uma valvula por onde os pulmões ingerem um oxigenio purificante. Esta lufada de bom ar não tem que vêr com os orgãos communs das funcções respiratorias. É fluido estranho á sciencia de Bichat e Orfilla: chama-se Esperança.

Foi a esperança que poz mordaça aos delirios de Beatriz. A presença do marido, em cujo rosto revia[Pg 228] o escarneo rancoroso, exagitava-a em anciadas remettidas contra os braços que sustinham. N’uma intermittencia de quebranto, a filha de Martinho Xavier tirou da luz do seu inferno um clarão de duvida, e logo o deleite satanico da esperança. E surriu, e atirou com aquelle surriso á cara de Nicoláo de Mesquita.

Avisaram o velho do estado afflictivo de sua filha, pessoas inteiramente alheias ao complicado enredo do infortunio de ambos. Martinho mandou dizer a Beatriz que viesse ao seu quarto. A senhora cobrou forças, e, descomposta de feições, abeirou-se á cama do pae.

—Já não é tempo de evitar o espectaculo da nossa desgraça, Beatriz? perguntou elle.

—É, meu pae,—disse ella.—Eu vou voluntariamente morrer n’um convento: mas deixem-me levar o meu filho.

—O convento que significa? Em que se rehabilita a deshonra, fechada n’um convento? Responde, Beatriz!

—Morre-se... murmurou ella.

—Não morre... desespera-se, e redobram as forças que impellem ao crime. Não te chamei para te propôr convento. O que eu quero é o segredo da tua queda. É preciso que mintas ao mundo. Vai com teu marido para Palmeira. Dilacerem-se a occultas da gente, se não podem reciprocamente perdoar-se. A tua ignominia é ainda ignorada. Teu marido sabe-a?

Beatriz fez um gesto negativo, baixando os olhos e escondendo o rosto.

—Nem desconfia? tornou o pae.

—Não sei... murmurou ella.

[Pg 229]

—Pois salva-me a mim! Emenda-te, desgraçada! Deixa-me morrer, e depois... depois expõe á sociedade o opprobrio de duas familias, e o teu filho que receba a herança!

Beatriz ajoelhou, beijando soffregamente a mão do pae.

Nicoláo de Mesquita entrou n’esta conjuncção, e disse tranquillamente:

—Estás melhor, primo Martinho?

—Creio que sim... Podeis ir para vossa casa, quando vos aprouver. Eu vou sahir de Chaves para uma de minhas quintas, logo que possa.

—Observo que te impacienta a nossa... ou pelo menos a minha presença...—replicou Nicoláo.—A prima Beatriz, se queres, fica, e eu irei.

—Vão ambos... Beatriz pertence-te.

No dia seguinte, seguiram para Vidago.

No trajecto de algumas leguas não trocaram palavra. Beatriz ia de liteira com o filho. O marido cavalgava, e adeantára-se a grande distancia. Depois, na encruzilhada de duas estradas, avisinhou-se rente com a liteira, e disse:

—Eu vou á quinta de Valdez e demoro-me lá alguns dias.

Apertou a mão da esposa, beijou o filho, e seguiu outra estrada.

Beatriz exultou.

Chegada a Palmeira, escreveu, e mandou o criado de confiança a Fayões com uma carta. Era a carta um grito de angustia, uma invocação á misericordia de Raphael.

O criado foi de Fayões ao Valle d’Aguiar. O morgado estava em casa de Ricardo. Aqui recebeu a carta, e respondeu que ás onze horas da seguinte[Pg 230] noite estaria em Palmeira. Beatriz, precavida pelas desconfianças do marido, mandou secretamente indagar, se elle estava na quinta de Valdez. Soube que d’ali, onde descançára uma hora, se encaminhára de noite á Ribeira d’Oura. Beatriz exultou ainda. Margarida Froment abonava-lhe a segurança de uma longa entrevista.

O dia seguinte fôra tumultuoso em duas aldeias proximas do Vidago, entre as quaes estava situada a casa de Palmeira. Os malhadores de duas casas, enrixadas desde muito, haviam-se travado na vespera, ao encontrarem-se as respectivas esturdias ou festas de cada malhada. As rebecas, violas, clarinetes e bombos, de parte a parte, ficaram pedaços no campo da sanguinolenta briga. Os dois mais valentes jogadores de pau tinham mordido a poeira, deslombados pelos formidaveis manguaes, cuja pancada é mortal.

Os sinos das duas freguezias tangeram a rebate, e os moradores sairam armados a guardarem as raias do seu territorio.

O dia immediato era santificado, e, na capelinha do cume da serra, havia romagem. Esperava-se alli desordem que se avantajou á espectativa.

As espingardas retroaram toda a tarde, na quebrada das duas serras sotopostas á chã da romaria. Alguns bravos tinham por lá expedido a alma entre as urzes dos matagaes. Os vencedores perseguiram os vencidos até ás raias da sua freguezia, e ahi, desde o lusco fusco, ficaram atalaias até alta noite.

Raphael saira ao fim da tarde do dia anterior, caminho de Fayões. Amelia chorara ao despedir-se d’elle. Laura quizera demovel-o da partida, sem perceber[Pg 231] o intento. Ricardo pedira-lhe que escrevesse a Beatriz, contando-lhe a morte do seu criado, o dialogo com Martinho Xavier e a absoluta necessidade de acabarem ou espaçarem-se os seus perigosos encontros.

—Tudo lhe direi em viva voz—continuou Raphael Garção.—Não ir é fraqueza e desdouro, sobre ser crueza. Esta mulher, que assim escreve, é desgraçadissima.

—Melhoras a situação d’ella?—replicou Ricardo.

—Convencel-a-hei a conformar-se. E aqui te dou a minha palavra de honra que ámanhã terminam as nossas relações. Falla muito em mim a tua cunhada que eu amo deveras.

Foi Raphael a casa no intuito de armar dois criados de provada coragem, e cingir ao pulso uma manilha de ouro com um retrato de Beatriz. Esta prenda lhe déra a prima em Lisboa. O retrato, copiado de outro, que Nicoláo de Mesquita lhe mandára tirar, era em marfim, admiravelmente perfeito. Na manilha, em cuja rosca interior estava o cabello de Beatriz, mandára Raphael abrir as iniciaes de ambos, e gravar a data d’aquella noite de embriaguez de cabeça e coração. Jurára elle morrer com a manilha no braço; e, bem que violasse o juramento, depondo-a como incommoda, e reparavel á cunhada de Ricardo, não quiz apparecer a Beatriz sem ella.

Depois, com os seus dois valentes a pé, e elle cavalgado no seu garboso frisão, foram caminho de Palmeira, por caminhos transversaes.

Raphael ia triste. Nunca os prantos de sua mãe o compungiram assim! O pae descêra ao pateo e[Pg 232] dera-lhe um abraço, estando já Raphael com o pé no estribo. Os criados esperavam-n’o fóra da aldeia, para não alvoroçarem os velhos.

Ás dez horas e meia da noite, o morgado de Fayões apeou além Tamega, d’onde se enxergavam alvejantes chaminés e claras-boias da casa de Palmeira. Raphael esperou o signal convencionado—uma luz na alta janella d’um mirante acastellado. Ás onze horas illuminou-se o mirante e elle aproximou-se, entregando o cavallo á guarda dos criados com ordem de voltarem na noite seguinte. Cingiu-se á fachada do edificio, d’onde costumava ver Beatriz n’uma janella para lhe indicar qual das portas estava aberta.

—Espera!—disse-lhe ella—que ainda não pude mandar abrir a porta. Andam fora dois criados, por causa das desordens da romaria.

Raphael tinha ouvido o tiroteio, de distancia de meia legua, e entendeu a referencia.

Beatriz continuou:

—Os criados estão ali para baixo com outros homens, e não podem tardar... A noite está linda... havemos de passear no jardim?

—Sim, filha.

—Amas-me ainda? tens pena da tua desgraçada Beatriz?

—Amo-te, prima; não vejo, porém, motivo de compaixão.

—Se tu soubesses o que eu tenho soffrido... o que eu soffri em Chaves. Espera!

Ouviram grande fallario.

—São elles que vem ahi, proseguiu ella agitada. Olha, Raphael; esconde-te alli ao lado da casa... Está lá um aqueducto aberto; entra para dentro, e[Pg 233] deixa-os passar. Logo que os dois criados, em que não tenho confiança, entrarem, vou eu mesma abrir-te a porta do jardim. Tem paciencia...

—Sim, filha!... eu espero que elles passem, e aproveito a frescura do aqueducto, disse surrindo Raphael; e, acostado á parede do jardim, foi indo até encontrar a bocca da mina.

Os criados pararam ainda, conversando com os seus companheiros sobre a batalha da tarde. Dizia um d’elles:

—O que eu tenho pena é de levar esta bala para casa na clavina!

—Tambem eu!

—Por hoje não ha mais que vêr! disse um terceiro. Vamos embora.

—Querem vocês que nós dêmos a ultima descarga?

—Valeu! clamaram todos.

—Aqui não! disse um dos criados de Beatriz, que a fidalga toma medo. Vão descarregar os bacamartes ahi para diante.

Despediram-se dos que ficaram uns quatro que seguiram, aperrando as armas, e polvorisando as pederneiras.

Quando chegaram a pouca distancia da mina, em que Raphael se escondêra, disse um:

—Se vocês querem vêr o que é berrar uma clavina, vamos estoiral-as dentro da mina. Isso faz ahi um trovão, que nem peça de artilheria.

—Está dito.

Raphael devêra ouvir a proposta, se a este tempo não viesse do outro lado uma estropeada de dois cavallos, que perpassavam deante da mina.

Os cavalleiros, cirurgiões das cercanias, estiveram[Pg 234] conversando com os homens armados, e contando que vinham de examinar os feridos e os mortos nos montados da romaria.

