Title: Inicios da Renascença em Portugal: Quinta e Palacio da Bacalhôa em Azeitão, monographia historico-artistica
Author: Joaquim Rasteiro
Release date: November 6, 2020 [eBook #63655]
Language: Portuguese
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INICIOS DA RENASCENÇA EM PORTUGAL
QUINTA E PALACIO DA BACALHÔA
EM
AZEITÃO
MONOGRAPHIA HISTORICO-ARTISTICA
POR
JOAQUIM RASTEIRO
Membro da commissão dos monumentos nacionaes
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1895
A quinta de Vila Fresca foi paço real. Foi comprada pelo infante D. João, filho de D. João I, em 1427. Herdou-a sua filha, D. Brites, mãe do rei D. Manuel, que alargou as casas aí construídas e as usou durante as inúmeras paragens de repouso feitas no percurso entre o seu ducado de Beja e a corte.
Com Brás de Albuquerque—a quem o rei D. Manuel mandou mudar o nome para o do seu pai, Afonso de Albuquerque, para que a lenda do grande conquistador da Índia se eternizasse—esta quinta de recreio transformou-se numa verdadeira homenagem ao herói do Oriente. Num programa renascentista, perfumado pelos ventos das especiarias, enaltecem-se “aqueles que da lei da morte se foram libertando”, honrando a figura do Grande Albuquerque. Nesses longínquos tempos do século XVI construíram-se casas dedicadas aos prazeres da vida, juntaram-se espaços simbólicos e plantou-se uma vinha.
O vinho, símbolo de ressurreição, da natureza que se renova, dá uma prova de eternidade. O Bacalhôa continua os desejos idealizados por Brás de Albuquerque. Casa o prazer da contemplação com o gosto do eterno.
O extremo prazer de mistério e de descoberta, que ao longo dos últimos anos me tem feito viver uma dedicação especial ao Palácio e Quinta da Bacalhôa, levou-me a passar um pouco da sua história, através destes exemplares que partilho consigo.
Deste momento artístico de maior relevo em Portugal, apresentamos nesta oferta, o passado, o presente e o futuro da sua história com as verdadeiras reproduções das imagens existentes.
Convido-o a saborear os famosos vinhos do Palácio da Bacalhôa e Quinta da Bacalhôa, mostrando que o Palácio e Quinta da Bacalhôa continuam a marcar a história contemporânea de Portugal.
J. M. R. Berardo.
Não foi meu propósito fazer um livro. A admiração estranha pelas edificações da quinta de Albuquerque, filho, chamou os meus reparos; enamorei-me de tudo aquilo, busquei conhecer-lhe a urdidura geral, e estudar os acessórios, auxiliando-me das publicações estrangeiras ou portuguesas, que podiam servir-me e havia à mão; inquiri a história do edifício, e de tudo tomei notas para própria lição. Trabalho tecido a furto nos momentos de ócio, vindos de longe a longe, não tinha pretensões de qualquer espécie, mas poderia aproveitar aos curiosos, por encontrarem junto o que estava disperso por muitos lugares. Amigos meus incitaram-me à publicação daquelas notas, e o Jornal do Comércio quis ser benévolo para comigo, aceitando uma série de artigos, que estampou em 1892. Os meus bons colegas da commissão dos monumentos nacionais julgaram que naqueles artigos alguma coisa de aproveitável podia haver, e ordenaram a sua refundição a modo de monografia, como vai aparecer.
Tanto favor e bom querer impõem-me o devido reconhecimento.
Azeitão, 1895.
Joaquim Rasteiro.
O palácio e a quinta da Bacalhôa, em Azeitão, formam só por si um monumento artístico da mais alta significação em Portugal. Desconhecido dos amadores do belo, ignorado dos mestres da arte, não sonhado até por aqueles a quem competiria a conservação de um monumento, que à nação devia pertencer, desprezado largos anos pelos proprietários, resta por estudar, e já tendia a desaparecer de todo aquele facho único, que pode lançar luz sobre um período escuríssimo das artes em Portugal, e em que se produzia a grande revolução artística chamada a Renascença.
Aquelas edificações não têm só o mérito de nos mostrarem o alvorecer das artes, mas as construções primitivas refeitas pelo filho de Albuquerque, o Grande, continuam a história da arte por quase todo o século XVI, dando-nos exemplares formosos do gosto da época nos lineamentos gerais, e especímenes cerâmicos das mais variadas espécies, ao passo que nos fornecem testemunhos irrefutáveis das aptidões artísticas de obreiros hábeis, mas desconhecidos e de outros, que, sem estas provas, não podiam ser bem apreciados.
Na Itália, a arte moderna, com campeões valorosos como Brunellesco, Alberti e Michelozzo, ainda sentiu por muito tempo resistência à sua implantação.
Era dura a transição. De uma arquitetura toda fantasiosa e brincada passava-se à acentuação das linhas, à subordinação a regras e preceitos definidos. Não bastava calcular resistências, encher superfícies de[7] caprichosas edificações, que se levantavam até onde o obreiro mais atrevido tinha vertigens, impunham-se as regras de simetria e ordem, as proporções colhidas dos monumentos mais celebrados, subordinava-se o traçado do edifício a um todo homogéneo, formando, como o homem, um ser único e simétrico nas suas partes.
A coluna e o arco de pleno cimbre vinham proscrever a ogiva; o botaréu ia ser excluído, deixando em seu lugar superfícies planas; os coruchéus, que pareciam querer furar as nuvens, eram substituídos pelas cúpulas hemisféricas, que nada têm de alteroso.
A agulha medieval com a sua ponta agudíssima, indicando as regiões siderais, conduz a vista ao infinito e busca comunicar com a divindade; a curva, a meia esfera, elevando-se de um ponto para cair depois no nível de onde nasceu, como que limitam os domínios do homem, pondo termo à sua atrevida audácia. O arrojo cede o lugar à ruão fria, e o homem concentra-se no seu meio, só buscando Deus no espírito, entregando-se ao mundo que o cerca, e renunciando a essas loucuras sublimes dos tempos cavalheirosos em que pela audácia, pelos maiores cometimentos se havia de tocar o que houvesse de maior.
A alta arquitetura e as artes decorativas, que, na Idade Média, quase só estavam ao serviço da religião, elevando templos de uma majestade esplendorosa, iam fabricar habitações aristocráticas de aprimorado gosto e ornamentá-las de esculturas delicadas. O solar medieval com as suas torres alterosas, armadas para a defesa desde a raiz até às cimeiras, prenhe de masmorras, edificado em sítio forte, ia ficar ermo e ser trocado pelo palácio assente na praça mais ampla da cidade, no vale mais amenom serpenteado por mansos regatos, que só davam viço ao vergel.
A grande revolução artística tomara arraiais em Florença e, pouco a pouco, ia conquistando os estados limítrofes. A Lombardia, vizinha daquele centro artístico revolucionário, resistiu por muito tempo à influência dos novos princípios. Outros estados, em que se achava dividida a península itálica, pretenderam ligar a velha à nova arte, e com as linhas arquiteturais dos dois sistemas formaram um estilo híbrido, que quebrava toda a subordinação às duas escolas, não satisfazendo os preceitos da velha, nem[8] da arte renascida, deixando a descoberto as suturas, que não deviam aparecer ferindo a vista do que buscava a beleza harmoniosa.
A Itália, bebendo da Grécia o gosto do belo, tornara-se a pátria das artes, e o génio artístico tomou por tal modo posse daquela raça escolhida, que nem as desordens e calamidades, que por muito tempo lhe pesaram, pôde destruir. À aptidão de seus filhos, à índole comercial das repúblicas, que lhe alcançaram riqueza, auxiliadas pela situação do país, deve a Itália o florescimento das artes no cair da Idade Média.
Os Medicis, os Sforza, os Malatesta, os duques de Urbino, os opulentos banqueiros, os papas, os prelados das casas religiosas ricas, as administrações das catedrais, todos à porfia auxiliavam o desenvolvimento das artes, construindo luxuosos palácios, sumptuosos templos e outras soberbas edificações, e para cada uma destas obras chamava-se uma coorte de artistas desse exército numeroso, disperso por toda a península.
A Renascença já tinha invadido com vário sucesso todos os estados cingidos pelo Adriático e pelo Mediterrâneo, em alguns já ficava em pleno domínio, mas não lograva ainda transpor os Alpes.
Portugal achava-se sob a influência flamenga e resistia à invasão com os demais países, em que ela dominava. Com o advento de D. João II ao trono entrava um período de paz, e o novo imperador dava às forças do país uma benéfica direção, encaminhada a seguir o desenvolvimento intelectual que ia pela Europa. As espadas de África só serviam ao respeito do herói de Toro, poucos ginetes fiéis bastavam para guarda da sua pessoa. Os arquitetos de Santa Maria da Vitória eram extintos, a escola morta e os discípulos, que ainda restavam, por medíocres, teimavam em conservar as tradições rudimentares recebidas, ou recusavam-se a seguir a corrente, que ameaçava levar no seu turbilhão a velha arte.
O caminho da Índia ainda não era rasgado, a fama das suas riquezas ainda não podia seduzir os ânimos e arrastá-los para o militarismo comercial. Para as explorações marítimas poucos homens bastavam, que[9] mais para ali os levava a glória de vencer os elementos, já que não podiam triunfar de inimigos, do que um pensamento, uma ideia que dominasse o espírito.
Falava-se dos expedicionários ao desferrar das frotas, ou durante os aprestos da expedição, depois recebiam-se as novas apenas como notícias de pessoas, que se haviam julgado perdidas. Entre a saída e a notícia mediava grande espaço; na corte só o rei se ocupava dos que iam em demanda do desconhecido, e a esperança do sucesso só de longe em longe vinha levantar o pensamento para aquelas empresas. Poucos da corte também seriam capazes de compreender o alcance de negócios, a que não eram afeitos, ou que o seu acanhado espírito não podia penetrar.
A revolução pacífica, que ia na Itália, chamava as atenções dos menos ocupados, cativava os ânimos, em que o bailo tinha acesso, atraía algum espírito esclarecido, e nenhum o era mais do que o rei, nem se arrojava mais além do seu meio.
Os arquitetos só traçavam edifícios desengraçados; os artífices já não talhavam na pedra finos rendilhados, não levantavam coruchéus elegantes, nem baldaquinos de aprimorado lavor. O génio artístico esvaíra-se.
Urgia levantar as artes, dar-lhes impulso, fazê-las sair do torpor, em que se tinham imergido. D. João II, grande em tudo, tinha a paixão artística; longe era a Itália, ficavam de permeio os Pirinéus e os Alpes, as comunicações eram demoradas, as notícias distanciadas, mas ao rei aprazia ouvir falar do que ia por aquele país fadado para as artes, dos príncipes italianos, mecenas dos artistas, e mostrava inveja destes personagens, desejando ter no seu reino daqueles génios famosos, como noutras épocas quereria ter babéis e experimentados capitães.
No desejo do desenvolvimento intelectual do país, D. João II enviava ao estrangeiro mancebos prometedores a cursar as letras e as artes, e tanto era o seu amor pela pintura, que nos seus raros ócios fazia desenhar em sua presença, por um moço da câmara, os objetos que a sua fantasia inspirava, e mostrava inveja dos conhecimentos artísticos do seu parente, o imperador Maximiliano, e de outros príncipes[1].
Como Júlio II, como os Medici e outros senhores italianos, que não desdenhavam discutir com os seus arquitetos as minúcias de um traçado, João II de Portugal dava a Pantaleão Dias as linhas gerais do túmulo de S. Pantaleão, que projetava para a catedral do Porto. A magnificência dos Medici e o seu aprimorado gosto andavam em fama. D. João II viu que ninguém melhor do que um dos daquela família podia fazer a escolha de mestre capaz de levantar as artes num país em que elas estavam prostradas, como em Portugal, e foi a Lourenço «o Magnífico» que o rei se dirigiu, pedindo-lhe mestres que pudessem dar lição e ensinamento aos artistas portugueses, traçando e presidindo à execução de trabalhos, que servissem de molde para outras obras e areassem uma escola de artes.
Lourenço de Medici enviou Andrea Contucci, dito Sansovino, célebre plástico, bom desenhador e famoso perspetivo[2], que estaria então na força da vida e em toda a pujança do seu talento. Contucci veio para Portugal por 1485, e demorou-se no país até à morte de D. João II, tendo, entre outras obras, levantado um palácio para o rei, flanqueado por quatro torres.
Já houve quem quisesse achar na Bacalhôa rastos do Sansovino. Nada há que venha de reforço a este suposto, firmado apenas na valia (que a tem) do seu andor; nada há também que se lhe anteponha. «Quem quer que fosse o arquiteto era de primeira ordem. Há detalhes que revelam mais do que um simples talento, tem uma palpitação de génio.»[3]
Se não fosse Sansovino o autor do projeto, no tempo que esteve em Portugal, não seria extraordinário que ele, ou outro mestre de Itália, delineasse no seu país, e enviasse para aqui o traçado e os planos do palácio e quinta. Brunellesco, Alberti, Sangallo e outros arquitetos italianos encarregavam-se destes trabalhos.
Não creio que a Bacalhôa seja contemporânea destes homens, como também não creio que nascesse a meados do século XVI. Ao pé temos o palácio dos Aveiros, levantado em princípios do segundo quartel daquele[11] século, que se mostra muito posterior em estilo arquitetónico ao palácio da Bacalhôa.
No Aveiro, está estampada a Renascença clássica, pura nas suas linhas janela com cornija e frontão com busto no tímpano, a mezzanina, pequenos claros, pórtico emoldurado em colunas dóricas com entablamento da mesma ordem, cunhais rústicos. Na Bacalhôa vemos o torre de transição, um estilo fugitivo, a janela com cornija e sem ela, emoldurada em azulejos policromos e intervalada por largos cheios.
A Bacalhôa será talvez a edificação em que se estreou em Portugal o estilo arquitetónico da Renascença, estreia de transição, dando-se de mão à ogiva e a quanto lhe era ligado. Nada tem do estilo manuelino, que ainda não era criado, mas também não obedece a qualquer estilo puro. O palácio é sui generis, talvez a arte Fiorentina transportada abruptamente para aqui, esfumada de umas tintas leves do solar medieval nos torreões, em que se substituiu pela cúpula hemisférica em gomos e com pirâmide no fecho, as obras de defesa, que coroavam os adarves dos castelos senhoriais.
A Bacalhôa será uma correção ao palácio acastelado, quase medievo, construído por D. João II em Alvito para o seu escrivão da puridade, João Fernandes da Silveira. A disposição das salas e aposentos dos dois palácios aproximam-se. A Bacalhôa tem a menos as bonitas janelas geminadas que a nova arte proscrevera, mas em troca deram-lhe as galerias abertas em arcadas, e a mais a elegância e regularidade das fórmas, as tarjas azulejadas a fazer sobressair os portões, e as cúpulas hemisféricas a realçar as torres cilíndricas.
E já que falei do palácio acastelado de Alvito seja-me lícito também apresentar uma ideia, que apenas posso sustentar com alguns raciocínios.
Jorge Vazari, dando-nos conta de Contucci, diz-nos: lavoró per quel re (di Portugallo), noite opere di scultura e d’arckítettura, e particolarmente un bellissimo palazzo con quattro torri ed altri edifici.[4]
O Sr. Haupt supõe que este palácio traçado por Andrea Contucci seja o dos barões em Alvito[5]. E porque não será o da Bacalhôa? Por ter este apenas[12] três torres? Pode estar incompleto, e também o de Alvito tem cinco torres e não quatro.
Por não ser propriedade do rei? Mas era da sogra, mãe da rainha, e o de Alvito, conforme uns, foi feito por D. João II; segundo a inscrição lapidar, posta sobre a porta, foi feito pelo primeiro barão de Alvito a mandado do rei.
O estilo arquitetónico do palácio da Bacalhôa, mais-valia de uma época de transição e de um artista italiano hábil e imaginoso, do que o de Alvito, mole robusta e pesada, aonde a nova arte se não deixa antever, e preso pelos traços gerais e peças componentes ao passado que ainda o domina.
A sorte futura é que foi comum às duas edificações e as tornou irmãs, a ruína e o abandono.
Atrás apresento a ideia de que o traçado do palácio e quinta da Bacalhôa, se não é de Contucci, poderia ter vindo da Itália, contudo não posso sustentá-la firmemente; o artista, que tudo delineou, tinha conhecimento pleno do sítio para dar orientação às construções, aproveitar as disposições do terreno e acomodar os reservatórios de água à situação das nascentes, fazendo contribuir as águas para embelezamento das edificações e aproveitamento das terras como agente agrícola.
Conto a Bacalhôa como obra do último quartel do século XV, mandada executar por D.ᵃ Brites, filha do infante D. João, mestre de Santiago, e mulher do infante D. Fernando, porque esta princesa, dama caprichosa e de grandes teres, possuiu a propriedade por largos anos e no período de maior efervescência da revolução artística de Itália, país que atraía, por isso todas as atenções das altas classes e a que D. João II recorreu para o restabelecimento das artes no seu reino. D. Brites amava com extremo o seu neto, filho do duque de Viseu, D. Diogo; deu-lhe por ocasião do seu casamento a Bacalhôa, e parece-me mais havê-lo feito como oferta de um mimo fino, do que como dom valioso pelas rendas.
Não se me afigura que Albuquerque, filho, levantasse o palácio, porque a projetá-lo em 1528, ano da compra, teria, quando não mais, ainda uns laivos manuelinos; a erguê-lo em 1554, data lançada sobre o pórtico do norte, seria todo Renascença, porque, na segunda metade deste século, era[13] omnipotente no país o classicismo puro, em que já se tinham alistado os artistas nacionais. O pórtico, a que me refiro, é o que é de Afonso.
Se nas janelas do palácio vemos a nova arte, nas torres encontramos o consórcio do passado com o presente, significando época de transição, as galerias sob arcadas mostram-nos a lógia italiana, e por isto pode bem crer-se que o palácio fosse delineado por artista escolhido pelo Medici, ou por ele enviado a Portugal.
Os esforços de D. João II para o restabelecimento das artes no reino não foram improfícuos. A lisonjeira de muitos e a ilustração de alguns vieram-lhe de auxílio. A sociedade mais culta do tempo e os cortesãos compenetravam-se do sentir do rei, as atenções fixavam-se no movimento artística do Itália, todos colhiam notícias das criações dos mais distintos escultores, das construções dos mais hábeis arquitetos, e andavam na boca de todos os nomes dos mais bizarros senhores, que faziam erguer sumptuosos palácios, luxuosas e elegantes valas, ornando-as de bem modeladas esculturas, de bem talhadas estátuas e enchendo-as de preciosas coleções de objetos de arte.
Os mestres estrangeiros trouxeram para Portugal boa lição, que aproveitou, vindo a aparecer no seguinte reinado um género arquitetónico de transição, que modernamente se chamou estilo manuelino.
Não quebrou a nova criação com todas as tradições da velha escola, mas também se não prostrou humilde aos pés da vencedora. Foi uma capitulação em que os vencidos saíram com todas as honras da guerra.
Belém, a Misericórdia de Lisboa e outras construções de menos quilate são o desfilar da guarnição capitulada em presença do vencedor assombrado de tão grandes brios, louvando-se talvez de ter dado lugar ao famoso sucesso, se não sentindo impulsos de alistar-se nas fileiras dos que lhe passavam em frente.
A criação portuguesa levou vantagem às mais alianças arquitetónicas ensaiadas em alguns estados italianos renitentes às lições da nova escola.
Veneza tinha tentado aliar a ogiva e o pleno cimbre, a ornamentação gótica, a oriental e a clássica; mas a criação portuguesa levou-lhe a palma, alcançou originalidade e envolveu de tal modo as formas, amalgamou e fundiu tão unidamente os moldes, empregou com tanta propriedade o cordame, que parecia já simbolisar as nossas empresas marítimas, para ligar e estreitar partes, que tenderiam a desunir-se, para atar e prender nervuras, que mais tem de um estilo novo, do que é filho mestiço de quanto até ali era criado.
Afortunado D. Manuel! A mais benevolente estrela parece ter alumiado o seu nascer. Seu cunhado Fernando de Bragança comprou-lhe com a cabeça a liga dos grandes, seu irmão Diogo abriu-lhe com imprudências o caminho do trono, o veneno dos sicários, seus cúmplices, sacudiu para o túmulo o cadáver da princesa D. Joana, que poderia embaraçar-lhe o trânsito e prostrou sem vida D. João II, seu cunhado, primo, protetor e rei, vindo assim o famoso bandoleiro duque de Beja a ter um reino, a refocilar os seus instintos beluínos na viúva do filho malogrado da sua vítima, a encontrar criada e escolhida uma pleiade de grandes homens, como Albuquerque e outros, que lhe deram o senhorio de um novo mundo, e a ter a paternidade de um código de leis já preparado, e de um estilo arquitetónico e ornamental nascido dos perseverantes e inteligentes esforços do rei famoso, do homem, que ele, sua irmã e sequazes lograram vitimar.
Para se estabelecer base para um estudo sobre a Bacalhôa, será útil fazer-se a história e génese da propriedade.
Nos tempos do rei D. João I, era seu monteiro-mor das matas de Azeitão em Ribatejo, João Vicente, que trazia emprazada em vida de três pessoas uma quinta em Azeitão que partia de um cabo com Afonso Anes das Leis e do outro com Nuno Martins. Metade da quinta pagava duas dobras de oiro de foro à coroa, o restante era foreiro. João Vicente estava velho, cego e pobre, sem meios de cultivar a quinta e nem os foros já pagava.
D. João I comprou o domínio direto a Diogo Feio e tomou para si toda a quinta, havendo o enfiteuta João Vicente por desatado do foro.
Em seguida emprazou em três vidas toda a propriedade a Álvaro Anes, seu barbeiro por duas coroas de oiro por ano. A carta é datada de Évora, 7 de maio da era de M.IIIIC.LIX (ano 1421).[6]
Seis anos depois, o mesmo rei deu licença a Álvaro Aniles para vender o emprazamento ao infante D. João, seu filho, por carta datada de Sintra a 4 de setembro de 1427. Esta venda foi por vinte e oito mil reais brancos por uma peça de pano de Inglaterra, conforme o instrumento feito e assinado por Gil Esteves e pelo infante em Setúbal no pustimeiro dia de setembro de 1427.
O infante teve a quinta pelo antigo foro de duas coroas de oiro[7], até que seu irmão D. Duarte lhe fez «mercê pura e irrevogável doação da dita quinta de juro e de herdade, de suas rendas, direitos, entradas, saídas e pertenças deste dia para todo sempre para ele e todos seus herdeiros e sucessores que depois dele vierem, não embargando o que seja da coroa. E portanto lhe mandamos dar esta carta assinada por nós e selada pelo nosso selo de chumbo. Dante em Sintra XXVIII dias de agosto—Lourenço de G.».
D. João II, de Sintra a 7 de dezembro de 1485, e D. Manuel, de Alcochete a 24 de julho de 1496, confirmaram esta doação, estando na posse da propriedade a infanta D. Brites, sogra do primeiro e mãe do segundo.
No dia 20 de junho de 1490, D. Manuel, em Setúbal, tinha dado a sua mãe uma carta de privilégios para a sua quinta e bens de Azeitão, privilégios que compreendiam os caseiros, lavradores, arrendadores dos bens, lagareiro do lagar de azeite e mordomo e escrivão, que estivessem na quinta. A carta é dirigida aos juízes e justiças da comarca de Azeitão e ao ouvidor dela, e isenta os privilegiados de irem com presos, ou com dinheiros, de serem dados por besteiros do conto, de serem tutores ou curadores ou tutores de pessoas orfãs, salvo se as tutorias fossem lídimas, do lançamento de quantias posto que para elas tivessem bens e de servirem em nenhumas[16] guerras por mar nem por terra. O rei proíbia que lhes tomassem roupas de aposentadoria, que pousassem com eles em suas casas de morada, adegas e cavalariças, que lhes tomassem pão, vinho, galinhas, gados, bestas de sela ou de albarda, e que lhes constrangessem seus carros para nenhuns serviços, salvo quando o rei estivesse em Azeitão[8].
A 22 de agosto de 1508, D. Manuel, de Sintra expede a seguinte carta: «D. Manuel etc. querendo fazer graça e mercê a D. Brites, minha sobrinha, filha do condestável, que Deus tem, meu muito amado e prezado sobrinho, mando aos juízes e justiças da dita comarca de Azeitão e ao ouvidor dela, que guardem os privilégios da quinta de Azeitão e dos caseiros, lavradores, foreiros, arrendadores, mordomo, escrivão e lagareiro do lagar de azeite, sob pena a qualquer que contra eles venha de seis mil reais, metade para os cativos e metade para o acusador.»[9]
Pelo que atrás exponho se vê que a quinta da Bacalhôa foi possuída pelo infante D. João, mestre de Santiago, durante quinze anos decorridos de 1427 à sua morte em 1442, que deste passou para sua filha D.ᵃ Brites, mulher do infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V, que a possuíu sessenta e quatro anos, desde o finamente de seu pai até 1506, data da sua morte.
Esta dama em 1500 interveio no contrato nupcial de seu neto, o condestável D. Afonso, filho do duque de Viseu, D. Diogo, com D.ᵃ Joana de Noronha, irmã do segundo marquês de Vila Real, assegurando o cumprimento das condições estabelecidas com certos bens, que passariam por sua morte para o neto. D. Afonso faleceu em 1504, ainda em vida da infanta sua avó, e aqueles bens, com a quinta de Azeitão e pertenças, vieram cair em D.ᵃ Brites de Lara, filha do condestável, a qual, em setembro de 1521, desmembrou da Bacalhôa a quinta das Torres e a deu em dote de casamento a D.ᵃ Maria da Silva, filha de Vasco Eanes Corte Real.
D.ᵃ Brites de Lara nasceu por 1502. Era bela, rica e, ao que parece, não desdenhava adorações. Prometida esposa do conde de Alcoutim, destinada ao primogénito dos Braganças, aceitou os galanteios do duque D.[17] Jaime, teve amores suspeitosos com o príncipe herdeiro, e no final veio a casar em fins de 1520 ou em 1521 com o seu primeiro desposado D. Pedro de Menezes, conde de Alcoutim e que foi terceiro marquês de Vila Real.
Vivendo no paço, ou com sua mãe (de quem encontro noticia até 1515), criança, ou ocupada de renovados amores, não seria D.ᵃ Brites de Lara quem pensasse na construção do palácio, e tão pouco quereria ao morgado, que, em 1 de dezembro de 1528, vendeu a Afonso de Albuquerque, filho, por quatro mil cruzados de ouro a sua quinta em Azeitão da banda de além, em Ribatejo, com todos os seus paços, casas, adegas, lagares, terras de pão, vinhas, pomares, olivais, pinhais, matos e terras baldias, pascigos, águas...
Esta escritura foi feita no ano de BCXXBIII, na cidade de Lisboa, nas casas do muito ilustre príncipe e muito excelente senhor, o senhor marquês de Vila Real, estando aí de presente o dito senhor marquês e a muito ilustre princesa e muito excelente senhora, a senhora D.ᵃ Brites, marquesa de Vila Real, sua mulher... O preço de quatro mil cruzados de ouro, que valem um milhão e seiscentos mil reis, foi pago por Afonso de Albuquerque por uma grande soma de vinténs e tostões de prata e algumas peças de ouro... E porque a quinta era do dote da marquesa, precedeu licença do rei, que no mesmo alvará, datado de 31 de outubro, permite que os marqueses firmem o contrato com juramento, sem embargo da ordenação no livro quarto, que defende que se não façam contratos jurados.[10]
Afonso de Albuquerque, que já ao tempo era casado com D.ᵃ Maria de Noronha.
Como se vê, a quinta era a Bacalhôa, nome relativamente moderno, mas por ele a tenho sempre designado para mais fácil inteligência.
Tocarei agora um ponto subordinado ao assunto, e que poderá ajudar a demonstração de que os paços, vendidos pelos marqueses de Vila Real,[18] seriam levantados pela infanta D.ᵃ Brites, filha do infante D. João, mestre de Santiago.
Começarei por uma interrogação. Teria alguma vez a quinta nome próprio?
Responderei que assim o creio.
Silva Túlio, tratando da Casa dos Bicos[11], chamou à Bacalhôa «quinta do Paraíso, confundindo-a com a propriedade na Alhandra, onde nasceram Afonso de Albuquerque, o Grande, e seu filho Brás, depois apelidado do nome de seu pai.
Eu, porque nunca encontrei escrita, nem conheci tradicionalmente designação própria disse que a quinta apenas tem sido chamada do nome do sítio, ou dos possuidores, assim:
—Quinta de Azeitão em Ribatejo, por ser aqui situada.
—Quinta de S. Simão, por ter próxima uma ermida d’esta vocação.
—Quinta da Condestablessa, durante a administração da viúva do condestável D. Afonso, na menoridade de sua filha.
—Quinta de Afonso de Albuquerque, depois da compra por ele feita aos Vila Real.
—Quinta do Bacalhdo, pelo casamento de D. Jerónimo Manuel—o Bacalhau—com D.ᵃ Maria de Mendonça.
—Quinta da Bacalhôa, desde a administração de D.ᵃ Francisca de Noronha, na interdição de seu marido, João Guedes de Miranda Henriques.
Todas as designações que cito, conheço de muitos documentos escritos; contudo, creio que primitivamente, isto é, pelas edificações da infanta D.ᵃ Brites, se chamaria Vila Fraiche. Em Azeitão e junto da Bacalhôa, em terrenos do morgado, há uma povoação, não de muito velha data, chamada Vila Fresca. Quando em 1759 se formou o concelho de Azeitão, foi creada em vila a aldeia de Vila Fresca[12]. Transferida em 1786 a sede municipal para a aldeia de Nogueira, reapareceu a antiga denominação aldeia de Vila Fresca[13].
Do século XV nenhum documento conheço que nomeie a aldeia de Vila Fresca, enquanto que, para fazer conhecida a situação de uma propriedade, se cita a quinta da Condestablessa.
Depois, no século XVI, encontra-se escrita aquela designação sempre a modo de se aproximar da pronúncia francesa: Vila-Freie—Vila-Freixe—Vila-Frêche—Vila-Freiche.
O teatino D. Manuel Caetano de Sousa, que se não nasceu nesta aldeia por ali perto foi creado, diz em fins do século XVII, que este Freche é do francês Fraiche. O equivalente português Fresca começa a aparecer já na segunda metade do século XVIII e só é geralmente admitido no século presente.