A este tempo já Beatriz estava á janella, maldizendo a paragem dos homens n’aquelle sitio. Os cavalleiros seguiram o seu caminho, e os das clavinas disseram:

—Vá! é agora! os tiros todos a um tempo!

E desfecharam os quatro bacamartes contra a bocca da mina.

Raphael Garção, como empurrado pelas duas balas que lhe entraram no peito, recuou alguns passos e caiu de bôrco, e os braços cruzados entre o peito e a terra.

Os lavradores, depois da descarga, levantaram grande grita e apupada. D’além, dos confins da freguezia, irrompeu medonha celeuma de brados, e estrondear de tiros.

Observou um dos homens:

—Querem vocês vêr que os patifes entraram na freguezia? Carrega e avança, rapazes!...

E correram em direitura ao ponto da vozearia.

Beatriz esperou alguns minutos, dizendo entre si:

—Elle agora já podia sair da mina, que por aqui não está ninguem!

Esperou ainda alguns segundos... e disse á sua criada confidente, que estava com ella:

—Isto que será?! Elle não apparece!... Tu que pensas?...

—Eu não sei, fidalga! respondeu a criada. Terá medo de ser visto, por alguem, que nós d’aqui não enxerguemos, e o fidalgo veja lá de dentro da mina...

—Ha de ser isso... mas olha... a noite está[Pg 235] tão clara... e eu não vejo ninguem por alli!... Vamos nós lá?

—Pois vamos, senhora... eu não tenho medo nenhum.

—Nem eu... Estará elle já no jardim?

Desceram de mansinho ao jardim, olharam os recantos sombrios, descerraram a porta, sairam ao caminho, e paráram á bocca da mina.

—Raphael!... chamou ella, primo Raphael!... Não falla! Onde está elle?... Ó meu filho!...

Ouviu um gemido no interior da mina.

—Ouviste? perguntou Beatriz á criada, que tremia—ouviste um gemido?

—Ouvi, fidalga!... Santo Deus, misericordia! que será?!

—Raphael! Raphael!... clamou a brados Beatriz, e entrou mina dentro, chamando sempre, até tropeçar e cair sobre um corpo inerte.

—Uma luz, uma luz!—exclamou ella.—Raphael! tu estás morto?!

—Morto!...—balbuciou elle—Adeus!...

E remexeu-se no vasquejar da suprema agonia.

—Uma luz!... bradou ainda Beatriz.

A criada corrêra a casa, e saira logo com uma vela.

Quando entrou na mina, viu sua ama prostrada sobre o cadaver, e a face ensanguentada, por havel-a roçado ao cair, nas pedras esquinadas que saiam das paredes do aqueducto!

[Pg 236]


[Pg 237]

XXIII

Saiu a criada á bocca da mina, no desvariado intento de chamar quem levasse d’ali a fidalga.

Suspendeu-a a lembrança de fazer publica a desgraça de sua ama. Voltou com a vela, que lhe caiu das mãos convulsas, e se apagou. Aterrada e cega nas trevas, invocou a Santa Virgem, e pediu logo perdão da parte intermediaria que lhe fizeram tomar, desde Lisboa, n’estes desventurados amores; tinha sido ama do menino esta criada, que se affeiçoara, como usam affeiçoar-se estas mulheres a suas senhoras. Não obstante, em conflicto de tanta angustia, a sua idéa, quando se viu no escuro, foi fugir da terra, e mudar para outra onde a não conhecessem. N’esta perplexidade, ouvia gemer sua ama, e proferir expressões n’uma toada medonha.

[Pg 238]

Avisinhou-se ás apalpadelas, e tirou por ella de sobre o cadaver; mas os braços de Beatriz estavam empedernidos ás ilhargas do morto. Chamou-a, agitou-a, sacudiu-lhe a face: baldaram-se vozes e esforços. Cresceu o terror da mulher: decidiu-se pela fuga, sem já dar tento, nem importar-se da crueldade e desamor do acto. Foi ao seu quarto, embolçou os valores que tinha; e, tirante esta ultima prova de bom senso, no mais parecia doida a correr por aquella estrada fóra sem destino.

Por volta de uma hora da manhã, Beatriz espertou da lethargia, e sacudiu os membros para espancar a visão horrenda, o sonho de se estar abraçada no cadaver do amante. A visão teimava em atirar-lhe ao seio o corpo glacial de um morto, e ella esfregava as palpebras, e arrefecia as mãos na testa.

—Que horror de sonho!...—exclamava suffocada—e, apalpando as costas de Raphael, continuava a dizer em sua alma:—Parece que o sinto debaixo das mãos!... Que horror, Virgem Santissima!...

Bracejou, e deu com os braços nas paredes humidas da mina. Então é que foi o supplicio indescriptivel do completo despertar. Ergueu-se de salto. Vibrou um agudissimo grito. Rojou-se ao longo do cadaver com frenetica ternura. Beijou-lhe o perfil do rosto: levantou para si a cabeça como hirta; apertou-a convulsamente á face d’ella; correu-lhe a mão pelo seio, e ensopou-a em bulhões de sangue, ainda quente. Refugiu, levantou-se, bateu com a face nas asperezas da saibrada angulosa de seixos, gritou por luz, chamou a criada, e correu ao longo da mina de encontro ao clarão da abertura. Quando saiu de rosto ao ar livre, e se viu sósinha, e não[Pg 239] soube compreender que profundezas de abysmo eram aquellas; e que circo de chammas havia de abranger-lhe o espirito; e que infanda agonia se passava debaixo dos olhos do Senhor... a perdida, a torturada por tormentos, não sabidos de nome n’este mundo, caiu, a poucos passos da mina, caiu como pregada em terra pela flecha de um raio.

Ás trez horas, rompia a manhã. Uns carreteiros, que passavam, ergueram aquella mulher, envolta n’um manto branco, ferretado de sangue.

Reconheceram a fidalga, e chamaram a grandes brados os servos da casa. Acudiram todos, e levaram em braços Beatriz.

No mesmo ponto, saiu um criado para Valdez, e outro para a Ribeira d’Oura a chamar Nicoláo de Mesquita. Estendeu-se uma rede de homens a procurarem não sabiam elles quem; viam a fidalga ensanguentada, e julgaram-n’a ferida. As criadas examinaram-n’a, e apenas lhe viram o rosto escalavrado. Vieram cirurgiões, e decidiram que os ferimentos visiveis, a não existirem outros, eram resultantes de uma queda com o rosto sobre a pedra.

O sangue das mãos entenderam que rebentára da face, quando ella se apalpou.

Beatriz abriu os olhos, na presença de muitas pessoas circumpostas ao leito. Despediu gritos consecutivos, sem intermissão de socego. Rasgou as vestes interiores, e as faces de quem lhe retinha os braços. Cessou de gritar, e interrogava os espavoridos circumstantes, perguntando quem matára Raphael Garção. Os ouvintes encaravam-se e não respondiam. Embravecida pelo silencio, a esposa de Nicoláo de Mesquita atirava-se do leito fóra, arrepelando-se, e lacerando as macerações e feridas do[Pg 240] rosto com as unhas. Tingiu-se-lhe de um escarlate de fogo a cara e testa. Relumbravam-lhe os olhos. O arquejar do peito resoava como em paroxismos.

A congestão cerebral declarou-se. Soccorreram-se das copiosas sangrias os facultativos; porém, no momento em que o intenso afogo do rosto parecia esfriar, Beatriz abriu os olhos, encontrou os do filho que chorava, sacudiu os braços com vibrações de metal electrisado, e caiu a um lado sobre o seio do cirurgião, que a relancetava.

Nem um monosillabo! Nem o nome do filho! Nem o nome do amante!...

Morrêra.

Ao anoitecer, chegou Nicoláo de Mesquita. Já desde o alto da serra eminente a Palmeira ouvira o dobrar dos sinos. Tangiam as torres das irmandades de todas as freguezias proximas.

Apeiou, correu ao quarto de sua mulher, e viu-a, na ante-camara, amortalhada, com Martinho Xavier á cabeceira do esquife.

—Que é isto!—exclamou elle—expliquem-me esta horrenda desgraça!...

Martinho Xavier não respondeu. Nicoláo instou pela resposta com gesticulação de furioso, guinando os olhos ameaçadores a todos os lados.

Saiu ás salas, cheias de gente. Ergueu um brado, pedindo a historia da morte de sua mulher.

—Ninguem sabe responder—disse uma voz.

Acercaram-n’o os cirurgiões, e contaram o que sabiam: os criados depozeram lealmente o que tinham visto, e accrescentaram que a ama do menino desapparecera.

—Vão buscal-a! vão prendel-a!—rebramiu Nicoláo.

[Pg 241]

Martinho Xavier acompanhou o cadaver da filha até ao jazigo da capella, depois de ter assistido aos responsorios. Saiu da capella; e, sem entrar a despedir-se do pae do seu neto, tomou a creancinha nos braços, e accelerou o trote do cavallo, caminho de Chaves.

Nicoláo de Mesquita perguntou pelo filho. Responderam-lhe que o avô o levava ao collo, á saida da capella.

Saltou furioso d’entre os cavalheiros que o rodeavam, e quiz ir na pista do sogro. Retiveram-n’o, lembrando-lhe que ainda estava quente o cadaver de Beatriz.

No outro dia, por noite, chegaram á vista de Palmeira os criados de Raphael Garção com o cavallo, na fórma das ordens de seu amo. Esperaram-n’o a noite inteira. De manhã, repentinamente, viram-se cercados de regedor e cabos que os interrogavam sobre o que faziam parados n’aquelle sitio. Como gaguejassem, foram presos; e, timoratos entre ferros, declararam a que fins tinham vindo.