Vila, como é bem sabido, não designava, mesmo entre os portugueses, a povoação sede municipal, mas a quinta com casarias, e assim se dizia vila urbana ou vila rústica, conforme era habitação de senhor ou predominavam nela as oficinas agrárias[14].
A vila italiana, essa, vem até nossos dias, e modernamente vemos ir-se entre nós também recebendo a locução para designar uma casa de campo com jardim, horta, etc.
Aldeia, é bem sabido que não significava, como hoje, apenas a pequena povoação rural, mas era quase o monte alentejano, um agrupamento de construções para acomodação do pessoal dependente da quinta e compreendendo as oficinas. Era cavaleiro vilão, segundo os antigos forais, o homem que possuia uma aldeia, uma junta de bois, 40 ovelhas e um burro[15].
A aldeia de Vila Fresca era pois o agrupamento de habitações junto da quinta-Fresca, o lugar de residência dos caseiros, lavradores, foreiros,[20] arrendadores e mais pessoal dependente daquela propriedade e participante dos seus privilégios e franquias.
A Vila-Fraiche, como hoje se escreve, ou a Vila-Frêche, no francês aportuguesado de então, seria a quinta com paços da infanta D.ᵃ Brites[16].
As designações francesas e as divisas nesta língua foram muito em uso nos séculos XIV e XV. Eduardo III de Inglaterra, avô da rainha D.ᵃ Filipa de Portugal, instituindo a ordem da Jarreteira, deu-lhe por legenda lionny soit qui mal y pense. Do mestre de Avis a letra da empreza foi: Il me plait pour bien. A do regente D. Pedro, Désir. A do infante D. Henrique, seu irmão: Talant de bien faire. A do infante D. Fernando: Le bien me plait. A do infante D. João, pai de D.ᵃ Brites: J’ai bien raison.
Ora sendo por aqueles tempos tanto da boa sociedade a língua francesa, sendo a preferida pela família de Avis para as suas empresas, pode bem crer-se que D.ᵃ Brites foi com a moda e com o uso dos seus, e chamou à sua quinta Vila-Fraiche, a que a abundância, de água, a exposição ao norte e a situação da quinta e casa na queda dos montes bem autorisava. Tenho, pois, que o primeiro nome da Bacalhôa, pela posse de D.ᵃ Brites, foi Vila-Fraèche, ou Fresca, servindo a locução portugueza e a palavra vinct seria a designação que o architecto italiano lançou sobre os desenhos.
A infanta D.ᵃ Brites gozou avultadas rendas; seu marido, o infante D. Fernando, duque de Viseu e de Beja, foi o senhor mais rico do país; era gastador e perdulário, largando loucamente os seus haveres. D.ᵃ Brites em vinte e três anos de convivência com ele teve tempo à farta para lhe tomar os usos, se já lhe não eram peculiares; foi faustosa, dissipadora, dadivosa em demasia e, pelas facilidades de haver, não a embaraçavam quantias. Seu cunhado Afonso V foi largo para a casa da infante; seu genro, João II, desejou sempre agradar-lhe, e esforçou-se por lhe matar o ressentimento dos atos, que razões de estado e a própria conservação o fizeram praticar; seu filho Manuel, com consenso real, dava-lhe a mãos largas as rendas da ordem[21] de Cristo, cujo mestrado tinha, corno regedor e administrador e, depois de alcançar o trono, concedia dadivosas liberalidades a sua mãe.
O livro 1.º dos Místicos abunda em mercês e concessões de grossas rendas a D.ᵃ Brites; o estado era aquela família de Bórgias, todos igualmente queriam parte nos despojos da sua vítima[17].
Numa carta de Sintra a 5 de outubro de 1485, D. Manuel, duque de Beja, senhor de Viseu, da Covilhã, de Moura, de Serpa, das ilhas da Madeira, dos Açores e de Cabo Verde, condestável de Portugal, como regedor e governador da ordem da cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, doou a sua mãe todas as rendas de bens dependentes da ordem, e que ela gozava, por dois anos além da sua morte para descargo da sua (da infante) consciência e pagamento de suas dívidas. No dia 3 de abril do mesmo ano, em Beja, já se tinha obrigado, na mesma qualidade de governador da ordem de Cristo, ao pagamento das dívidas de seu pai, o infante D. Fernando, e entre os credores acham-se um Abraão Beacar e outros tratantes, que lhe tinham feito certos empréstimos, já avolumados por D.ᵃ Brites, e tomado alguns arrendamentos pagos anticipadamente. As dívidas ameadas, segundo palavra de Pero Afonso, montariam a seiscentos mil reais.[18]
A carta de Sintra foi confirmada por D. Manuel, já rei, no dia 4 de julho, e a de Beja no dia 5 do mesmo mês de 1496, ainda não passados seis mezes da sua entronização, e ambas datadas de Barra-a-Barra em frente de Lisboa, para onde D. Manuel fugira da peste, temendo comparecer no tribunal de Deus, quando ainda o cadáver de seu primo D. João II não era extinto.
D.ᵃ Brites, vivendo na corte de um rei artista por génio, frequentando aquele meio, em que tanto se falava do que ia por Itália em matéria de arte, da habilidade e perícia dos mestres, do gosto aprimorado e magnificência dos príncipes Mecenas das artes, que contribuíam em grande para o seu desenvolvimento, sabendo que aqueles príncipes aplicavam avultadíssimas somas a faustosas construções, em que o novo estilo à larga se expandia;[22] que os maiores senhores protegiam e honravam os artistas de verdadeiro mérito, convivendo quase familiarmente com os mais celebrados, como que transformando os seus palácios em academias e museus; não podia D. Brites, opulenta, faustosa, gastadora, princesa e mãe de uma rainha, deixar de querer imitar aqueles que eram louvados e prendiam as atenções da mais alta e culta sociedade.
D. João II tinha predileção por Setúbal; a quinta de Azeitão, que o mestre de Santiago deixara a sua filha, era próxima do lugar de residência da corte, em sítio delicioso, abundante de águas e capaz de se levantar nele habitação principesca, e D.ᵃ Brites quereria ter casa vizinha da corte e condigna da sua elevada hierarquia. D.ᵃ Brites, pois, encomendaria os planos de um palácio de campo a arquiteto hábil e, não o havendo no país, vir-lhe-ia o traçado, ou um artista da Itália, e este delineou uma vila, que, em uma época de transição, saiu num género medieval, amodernado por um florentino.
Como é muito usual suceder, o lugar escolhido para a nova edificação foi o assento da antiga casa da quinta, a residência, talvez, do mordomo.
Quem atentamente observar o palácio e a quinta da Bacalhôa e os vir minuciosamente encontrará nas edificações três idades e influências das épocas. Duas casas com abóbadas ogivais, restos da habitação do tempo do monteiro-mor João Vicente, ou do príncipe D. João, mestre de Santiago, palácio e cerca torreada de D.ᵃ Brites, sua filha, construções e decoração policrómica de Afonso de Albuquerque.
As velhas casas restam encravadas no meio das outras, como o caroço daquele fruto. O palácio distingue-se pela forma cilíndrica das torres e cintas azulejadas das salas. Os inovamentos de Albuquerque tomaram a forma angular e os ornatos de barro esmaltado, os medalhões e azulejos dão-lhes lugar à parte.
O palácio não é do infante D. João, porque o estilo vai muito fora do seu tempo; a filha do condestável D. Afonso, marquesa de Vila Real, não teve ocasião para levantá-lo; resta-nos, portanto, D.ᵃ Brites para construir, e Albuquerque, filho, para reformar.
No friso do portão, que, pelo norte, dá entrada para o pátio do palácio, lê-se a seguinte inscrição: «Anno 1554—Alfonsus Albuquercus Alfonsi Magni indorum debellatoris filius—sub Joanne III Portugaliae rege condidit Anno MDLIIII.»
Esta inscrição, a fama tradicional de que a quinta e palácio haviam sido delineados sobre os traços de uma das praças da Índia portuguesa, onde o valor de Albuquerque mais brilhara (tradição que se deve ter por muito graciosa), todas as notícias escriptas, ou impressas até hoje, levaram-me a crer que quanto existia na Bacalhôa fora obra de Albuquerque, filho. A inscrição devia julgar-se coeva e testemunha irrecusável, e a falta de vestígios do paço da condestablessa, vendido pelos Vila Real, explicava-a a mim mesmo, supondo-o construção nada recomendável, que o novo proprietário arrasara para levantar fábrica aprimorada. Foi o acaso que me despertou a atenção, e me chamou a observar mais acuradamente as construções.
A queda do reboco da torre setentrional descobriu uma janela ampla e de verga semicircular, que destoa completamente das demais e mostra que a torre foi restaurada e sofreu modificação. Em baixo divisa-se uma porta de iguais, uma que comunicava a torre com o pavimento térreo do palácio. Outros vestígios foram aparecendo indicativos de alterações na primitiva edificação. Leitura mais atenta do título da compra aos Vila Real e sua confrontação com o título da instituição do vínculo, documentos distanciados quarenta anos, comparados ainda com a tombação do morgado, que descreve minuciosamente a casa e quinta, fez-me ver que na propriedade havia em todas as três épocas (1528, 1558, 1630) não só paços, mas pomares, vinha, cerca de muros e oficinas agrárias próximas, tal como ainda hoje, em ruínas.
Uma vista rápida mostra um todo unido, não sem que o olho deixe de resentir-se, como o ouvido, quando de entre um jogo de harmonias escapa um acorde dissonante e rápido. As torres circulares, ou cubelos, como lhes chama o tombo, e os edículos dos muros da quinta, comparados com as[24] construções similares do palácio representam uma só mão a lançar os primitivos traços; mas se se deixar pousar a vista sobre o objeto, que de leve a impressionou, há de notar-se alteração e modificação nos lineamentos. Se se descer a minudências, então resalta de passo a passo a reedificação e os inovamentos.
Conhecia o andar nobre do palácio; busquei, porém, examinar atentamente o interior, e notei logo que a faixa de azulejos que cinge as salas não corresponde ao que, neste género, há na parte superior da quinta.
O azulejamento destas salas é em xadrez, ou como nas lisonjas da armaria, tecido de quadrados brancos com tiras verdes ou azuis, e é sobejamente sabido que esta espécie de mosaico é anterior aos azulejos com desenhos a cores, ou em relevo. Desci ao pavimento térreo, onde nunca tinha entrado, e encontrei provas claras de outra edificação ali encerrada.
Há duas casas cobertas por abóbadas em ogiva e de arestas, cujas nervuras nascem tão próximas do chão, a não restar dúvida de que o pavimento correspondente deve achar-se muito soterrado, e de que se levantou outro sobre ele para alcançar o novo nível. Na parede que divide estas casas entre si houve um arco de volta perfeita, tecido de tijolo, cheio posteriormente de alvenaria e que a queda do revestimento descobriu.
Na varanda coberta junta, vê-se o sobrearco de uma antiga porta para as casas abobadadas, cuja soleira deve achar-se bastante funda.
Interiormente veem-se diversas comunicações de casa para casa, que foram inutilisadas ou substituídas.
Depois do primeiro achado admirei-me, como é usual, de não ter dado por outros sinais de reedificações e emendas.
A escadaria que dá entrada para o palácio tinha por guarda uns corrimãos suportados por pilares intervalados com balaústres de mármore branco, e no patamar superior ainda assim é; no médio, porém, formou-se um painel massiço, enchendo os vãos da gradinata de alvenaria revestida de azulejos de relevo, do género que mais abunda na quinta, e em tudo dissemilhante do azulejamento interior do palácio. Ainda aqui há a notar que os azulejos da escadaria são de três desenhos diferentes. No azulejamento da[25] parte superior da quinta encontram-se mesmo espécies de épocas muito distintas.
Esta alteração na gradinata da escadaria não é restauração, mas remendo. Em 1631 ainda todo o corrimão era sustentado por balaústres.
Nas duas galerias sobrepostas que olham a norte, vê-se que o estilóbata sobre o qual pousam as colunas da arcaria superior é de pedra dissemilhante da que lhe fica por debaixo, repetindo-se o facto nos arcos da galeria superior, e dando-se aqui mais a circunstância de não serem de pedra faceada os seguintes, nem terem medalhões de moldura relevada na mesma pedra, como nos seguintes das demais arcarias. A pedra destes arcos e do estilóbata é amarelada, branda e já a esboroar-se, enquanto o mais é calcário rijo e branco, ou mármore da Arrábida, ainda que pouco escolhido.
Parece ter havido aqui grande reparação, em que se não atendeu a todas as partes arquitetónicas. Uma parede de esbarro, reforçando a base da arcaria inferior, vem de ajuda a este suposto. É de crer que estes trabalhos fossem posteriores às obras de Albuquerque.
Num edículo, que encima a porta da entrada do palácio, vê-se um busto de barro de boa execução. As proporções são as naturais. Mostra um varão na força da vida, cabelo sobre curto e cuidado, barba despontada como na época de João III, o rosto oval, o nariz aquilino e a fronte espaçosa, a expressão é clara e de distinta serenidade. Veste de um tecido de malha, virando-se como gola em bicos, deixa o pescoço a descoberto. Do ombro cai até meio braço um adorno do mesmo tecido e também em bicos. Duas largas faias, como pontas de um manto, traçam-se sobre o peito, ligando-se em nós sobre os ombros talvez o diplax dos filósofos. Não faltaram ao busto com os últimos toques, foi trabalho bem tratado, é finalmente um bom exemplar do género. Está ao alcance da vista, mas não permitindo a opacidade do barro bem divisar os pequenos relevos faciais, quer ser tocado com os olhos.
Na frente do que forma o assento da figura há um listrão com as extremidades enroladas, como que destinado a um nome, que não tem, pois[26] mal ficava num retrato. Não lhe pude achar monograma, assinatura, ou marca de auctor. É crido como a reprodução fiel de Albuquerque, filho. O lugar que ocupa competia de direito ao senhor da casa.
Os bustos dos mais edículos desta frente do palácio, e que ainda existem, são de fino mármore; pela distância a que ficam não podem bem apreciar-se; parecem, todavia, bons e representam figuras mitológicas, ao que pode julgar-se.
O busto em barro do senhor da propriedade acha-se em bom estado de conservação e deve-o a uma excentricidade, para não dizer mais, de um sucessor qualquer no morgado, que o fez cobrir de uma camada de gesso para condizer na cor branca com os outros bustos e similar pedra.
Não é facto extraordinário ser em barro o retrato de quem podia tê-lo em mármore ou bronze. São célebres os bustos em barro cozido do marquês João Francisco Gonzaga de fins do século XV, outro da mesma época de João Bentivoglio e ainda outros posso citar, de Carlos VIII e Niccolo da Uzzano por Donatello.
No friso inferior à cornija que orna esta porta lê-se: «Ecce elongavi fugiens et mansi in solitudinem.»
Expressará os desejos de ocasião de Albuquerque, filho, quando aqui escrevia os Comentários do grande Afonso; todavia, mais tarde, encontramo-lo na administração municipal de Lisboa, ocupado de outros negócios públicos e, nos últimos dias, talvez dementado pela idade, peralta, requestando uma jovem fidalga, D.ᵃ Catarina de Menezes, com quem casou, fazendo política ibérica contra a independência da pátria e concorrendo a entrevistas com Cristóvão de Moura disfarçado com barbas postiças[19].
Tentando apresentar como boa a ideia que concebi sobre as edificações da Bacalhôa, e demonstrar as bases que me serviram para formar uma[27] opinião oposta a quanto se havia escrito e era geralmente aceite por bom, poderei, por necessidade, tornar-me prolixo. Que me seja relevado o que tiver de impertinente.
A quinta é dividida em dois terraplenos por um muro, que suporta as terras mais altas. A cerca inferior condiz com a arquitetura do Palácio; em ambos estes lugares os torreões cilíndricos com cúpulas de goramos, em ambos azulejos monocromos e menos bons.
O terrapleno superior tem nos ângulos do norte dois pavilhões chamados um Casa da Índia, por ter tido umas telas representando as cidades daquele estado, nas quais mais brilhou o valor de Albuquerque, o Grande, o outro casa das pombas. Nos ângulos do sul ficam num o palácio, no outro o lago, casa da perna, e mais dois pavilhões ligados por lógias.
Os torreões da cerca inferior são seis e, descendo-se às minuciosidades precisas, vê-se distintamente que os torreões dos ângulos foram construídos com a cerca de muros e os intermediários feitos posteriormente, para o que houve de rasgar-se o muro e não tanto como o necessário, pois a parte que restou dentro dos torreões deu origem a que estes se partissem por ali.
Quatro destes torreões, ou cubelos, como lhe chama o Tombo do morgado, foram aplicados a estações da Via-Sacra, com altares de mármore preto, forrados de azulejos nas frentes e, por não bastarem, meteram-se-lhes de permeio uns nichos nos muros para completarem os sete passos da paixão de Cristo.
Naqueles tempos de religiosidade e fé mais vivida bem iam estes exercícios, e o lugar escolhido, aonde já eram esvaídos os rumores do palácio, era a isso acomodado.
Este recinto em 1528, pela venda dos Vila Real, era parque; pela formação do tombo, em 1630, estava plantado de vinha, e assim continuou por mais dois séculos, até que se destruiu as videiras.
No terrapleno superior em que está o palácio é onde se vê clara a reforma de Albuquerque, filho, cujas construções se desviam do género arquitetónico primitivo. É esta a parte mais aprimorada.
No remodelamento tentou-se acomodar variantes às novas construções. Encontra-se aqui o torreão; trocou-se, porém, a forma cilíndrica pelo cubo e substituiu-se a cúpula hemisférica por telhados piramidais.
As galerias sobre o lago não destoam das do palácio, mas aos pavilhões que as extremam deu-se a cobertura de telhas acoruchadas das torres angulares desta parte da quinta.
As ombreiras das portas e janelas do palácio são angulares, as das edificações da cerca superior são de quarto de círculo.
Os muros do terrapleno inferior correm na sua altura com a inclinação, ainda que ligeira, do terreno e são nus na coroa; os do terrapleno superior são de nível no coroamento, como de nível lhes correm as ruas paralelas, resguardadas com muros de suporte, que as limitam. Aqui mesmo se conhece a remodelação, o antigo muro de argamassa distinta segue a declividade do solo; para correr de nível com as ruas, houve de ser levantado. Restam ainda nas paredes as réguas em que estavam pregadas as telas.
O recinto superior foi outrora ocupado por jardins e pomares, esmeradamente cuidado e ornamentado. Sobre todo o muro havia, intervalados por pirâmides, pedestais quadrangulares, em que pousavam esferas. De tudo ainda existem restos, carcomidos e a esfacelarem-se.
É bem sabido que D. Manuel tomou por empresa a esfera, e bem conhecida é a proteção dispensada por este rei a Afonso, filho; Albuquerque, o Grande, depois da tomada de Goa, bateu uma moeda a que chamou esfera, e com esta figura no cunho; natural, pois, seria que o filho aqui empregasse, como ornamento, o emblema que recordava os altos feitos de seu pai e fanava das glórias pátrias, esquecendo que o rei com um ultraje, que à sua régia alma não doeria, lhe vitimara quem lhe dera o ser, ilustre nome e grossos cabedais.
A modéstia, por assim dizer, do terrapleno inferior fê-lo votar aos exercícios íntimos de religião, a que as grandezas luxuosas não ficam bem.
No terrapleno superior, de uma opulência faustuosa, tudo se mundanalizou, estando de envolta com versículos bíblicos figuras[29] mitológicas e celebridades da história dos povos, acotovelando-se, defrontando-se, sobraçando-se.
Na galeria do palácio, que olha o poente, palestram amigavelmente o Eufrates, o Mondêgo, o Nilo, o Danúbio e o Douro; por sobre a porta, que daqui sai para o jardim, lê-se: «Satiabor cum apparuerit gloria tua»; logo a seguir faz costas a uma cadeira um quadro em azulejo representando o roubo de Europa. Continuando para o poente, há pela parede medalhões de louça com bustos de Alexandre, Aníbal, capitães famosos e imperadores romanos. Sobre as portas das casas de prazer do lago, em nichos, havia estatuetas representando as virtudes cardeais, a Justiça, a Prudência, a Temperança e a Fortaleza.
Ía-se aqui com o costume dos tempos. Nas portas de S. Pedro de Roma, Filarete emoldurava os quadros, que representam assuntos famosos da história da igreja, com passagens de Esopo, e Rafael povoava as bordaduras das tapeçarias, que representavam os atos dos apóstolos, de figuras grotescas[20]. Disparatadas parcerias ainda fez Camões também entre o Padre Eterno, Cypris, Cristo, as Nereidas, a Virgem e Marte.
O aparecimento das janelas de volta perfeita, a forma das abóbadas das duas casas interiores, a dissemilhança dos azulejos do palácio e das construções da quinta, alguns pedaços de azulejo de tipo mais antigo metidos nas argamassas e as demais circunstâncias apontadas, deram-me a opinião de que Albuquerque, filho, foi apenas inovador em grande dos paços e quinta da Condestablessa, podendo até precisar-se o que é primitivo e remodelação.
Os dois tipos arquitetónicos desmentem a inscrição de 1554.
No primeiro período da Renascença em Itália, no século XV, as edificações formavam cubos pouco movimentados, com grandes cheios, em que rareavam as janelas, o palácio florentino com a sua fachada nua e severa dava ares de uma fortaleza, buscando-se apenas ferir a imaginação[30] por massas imponentes e de linhas ininterruptas. Os arquitetos, cheios de considerações ainda pelas obras das gerações precedentes, deixavam-se dominar por este fenómeno atávico, a que não é facil fugir-se num início.
Andrea Sansovino, o mestre que para lição nos mandou Lourenço de Medicis, é mesmo tido como incurso neste pecadilho. Se na Bacalhôa encontramos esbeltas torres e formosas lógias abertas por arcarias em colunatas, temos também a janela a grandes espaços, sem uma linha sequer que corte todo o edifício. Tem, pois, a Bacalhôa o característico da transição da velha para a nova arte do último quartel do século XV para o XVI.
As faces que olham o pátio e quinta têm beleza na forma e tecido; as que dão sobre o jardim, que comunicam diretamente com a parte mais luxuosa e aformoseada, não lhes correspondem, sito nuas e pouco airosas; janelas nada amplas, sem outra ornamentação mais que uma faixa de azulejo liso, lançadas em largos vãos, e para quebrar tanta monotonia, lançaram-lhe uma galeria de seis arcos. No andar térreo algumas frestas gradeadas dão-lhe ares de cárceres para condenados. Em 1630 uma parede de limoeiros e cidreiras aprumava-se junto da de alvenaria, matando tanta tristura.
Esta parte é o avesso de uma tapeçaria custosa. Quem projetou o palácio parece não haver pensado em lhe lançar no reverso riquesas de policromia de barros esmaltados, pavilhões e galerias elegantes como as do lago. Era um desacerto, um erro, uma prova de mau gosto, que não daria o autor do primitivo traçado; é possível, contudo, que não fosse completa a execução.
As outras duas faces têm a nobreza e o movimento que lhes dão torres e arcarias. A face leste é simétrica. Dois torreões cilíndricos, esbeltos, com cúpulas em gomos encimados por pirâmides, matam os ângulos. Terão o aprumo de um Marte, de cuja raça descendem, mas de um Marte que despiu a sua armadura para veranear no campo com damas gentis. No andar nobre duas janelas por banda e no centro a porta de entrada, a que dá acesso à escadaria, correndo paralela à parede do edifício e voltando sobre si noutro lanço a alcançar a pequena varanda superior. As janelas e portas têm por coroamento uma simples cornija horizontal, estimada pelos primeiros[31] seguidores da nova escola. Esta cornija, exceto na porta, é separada uns 20 centímetros da aresta superior da verga por um cheio de alvenaria.
Nichos com bustos correspondem superiormente a cada uma das janelas e porta. Esta face dá para um pátio espaçoso cercado do norte e sul por muros. Ao norte, sobre o rossio da quinta, abre a entrada principal. É um pórtico, que parece haver sido restabelecido não haverá longos anos.
Duas pilastras de mármore da Arrábida de inferior qualidade, espaçadas com relevo, suportam o entablamento, em cujo friso se acha a inscrição de 1554. No centro vê-se o lugar para o escudo dos Albuquerques que se encontra no chão ao lado, talhado conforme o que vem nos Comentários, e que Albuquerque, filho, reclama para sua família, mas ainda por concluir, faltando-lhe os leões, para o que se lhe deixou a necessária saliência na pedra. Faltam ao pórtico as ombreiras. O portão do sul, que estava completamente destruído, foi há pouco restabelecido, conforme o parceiro a que faz frente, e levado ao mesmo estado; por cima pôs-se-lhe um outro escudo de armas dos Albuquerques, esquartelado, tendo no 1.º e 4.º quartéis o escudo de Portugal, no 2.º e 3.º cinco lises em aspa, adotado por D. João Afonso de Albuquerque, juntando às quinas de Portugal os lises que cabiam a sua mulher, por proceder da casa real de França[21], e que fez pôr na torre de menagem da Codiceira por ele edificada.
Na fronteira do palácio há dois torreões circulares, reparados de novo e com cúpulas em gomos, extremando uma colunata, que sustenta treze arcos de pleno cimbre com medalhões circulares e nus nos seguintes. E tudo de mármore da Arrábida. Este género de ornamentação dos seguintes, criação de Brunellesco e muito querida dos arquitetos da primeira época da Renascença, sabe-se bem que foi proscrita pelos artistas que se lhes seguiram. Esta arcada sustentava a cobertura de uma bela galeria ao rés-do-chão[22].
Pelo torreão setentrional do palácio passa-se deste pátio para a quinta por uma porta sobre a qual se lê: «Dirige Domine Deus meus in conspecto tuo[32] viam meam». É apropriado o versículo, porque, descendo uma escadaria curva e dupla, dá-se na rua, que conduzia às estações da Via-Sacra.
A frente do palácio, que olha ao norte, não é simétrica em todas as suas partes, mas do mais belo efeito perspetivo. Dois torreões, os mais altos, extremam-na, como a do leste. Caminhando deste lado para o poente, há uma janela com tarja de azulejo em volta, sobre ela a cornija, distanciada como as outras, e por cima um nicho já ermo; seguem-se duas galerias sobrepostas, abertas por escadas, verdadeiras lógias. A arcaria superior repousa em sete colunas dóricas assentes num estilóbata: a inferior pousa sobre quatro pilares assentes no pavimento.
Para ornar os seguintes dos três arcos inferiores, há quatro bustos de alto relevo, saindo de outros tantos medalhões circulares—«imagines clypeatae»—que atraem as atenções do amador.
Representarão pessoas de família? Representam os dos extremos homens, os do centro damas. A julgar pelos tipos serão o infante D. João, mestre de Santiago, de barba e farto bigode, e sua mulher D.ᵃ Isabel, a infanta D.ᵃ Brites e seu marido, o infante D. Fernando, com a barba toda, mas sobre o curto.
O espaço que vai destas lógias ao torreão occidental é ocupado por três janelas desigualmente distanciadas. O serviço da galeria inferior para a quinta é por uma graciosa escadinha em espiral.
Se não deixaram que D. João II levasse a cabo nenhum dos seus empreendimentos e reformas, é bem certo que tudo já estava tão adiantado e bem disposto, que logo na entrada do seguinte reinado se patentearam, como por encantamento, prodígios daquele grande génio de rei.
As artes, estioladas pela sombra de dois reinados pouco felizes, tinham-se esterilizado; mas, cuidadosamente amanhadas e adubadas com tino por D. João II, frutificaram cedo, produzindo, logo na primeira colheita, um estilo arquitetónico com certa originalidade, resultado de engenhosas e bem pensadas combinações do normando, do gótico, do árabe e de quanto[33] mais havia criado, ligados a motivos da fantasiosa imaginação dos artistas e artífices nacionais, em que se não perdeu a lição da escola nascida dos esforços e inteligente direção do príncipe perfeito.
O rei Manuel faleceu em 1521, Albuquerque foi senhor da Bacalhôa em 1528 e se o palácio fosse por então projetado ressentir-se-ia ainda da escola e gosto que dominavam o país, e as construções nem a mais leve sombra têm daquele tipo, ou teria seguido o estilo clássico já em voga.
As arcadas abertas e ainda sobrepondo-se dão ao todo uns odores de Itália, um arremedo fugitivo das construções florentinas e de Veneza, quer olhando jardins e terreiros, quer mirando ao longe, como na fachada norte, quer espelhando-se nas águas, como no lago, e estas, distanciadas das restantes, seriam uma adaptação das novas construções ao género comum.
As galerias do lago não destoam das do palácio, mas os pavilhões, que as extremam, como já disse, são quadrilhados e acoruchadas as coberturas.
O estilo do palácio é severo e nu de ornamentação; o do terrapleno superior e suas dependências é brincado de policromias espelhadas e fantasiosas. No palácio atendeu-se ao conjunto, pretendeu-se cativar a vista naquela mole torreada: à cerca de velhos muros imprimiu-se-lhe apenas o caráter, por assim dizer, do guardador que só cura do seu mister; aos muros da cerca superior quis disfarçar-se-lhes o destino. Os muros inferiores cingem e prendem um recluso, suspendem o assaltante, proíbem o ingresso no recinto; os do terrapleno superior seguram a vista, e os seus luzentes barros esmaltados entretêm o passeante com a variedade das policromias, levam o pensamento às idades da mitologia, da história e até o chamam a Deus com as transcrições dos livros sagrados.
Afonso de Albuquerque, filho, foi em 1521 na esquadra, que conduziu a Sabóia a infanta D.ᵃ Brites, filha do rei Manuel, e teve o comando de um galeão de 230 tonéis. A armada saiu de Lisboa em princípios de agosto e deu fundo em Vila Franca de Nisa no dia 29 de setembro. A entrada pública da princesa na corte só se realizou em maio seguinte, e entretanto os oficiais da armada fizeram digressões pela Itália, visitando as principais cidades e monumentos da pátria das artes. Desta excursão viria a Albuquerque o gosto do belo, e o conhecimento do que podia valer uma construção com[34] originalidade de formas, marcando ao mesmo tempo uma época artística o renascimento das artes no seu país.
É indubitável que Albuquerque em Ferrara se enamorara da estrutura externa do célebre Palácio dos Diamantes, ou em Bolonha do Palácio Bevilacqua, atribuído a Gaspar Nadi e começado em 1481, coevo do anterior. A celebridade destes dois edifícios está principalmente no exterior das paredes formadas de pedras em facetas a modo de diamantes, invenção mais extravagante do que bela: daqui nasceram sem dúvida as casas às portas do mar em Lisboa, mais conhecidas pela Casa dos Bicos.