Nicoláo de Mesquita ordenou que os trouxessem á sua presença. Atterrados pelo apparato, contaram tudo. O morgado suppoz, um momento, que Raphael Garção fôra o motor da morte de sua mulher ou com suas proprias mãos a estrangulára, e fugira para Hespanha. O boato correu assim, e a opinião publica deu-lhe peso. Os paes de Raphael, surpreendidos por esta nova, sairam caminho de Palmeira. Ricardo de Almeida appareceu ao mesmo tempo nos arredores de Palmeira, e defendeu o seu amigo com a eloquencia da verdade e da angustia, na presença de numeroso publico, exclamando:

[Pg 242]

—O assassino de um, ou de ambos foi Nicoláo de Mesquita!

Enganavam-se todos.

Os paes de Raphael Garção escutavam as differentes vozes com um spasmo e silencio, que fazia chorar. Não sabiam dizer ao que tinham vindo; procuravam o seu filho! Voltaram para casa. A mãe esperou dois mezes. Apagada a esperança de tornar a vel-o, foi procural-o n’outros mundos. O velho, menos feliz que a esposa, ficou-se espantado a olhar contra o jazigo em que lh’a fecharam, e d’alli saiu idiota para a escuridade de uma camara, onde agonisou dez annos.

Ricardo de Almeida, convicto de que seu primo Raphael tinha sido assassinado por ordem de Nicoláo, não podia soffrer que a voz publica infamasse a memoria do desgraçado, poupando o assassino. Como já não podia com o silencio desinfamar a honra de Beatriz, foi a Chaves, e contou a Martinho Xavier os pormenores dos amores de Raphael com sua prima, e as intenções com que elle saira de casa d’elle para Palmeira. O velho achou rasoavel a supposição do morgado do Pontido; mas a sua angustia já não tinha respiradouro. A indignidade da filha culpada e morta enleava-lhe os braços para a vingança. Com que direito iria elle vasar uma bala no peito do homem, que barbaramente se desultrajára!... Pediu elle a Ricardo de Almeida que se calasse para que o tempo levasse a lembrança da horrivel tragedia na sua onda de sangue.

Cançaram-se os pregoeiros da desgraça. Ao fim de um mez os processos começados estagnaram-se, á mingua de indicios. Martinho Xavier, instado para restituir o neto, desappareceu com elle, e com boa[Pg 243] parte dos seus cabedaes. O menino tinha quatro annos, n’aquella época. Seu avô dizia que o queria roubar ás reminiscencias do opprobrio e da morte de sua mãe. Refugiára-se com o seu thesouro em Londres.

Nicoláo de Mesquita foi para a Ribeira d’Oura buscar as consolações de Margarida Froment. Enganara-se. O aspecto moral d’esta mulher figurou-se-lhe um demonio, que o escarnecia na sua ignominia, a ignominia de ser deshonrado, como suppunha dos boatos propalados pelo Almeida, no intuito de o condemnar a elle como homicida de Raphael e Beatriz.

Era uma figuração meramente este reparo no escarneo de Margarida. A franceza ageitou as feições á magua do seu amigo: interiormente é que ella se deleitava atrozmente, vendo-se no juizo do mundo e de Nicoláo tão deshonrada como a mulher purissima, por amor de quem fôra abandonada á generosidade do primeiro homem que quiz acoital-a da vergonha de pedir ella um amante em troca de um jantar e de um vestido.

Os exteriores da franceza eram, pois, uma chimera do morgado de Palmeira. O que lhe dava estas visões era a interna dilaceração, que todo o repouso e esperança lhe convertia em raiva e desalento. A publicidade da sua ignominia, aggravada com a hypothese de ter sido elle o assassino, afóra o perdimento do filho, ao qual a Providencia lhe suscitára no coração um amor incendiario, estas angustias, centuplicadas pela dolorosa travação de todas, fizeram da vida d’este homem um espectaculo aborrecido ás raras pessoas que o tratavam, e, mais que a todas, a Margarida Froment.

[Pg 244]

Assim que ella proferia uma palavra de banal consolação, Nicoláo enfuriava-se, e dizia que o seu vilipendio não transigia com os factos consummados, com a deshonra de muitos homens.

Margarida, injuriada assim na pessoa de seu marido, abria uma das valvulas do seu fel—o fel que o desprezo da sociedade emborca violentamente na consciencia das mulheres despreziveis—e rebatia-lhe as injurias com aviltamentos.

A repetição d’estes conflictos disparou na ameaça de rompimento por parte de Margarida. O atormentado homem, irado pela ameaça, bramiu:

—Pois vae-te, mulher fatal! vae! que a tua expiação ainda não começou! Uma adultera lá está na sepultura! Eu estou aqui n’esta agonia, que tu vês!... Tu, maldita, ousas ainda espremer a peçonha nas minhas chagas, quando devias laval-as com lagrimas! Tu, por amor de quem eu deixei que Beatriz fosse victima da seducção! Tu, que interiormente exultas com o meu opprobrio, e com a queda de uma perdida na tua voragem!... Pois vae-te, vae, maldita, e deixa-me morrer!

Margarida preparava os seus bahus, para ausentar-se; e Nicoláo lançava-se-lhe de joelhos aos pés, exclamando:

—Não me deixes n’esta solidão! bem vês que todos fogem de mim! Não tenho ninguem! ninguem! até o filho me roubaram!...

A franceza condoia-se; estendia-lhe compadecidas mãos; acolhia-o nos braços com ficticia ternura, e desprezava-o tanto quanto elle mais se envilecia.

As maviosidades momentaneas de Nicoláo pareciam ridiculas caricias de velho idiota: os exasperos,[Pg 245] interpollados com as caricias, afeiavam-n’o horrivelmente.

Margarida pensou em fugir-lhe, receiosa de algum accesso de furia sanguinaria.

Induziu-o a sair da quinta da Ribeira d’Oura para Lisboa. Nicoláo recebeu jovialmente o alvitre; mas d’ahi a nada, rompia em exclamações contra a mulher, que lhe aconselhava dar maior publicidade á sua deshonra.

—Está mentecapto!—dizia entre si a franceza.—O diabo que o ature!...

Nicoláo de Mesquita foi ao solar de Palmeira, passados dois mezes, abrir as janellas e arejar o palacete que nunca mais se abrira. Meditava em transferir para alli a franceza, desejo que ella manifestára por lhe haverem dito que a casa e bosques e jardins de Vidago eram magnificos.

Deteve-se a revolver as commodas e bahus de Beatriz, onde não encontrou papel suspeito. O mordomo fez-lhe saber que as caixas da ama ainda estavam fechadas no quarto, porque ninguem dava noticia da paragem que ella tinha.

Nicoláo fez arrombar as caixas, e encontrou alguns massetes de cartas, e uma medalha de oiro com o retrato de Raphael Garção, e uma manilha com cabello identica áquella com que o amante de Beatriz morrêra.

O morgado leu as cartas, sem excepção d’aquella em que Raphael alludia galhofeiramente ao episodio burlesco da casa das primas Camaras em Bemfica.

Nicoláo sentiu o feroz impulso de ir insultar o cadaver de Beatriz ao jazigo, como a inquisição fazia aos monarchas. Tinha exemplo de boas fontes. Desistiu[Pg 246] da lamentavel inepcia, e fugiu como de si mesmo para a Ribeira d’Oura. Quando chegou, não encontrou Margarida Froment.

Sobre um piano viu um papel fechado, com estas breves linhas:

«Já não podemos ser senão muito desgraçados um em presença do outro. A mulher fatal não quer fazer mais victimas. Adeus.

«MARGARIDA ESPOSA DE E. FROMENT».

Nicoláo, corridos trez minutos de estupefacção, exclamou:

—Pois ha Deus que castigue assim!?


[Pg 247]

XXIV

A interrogação do morgado não fez mais abalo no tribunal da Providencia que os insultos de Julião e as provocações de Luthero ao Homem-Deus.

Confessou-se castigado, conheceu que expiava: a Providencia que mais queria do verme? Deixou-o a revolver-se nos espinhos, e voltou a face do guzano, que se pascia em sua podridão.

Desde aquella hora, Nicoláo, olhando-se no baço espelho da sua consciencia, viu-se hediondo; e aos vidros, em que poucos dias antes se gosava e narcisava nos seus frescos e garbosos quarenta e quatro annos, via-se agora encanecendo, da noite ao dia, com rapidez de condemnado nas ultimas setenta horas do oratorio.

«Eu posso ainda levantar-me d’este abatimento!—dizia[Pg 248] comsigo elle.—Irei longe d’aqui, irei a França, a Italia, a toda a parte onde a riqueza inventa delicias, irei gosar, esquecer-me, viver!»

Este desafogo acalentava-lhe o exaspero breves instantes. Lá no recesso da sua alma havia uma elaboração de veneno, que se lhe coava na chaga, assim que o linimento da esperança começava a cicatrizal-a.

Duas vezes tivera as malas feitas para sair de Portugal: porém, á hora de partir, senhoreava-o a cachexia com desalento anniquilador, que o forçava a desistir, exclamando:

—Onde vou eu? Em que parte do mundo se acabam os limites ao meu inferno?

E então, commovia a lagrimas vel-o chorar a elle com saudades do filho; mas nem a consolação amarga d’estes prantos lhe era concedida! Sobresaltava-o a duvida de ser elle o pae d’aquella creança. Calculava épocas, via attentamente a data gravada na manilha de oiro, que encontrára na caixa da ama: agora, inferia d’aquella data provas concludentes da legitimidade do filho de Beatriz; logo, convencia-se da fallivel significancia das lettras gravadas, podendo ellas meramente commemorar o dia em que fôra dada a prenda. Execrava então o filho, emquanto a soledade e a insulação de toda a convivencia, lh’o não mostrava como esteio unico á vida.

Vagando de quinta em quinta, afinal deixou-se ficar em Palmeira, encerrado, em pouquissimo da casa, estranho ao governo d’ella, inaccessivel a foreiros, a criados, a raros amigos que o procuravam. Um só homem conseguira entrar no quarto de Nicoláo de Mesquita: era o octogenario reitor, varão de[Pg 249] preclaras virtudes, que adivinhara o essencial da angustia do fidalgo, que elle baptisara e beijara nos braços de sua mãe, quando assistiu ás estrondosas festas do baptisado. Quantos esforços fez o santo homem para o tirar á luz e ás distracções do campo todos se mallograram. Chamava-lhe o pensamento a coisas de lavoira, obras começadas, melhoramentos que fazer, a reconstrucção da torre de menagem meio arruinada.

Nicoláo respondia:

—O meu tumulo está edificado ha duzentos annos: não tenho outras obras que faça, padre reitor.

Ainda receioso de impaciental-o, o ancião teimava em fallar-lhe de obras.

Um dia, trez mezes depois da morte de Beatriz, dizia o clerigo:

—Quando vi abrir-se o aqueducto da agua que vae dar ao jardim, e andarem lá trabalhadores, cuidei que vossa excellencia resolvera, como seus paes haviam tencionado, formar um grande tanque no terreiro para beberem os cavallos. Esteve a mina aberta uns dias, e depois, logo depois que sua excellencia a senhora D. Beatriz que Deus tem, falleceu, fechou-se o aqueducto.

—É que eu mandei suspender todas as obras—respondeu Nicoláo—e o feitor mandou logo empedrar a bocca da mina.

—E por que não hade vossa excellencia entretêr as suas horas n’uma obra tão util para a casa e para o povo?

—Que me importa o povo e a casa? replicou o fidalgo.

—O povo creio eu que importa a vossa excellencia, meu bom fidalgo, porque paes e avós d’este[Pg 250] povo foram sempre como filhos dos ricos homens da Palmeira do Vidago. O povo lucraria muito se vossa excellencia lhe desse para as suas necessidades a agua que superabunda nos hortos e quinta. Esta pobre gente, quando os calores seccam as fontes, vae buscar, a grande custo e perda de tempo, a agua á freguezia proxima. Aqui tem vossa excellencia que está em sua mão, com pequenissimo dispendio, soccorrer este povo, que tão alegre ficou, assim que eu lhes disse a intenção abençoada de vossa excellencia. Parece que tem praga de inveja aquella obra! Seu excellentissimo avô abriu a mina, o paesinho de vossa excellencia continuou-a, o senhor morgado fez lavrar quinze braças; e, quando esta mina ia por pouco encontrar-se com o aqueducto, que desce da serra, vejo eu os jornaleiros a tapal-a de cantaria grossa!

Nicoláo ergueu-se com semblante enfastiado, e o reitor calou-se, como sempre, assim que a expressão do tedio assomava no rosto do morgado como preparação para um grosseiro: «Queira deixar-me sósinho, padre reitor.»

D’este dialogo fica inteirado o leitor de que a mina ficou sendo a sepultura de Raphael Garção, e que o apodrecimento do cadaver não chegou a ser presentido pelo fetido das exhalações.


[Pg 251]

XXV

O virtuoso reitor de Vidago, presenciando as lagrimas com que Nicoláo fallava de seu filho, e da impossibilidade de descobrir a paragem d’elle, foi a Chaves, e insuspeitamente averiguou de pessoas intimas de Martinho Xavier, e inimigas do viuvo de Beatriz, que o menino estava em Londres com seu avô, esperando o tempo proprio de entrar em collegio. Este descobrimento arrancou o pae ao seu marasmo. Aquella unica estrella, a espaços, lhe preluzia no futuro, na velhice que elle esperava receber da vontade divina como castigo. Animado pelo sacerdote, Nicoláo foi a Londres, onde esperou inutilmente seis mezes o apparecimento do filho ou do sogro. O imprevisto encontro de um amigo de Lisboa, ligado á diplomacia portugueza, esperançou-o em descobrir a residencia de Martinho Xavier, se elle existia em Londres. De feito, e facilmente se deparou ás investigações[Pg 252] policiaes o velho fidalgo vivendo nos arrabaldes, com modesta decencia, e quasi incommunicavel. Nicoláo, commovido de jubilo, que lhe amaciava as asperezas da indole, apresentou-se de subito ao pae de Beatriz, no momento em que o velho passeiava o menino sobre o chão arrelvado do jardim, ensinando-lhe o nome das flôres e arbustos. Foi uma visita, que Martinho Xavier não prevenira, deixando abertas as portas gradeadas do jardim. Se Nicoláo batesse á porta, não lh’a teriam aberto, sem previas consultações e licença do velho cioso Pygmalião d’aquelle thesouro.

Nicoláo correu arrebatado ao filho. A creança apavorada d’aquelle homem de longas barbas brancas, aconchegou-se do seio do avô, que se acurvara a defendel-o, sem ter ainda reconhecido o genro. O morgado, com os olhos marejados de lagrimas, parou a curta distancia do grupo, e disse affectuosa e tristemente:

—Pois tambem tu me foges e desprezas, filho da minha alma?

O pae de Beatriz fez espanto da desfiguração do genro. O menino reconheceu-o pela voz, e oscillava entre o avô e o pae, dizendo com voz tremida e balbuciante falla:

—O meu papá não morreu? O avô disse que sim.

—Morri, meu filho, morri!—respondeu soluçante o desgraçado.

Martinho Xavier encheu-se de compaixão d’aquelle homem, ferido pela mão divina. Baixou olhos á creança, e disse-lhe:

—Abraça-o, Martinho, que é teu pae.

—E a mamã—perguntou o menino, apertado[Pg 253] nos braços do pae.—E a mamã tambem não morreu? Onde está ella?

O rubor da alegria e do alvoroço coou-se instantaneamente no rosto do pae, e um como pedaço de mortalha, amarellecida pelo tempo entre as taboas sepultadas do caixão, lhe cobriu a parte do rosto que as barbas descobriam.

Martinho Xavier comprehendeu a amargura d’aquelle silencio, e houve pejo de não poder levantar a voz em defeza da filha.

Nicoláo, com o menino nos braços, avisinhou-se do sogro, e disse-lhe compungente, e com os olhos quebrados de supplicante amargura:

—Não sei porque me has de odiar, primo Martinho! As minhas desventuras, se fossem sabidas, commoveriam toda a gente, e as minhas culpas seriam perdoadas. Que julgas tu de mim?

—Que és um desgraçado—respondeu serenamente o pae de Beatriz.

—Bem hajas!—volveu Nicoláo.—Escuso perguntar-te se me julgas o assassino de Raphael Garção.

—Que me importaria isso?... redarguiu Martinho. Seria bem morto, se era infame!

—Atrozmente infame!... E quem me assevéra que elle não vive?

Martinho Xavier encarou penetrantemente nos olhos de Nicoláo, e disse:

—Quem matou, pois Raphael? Morto está elle. Raphael tinha um só amigo; era Ricardo de Almeida. Tenho uma carta d’elle. Cartas recebidas todos os paquetes. Ricardo nunca mais teve novas de Raphael... Quem o matou pois?

—Não sei, pela vida de meu filho t’o juro, Martinho[Pg 254] Xavier, se a minha palavra perdeu a tua confiança! Deus fulmine este anjo que é tudo o que me resta, se eu comprehendo que morte foi a de Beatriz e se tenho sombra de suspeita do destino que levou o villão, que tantas vezes me apontaste como...

—Basta! interrompeu o velho, está aqui uma creança, que Deus dotou com precoce entendimento. Ha dois nomes que eu exijo que este menino esqueça. Vens buscar teu filho?

—Não, primo: venho pedir-te que voltes com elle e commigo a Portugal.

—Não: leva-o, e deixa-me morrer, onde mais não veja a sombra de minha filha.

—Ficarei comtigo, Martinho Xavier, e com meu filho, disse Nicoláo. Virei eu perturbar o teu socego?

—Vens: mas eu acceito de boa vontade o que está determinado por Deus. Ficarás comnosco. Assistirás á educação de Martinho; e, quando elle tiver a sabedoria, que contrabalança as desventuras, e fortalece o animo para subjugal-as, então ireis para a patria, e eu estarei já morto e esquecido.

Nicoláo de Mesquita apresentou-se na vivenda do sogro, sem intentar melhoral-a. Afóra os contentamentos aspirados nos labios da creança, o restante da sua vida era dôr sem intermissão. Nenhuma variedade procurava ás suas meditações, não podia sequer conversar com o primo em assumptos ligados ao nome de Beatriz. Se o pae, do secreto de alma, lhe havia perdoado, envergonhar-se-hia de confessal-o. Como já não podia maldizel-a, tambem fugia de suscitar reminiscencias d’ella.

Assim passaram, n’esta angustiosa e contemplativa mudez, um anno.

Martinho, observando com dôr o desperecimento[Pg 255] do genro, suggeriu a ideia de irem vêr França. Nicoláo approvou-a indifferentemente. Como conhecia as miudezas de Paris e outras cidades, disse que a todas iriam excepto Leão. Aqui devia viver o marido de Margarida Froment.

Foram, e ao terceiro dia de residencia em Pariz, Nicoláo viu no boulevard dos Italianos um homem conhecido, encostado á vidraça de um estabelecimento de modas; era o chanceller, que havia sido do consulado francez no Porto. D’ahi a segundos, viu sahir uma mulher de bello exterior, e dar o braço áquelle homem: era Margarida Froment.

De maneira que o brioso amigo do marido da infame, como elle a catalogára, o campeão voluntario da honra de Ernesto, degenerára tanto em pundonor de espiritos, que aberta a conjuncção prospera, tomou conta da mulher do seu amigo.

Margarida cravou os olhos em Nicoláo e fez pé atraz de espantada. O morgado inclinára-se a ouvir uma pergunta do filho. Martinho Xavier fôra estranho ao lanço.

Volvidos quinze dias, Nicoláo, passando no bosque de Bolonha, viu um homem que guiava um phaetonte, em que iam duas mulheres de imponente belleza, e brilhantemente vestidas, inclinadas para o elegante conductor de fogosos cavallos. Reconheceu-o.