A tradição vulgar mesmo vem-lhe de reforço, dizendo que Albuquerque, para dar mostras da exuberância dos seus haveres, projetava colocar um diamante na ponta de cada prisma.
D.ᵃ Maria de Ayala, mulher de Albuquerque, era da casa de Vila Real, por seu pai, e de Portalegre, por sua mãe. Os Vila Real tinham o morgado da Bacalhôa, os Portalegre alguns bens ali próximos em Azeitão.
Afonso de Albuquerque prender-se-ia com as formas e disposição do palácio e quinta dos primos de sua mulher, comprou-os, e as recordações de Florença e de outros centros artísticos da península itálica, em que campeavam as innovações dos grandes mestres, fizeram-no adotar para ornamentação da sua nova propriedade os policromos e os barros cozidos dos Della Robbia e sua escola, adquiridos em quantidade, que, ainda hoje, só por si, formam uma coleção valiosíssima, um museu verdadeiro pela grande variedade dos espécimenes, em que figuram não só produtos estranhos, mas de origem portuguesa comprovada, que representam com brilho este ramo de indústria nacional naquela época. Por alguns azulejos do tipo quatrocentista, que se encontram dentro da alvenaria, ou forrando a face superior dos alegretes, pode crer-se que já algum azulejamento existia nas construções da quinta anteriormente à compra por Albuquerque.
Os azulejos e os medalhões da Bacalhôa mereciam ser tratados por mão de mestre, mas já descrevendo-os como observador enamorado deles,[35] pode aproveitar à arte e à história desta indústria, despertando a atenção dos entendidos.
Os medalhões são, sem dúvida, da escola ou das oficinas dos Della Robbia, senão de Andrea, ou de Giovanni.
Os ladrilhos são de alguma fábrica da Espanha, Talavera ou Valência.
As cercaduras dos medalhões menores são de origem flamenga.
Os quadros historiados, os mitológicos, os alegóricos, os groteschi, os humoureschi, uma cercadura formosíssima e um escudo com o brazão dos Albuquerques, que há nas casas de prazer juntas ao lago formam uma coleção valiosíssima da indústria portuguesa, e, que importa muito para a história deste ramo de cerâmica no país. Nada falta a esta coleção, assinatura (Matos) numa parte, data (1565) em outra, e tudo ligado por elementos decorativos a comprovar a sua procedência.
Quanto aqui enumero pertence indubitavelmente à restauração e inovamentos de Albuquerque.
A julgar por destroços e restos de azulejos que se encontram nas argamassas, ou de azulejos cerceados e recortados a cobrir as pequenas paredes, que formam a caixa para as plantas dos alegretes e que mostram ter para ali vindo de lugar apropriado, a coleção já foi mais variada.
Uns azulejos lisos remendando quadros do mesmo padrão, mas de relevo cavado, provam ter havido reparação no azulejamento e alguns com escorregamento de tintas dirão ter-se recorrido a um fabricante, que por inábil houve de ser posto de parte.
Estas reparações deverão atribuir-se a D. Jerónimo Manuel, «o Bacalhau», que teve o morgado e habitou o palácio por bastantes anos antes e depois da sua viagem à Índia, e, continuadas talvez por seu filho D. Jorge, que também habitou o palácio, aonde faleceu em outubro de 1651.
Afonso de Albuquerque, filho, com sua mulher D.ᵃ Maria de Noronha, vinculou a quinta em 1568; dez anos depois ainda esta dama vivia, mas seu marido, já provecto, enviuvando, passou a segundas núpcias com D.ᵃ Catarina de Menezes; pouco durou esta nova união de Afonso de Albuquerque, porque em 1581 faleceu. De nenhum dos matrimónios restaram filhos, mas houve um natural, D. João Afonso de Albuquerque, que[36] pretendeu suceder no morgado. Foi nele apossado, mas seguiu-se porfiado litígio, movido pelo ramo de Fernando de Albuquerque, chamado na instituição à administração do vínculo. Só em 1609 a causa foi decidida a favor de D.ᵃ Maria de Mendonça, mulher de D. Jerónimo, o Bacalhau.
Estes cônjuges estabeleceram residência no palácio, aonde D. Jerónimo faleceu em 1620. Já em 1607 o hospital, instituído por Afonso de Albuquerque, estava em ruínas, e o palácio e quinta corriam-lhes parelhas; é de crer, pois, que as reparações fossem do Bacalhau e seu filho Jorge. Em 1623 ainda encontro residindo na quinta um 4.10 Real, ladrilhador, que aqui poderia estar na reparação do azulejamento.
As ruas do jardim e as que correm ao longo dos muros do quadrângulo superior tinham o pavimento de famoso tijolo de 0,20 × 0,10, de excelente barro, bem fabricado e cozido, de que existem restos.
Estas ruas são orladas de alegretes para flores. Um arrendamento de 1674 impe ao rendeiro da quinta a obrigação de tosquiar o buxo do jardim e ruas duas vezes por ano e limpar os craveiros dos alegretes.
Do lado do muro estes alegretes são a espaço interrompidos por cadeiras de alvenaria revestidas de azulejo; do lado oposto, também a distâncias certas, há uns cubos mais elevados para plantas de maior porte. O azulejo destes cubos é sempre de qualidade superior ao dos alegretes, variando no desenho e todo de relevo. Entre cubo e cubo e entre cadeira e cadeira, nos panos de cada alegrete encontram-se quatro formosos azulejos de relevo, assentes em diagonal: são dos mais apurados no gosto, no desenho, nas tintas e no esmalte. O fundo destes azulejos é branco, os desenhos folhas e flores de fantasia, e nuns aparecem uns frutos, que na fórma se aproximam da romã (n.ᵒ 15). Os desenhos são combinados para quatro azulejos. Os padrões n.ᵒs 11, 23, 25 e 33 encontro-os notados como puro renascimento italiano[23], muitos outros podem assim ser classificados e terão vindo feitos de Itália, ou serão fabricação portuguesa sobre desenhos daquele país. Neles dão-se os característicos dos produtos cerâmicos sículo-árabes: espessura do vidrado e colorido terminado a meado por grossas[37] gotas de tinta coaguladas[24]. Há mais dois padrões: um (n.ᵒ 9) notou-o Haupt no alcaçar de Sevilha, outro (n.ᵒ 37) para cercadura, em Santa Maria de Penha Verde[25]. A variedade no azulejamento é extraordinária, quer as placas sejam lisas, de uma só cor, com desenhos policromos, ou de relevo cavado e coloridos.
A mesma variedade se encontra nas cintas de azulejo, que emolduram as portas e janelas, quer as paredes sejam nuas ou azulejadas, distinguindo-se entre estas cercaduras as da Casa da Índia (n.ᵒ 5), de desenho fino, correto e de bom gosto, remendadas com uma imitação mal produzida, e que foi noutras partes aproveitada para o mesmo emolduramento.
A varanda coberta, ou lógia, que dá sobre o jardim, tem uma larga cinta azulejada, e cinco quadros representando os rios Eufrates, Mondêgo, Nilo, Danúbio e Douro.
A ornamentação policrómica da Bacalhôa prendeu a atenção do Sr. Theodor Rogge, alemão, professor de desenho, e de volta ao seu país ocupou-se dela, dedicando-lhe um artigo acompanhado de alguns desenhos, entre os quais o quadro que representa o Douro.
Eis o que diz o ilustre professor:
«Depois da introdução das faianças italianas da Renascença, sentiu-se a influência desta na decoração dos azulejos. As amostras mais belas desta mudança de orientação fornece-as o palácio da Bacalhôa em Azeitão, construído pelo filho do célebre herói da Índia, Afonso de Albuquerque.
A figura 3 (o Douro) mostra o sistema de um adorno de paredes por azulejos na galeria ocidental do palácio e que abre sobre o jardim.
O desenho executado em azul, amarelo, verde e castanho sobre fundo branco é circundado de uma bordadura de óvulos, e cobre a parede até à altura de 1,72m. Os painéis (kartuschen) policromos representam personificações dos rios principais de Portugal.
A figura iluminada no quadrado à direita dá o detalhe de um desenho composto de quatro azulejos. As bordaduras encontram-se na tabela iluminada, em baixo à esquerda, fig. 4. A combinação destes elementos em[38] outras posições dá origem a uma infinidade de desenhos, que depois se circundam de diferentes molduras.
Os pavilhões do jardim, as paredes e as galerias do lago artificial, situado ao sul da quinta, são igualmente revestidos de ricos azulejos. Até os bancos para descanso os têm. A instalação, toda cheia de encantos, é obra bem inventada de um arquiteto talentoso, e que conhecia a fundo este genero de decorações.
Os azulejos que adornam as galerias do lago são quase todos verdes com ornamentos em relevo, à maneira dos azulejos espanhóis. No meio de uma das paredes há as armas dos Albuquerques pintadas em azulejo.
O pavilhão central do lago contém três quadros igualmente distintos pela forma e pela coloração. Um representa o rio Tejo e outro Suzana no banho. No fundo, sobre um pórtico, lê-se a data de 1565, provavelmente o ano em que os azulejos foram fabricados.
Também merecem menção as molduras das janelas do palácio, formadas por azulejos com ornamentos de plantas em relevo, e que representam uma decoração ornamental duradoura para fachadas.»[26]
O escrito do ilustre professor germânico mostra bem o apreço em que ele tem a coleção variadíssima, dos barros esmaltados da Bacalhôa, coleção trio quantiosa, que de longos anos abandonada e entregue à destruição e à rapinagem, ainda não pôde aniquilar-se lhe o valor. Na Alemanha é tida como uma maravilha, conhecida e apreciada; em Portugal, no próprio país que a possui, passa quase ignorada.
O azulejo que vestia de alto a baixo as lógias do lago é em relevo cavado, sobressaindo a verde, género hispano-mourisco, talvez das fábricas de Valença ou de Aragão, pois me parece bem distinguir-se dos de fabricação portugueza (n.ᵒ 6).
No fundo da lógia, mais ao occidente, há um quadro, também em azulejo, com o brazão dos Albuquerques num escudo de forma muito caprichosa, envolvido em ornatos de enrolados, género de cartoccio típico do autor, decorado com duas cabeças de sátiros. O escudo é esquartelado,[39] como o do portão meridional do pátio. No primeiro e quarto quartéis as armas do reino com oito castelos na orla, esta roxa, certamente porque o fogo alterou o vermelho, aqueles amarelos, as quinas azuis em campo branco, no segundo e terceiro quartéis cinco lises amarelos em aspa sobre campo azul.
O azulejo dos pavilhões, que extremam as lógias, cobre totalmente as paredes; é liso e com desenhos de cores variadas. O do primeiro é a reprodução de um outro em relevo cavado, que forma a grande moldura da parede ocidental do lago, com mudança na coloração.
Neste pavilhão distinguem-se pela beleza as duas tarjas, que no rodapé e junto ao teto limitam o azulejamento das paredes; são pintadas em quadrângulos de 1,27 × 0,135m. A tarja superior representava um ininterrupto panorama de montes, castelos, habitações, riachos, a que dão vida crianças que jogam, brincam, banham-se, que se ocupam em variados misteres, ou em infantis folgares. A tarja inferior é uma delicadíssima, composição de flores de fantasia, rematada nos ângulos da casa e nos cunhais das portas e janelas por meios corpos fantásticos de homens ou mulheres, que um capricho do desenho fez sair da extremidade de um ramo, ou da corola de uma flor.
É no centro desta cercadura, na parede do fundo, que num cartoccio está o nome do autor da composição, e que para evitar repetições lançou aqui um traço de união para reconhecimento dos seus trabalhos, que no azulejamento abundam. Repare-se na forma do pequeno cartoccio que contém a palavra MATOS, e ver-se-hão reproduzidos os seus traços no emoldurado do escudo de armas da lógia occidental, o mesmo se dá nos dois rios da lógia do Palacio da que olha o jardim. Há aqui também uns caracóis, umas borboletas, e outros pequenos animais, que passam para o revestimento dos assentos e alegretes de um quadrângulo cerrado de muros, que serve de vestíbulo descoberto às galerias do lago; no quadro que representa o Nilo lá se veem uns patos que nadam ou mergulham, reproduzidos no quadro de Suzana no banho, e um pequenino ornato igual ao que antecede e se segue ao nome MATOS.
O revestimento dos assentos e alegretes, de que falo, é uma bela composição, género grotesco, talhada para os espaços que cobre; um amador não desdenharia emoldurar estas composições de Matos, e tê-las no seu gabinete; a cercadura do pavilhão junto até bem iria, por delicada, no camarim de uma dama.
Pelo nome e época, este notável ceramista português será o Francisco de Matos, que data de 1584 o azulejamento da capela de S. Roque (a terceira da epístola) da igreja da Misericórdia de Lisboa. As composições distanciam-se para serem postas a par: a de Lisboa é um desenho largo, rasgado e firme, de mão amestrada, mas com arabescos gigantes; os trabalhos da Bacalhôa são Horinhas mimosas, nascendo umas das hastes das outras, como se o mesmo talo lhes fosse comum, personagens e animais de fantasia, uns putti graciosos e alegres, exuberantes de vida, ou uns velhos de compridas barbas, que simbolisam os rios, alguns já mostrando enfado de não verem vazios os cântaros, que há séculos sobraçam.
A composição do quadro de Suzana e do que lhe ficava fronteiro mostram que Matos era um pintor de raça, capaz de abordar todos os géneros de pintura. Sobre os barros, num trabalho em que tem de primar a ligeireza, em que não há retoques nem mimos de execução, vê-se o génio valente do artista, que se não prende, nem vacilla, um pincel que segue rápido a inspiração que o dirige. Num acessório do quadro de Suzana, no pórtico do palácio de Joaquim, lê-se a data 1565; num lago próximo nadam uns patos como na água do Nilo da varanda oeste do palácio; no tocado de Suzana nota-se um adorno de tecido ligeiro, igual na forma ao do segundo medalhão do lago, parecendo que um deu a ideia do outro, e que o artista neste se inspirou.
O quadro que lhe é fronteiro, a mais de meio destruído, parece representar um festim, em que os comensais, mulheres e homens nus, atacados de improviso se defendem. Vê-se ainda a parte de uma mesa, alguns vasos por terra, um homem que puxa da espada, cuja bainha pende de um estilingue, posto sobre as carnes, e algumas outras figuras.
Na parede do fundo um quadro, quase aniquilado, representava o Tejo.
De resto, não haverá no país, reunida, colecção mais variada e completa de um só ceramista fabricante de azulejos. Esta cresce de merecimento e valor pela autenticidade que lhe dá o nome do autor e data.
São numerosos os espécimenes, ferindo pelo traçado genial da composição e pela mestria da execução. A ideia, a forma, a adaptação e aplicação dos desenhos aos lugares, tudo denuncia um artista de primeira plana.