Ao pé d’elle estava uma roda de francezes, um dos quaes, apontando o transeunte do phaetonte, dizia aos outros:

—Ahi vae Ernesto Froment espalhando os ultimos dez mil francos da fabrica vendida.

Outro ajuntou:

—Em dez annos gastou duzentos mil francos.

[Pg 256]

Ainda um terceiro:

—Com seis magnificas mulheres. Diz elle que os ultimos mil francos ha de engulil-os como Gilbert enguliu a chave.

—A comparação é modesta! observou um.

—Gilbert, acudiu outro, estremece de horror sabendo que foi parodiado por uma bêsta maior da marca.

Nicoláo passou ávante, e dizia entre si:

—Ernesto e Margarida não expiam, porque se não devem nada.

Vista a grande cidade, Martinho Xavier desejou a quietação da sua casinha suburbana de Londres. Nicoláo seguiu-o automaticamente, discutindo em segredo a ordem das leis providenciaes. A inducção que vimos inferir da impunidade de Margarida, e do alegre viver de Ernesto, prova que o homem principiava a formar um systema racional em materia de expiações.

Tem escapado a muito philosopho e theologo a grande verdade, que elle apanhou pela incoercivel guedelha. É effectivamente verdade que uns certos maridos de umas certas mulheres não expiam, porque não se devem nada.

A respeito d’estes e d’estas parece que a Providencia diz em linguagem chã:

«Lá se entendam e lá se avenham.»

Margarida, Nicoláo e Raphael foram exceptuados d’este menospreço da Providencia.


[Pg 257]

XXVI

N’uma casa de Villa Real de Traz-os-Montes, em março de 1849, um sujeito lia á sua familia a seguinte correspondencia de Chaves publicada no jornal portuense O Nacional, d’aquelle mez e anno:

Sr. redactor.

«Remetto ao seu jornal a singela narrativa de um estranho successo, que veiu esclarecer os mysterios de uma tragedia de familia, sobre a qual ha quatro annos a opinião publica tem aventurado opiniões, aliás infamantes, algumas das quaes desgraçadamente se verificam hoje.

«Em agosto de 1844, o morgado de Fayões, Raphael Garção Cogominho, rapaz de costumes não louvaveis, mas egual a muitos que o mundo respeita,[Pg 258] lisonjeia e admira, desappareceu da casa de seus paes, e nunca mais voltou.

«Ao mesmo tempo... (muito me custa ter de escrever os nomes de pessoas que figuram ou figuraram n’este drama; porém, sacrificando á verdade, e desejando que na minha narrativa ninguem veja um romance, sou forçado a não esconder nenhuma das luzes que alumiam este acontecimento tenebroso). Ao mesmo tempo, D. Beatriz de Sousa, mulher do morgado da Palmeira do Vidago, Nicoláo de Mesquita, morria, segundo disseram os facultativos, de uma congestão cerebral, ou febre thraumatica, consecutiva a ferimentos na face.

«No dia seguinte, os criados de Raphael Garção procuraram seu amo na quinta de Palmeira, para onde elle viéra de noite e furtivamente. Os criados, interrogados pelo marido da senhora morta, confessaram a intenção que os levava alli, e foram despedidos.

«A voz publica francamente disse que o morgado de Fayões morrêra ás mãos do marido de sua prima Beatriz, ou por ordem d’elle; e que a esposa, suspeita de deslealdade, se não perecêra no mesmo ponto, succumbira depois dos flagicios bem claramente denunciados nas contusões da face.

«A ausencia do morgado da Palmeira, na noite em que estes factos se deram, confirmava desconfianças sobre as probabilidades da astucia com que o senhor da casa, praticado ou mandado praticar o crime, se fingia distante do local. Como quer que fosse, do cadaver de Raphael Garção nenhuns indicios alcançaram as pesquizas da justiça, e sobre o cadaver de Beatriz de Souza nenhum exame se fez. O provavel e quasi evidenciado é que ambos estavam mortos.

[Pg 259]

«Passados sete ou oito mezes, o morgado da Palmeira foi para Londres, em demanda do filho, que o avô, nobilissimo cavalheiro de Chaves, lhe arrebatára. Decorridos dois annos, voltou para Portugal Nicoláo de Mesquita, e o filho, a tomar conta dos grandes haveres do sogro, que falleceu em Londres.

«No principio do corrente anno, quando a memoria da obscura tragedia estava delida no impersistente espirito do publico, quiz a Providencia que o morgado da Palmeira, com a sua propria mão, fosse apontar o infallivel testemunho do seu crime. É bem certo, segundo a phrase da Escriptura, que Deus enlouquece aquelles que quer perder!

«Os operarios, que por ordem de Mesquita desempedravam a porta de um aqueducto, que estivera aberto quatro annos antes, e se fechára dois dias depois da morte de Beatriz de Sousa, encontraram a quinze passos distantes da abertura da mina um esqueleto.

«Os ossos não tinham já fibra de carne adherente, conforme ouvi aos facultativos examinadores. As cartilagens e ligamentos, com quanto articulassem a ossada, principiavam a esphacelar-se, e muitos se desfibraram ao contacto do ar. O esqueleto estava de bruços; e cingida á volta do radio e cubito, ossos correspondentes ao ante-braço, tinha uma especie de pulseira, chamada manilha, com um retrato pendente, perfeitamente conservado no marfim, encastoada em oiro, com o rosto de esmalte, no reverso do qual se lê uma data, e as iniciaes enlaçadas de Raphael Garção e Beatriz de Sousa.

«Quando os jornaleiros descobriram o esqueleto, estava Nicoláo de Mesquita em Chaves. Os mineiros fugiram espavoridos, e foram contar o succedido[Pg 260] ao regedor. Este mandou guardar por cabos de policia o aqueducto, e officiou á auctoridade. O aviso chegou simultaneamente ao morgado, que partiu para Palmeira.

«A auctoridade, chegada ao mesmo tempo, consentiu que Nicoláo de Mesquita penetrasse no aqueducto com uma lampada, visto que sem o exame dos peritos não se podia levantar o esqueleto, em conformidade com as ordens do morgado.

«O regedor, que seguiu Nicoláo de Mesquita, observou com grande assombro, um acto de extraordinaria ferocidade; e foi que o morgado depois de examinar a manilha pendente do pulso do esqueleto, fez um gesto de raiva frenetica: e, com um pé assentado em cheio no arcaboiço das costellas, fez que debaixo rangessem e estalassem os ossos do peito e costas. O regedor conteve-o de espalhar a ossada a pontapés, com risco de ser espancado pelo furioso dentro da mina.

«As auctoridades, depois do exame, tomaram conta da ossada, para continuação de averiguações.

«Sr. redactor, como se vê, o indicio de um assassinio está manifesto a todas as luzes; mas o indigitado homicida, porque é fidalgo e opulento, está no liberrimo goso dos seus direitos civis. Se fosse um pobre, já estava preso, e teria sido interrogado em casa de Anaz, e Caifaz, e Pilatos.

«Alguem saiu já em defeza de Nicoláo de Mesquita, allegando que elle, se fosse o assassino, de modo nenhum mandaria bolir no aqueducto. Esta razão tem uma face acceitavel, e outra incumbe á justiça mostral-a. Em quanto a mim e á maioria dos pareceres, o matador de Raphael Garção,[Pg 261] cujos olhos são indubitavelmente aquelles, foi Nicoláo de Mesquita, vigesimo segundo senhor da Torre e morgado de Palmeira de Vidago.

«Conte com a noticia circumstanciada d’este processo, e com a verdade incorruptivel, do seu constante leitor,

«EPAMINONDAS TEBANO.»

—O que ahi está é tudo mentira! exclamou uma voz d’entre as pessoas, que escutavam a leitura da correspondencia.

Confluiram todas as vistas para a pessoa que bradara, e viram a criada da casa, Maria Joanna, que deixara cair o fuso, e com a mão levantada repetia:

—Juro pela salvação da minha alma, que o senhor morgado da Palmeira não matou o senhor Raphael.

—Como sabes tu isso?! perguntou o patrão.

—Sei-o, porque era criada da senhora D. Beatriz; fui eu quem creou o menino de que ahi se falla na gazeta. Assisti ao ultimo arranco do senhor Raphael. E, se até agora me calei, é porque não soube que o meu amo pagava innocente.

—Conta o que sabes, Maria, e prepara-te para ir esclarecer a justiça, voltou o patrão.

A antiga confidente de Beatriz relatou as desgraças de sua ama e do assassinado amante d’ella.

No dia seguinte, partiu para Chaves, com recommendações do cavalheiro de Villa Real, e foi levada á presença da auctoridade, deante de quem e de testemunhas, expoz o modo como Raphael Garção[Pg 262] fôra encontrado, e a supposição de que elle fôra morto por uns homens que dispararam as armas para dentro da mina. Era preciso ouvir o depoimento dos homens. Maria Joanna indicou dois criados de Palmeira para dizerem quem eram elles, por terem estado, poucos momentos antes, conversando juntos. Os criados ainda o eram de Nicoláo de Mesquita. Foram citados a comparecerem na policia; e, interrogados, lembraram-se dos nomes dos quatro valentões da sanguinaria romaria. Os indicados depuzeram conformemente ao depoimento da creadora de Martinho, e as suspeitas declinaram de sobre a cabeça de Nicoláo de Mesquita.

O cavalheiro de Villa Real, volvidas duas semanas, leu uma segunda correspondencia do Epaminondas, antipoda involuntario do Epaminondas de Tebas, na qual as suas conjecturas eram rectificadas, com grande magua de as haver estampado no primeiro afôgo da sua indignação. A indignação dos correspondentes da provincia é coisa de grão pavor quasi sempre!

A correspondencia rematava assim:

«Os ossos de Raphael Garção foram religiosa e pomposamente conduzidos de Chaves para Fayões, e depostos no jazigo de seus avós. O pae de Raphael, que ainda vive doido, na escuridade do seu quarto, onde apenas recebe á força quem lhe ministra o sustento de tão horrivel viver, morrerá sem saber que os ossos do seu filho unico repousam na mesma sepultura da mãe, que morreu saudosa d’elle. A criada Maria Joanna salvou o morgado de Palmeira de um injusto ferrete: não obstante, o marido de Beatriz, com justa ou injusta razão (não ouso decidir-me) não consente esta mulher deante[Pg 263] dos seus olhos. Consta-me que lhe mandara entregar as suas caixas, que ainda estavam em Palmeira, e uma esmola valiosa por mão do menino que se creou aos peitos d’ella.

«Finalmente, senhor redactor, em vista do desenlace d’esta infanda historia, devemos olhar ao ceu, e baixar os olhos confundidos, deante da mysteriosa justiça da divina providencia! Raphael Garção morreu. Beatriz viu-o agonisar. Ambos expiraram no praso de vinte e quatro horas. Nicoláo de Mesquita geme ha quatro annos sob o peso de uma cruz de ferro. Estas angustias pode ser que correspondam a antigos crimes. Em summa, ninguem se transvie do caminho da virtude, que o do crime está ladeado de infernaes abysmos.

«EPAMINONDAS.»


[Pg 265]

XXVII

Nicoláo de Mesquita, em 1850, voltou para Inglaterra com o seu filho, a residir no cottage de seu sogro. O menino, aos sete annos, entrou em collegio, e passava os dias feriados com seu pae.

N’uma estação de ferias, o morgado saiu com o filho a passar uns dias em Pariz, em companhia de uma familia ingleza, proprietaria da residencia em que fallecera Martinho Xavier, e a quem Nicoláo devia o obsequioso cuidado de attentar nas necessidades do filho sem mãe e sem carinhos de mulher, aos quaes se aquece o coração das creanças, e as virtudes fermentam n’elle. O aspecto macilento e sempre sombrio do portuguez acareára a discreta piedade da familia ingleza.

Adivinhavam n’elle um desmarcado infeliz, talvez um delinquente: mas, o remorso ou pena immerecida,[Pg 266] o que elle inspirava nas almas contemplativas era compaixão.

Estavam, pois, em Pariz, no anno de 1852, quando Nicoláo, ao sair da egreja de Notre-Dame, onde fôra ouvir prégar Lacordaire, ouviu entre a multidão uma voz muito proxima do ouvido, que lhe dizia:

—Nicoláo de Mesquita.

Olhou de golpe, e viu Margarida Froment. Estremeceu. Aquella mulher devia ter quarenta annos; a decadencia era justificada; mas a velhice, quasi repellente, não.

—Custa-me a reconhecel-a, madame!—disse Nicoláo com os olhos afogados em lagrimas.

A franceza deteve-se entalada pela angustia da humilhação, e disse:

—Não venho pedir-lhe nada: quiz que me visse. Reduziu-me a isto, senhor Mesquita.

—Eu!... santo Deus!—atalhou Nicoláo enxugando as lagrimas.

—Aqui tem a Margarida Froment de 1834—proseguiu ella.—Casualmente nos achamos á porta do templo em que ambos saltámos da carruagem de meu marido para visitarmos as antiguidades d’esta egreja. Recorde-se da mulher de então: sou eu. É esta Margarida que empenhou hontem o seu melhor vestido para ter hoje um almoço. Já lhe disse que não venho pedir nada; quero que me veja.

—Mas a senhora attribula-me horrivelmente!—exclamou Nicoláo entalado de gemidos.—Não foi Margarida quem abandonou a casa de que era senhora? Expulsei-a eu?

—Não lhe respondo, senhor Mesquita. Olhe de cima do despenhadeiro onde me poz, e pergunte á[Pg 267] Providencia por que estou aqui, porque sou isto que vê!

—Pois que hei de eu fazer-lhe agora, senhora! Que quer de mim? Eu sou muito desgraçado; mas sou rico ainda. Quer recursos para viver decentemente? Diga sem repugnancia.

—Não, senhor; nada lhe pedi: quero que me veja!

—Mas, infeliz, que vida foi a sua que...?

—A minha vida é isto!—interrompeu Margarida com vehemencia.—Perguntei-lhe eu que vida era a sua? Leio-lh’a no rosto. A minha historia aqui está tambem escripta na cara de Margarida Froment de 1834. Eu tinha então vinte annos, vinte mil libras para gastar cada anno, e o respeito do mundo, o amor de meu marido, que reduzi á libertinagem extrema para me esquecer, e á derradeira indigencia para com o tinido do oiro ensurdecer-se ao grito da infamia, que lhe deixei perpetuamente nos ouvidos. Póde ser que Ernesto Froment ainda lhe peça uma esmola, senhor Mesquita. Dê-lh’a, que o desgraçado não saberá quem lh’a dá. Dê-lhe a elle a esmola que eu rejeito, porque o hospital reserva-me duas taboas, e a pedra da mesa anatomica um funeral condigno.

Nicoláo soluçava; Margarida bateu-lhe no hombro, e exclamou surdamente:

—Viu-me? Agora... adeus!

E sumiu-se entre a multidão.

Como descêra até ali Margarida Froment?

Uma palavra o diz: envelhecêra.

Os ultimos quatro annos da sua vida tinham sido o vasquejar, os relampagos da luz que vae apagar-se. Os amantes não quizeram assistir ás trevas. Viram-lhe a primeira ruga na fronte, o amortiçar-se o[Pg 268] raio coruscante dos olhos, o artificio da pelle, o lustroso sobrenatural das madeixas.

Fugiram-lhe, e ella, orgulhosa sempre, não solicitava piedade.

Desenganou-se, despida dos artificios. O espelho foi-lhe a garganta do abysmo. Viu-se e despenhou-se á extrema devassidão, cuidando que morria assim mais depressa.

Ernesto encontrou-a no portico do Mont-de-Piété. Ella saia de empenhar o chale, elle entrava a empenhar o casaco. Não se reconheceram. O empregado na recepção de penhores, ao escrever o appellido de Ernesto, disse-lhe:

—Sahiu n’este instante uma Froment. É sua parenta Margarida Froment?

—Saiu agora?

—Agora mesmo.

—Desgraçada?

—Aqui não vem ninguem feliz?

—Que signaes tem?

—Uma cara de fome, um mantelete de côr duvidosa. Empenhou um chale por quatro francos.

Ernesto desceu rapidamente. Era difficil encontral-a. Fitou em rosto as mulheres todas que denunciavam fome, e trajavam manteletes de côr duvidosa. Não viu Margarida em nenhum, e pozera os olhos n’ella, a ultima que vira comprar um pão.

Margarida reparou no homem que a fitava. A desfiguração de Ernesto era menos sensivel. Conheceu-o, e disse-lhe:

—Queres metade d’este pão, Ernesto?

—Quem és tu?!—perguntou elle.

—Uma condemnada por Deus, que te pede a morte.

[Pg 269]

—És Margarida?—perguntou Ernesto serenamente.

—Sou.

—Não te matei, quando era honra matar-te. Agora, vive, e segue o teu caminho. Deus ha-de cumular sobre ti a pena do teu crime, e a pena egual aos tormentos que soffro, sem ter sido culpado. Vae teu caminho.

Vivia ainda em Leão a mãe de Margarida. Pela terceira vez a desamparada se lhe foi lançar aos pés. Foi repulsada sempre pelas criadas de sua mãe.

Tinha um irmão rico nas Antilhas. Pediu-lhe tres vezes perdão do seu infortunio, e uma esmola. A segunda e terceira cartas não foram abertas.

O francez morreu solteiro e rico, no momento de retirar-se a França.

A mãe de Margarida herdou muitos milhares de francos. Os jornaes contaram o successo. Margarida foi quarta vez ajoelhar-se á porta do quarto de sua mãe.

—Não tenho filha,—respondeu a descaroada.—Não cuides que terás quinhão na riqueza de meu filho. Eu gastarei o que tenho em obras piedosas.

E, quando scismava em dar brado com as suas obras piedosas, morreu n’um como deliramento de amor da humanidade.

Margarida Froment recolheu quatrocentos mil francos. Mandou procurar o marido a Pariz. Encontraram-n’o secretario de uma companhia de cavallinhos, a franco por dia.

Ernesto recebeu lettras de duzentos mil francos, e estas breves linhas:

«Dava-te metade do meu pão: hoje dou-te metade[Pg 270] da minha fortuna, e a outra, se a quizeres.»

Ernesto acceitou a sua quota parte, e desistiu da outra, muito em conformidade com a lei, dispensando-se até de administrar a massa do casal, o que em boa jurisprudencia lhe era permittido.

Margarida, se fosse solteira, podia escolher bons casamentos. Dizia-se em Leão que ella era os melhores quarenta annos e as mais bellas ruinas que ainda tinham visto os olhos dos seus pretensores, offuscados pela prefulgencia de duzentos mil francos.

Ernesto foi para Londres. Metteu nos bancos o seu capital, e deu-se a uma vida de confortos modestos, e reparação da saude. Tonisado pela regularidade e sadia alimentação ingleza, achou que a inercia lhe pesava. Como tivera fabrica de estôfos, entrou em negocio de algodões, não para anumerar aos seus cabedaes, mas para entreter-se.

A familia ingleza, relacionada com Nicoláo de Mesquita, possuia fabrica em Manchester, e comprava algodões aos importadores. Ernesto Froment negociava com os Smitts, necessariamente haviam de ser Smitts, ou Johns.

Uma vez estava Ernesto no escriptorio dos Smitts, ou Johns, e entrou um homem de barbas intonsas e alvissimas, com um menino pela mão.

O fabricante inglez chamou-lhe: «Master Nicoláo de Mesquita.»

Ernesto, como se lhe dessem com uma bala na face esquerda, voltou a cabeça á direita, e perguntou em inglez:

—É de Portugal este a knight (cavalheiro)?