Francisco de Matos não foi só um pintor aprimorado, mas um ornamentador excelente, um decorador de génio. Com as suas graciosas faixas ornamentais, ou humorísticas, sabia matar a monotonia dos grandes palmos de desenhos uniformes, as cores de que se servia eram mesmo calculadas de modo a distanciar as composições; vestindo os alegretes de pinturas grotescas, dava realce aos naturais adornos das flores e plantas, recriando o olhar pela variedade. O rumorejar da água cadente ou batida pelas asas das aves aquáticas, ou pelo saltar dos pequenos peixes, seguravam o espírito a uma tristeza doce, mas sempre desalegre, e o génio do artista soube imprimir nas suas composições uma certa vicia, distrair o pensamento e soltá-lo de tristuras.
Os tetos destes pavilhões e lógias eram de estuque, apainelados, seguiam o pendor dos madeiramentos e pintados de várias histórias, diz o tombo de 1630. As coberturas piramidais dos pavilhões foram de lousas de ardósia, de que apenas se encontraram restos.
Todo o azulejamento é assente por fiadas diagonais, com exceção dos quadros, cujo assentamento é horizontal.
A face oeste do lago toca o muro, que forma um grande paralelogramo de 30 metros de largo, emoldurado numa tarja longa de azulejo de relevo, reparado posteriormente com azulejo de igual desenho, mas de superfície lisa (n.ᵒ 2).
Dentro deste quadro é a entrada da água, que vem pela boca de um golfinho, tendo por cima um edículo, em que esteve um Tritão. Há mais dois[42] nichos igualmente ermos; por debaixo do que fica mais ao sul, numa lápide, lê-se: «Tempora labuntur more fluentis agua». Na lápide que do outro lado lhe corresponde: «Visite victuri moneo omnibus instat».
Estes nichos ficam entre quatro grandes medalhões circulares, decerto os melhores da famosa coleção. São de alto relevo, apresentam bustos de tamanho quase natural, vistos até mais de meio peito. Os medalhões medem de diâmetro 0,54m só por si, e com as cercaduras 0,78m.
Estas cercaduras são em forma de corça, tecida de folhagem, flores e frutos.
A primeira, terceira e quarta parece terem sido menos boas e estão muito mutiladas. Da segunda tratarei em separado.
São, sem dúvida, da escola dos Della Robbia, notando-se variantes na cor dos fundos.
Andrea della Robbia foi quase constante na cor azul dos seus fundos, sendo este um característico das suas composições. Giovanni variou na cor dos fundos e usou mais desenvolvidamente a policromia.
Além das mutilações, uma velha camada de musgos cobre especialmente as partes cavadas das figuras.
Vou descrevê-los, começando da casa da pena:
1.º Busto de homem com pouca barba, parecendo um mancebo que entra na puberdade, tem cabelo comprido puxado para trás das orelhas. Tem coroa de louro. A imagem é bem modelada, olha à esquerda. Não foi (ao que parece) colorida, nem é esmaltada. O medalhão é de barro vermelho, a moldura de grés amarelado e brando.
2.º Está em quase perfeito estado de conservação, sem deixar de ser tocado por alguns tiros de pedra. Medalhão circular, medindo, como os demais, 1,54 e com a cercadura 0,78 de diâmetro. Relevo alto, fundo arroxeado, busto de mulher como que mirando as águas. O peito está todo a descoberto, apenas um manto de tecido ligeiro, que se traça debaixo do braço direito, vem prender-se sobre o ombro esquerdo. Este manto é de um roxo quase transparente. O cabelo louro, entrançado na parte anterior, cai em madeixas nos ombros até ao peito. Um véu, ou coisa assim de tecido leve, azul muito claro, nascendo da testa, aonde[43] tem um pingente, segue pelo meio do penteado, até envolver-lhe de todo a parte de trás; género de toucado de fantasia. A carnação é clara, as faces rosadas, olhos e supercílios negros. Tipo italiano. O esmalte de toda a figura é nítido e transparente.
A moldura, coberta de musgo, tem mutilações, ainda que pouco importantes. A sua composição é de folhagem e frutos policrómicos esmaltados. Os frutos, começando do lugar onde os relógios de torre marcam o meio-dia, são: 2 pepinos, 1 nabo, 2 marmelos, 1 romã, 1 pera, 1 cidra, 2 cachos de uva branca, 1 nabo, 1 marmelo, 1 cidra, 2 cachos de uva tinta. Este círculo engrinaldado é de grés e feito de peças unidas ao assentamento.
Se aproximarmos esta moldura dos desenhos de outras das oficinas dos Della Robbia, não pode deixar de encontrar-se-lhes grandes semilhanças. Um medalhão da academia das belas artes de Florença, atribuído a Andrea, tem uma cercadura muito parecida. No hospital de Ceppo em Pistoia há um medalhão da oficina de Giovanni, cujas molduras também muito se aproximam desta, ainda que de mais desenvolvidas proporções (1,32m).
3.º Medalhão circular, das dimensões do precedente. Moldura muito mutilada. Busto de mulher. Olha à direita. Toucado flutuante. Manto preso sobre o ombro direito, deixando a descoberto o peito esquerdo. Não é esmaltado. Se foi colorido, o tempo destruiu-lhe as tintas. A moldura de folhagem e frutos engrinaldados é policrómica esmaltada, na máxima parte destruída.
4.º Medalhão como os anteriores no tamanho e moldura. A figura, a que falta a cabeça, era de homem. É policromo esmaltado.
Ocupar-me-ei agora de outros medalhões de diverso tipo e menores dimensões.
Seguindo a mesma parede, na rua que vai para a Casa da Índia, encontram-se nichos, intervalados por medalhões. As voltas desses nichos, os pilares que as sustentam e todo o mais trabalho de alvenaria são de uma[44] perfeição e nitidez que não pode exceder-se; todas as arestas são finas, como o buril não faria mais perfeitas. São de um belo artífice.
Todos estão ermos; a guerra às estatuetas que os povoavam foi de extermínio.
Estes medalhões são de fundo azul, têm de diâmetro 0,45m e com a grinalda que os envolve 0,64m. A grinalda em forma de coroa é tecida de folhagem verde, flores azuis ou amarelas de cinco pétalas, pequenos frutos, como romãs verdes e nozes e uns outros frutos, que serão peras amarelas. É feita de peças combinadas e reunidas ao assentar.
De umas a argilla é vermelha, outras são de grés amarelo claro. Os medalhões são cercados de uns filetes concêntricos. Têm bustos de baixo relevo. A imagem, de grés, foi moldada sobre um molde de argila vermelha, a que ficou aderida, medalhão e moldura são esmaltados.
Pretendi, pelas argilas e grés, formar classes dos medalhões e molduras; não pude, porém, consegui-lo; há molduras iguais ou do mesmo género, em barro comum vermelho ou em grés.
Nas figuras mesmo há contexturas diferentes. As de baixo relevo têm por debaixo o molde de que falei, as de médio relevo não o têm; varia, contudo, a qualidade do barro.
Passo a descrever estes medalhões e o seu estado de conservação:
1.º Junto ao lago. Busto de homem coroado de louro. Pouco mutilado. Está de perfil sobre a direita.
2.º Busto de homem. Destruído.
3.º Busto de mulher. Destruído.
4.º Busto de mulher. Destruído.
5.º Busto de mulher. Muito mutilado. Tem medalha amarela ao pescoço, pendente de um colar.
6.º Busto de mancebo imberbe. Tem capacete, de que saem umas pequenas asas e tranças entrelaçadas. Veste armadura fechada no alto do peito por uma pequena máscara. No capacete, nas bucculas e no thorax há listas amarelas e verdes. Será um Mercúrio de convenção ou arremedo de um busto de Cipião, célebre escultura do fim do século XV. Estes bustos são como os das medalhas, cabeça e colo de perfil.
Na parede que, pelo sul, segue a rua que vai do jardim ao lago, há doze medalhões, correspondendo a cada um uma das esferas ladeadas por pirâmides, que coroam o muro. Estes medalhões medem o diâmetro dos anteriores e a moldura é a mesma, com pequenas variantes.
No rebordo da 11.ᵃ moldura, que cerca o busto de Otaviano, encontra-se a assinatura do artista ou fabricante de que a figura n.ᵒ 137 é um calco perfeito, e que aqui dou reduzido. Estas letras são lançadas ao correr do pincel com a tinta azul das flores, cor usada pelos mestres quando marcavam as suas produções policrómicas.
Pareceu-me dever ler ali Donus Vilhelmus, isto é, mestre Guilherme, porque a palavra donus, contração de dominas, teve aquela significação, como também mestre se disse ao jurisperito e ao médico. Mestre Leão se chamava o distinto físico judeu, que teve a necessária hombridade para não seguir a opinião da junta médica, que mandava D. João II para as caldas de Monchique. Mestre João das Leis e mestre Afonso das Leis eram de uma dinastia de jurisconsultos dos tempos do mestre de Avis e de D. Duarte.
A maneira como li o nome do artista, ou do artífice, a escrita e os caracteres levam-me a crer que a procedência das molduras é flamenga e não italiana. Não deixarei, todavia, de receber outra interpretação, quando venha de quem tiver a autoridade e os conhecimentos que me faltam.
Em 1628 existia em Delft, na Holanda, um ceramista Willem (Jacobus); é possivel que o fabricante das nossas molduras fosse pai ou avô deste.
Não direi que estes medalhões venham de mais de uma fábrica, porque os moldados concêntricos que orlam os fundos são em todos perfeitamente[46] iguais; nas figuras, contudo, vê-se mais de um artista. As esculturas acusam maneiras diversas, como a coloração e esmalte. Nuns a imagem é esverdeada, noutros branca; o esmalte de uns é delgado e transparente, noutros não parece sobrepor-se à cor, mas fazer com ela um todo. Na urdidura, se assim vai bem dizer-se, também diferem; nuns a imagem é da mesma peça que o fundo, noutros foi moldada por si e o fundo adapta-se-lhes, contornando-a. Os últimos são os mais perfeitos e o artista denunciou em um deles a sua origem italiana. Seguindo geralmente a nomenclatura latina, por debaixo do busto de Nero escreveu Nerone.
O sistema empregado para a moldação das figuras em separado dos fundos faz lembrar o que Andrea usou nos medalhões dos seguintes das arcadas do hospício dos Inocentes em Florença, recortando os fundos a modo de lhes introduzir as imagens.
Todos foram talhados sobre moldes, pois no reverso dos muitos que há destruidos veem-se as dedadas do artífice que os obrou.
O esverdeado do branco de alguns indica que o banho estanífero não foi para todos o mesmo.
Alguns dos medalhões da coleção de que trato podem aproximar-se de um em barro cozido, esmaltado, representando S. Jerónimo, saído das oficinas de Andrea.
Em busca da marca das cercaduras destes medalhões da Bacalhôa, debalde percorri o Dictionnaire illustré de Marechal, o Guide des amateurs de faiences de Augusto Dammin, o Manuel du collectionneur de faiences e o Dictionnaire des marques et monogrammes de Ris Paquot, a Histoire de la céramique de Albert Jacquemart, e outras obras mais. A assinatura, portanto, da Bacalhôa terá de ser inscrita por nova e não conhecida ainda. É mais um merecimento destas cerâmicas.
Seguirei por ordem a descrição dos medalhões, caminhando do palácio para o lago. São todos de médio relevo.
1.º MARC. LIVS. CRAS. Busto branco. Olha à esquerda. Barba toda. Fundo azul. Figura ligada ao fundo.
2.º TRAIANVS. IMP. Destruído. Busto branco. Fundo azul. Imagem moldada separadamente.
3.º SCIPIO. AFR. Busto branco esverdeado sobre fundo azul da mesma peça. Rosto expressivo. Olha à esquerda. Não tem barba.
4.º DIVI. IVL. CIES. Busto branco esverdeado. De uma só peça. Sem barba. Rosto expressivo. Olha à direita. Corpo de frente.
5.º ANIBAL. CARTA. Busto branco. Fundo azul, separado. Barba toda. Cabelo puxado para a frente e pouco cuidado. Fisionomia enérgica. Olha em frente.
6.º Destruído. Fundo azul, imagem junta.
7.º MVTIVS. SCE. Busto branco. Fundo azul, separado. Toda a barba despontada. Olha em frente. Corpo voltado sobre a esquerda. Bem modelado.
8.º NERONE. CLA. Busto branco. Fundo azul, separado. Coroado. O letreiro está danificado, parecendo dever ler-se MARC. (Marcus) LIVS. (Lieinius) de louro. Olha um pouco à direita. Olhos cavados. Queixo proeminente. Sem barba.
9.º ALEXA. M. Busto branco esverdeado. Fundo azul, junto. Olha em frente. Sem barba. O capacete e as bucculas baixadas emolduram a cabeça e rosto numa faixa amarela de mau efeito.
10.º POMPEIVS. M. Busto branco esverdeado. Fundo separado. Expressão enérgica. Toda a barba e bastante crescida. Olha à esquerda. É dos melhores desta coleção.
11.º OCTAVIAN. AVG. Busto branco esverdeado. Fundo verde, junto. Olha de frente. Sem barba. NB. É neste que está a assinatura.
12.º Destruído.
Todas as figuras têm pupilas e supercílios a tinta escura. Os nomes são escritos com a mesma cor em rótulos de formas várias.
No Oriente, região sonhadora e poética, teve origem a arte de vestir de barros reluzentes os pavimentos e as paredes dos edifícios, substituindo com vantagem, quer pela impermeabilidade, quer pelo brilho, quer pela facilidade de adaptação a mil diversos usos, os custosos mosaicos de pequenos[48] fragmentos de pedra. A princípio lâminas de barro de variados feitios e cores, aplicadas com tino, faziam engenhosos desenhos agradáveis à vista; mais tarde a ornamentação foi lançada no próprio ladrilho, que, obedecendo às leis do natural progresso, chegou ao quadro historiado de tanto valor quando traçado por mão hábil.
No século VII a dominação árabe trouxe à península hispânica a luz imensa da civilização daquele povo, grande no comércio, na agricultura, nas artes, nas ciências, nas indústrias, em todos os ramos finalmente da atividade humana. A fabricação dos azulejos devemo-las às lições dos nossos dominadores.
Os persas, de quem os árabes haviam colhido por sua vez a técnica do fabrico e coloração deste género de cerâmica, tinham-se inspirado nas produções vegetais de mistura com a representação de animais; os árabes, obedecendo às prescripções religiosas do Corão, tiveram de banir a figuração da natureza orgânica, e foram buscar os recursos decorativos a combinações geométricas das mais engenhosas. Este é o principal característico da cerâmica ornamental dos árabes; não se deve, todavia, pôr totalmente de parte o azulejo que veio mais tarde, em que o artista tomou para modelo plantas e flores, sem, contudo, as copiar exatamente no talhe ou na coloração própria.
Um dos principais historiadores árabes, cujas obras escaparam à sanha rancorosa cristã, dá-nos notícia da fabricação dos azulejos em Espanha. Diz-nos ele:
«Achamos também que havia no Andaluz várias fabricas de al-mafssass, que, no Oriente, é conhecido pelo nome de al-foseyfa'sa' (mosaico), assim como de uma espécie de tijolo, que usam para ladrilhar os pavimentos, chamado az-zulaj. Os azulejos eram feitos de todas as cores alegres e parecem-se muito com os al-mafssass. Exportam-se em grandes quantidade para o Oriente, e são usados em vez de lajeado de mármore, para fazer sobrados de mosaico, revestir chafarizes e para outras ornamentações neste género.
Aqui temos, pois, esta indústria de tal modo desenvolvida no Andaluz (Espanha) a poder concorrer com os seus produtos aos mercados do país de que era originária.»[27]
O Sr. Simonet[28] quer só que o azulejo seja de origem hispano-bizantina, mas até o género de mosaico chamado entre nós embrechado, e, no seu furor mourofóbo, pretende que a transplantação do fabrico do azulejo tenha vindo do Oriente para Espanha independentemente do elemento árabe.
Diz ele: «De origen hispano-bysantina son, de nuestro entender, en el nombre y en la realidad, los azulejos, ou mosaicos de piedras menudas y de piezas de barro cosidas y esmaltadas que con tanta profusión y belleza adornaban los edifícios arabigo-espailoles a diferencia de los orientales[29], aunque el vocábulo azulejo no viene del adjectivo azul, como algunos han imaginado, sinó del arabigo-hispano azzulaích ó azullaich, este a su vez es corrupción del latino-greco azurotum[30], más bien del bafo-latino azaroticus, applicado por un célebre escritor francés del siglo V a las piedrecitas de los mosaicos y azulejos azaroticus-lapillus».
Até aqui estes autores só nos dão notícia do azulejo liso de uma só cair em cada lâmina, empregando-se mais geralmente na coloração o branco, o azul e o verde, também se variavam as dimensões e contextura, e era da combinação destes elementos que se formaram os mosaicos, de que na Bacalhôa há diversos exemplares.
Com a dominação árabe também a Sicília recebeu as suas lições de cerâmica, tornando-se celebrados os produtos sículo-árabes, como os hispano-mouriscos. Foi decerto por via da Sicília que a cerâmica árabe passou e se desenvolveu na península itálica; todavia, porque a denominação mourisca se tornou efetiva por mais largos anos na Espanha,[50] porque aqui as duas raças comunicaram usos e costumes, e chegaram a confundir-se de modo a haver no país regiões aonde se não conhece a predominante, a técnica e a ornamentação do azulejo adotou as transformações porque os árabes as fizeram passar, conservou mais o tipo e carácter original; na Itália, porém, adotou-se o sistema ornamental, sem se deixar influenciar profundamente pelo estilo decorativo e composição dos desenhos, antes se foi tudo convertendo ao gosto do país, chegando no final o azulejo a ser não só uma chapa quadrada, mas a tomar a fórma do medalhão e de outras peças ornamentais.
O cavado no azulejo, quanto a mim, inventou-se como meio simples de firmar o desenho, facilitar a coloração, augmentar-lhe os efeitos perspetivos e segurar o passo, quando empregado em pavimentos.
Na Bacalhôa há azulejos apropriados para revestimento de todas as superfícies, e em muitos deles é bem clara a maneira italiana da Renascença, ou porque as placas procedam diretamente da Itália, ou porque dali viessem os desenhos e moldes para se fabricarem em Portugal (n.ᵒ 8, 3, 7, 11, 15, 16, 22, 23, 24, 33). Se estes azulejos são notáveis pela delicadeza das figuras, não lhes desmerecem as tarjas, que emolduram as portas e janelas, entre as quais se especializará a cercadura da porta da Casa da Índia (n.ᵒ 5). Esta cercadura houve, em tempo, de ser reformada com outros azulejos do mesmo padrão, mas não passam de uma imitação que não faz honra ao copista nem à fabrica que os produziu.
Serão do século XVII; os primitivos muito se distinguem e poucos já existem, porque a rapina tem sido formidável. Se a cercadura de que falo é de fino gosto, há outras que se lhe querem emparelhar em delicadeza (n.ᵒ 36).
Este género de ornamentação com azulejos, ficou tanto em uso no país e penetrou tanto no gosto português, que não só se fabricavam azulejos em oficinas especiais, mas ainda nas olarias.
Em princípios do século XVII havia em Lisboa treze olarias de azulejo, e ainda mais era produzido nos vinte e oito fornos de louça de Veneza que havia na cidade[31]. O número de fábricas de azulejo é importante, se o[51] compararmos aos fornos e telheiros de telha e tijolo, que eram dezasseis. É de crer que das olarias de louça branca, disseminados pelo restante do país, saísse também muito azulejo, mas falta-me guia que me dirija na importância desta produção.
Se dos azulejos lisos podemos louvar as fábricas e os artistas nacionais pelo escolhido da composição decorativa, pela nitidez dos lavores, pela boa aplicação dos esmaltes, pelo desempenho das placas, escolha dos barros e cozedura, não poderá dizer-se o mesmo dos azulejos de relevo cavado, a julgar pelos da Bacalhôa, e que eu reputo de indústria portuguesa, pois nem o desenhador era fino, nem o oleiro experimentado, como já notei. E foi talvez da dificuldade de alcançar no país assimilações regulares e que pudessem apresentar-se que a tarja da parede do lago foi restaurada com azulejos de igual desenho aos que ali existiam, mas de superfície lisa. Também noutro lugar da quinta se encontram azulejos, puro refugo, pelo escorregamento das tintas e inferioridade do fabrico. Talvez tentativa de algum artífice inexperiente.
A coleção de cerâmica da Bacalhôa é numerosa e variada, como nenhuma outra conheço e talvez nenhuma haja, fora de museu, que se lhe emparelhe.
Do mosteiro da Conceição de Beja, bem conhecida obra da infanta D.ᵃ Brites, resta ainda o claustro chamado de D. Manuel, cujo pavimento e bancos são forrados de azulejos diversos; da antiga casa do capítulo, transformada para sacristia, vestem as paredes painéis de azulejo differentes, extremados por tarjas; é uma coleção muito interessante e variada, e todos os espécimenes são de relevo cavado. Ali, além de outros, encontrei os n.ᵒs 3, 9, 17, 23, 24, 29, 33 e 37 da Bacalhôa.
De todos os azulejos do mosteiro em demolição existem exemplares no museu, já valioso, que a câmara municipal daquela cidade está cuidadosamente formando.
A pequena capela que guarda o altar da casa do capítulo, a que me referi acima, é toda vestida, mesmo a abóbada, de belo azulejo branco e azul, quadrado ou em quadrângulos, formando um mosaico em xadrez, género muito usado anteriormente ao azulejo de desenhos geométricos, ou de folhagem e flores.
Sendo de 0,125 a 0,130m as dimensões ordinárias do azulejo por 0,020m de espessura, encontrei nuns restos do pavimento do claustro uns azulejos muito maiores e mais grossos 0,18m por 0,025m, que me parecem propositadamente reforçados para ladrilhamento. O desenho é de pouco bom gosto e imperfeita execução, relevado e a cinco cores, azul, verde, roxo claro e escuro, em fundo branco.
A variedade de tipos encontrados no mosteiro da Conceição de Beja é imensa, e não será fácil encontrar-se no país outro agrupamento de tantos exemplares diferentes de azulejo em relevo.
O templo tem uns quadros forrando a parede do Evangelho até à altura de uns 2 metros, representando a vida de João Batista, do nascimento à degolação; são a azul em fundo branco, têm a data de 1741, mas sem nome do autor. Nas tarjas, que os emolduram, há uns festães e uns putti comuns a muito azulejamento da época; pelo desenho pode julgar-se serem aqueles quadros do autor dos quadros bíblicos em azulejo de S. Lourenço de Azeitão; há mesmo uma figura de pé, que parece transplantada de uns para outros, quase se pode afirmar que a mesma mão os traçou.
Na pequena coleção de azulejos da biblioteca de Évora encontram-se os n.ᵒs 9 e 18 da Bacalhôa.
Na capela jazigo de Garcia de Resende, na cerca do mosteiro de Santa Maria do Espinheiro da mesma cidade, há no pavimento, num pequeno edículo, que serviria de credência, no chão e num assento do átrio azulejos de três tipos apenas; são os n.ᵒs 23, 25 e 33 da coleção da Bacalhôa. Esta capela foi edificada em 1520, segundo a inscrição do pórtico.
De urna estreita escada, que vai ao eirado da cisterna do mosteiro, forram as paredes azulejos, que para ali vieram de outra parte; são verdes e brancos, em quadrados ou quadrângulos estreitos, mas acomodados todos a um enxaquetado. O que encontrei neles mais de reparar foi serem fabricados de um barro vermelho e pouco consistente como o de Extremoz, parecendo por isso denunciar que nesta vila se fabricaram os azulejos.
Em Alvito no palácio acastelado dos barões não há azulejos capazes de menção e em diminutíssima quantidade, em compensação a igreja paroquial verga sob eles, havendo até o mau gosto de cobrir de azulejos algumas das famosas colunas e arcos que sustentam as abóbadas. Na nave central todos os cheios das arcadas são vestidos de um azulejo liso a três cores, amarelo, branco e azul, perfeitamente igual ao de S. Simão de Azeitão, até nuns pequenos quadros com figuras de santos que estão sobre os fechos da arcaria. Os de Azeitão têm a data de 1648.
Busquei a Conceição de Beja por ser edificação da infanta D.ᵃ Brites, o Espinheiro por ser do meado do século XV, Alvito de época aproximada e a capela de Resende do primeiro quartel do século XVI, em toda a parte encontrei mais ou menos rica ornamentação de cerâmica policrómica e exemplares da Bacalhôa; mas se a Conceição de Beja excede esta em variedade e abundância de tipos, nenhum se lhe sobreleva em escolha de espécimenes e a todos falta o medalhão de médio e alto relevo circundado de molduras de opulenta ornamentação policroma.
Em Évora ouvi eu a um ilustrado cavalheiro, amador do belo, um asserto, que, pela verdade que encerra, não deixarei de registar aqui. Dizia ele: «Dos monumentos os mais terríveis inimigos são a classe clerical, os engenheiros e o tempo. Exemplos: a crasta da sé de Évora, obstruída, pejada, imunda e emparedadas todas as suas belezas pela corporação administradora da catedral; a Conceição de Beja, avariada pelas reparações em execução; o palácio acastelado de Alvito (e a Bacalhôa acrescentarei eu), em que o tempo se casou com o desleixo e o abandono».
O palácio e demais construções da Bacalhôa, repito, formam um monumento de alta significação para a história das artes em Portugal. Delimita dois períodos distintos, a arquitetura medieval e o estilo da Renascença.
O género arquitetural que se criou no paíz em nada ali ainda influiu. Se a torre cilíndrica recorda um passado que lhe toca, vêm os acessórios dar a mão ao renascimento que aparece. Nas lógias testemunha a influência do género florentino, em tudo o mais diz-nos que as primeiras lições de classicismo nos vieram da Itália. A proscrição da ógiva lança-nos para fora do período do seu domínio; o pleno cimbre, a janela de verga horizontal e cornija, a nudez de lavores, de rendilhados, de mil acessórios brincados, segredam-nos que a nova arte queria, no seu início, mostrar-se poderosa e intransigente nestas minúcias.
Em 1515 morre Albuquerque, o Grande, deixando largos haveres; seu filho casa por 1520, faz a viagem a Sabóia no ano seguinte, e na sua diversão por Itália conhece o belo, espargido a torrentes por toda a península. De volta ao reino enamora-se do palácio e quinta de Azeitão, propriedade da família de sua mulher, e de certo muito já ali havia de cativante para prender as atenções de quem deixava a Itália. Em 1528 adquiriu por compra a quinta e paços.
As construções cerradas pela cerca de muros da quinta demonstram a ação do gosto italiano na época da visita do filho de Albuquerque àquele país; não será aqui o artista que traça as conceções do seu génio, mas que explana no papel um tipo, de que o proprietário lhe apresenta os lineamentos gerais e que o impressionou na sua viagem.
Vimos que de Bolonha ou de Ferrara trouxe Albuquerque a ideia para as suas casas às portas do mar, a Casa dos Bicos, a sua paixão pela policromia em terra cota invetriata para ornamentação da sua quinta, decoração tão usada por toda a Itália naquela época, aparece claramente na Bacalhôa, aonde a semeou a mão larga nos mais variados espécimenes do género, embora já alguma coisa ali existisse.
Todos os tipos de majólica, aplicados à ornamentação de edifícios, ali se acham representados—o azulejo de cores lisas verdes, azuis ou brancos,[55] para mosaicos e formar o xadrez, o losango, o romboide, grade ou rede—o quadro histórico, mitológico ou simbólico, o azulejo formando só por si uma figura, o azulejo de desenhos combinados para quatro e cinco placas, a rajola de relevo estilo hispano-mourisco, ou renascença italiana, o medalhão de baixo, médio e alto relevo, esmaltado ou nu de revestimento vítreo, a moldura de flores singelas, ou de variada e opulenta composição vegetal, de tudo ali há finalmente, não faltando o busto do fundador, nu de revestimento vítreo para que a camada do esmalte não fosse amolecer as formas esculturais. As estatuetas em barro eram em considerável número, mas atualmente só existe uma e mutilada num nicho do pavilhão central do lago, de que não pode, por desviada, julgar-se do seu mérito.
O gosto de Albuquerque pelos barros cozidos passava a mania; as imagens que, do seu tempo, existem na vizinha igreja de S. Simão são de barro e algumas de grande vulto.
É a Bacalhôa um museu de cerâmica ainda abundantemente provido.
O desprezo total a que tinha sido votada, desde que a administração do morgado caiu na casa dos armeiros-mores, levava-a em breve ao aniquilamento; mas, felizmente, sucedeu ao duque de Albuquerque seu irmão D. Luís, conde de Mesquitela, que, compreendendo o valor daquele cofre de joias, cuida da sua conservação e da reparação do que é possível restaurar-se.
Se um estrangeiro entendido houvesse sonhado o que ali ia de bom, tinha tido ocasião de adquirir para o seu país quanto ali há de transportável e, só com aquela coleção variadíssima, organizar um museu precioso de espécimenes raros de majólicas. O palácio, porque só interessa à arte portuguesa, deixava-o ir na derrocada.
Era tão monstruosa a rapina, tão estúpida a voracidade de alguns visitantes, tão grande a destruição exercida nos barros esmaltados pelos falsos amadores da arte, ou verdadeiros amigos do alheio, tantas as mutilações feitas nos medalhões pelas pedradas do rapazio e pelos tiros de espingarda a que as figuras serviam de alvo, tudo nascido do desleixo inconsciente dos proprietários, que aos amadores do belo só restava o apelo[56] para qualquer governo, que, medianamente cioso do decoro nacional, expropriasse o edifício e quinta por utilidade pública, a bem da arte e sua história. E devia tê-lo feito o governo, quando resolveu adquirir o palácio acastelado da Pena em Sintra.
Ora a Pena, à parte a casa dos monges, é de hoje, pode reproduzir-se amanhã, porque não falta ainda nenhum dos elementos necessários para se levantar outra edificação igual, e julgou-se que a nação a devia tomar para si, quando, se um estrangeiro lançasse mão dela, não podia deslocar o edifício. A Pena é um caso esporádico de arquitetura, um capricho, uma fantasia de um homem dinheiroso. É o edifício belfo nas formas, esplêndido na situação; mas o que nos diz da história da arte portuguesa?...
... Diz-nos que por largos anos ali viveram vida contemplativa uns ascetas, que alcançaram convencer-se de que deste mundo passariam para outro cheio de felicidades. E isto o que pode é matar-nos de inveja pela sorte daqueles felizes por partidas dobradas. Diz-nos mais que houve um rei, que subia àquele monte e olhava o oceano, estendendo ao largo os seus olhares, para ver se apercebia uma vela que lhe trouxesse especiarias da Índia, ou levasse algum islamita, ou israelita de valia, escapado à sanha cruel do monarca. A arte só falia da aptidão artística de um estrangeiro, obrigado pela própria conveniência a permanecer em Portugal, e a quem, para matar saudades da sua terra, ou como recordações do seu país natal, aprouve plantar naquele cerro, em estação já imprópria para o plantio e frutificação, uma árvore da Germânia medieval.