—Sim, das visinhanças do eden do vinho—respondeu o industrial.

[Pg 271]

Mediu-o de alto a baixo.

Nicoláo estremeceu involuntariamente, e perguntou:

—É inglez, o senhor?

Ernesto não respondeu. O britanico é que disse:

—É francez. E eu lhe apresento mr. Ernesto Froment, honrado mercador de algodões.

Nenhum dos apresentados se moveu. O inglez espantou-se, e disse entre si: «Inelegancy! improper!...»

Ernesto Froment saíu, sem inclinar a vista a Nicoláo.

Smitt ou John perguntou ao portuguez a significação d’aquella frieza.

Mesquita respondeu com um sorriso, e uma lividez de torvação espavorida.

Subiu com o filho aos aposentos das ladys, e, convulso de lagrimas, pediu que lhe não desamparassem o filho, se elle morresse.

Alvorotaram-se as senhoras, e a um tempo interrogaram a terrivel presumpção de morte breve. Nicoláo gelava com a sua taciturnidade. Cuidaram as damas que o secreto desgosto da existencia d’este homem lhe transtornára o espirito. Relataram ao honrado velho as lagrimas e rogos do portuguez.

O commerciante foi procurar Ernesto Froment, e pediu-lhe encarecidamente o mysterio da sua vida com a de Nicoláo de Mesquita.

O francez fingiu estranhar a desconchavada pergunta; porém, instado pelo commovido inglez, contou a sua vida, desde a infamissima perfidia de Nicoláo, seu commensal durante a emigração, até á escaleira de opprobrios a que descêra, despedaçando o trabalho de seus paes, para esquecer a affronta.

[Pg 272]

O inglez chorava, e odiava Nicoláo de Mesquita.

—Qual é agora o seu intento a respeito do portuguez? perguntou o velho.

—Matal-o!

—Oh!...—exclamou Smith ou John.

—Matal-o inevitavelmente!—repetiu Ernesto.

—Oh!...

Passada uma breve pausa, o inglez saíu, dizendo-lhe:—espere-me duas horas que eu venho.

Antes das duas horas, entrou o inglez no escriptorio de Ernesto Froment, com um menino de dez annos pela mão, e disse enternecido a prantos:

—Este menino é filho de Nicoláo de Mesquita, e vem aqui de joelhos pedir a vida de seu pae.

Martinho ajoelhou. Ernesto levantou a cabeça, estendeu a mão ao fabricante, e disse em voz tremente:

—As nossas negociações estão fechadas.

—Oh!... porque?

—Porque me retiro ámanhã de Inglaterra.

Assim foi. Ernesto saíu para Italia.

O inglez, porém, procurou Nicoláo, entregou-lhe o menino, e disse-lhe:

—A sua vida não corre perigo, senhor Nicoláo; tenho, porém, a observar-lhe que não posso ser seu amigo, nem a minha casa póde recebel-o.

Fez uma breve cortezia, e sahiu.


[Pg 273]

CONCLUSÃO

Nicoláo de Mesquita, cortado de desgostos, e inclinado á sepultura com desejos de fechar-se n’ella, saiu de Londres com o filho. A desgraça não lhe dava treguas.

Trouxe de Pariz mestres para Martinho, habeis na sciencia, e prendas de educação esmerada.

Voltou á torre solarenga, e chamou a si duas velhas senhoras, parentas de Martinho Xavier, para lhe regerem a casa e especialmente velarem o bem-estar do filho.

Passou dois annos por tal maneira abatido de espirito, que deu comsigo, quasi aniquilado de raciocinio, nos extremos preconceitos da religião desfigurada por visualidades. Acercou-se de missionarios de todo cégos á luz do Espirito Santo, em quanto ao teor de aligeirar o peso de certas amarguras.[Pg 274] Dos missionarios resvalou ás superstições lastimaveis no homem que tivera intelligencia clara, e sciencia pratica. Prestava ouvidos e coração a coisas de agoiro, e sortilegios. De enlevos na contemplação do Supremo Senhor do céu e terra, descia a pactuar com uma boçal velhinha, santa famigerada, o quebramento do seu fadario. Esta escuridade prenunciava as trevas do sepulcro.

A piedade não o forrava aos impetos de um odio á sombra de Beatriz. Nunca mais entrou á capella onde esperavam o ultimo juizo as cinzas da infeliz. Os missionarios não souberam extirpar-lhe da alma o cancro do rancor: davam-lhe amulêtos, e orações prófugas do espirito immundo.

Mandára erigir um santuario na recamara do seu quarto, e ahi se exercitava em soliloquios mentaes, entoando com fervorosos assomos de illuminado as amorosas apostrophes ao divino dos padres Chagas e Bernardes. Se não tivesse descançado no Senhor aquelle Santo parocho, o penitente iria pela mão do velho á estrada recta da divina misericordia.

Uma tarde, Nicoláo de Mesquita, após a sobre-excitação febril de algumas horas, chamou criados com alavancas, e desceu á capella, onde não havia entrado desde a morte de sua mulher.

Mandou levantar a pedra do jazigo e extrair a ossada que estivesse mais á flôr da sepultura. Os criados suando de pavor, curvaram-se a remexer os ossos; mas superstições, ou abalo sobre-natural, não ousou tocar-lhes; e, um após outro, fugiram da capella, ao verem desfigurarem-se medonhamente as feições do fidalgo.

Nicoláo travou da alavanca, e tentou mettel-a ás[Pg 275] junturas argamassadas do jazigo da esquerda, onde estavam as solitarias cinzas da unica adultera d’aquella familia. N’este esforço e reluctancia com as difficuldades de abalar a pedra, extenuou-se, perdeu o alento, e caiu de rosto contra o degrau do altar, exclamando vozes inintelligiveis.

As velhas senhoras, o filho, os mestres e os criados acudiram á capella, e tomaram-n’o em braços. Nicoláo revolvia a lingua na abobada palatina, e tirava uns sons roucos, arripiadores, como gritos de ave nocturna.

Chamaram medicos e sacerdotes. A medicina capitulou de paralisia o incuravel ataque. Os padres ungiram-no, que a lingua não podia accusar as angustias da alma.

N’uma lucta de spasmos e ancias se desprendeu, ao fim de vinte e quatro horas, o atormentado espirito de Nicoláo de Mesquita.

Ao cair a pedra sepulcral sobre o cadaver, justaposto aos ossos de Beatriz de Sousa, a piedade impõe-nos silencio. Vimos o que é a justiça de Deus na terra; n’outros mundos é-nos defeso devassal-a.

Martinho de Mesquita foi tutellado de Ricardo de Almeida, um dos seus mais proximos parentes, por parte de sua mãe. É hoje marido da morgada do Pontido, filha de Ricardo e Laura.

Ainda vivem os ditosos que o morgado de Fayões invejára nos seus ultimos dias de vida. N’aquella casa ha um só incentivo a lagrimas: é a memoria de Raphael Garção.

Dizem-nos que o filho de Beatriz, desde que ouviu a historia de sua mãe, tem dias de attribulado recolhimento. Possue o retrato d’ella, pendente da manilha, tirada do esqueleto de Raphael, e conservado[Pg 276] na casa do Pontido. Uma vez sua mulher surprehendeu-o absorvido na contemplação do retrato. Poz-lhe a mão na espadua, e elle, voltando a bella imagem de sua mãe aos olhos da esposa, disse, banhado em lagrimas:

—Como não havia de perdel-a o mundo, se ella era tão formosa!

FIM


OBRAS COMPLETAS
DE
J. P. OLIVEIRA MARTINS

I. Historia nacional:

Historia da civilisação iberica, 4.ᵃ ed. (1897), 1 vol. br. 700 rs. Enc. 900.

Historia de Portugal, 6.ᵃ ed. (1901), 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800.

O Brazil e as colonias portuguezas, 3.ᵃ ed. (1888), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

Portugal contemporaneo, 3.ᵃ ed. (1895), 2 vol., br. 2$000 rs. Enc. 2$400.

Portugal nos mares, (1889), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

Camões, os Lusiadas e a renascença em Portugal, (1891). 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.

Navegaciones y descubrimientos de los portugueses, (ed. do Ateneo de Madrid, 1892), 1 vol. (não entrou no commercio.)

A vida de Nun’alvares, 2.ᵃ ed. (1894), 1 vol., br. 2$000 rs. Cart. 2$400. Enc. (folhas doiradas) 3$200.

Os filhos de d. João i, 2.ᵃ ed., 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800 rs.

O Principe perfeito, (1895) 1 vol., br. 2$000 rs. Encad., folhas doiradas, 3$200 rs.

II. Historia geral:

Elementos de anthropologia, 4.ᵃ ed. (1895), 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

As raças humanas e a civilisação primitiva, 2 vol., br. 1$400 rs. Enc. 1$800 rs.

Systema dos mythos religiosos, 2.ᵃ ed. (1895) 1 vol., br. 800 rs. Enc. 1$000.

Quadro das instituições primitivas, 2.ᵃ ed. (1893) 1 vol., br. 700 rs. Enc. 900.

O regime das riquezas, 2.ᵃ ed. (1894), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.

Historia da republica romana, 2.ᵃ ed., 1897, 2 vol., br. 2$000 rs. Enc. 2$400.

O hellenismo e a civilisação christã, 2.ᵃ ed., 1 vol. br. 800 rs. Enc. 1$000 rs.

Taboas de chronologia e geographia historica, (1884), 1 vol., br. 1$000 rs. Encadernado 1$200.

III. Varia:

A circulação fiduciaria, 2.ᵃ ed., 1 vol. br. 800 rs. Enc. 1$000 rs.

A reorganisação do Banco de Portugal, opusculo, (1877) br. 150 rs.

O artigo «Banco» no Diccionario Universal Portuguez, (1877), 1 vol, br. 500 rs.

Politica e economia nacional, (1885), 1 vol., br. 700 rs.

Projecto de lei de fomento rural, apresentado á camara dos deputados na sessão de 1887, 1 vol., br. 300 rs.

Elogio historico de Anselmo J. Braamcamp, ed. part. (1886), 1 vol. (esgotado).

Theophilo Braga e o Cancioneiro, opusculo, (1869) esgotado.

O Socialismo, (1872-3), 2 vol., br. 1$200. (Esgotado)

As eleições, opusculo, (1878), br. 200 rs.

Carteira de um jornalista: I. Portugal em Africa, (1891), 1 vol., br. 400 rs.

Inglaterra de hoje, cartas de um viajante, 2.ᵃ ed., (1894), 1 vol., br. 600 rs. Enc. 800.

Cartas peninsulares, (1895), 1 vol. br. 600 rs. Enc. 800 rs.


Obras de José Quintino Travassos Lopes

Nova grammatica elementar da lingua portugueza, redigida segundo as theorias modernas, e contendo quadros synopticos muito uteis, cart. 160 réis.

Compendio de arithmetica e systema metrico, 28.ᵃ edição, contendo 29 gravuras e mais de 2.000 exercicios e problemas, reformado segundo os actuaes programmas, br. 200 réis, cart. 280 réis.

Resumo de arithmetica e systema metrico, 5.ᵃ edição, muito augmentada e contendo 13 gravuras, approvado pelo antigo conselho superior de instrucção publica, br. 100 réis, cart. 180 réis.

Dois mil exercicios e problemas de arithmetica e systema metrico, abrangendo os programmas do ensino elementar e complementar, em br. 160 rs., cart. 240 rs.

Compendio de historia patria, 13.ᵃ edição, reformada, e contendo no fim uma noticia resumida dos factos principaes de cada reinado, br. 160 réis, cart. 240 réis.

Compendio de historia sagrada, 2.ᵃ edição, illustrada com muitas gravuras, approvado pelo antigo conselho superior de instrucçâo publica, br. 160 réis, cart, 240 rs.

Leituras Correntes e Intuitivas: primeiras lições sobre objectos.—1.ᵃ parte, 9.ᵃ edição, muito augmentada, ornada com gravuras e vinhetas, dedicada ás creanças de 7 a 9 annos, br. 160 réis, cart. 240 réis; com encad. de luxo para premios e brindes, 300 réis.

Leituras Correntes e Intuitivas: primeiras lições sobre objectos.—2.ᵃ parte, 6.ᵃ edição, ornada com gravuras e vinhetas, dedicada ás creanças de 10 a 12 annos, br. 160 réis, cart. 240 réis; com encad. de luxo, para premios e brindes, 360 réis.

Leituras Correntes e Intuitivas, obra adoptada para o ensino official primario, 300 réis, cart.

Historias de animaes, sua vida, costumes, anecdotas, fabulas, etc.—noções amenas de zoologia para creanças—lições sobre objectos, 3 volumes, obra interessantissima, ornada com 400 gravuras e vinhetas, br. 200 réis cada volume, cart. 280 réis; com encad. de luxo, para premios e brindes, 400 réis.

Os contos da avózinha, collecção illustrada de historias, lendas, fabulas e contos, com 300 gravuras, 3 volumes, br. 160 réis, cart. 240 réis, com encad. de luxo, para premios e brindes, 360 réis cada volume.

Noções elementares de geometria intuitiva, contendo 97 gravuras, br. 100 réis, cart. 180 réis.

Grammatica elementar da lingua portugueza, 22.ᵃ edição, br. 160 réis, cart. 240 réis.

Chave (A) da Sciencia, por Brewer e Moigno. Nova traducção, extraordinariamente desenvolvida e ampliada pelos traductores J. Q. Travassos Lopes e J. T. da Silva Bastos.—Obra completa, 3 vols., edição de luxo, grande formato, illustrado com centenares de gravuras, br. 4$500 réis, enc. 6$000 réis.


OBRAS DE CARLOS AUGUSTO PINTO FERREIRA

Engenheiro machinista, capitão-tenente graduado da Armada

INDISPENSAVEIS A INDUSTRIAES, OPERARIOS, ENGENHEIROS, ARCHITECTOS, ETC.

Engenheiro (O) d’algibeira, livro portatil e utilissimo, especie de vademecum onde se acham compendiadas grande quantidade de formulas e dados praticos com applicação á engenheria nos seus differentes ramos; 3.ᵃ edição muito augmentada. Este livro deve ser o companheiro indispensavel do contra-mestre, do mestre, do architecto e finalmente do engenheiro; para todos tem materia util. Livrinho nitidamente impresso, contendo mais de 150 tabellas.—Preço 800 réis br., 1$000 réis enc.

Guia do fogueiro conductor de machinas de vapor, approvado pela associação dos engenheiros civis portuguezes. Livro escripto expressamente para servir de ensinamento pratico aos fogueiros, e em harmonia com a portaria do ministerio da marinha que obriga esta classe de individuos a serem examinados. Contém 230 paginas em 8.ᵒ francez, com bastantes gravuras intercaladas no texto e duas bellas estampas, 2.ᵃ edição.—Preço 800 rs. br., 1$100 réis enc.

Guia de mechanica pratica, precedida de noções elementares de arithmetica, algebra e geometria indispensaveis para facilitar a resolução dos diversos problemas de mechanica. Volume de 557 paginas em oitavo francez, nitidamente impresso, contendo mais de cem gravuras intercaladas no texto e cinco bellas estampas no fim. Livro indispensavel, não só aos industriaes, mas a todos os individuos que desejarem pôr em pratica quaesquer trabalhos mechanicos.—6.ᵃ edição. Preço 1$600 rs. br., 1$900 rs. enc.

Manual elementar e pratico sobre machinas de vapor maritimas antigas e modernas, comprehendendo as de dupla, triplice e quadrupla expansão—Livro utilissimo para quem precisa fazer algum estudo sobre machinas maritimas, construil-as, mandal-as construir, ou dirigil-as. Vol. de 420 pag. em 8.ᵒ francez, contendo 40 gravuras intercaladas no texto e 2 magnificas estampas. Os engenheiros machinistas encontrarão n’este livro indicações de grande utilidade para o desempenho da sua difficil missão. Preço 2$000 réis br., 2$400 réis enc.

Manual de noções elementares de technologia, Livro utilissimo para todos os que se dedicam á industria, e tratando dos seguintes assumptos:—Madeiras.—Rochas e pedras.—Carvão.—Metaes.—Materias textis.—Construcções. Adornado de muitas gravuras explicativas. Preço 500 réis br., 700 réis enc.

Opusculo ácerca das machinas mixtas de alta e baixa pressão, applicadas aos navios movidos a vapor. 2.ᵃ edição, Preço 600 réis br., 800 réis enc.


Notas

Os problemas com a pontuação e a ortografia foram corrigidos.

*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK O ESQUELETO ***
Updated editions will replace the previous one—the old editions will be renamed.
Creating the works from print editions not protected by U.S. copyright law means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg™ electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG™ concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for an eBook, except by following the terms of the trademark license, including paying royalties for use of the Project Gutenberg trademark. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the trademark license is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. Project Gutenberg eBooks may be modified and printed and given away—you may do practically ANYTHING in the United States with eBooks not protected by U.S. copyright law. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution.
START: FULL LICENSE
THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK
To protect the Project Gutenberg™ mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase “Project Gutenberg”), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg™ License available with this file or online at www.gutenberg.org/license.
Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg™ electronic works
1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg™ electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg™ electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg™ electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.
1.B. “Project Gutenberg” is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg™ electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg™ electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg™ electronic works. See paragraph 1.E below.
1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation (“the Foundation” or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg™ electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is unprotected by copyright law in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg™ mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg™ works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg™ name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg™ License when you share it without charge with others.
1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg™ work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country other than the United States.
1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:
1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg™ License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg™ work (any work on which the phrase “Project Gutenberg” appears, or with which the phrase “Project Gutenberg” is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed:
This eBook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook.
1.E.2. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is derived from texts not protected by U.S. copyright law (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase “Project Gutenberg” associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg™ trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9.
1.E.3. If an individual Project Gutenberg™ electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg™ License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work.
1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg™ License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg™.
1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg™ License.
1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg™ work in a format other than “Plain Vanilla ASCII” or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg™ website (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original “Plain Vanilla ASCII” or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg™ License as specified in paragraph 1.E.1.
1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg™ works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg™ electronic works provided that:
• You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg™ works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg™ trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, “Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation.”
• You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg™ License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg™ works.
• You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work.
• You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg™ works.
1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg™ electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the manager of the Project Gutenberg™ trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below.
1.F.
1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread works not protected by U.S. copyright law in creating the Project Gutenberg™ collection. Despite these efforts, Project Gutenberg™ electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain “Defects,” such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment.
1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the “Right of Replacement or Refund” described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg™ trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg™ electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH 1.F.3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE.
1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem.
1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you ‘AS-IS’, WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTABILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg™ electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg™ electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg™ work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg™ work, and (c) any Defect you cause.
Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg™
Project Gutenberg™ is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life.
Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg™’s goals and ensuring that the Project Gutenberg™ collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg™ and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation information page at www.gutenberg.org.
Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non-profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation’s EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state’s laws.
The Foundation’s business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation’s website and official page at www.gutenberg.org/contact
Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
Project Gutenberg™ depends upon and cannot survive without widespread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine-readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS.
The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit www.gutenberg.org/donate.
While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate.
International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
Please check the Project Gutenberg web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: www.gutenberg.org/donate
Section 5. General Information About Project Gutenberg™ electronic works
Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg™ concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For forty years, he produced and distributed Project Gutenberg™ eBooks with only a loose network of volunteer support.
Project Gutenberg™ eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as not protected by copyright in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
Most people start at our website which has the main PG search facility: www.gutenberg.org.
This website includes information about Project Gutenberg™, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.