A Bacalhôa, única no seu género num país que a pobreza de espécimenes raros distingue, é o monumento único que firma o renascer das artes em Portugal, e a ara votiva que o acaso fez chegar até nós, para memorar o alto génio de um rei que a história, lisonjeira dos afortunados, apenas representa como um tirano desapiedado.
Se tal monumento continuasse na derrocada em breve desapareceria quanto nele há de famoso para a arte e para a história.
Vimos que a quinta do velho João Vicente, monteiro-mor das inatas de Azeitão, e que partia de um cabo com Afonso das Leis e do outro com Nuno Martins I, foi tomada para si por D. João[32] na era de César 1459 (ano 1421) e passada pelo mesmo rei a Álvaro Anes, seu barbeiro.
Seis anos depois, o infante D. João adquiriu-a por compra, e, falecendo em 1442, sucedeu-lhe na posse da quinta sua filha D.ᵃ Brites, que, em 1447, casou com o infante D. Fernando, filho do rei D. Duarte e irmão de D. Afonso V. D.ᵃ Brites destinava a propriedade para seu neto D. Afonso, filho natural do duque de Viseu, D. Diogo, e de D. Leonor de Sottomayor, viúva do duque de Vila Hermosa. D. Afonso, que D. Manuel fez condestável de Portugal, casou em janeiro de 1501 com D.ᵃ Joana de Noronha, filha do primeiro marquês de Vila Real; por 1502 nasceu-lhe uma filha, D.ᵃ Brites de Lara, e em 1504 faleceu o condestável.
A infanta D.ᵃ Brites faleceu em 1506 e a quinta passou para D.ᵃ Brites de Lara, bisneta da infanta, que em 1519 casou com D. Pedro de Menezes, conde de Alcoutim e terceiro marquês de Vila Real. A quinta, que era do dote da marquesa, foi por esta vendida em 1528 a Afonso de Albuquerque, filho, casado com D.ᵃ Maria de Ayala e Noronha, filha de D. António de Noronha, primeiro conde de Linhares da casa de Vila Real.
É, pelo que exponho, erro que a quinta viesse ao Albuquerque no dote de sua mulher[33]; não é mais exato que se denominasse quinta do Paraíso[34] nem que houvesse sido de D. Jerónimo de Noronha, «o Bacalhau».
Afonso de Albuquerque, o Grande, saindo para a Índia em 1506, deixou no reino um filho natural, por nome Brás, legitimado por carta régia de 26 de fevereiro do mesmo ano. Brás teria uns cinco anos, e ficou entregue aos cuidados de sua tia materna D. Isabel de Albuquerque, casada com D. Pedro da Silva, o Reles de alcunha.
Se não pôde gozar os carinhos do pai, teve dele um dos seus últimos pensamentos. A 15 de dezembro de 1515 Afonso de Albuquerque, de bordo da nau Flor da Rosa, a caminho de Goa, escreveu ao rei D. Manuel uma carta em que lhe dizia:
«Senhor, quando esta escrevo a Vossa Alteza, estou com um soluço, que é signal de morte. Nesses reinos tenho um filho, peço a Vossa Alteza que mo faça grande como meus serviços merecem que lhe tenho feito com minha serviçal condição, porque a ele mando, sob pena de minha benção, que vo-los requeira...»[35].
No dia seguinte aquele vulto immenso, aquele génio assombroso, vergado ao peso de uma afronta do rei ingrato, era cadáver.
D. Manuel, quando teve notícia da morte de Afonso de Albuquerque e das suas últimas disposições, tratou logo de lançar mão do seu herdeiro para dirigir a jeito os cabedais, que haviam de advir-lhe.
Era um exímio caçador de heranças este rei, afortunado, distinguindo-se pelo seu faro fino e largo. A casa, que D. João II legou a seu filho Jorge, não lhe escapou para fazer dela compartícipe D.ᵃ Brites, filha do Bragança D. Álvaro; os haveres de Afonso de Albuquerque não podiam deixar de ir a algum da família do rei ou seu apaniguado.
Brás de Albuquerque entrou, por ordem de D. Manuel, no mosteiro de Santo Eloy, a cujos cónegos confiou a sua educação e, para que valesse mais com um nome prestigioso e afamado, fê-lo trocar o nome batismal pelo de seu pai Afonso de Albuquerque.
D. António de Noronha, que foi conde de Linhares, era filho segundo da casa de Vila Real, e Bragança por sua mãe. Não tinha grandes haveres, e desempenhava o cargo de escrivão da puridade. Tinha duas filhas, que[59] necessitavam de amparo. Foi uma destas, D.ᵃ Maria de Ayala e Noronha, a destinada a partilhar a herança do herói da Índia.
Brás, ou antes Afonso de Albuquerque, filho, era já mancebo dos seus dezanove ou vinte anos e, para casar com aquela dama, D. Manuel assinou-lhe um juro de 400$000 réis, e mandou-lhe pagar mais 180.000 cruzados, dos soldos em atraso ao governador da Índia e das quintaladas de pimenta ao mesmo devidas[36].
No ano seguinte, em 1521, Afonso de Albuquerque, ou melhor, o genro do escrivão da puridade de D. Manuel, foi escolhido com fidalgos de boa estirpe para acompanhar a Sabóia a infanta D.ᵃ Brites, filha do rei, casada com o duque Carlos, e teve o comando de um galeão de duzentos e trinta tonéis. O conde de Linhares ficou encarregado de alcançar na pessoa de seu genro a satisfação dos altíssimos serviços de Afonso, o Grande.
A infanta tinha-se recebido por procuração em Lisboa, no dia 7 de abril de 1521, mas só no dia 10 de agosto a frota que a conduzia saiu a foz do Tejo, fundeando em Nisa, porto do seu destino, no dia 29 de setembro.
A entrada pública da princesa na corte só se realizou em maio do ano seguinte; a oficialidade e fidalgos da armada, durante aquele espaço, faziam excursões pela Itália, e Albuquerque teve ocasião de se ilustrar, visitando diversas cidades daquele país fadado para as artes.
Entretanto D. Manuel, caindo doente a 4 de dezembro de 1521, morreu em uma sexta-feira, 13 do mesmo mês, entre as dez e as onze da noite, deixando por cumprir as promessas de satisfazer no filho os serviços do grande Albuquerque[37].
Afonso de Albuquerque com sua mulher e família habitou o palácio de Azeitão, como consta de diversos contratos aqui celebrados e em que ambos intervieram. É de crer que, aqui no remanso do lar, fora do bulício da corte, mais livre de importúnios, escrevesse os Comentários; é possível também que, mais de uma vez, em Azeitão se encontrasse com Cristovão de Moura,[60] no tempo em que D.ᵃ Francisca de Távora, irmã deste, casada com Álvaro de Sousa, habitou a sua casa de Alcube.
Da união de Afonso com D.ᵃ Maria de Noronha nasceram dois filhos, António, que morreu moço, e D.ᵃ Joana de Albuquerque, primeira mulher de D. Fernando de Castro, primeiro conde de Basto, capitão-mor de Évora e que faleceu sem geração.
Afonso de Albuquerque em 1568 era sem sucessor, e no dia 27 de janeiro, em Azeitão, ele e sua mulher, D.ᵃ Maria de Noronha, vincularam a quinta de Azeitão com seu assento de casas, pomar e vinha, cercados, oros havidos e por haver, e as casas de Lisboa às Portas do Mar[38], que partiam com o Dr. Luís da Veiga e com a mulher, que foi de Ayres Tavares, instituindo um hospital na igreja do bem-aventurado S. Simão, que era junto da quinta de Azeitão, para nele se agasalharem pobres caminhantes.
O título foi escrito, a rogo dos instituidores, pelo licenciado Aleixo de Albuquerque, seu capelão, e foi aprovado no dia 28 de fevereiro do mesmo ano, na quinta do Sr. Afonso de Albuquerque pelo tabelião João Rodrigues.
No hospital, a que agora se chamaria albergue, deveria haver cinco camas em memória das chagas de Cristo. Em cada cama caberiam duas pessoas e teriam seus estrados de madeira, enxergão de palha, dois cobertores de almáfega, uma manta do Alentejo, um travesseiro de lã, e outro de almáfega. As roupas e camas deveriam ser renovadas anualmente.
O albergado poderia demorar-se três dias além do da entrada, teria azeite para luz toda a noite e, durante o inverno, lenha para se aquecer e enxugar o fato. Vindo doente, poderia demorar-se cinco dias, recomendando à caridade dos administradores do vínculo, quando fosse na quinta, proverem os enfermos do necessário. Pedem aos albergados, que cada um reze cinco vezes o Padre nosso e a Avé Maria pela alma dos instituidores e de Afonso, o Grande.
Nomeiam para lhes suceder na administração do morgado seu sobrinho André de Albuquerque, que escolherá consorte na família de D. Maria de Noronha; na falta de André buscar-se-á sucessor na descendência de seu avô Gonçalo de Albuquerque, e prescrevem miudamente a forma da[61] successão. O administrador do vínculo chamar-se-á sempre Afonso de Albuquerque, e sendo mulher tomará este appelido. Cumpre-lhe mais fazer cantar em dia de S. Simão uma missa com pregação, e que o orador peça três Avé Maria por alma dos instituidores.
Dispõem que não possa suceder no morgado o mentecapto, o abreviado de juizo, o furioso, ou herético, o que for contra o reino, a fêmea que não for virtuosa, ou fizer como tal usando mal de si; também não sucederá o que tiver defeito algum que não possa ser casado. O que não se determina é o modo de verificar-se a última inabilidade, de certo não quereriam que se fosse além das exigências da igreja romana aos eleitos para o sumo sacerdócio.
O administrador era obrigado a aumentar o vínculo com metade da terça dos seus bens livres. A inspeção anual do hospital deixavam-na a cargo do visitador do arcebispado de Lisboa, ou ao do mestrado de Santiago, conforme o que primeiro viesse à visita.
Mandam extrair três tratados da instituição, um para a Torre do Tombo, outro para o cartório do mosteiro de Santo Eloy, e o terceiro para o administrador do morgado. As disposições relativas ao hospital mandam que sejam gravadas numa lápide sobre a porta daquele estabelecimento de caridade.
Conheço a casa, há muito por terra, mas não vejo nem mesmo sinais de ali ter havido a tal lápide.
Em 20 julho de 1570, Afonso de Albuquerque obriga-se por escritura à construção de uma igreja para se fundar a nova freguesia de S. Simão, desmembrando-se da de S. Lourenço todas as povoações mais orientais. A conservação do templo também ficou a cargo do morgado.
O esprital de peregrinos em Azeitão e a igreja pegada com ele foram feitos com o produto da venda dos foros de casas, que Afonso, o Grande, havia deixado em Goa, para se dizer missa quotidiana por sua alma na capela de Nossa Senhora da Serra, por ele edificada sobre a porta porque o grande capitão entrara na cidade, e que lhe serviu de primeiro jazigo[39].
O remanescente daquelas rendas seria distribuído em esmolas, dadas às sextas-feiras aos meninos orfãos filhos de portugueses. Uma bula pontifícia autorisou a permutação, ficando em Goa uma renda de 40$000 reis para a missa quotidiana na capela[40]. Na retirada de Aden, a nau Nossa Senhora da Serra tocou no fundo com perigo de Afonso de Albuquerque e de toda a guarnição que na nau vinha. Escapando salvos, o governador deu 1000 cruzados e com outras esmolas se edificou a capela votiva sobre a porta chamada de Baçães. Para renda desta capela, dedicada a Nossa Senhora da Serra, Afonso de Albuquerque fez construir nas ruas próximas quarenta e oito boticas (casas para lojas de venda).
Por morte de Afonso, filho, já se celebravam os ofícios religiosos na igreja de S. Simão, e era constituída a nova circunscrição paroquial.
Afonso projetou transladar para esta igreja os restos do grande Albuquerque, seu pai; no seu testamento dispunha sepultar-se também ali e sua primeira mulher; parece, contudo, que nada disto se realizou, porque não há tradição local que o diga, e os registos da igreja são mudos a tal respeito.
O templo é de três naves, sendo abobadadas as laterais; a central ainda por morte do fundador tinha o teto por forrar. Cinco arcos de pleno cimbre, repousando em colunas dóricas, abrem as naves menores sobre a principal.
Uma das imagens mais venerada é a Virgem da Saúde, ali posta por Albuquerque; poderia ser recordação e ter relações com a peste de Lisboa em 1569, em que Afonso, então presidente da municipalidade da capital do reino, se distinguiu pelos serviços à cidade assolada pela terrível epidemia.
As paredes do templo são de alto a baixo vestidas de excelente azulejo liso, com desenho a três cores; sobre cada arco há um quadro com uma imagem de santo. Na parede da nave do Evangelho, num quadro[63] representando o Batista, lê-se: «Juiz, escrivão e mordomos mandaram fazer esta obra. Os que agora servem este ano de 1648.»
Este pessoal era da confraria de S. João. O exterior da igreja é singelo, teve uma torre em cada ângulo; mas, derribadas pelo terramoto de 1755, o administrador do morgado, a quem competia a conservação cio templo, apenas levantou a que atualmente existe.
Na escritura para a construção do templo em 1570 não intervêm D.ᵃ Maria de Ayala e Noronha, mas por um contrato de aforamento de 4 de agosto de 1578 vejo que ainda neste ano existia; não iria, porém, muito além do seu falecimento.
Bem carregado de anos estava já a este tempo Afonso de Albuquerque, mas é certo que Afonso se achou capaz de passar a segundas núpcias com D.ᵃ Catarina de Menezes, e que esta dama não desdenhou o velhote. Como era de prever, Afonso continuou sem geração legítima, e D.ᵃ Catarina, tendo dúvidas sobre a procedência da inabilidade de procriação, passou, por morte de seu marido, também a segundas núpcias com D. João Coutinho, e veio a convencer-se, duas vezes, de que não fora por ela que se extinguira a raça do grande Afonso.
Cerca de 1581 falecem Albuquerque, filho, sem descendência legítima, mas deixando legitimado D. João Afonso de Albuquerque. Não serei eu que afirme, passados três séculos, a verdadeira procedência deste mancebo; lembro que em 1568, quando já Afonso, filho, orçava pelos seus sessenta e oito anos, ainda D. João não era nascido.
Por morte de seu pretenso pai, D. João Afonso era menor. Foi o Dr. Brás Dias de Abreu, juiz dos orfãos em Lisboa e clãs partilhas da fazenda de Afonso de Albuquerque, que se propôs sustentar os direitos do menor, a quem foi dado por tutor António Fernandes da Silva.
D. João esteve na posse do morgado. Em Azeitão enamorou-se de D.ᵃ Isabel de Cerqueira, filha de Francisco de Cerqueira Veloso, secretário do duque de Aveiro, e com ela vem a casar, tendo apenas um filho, D. Afonso de Albuquerque, que em 1617 embarcou para a Índia, onde em pouco morreu sem geração.
Largos foram os litígios à herança de Albuquerque, filho, não só sobre o morgado de Azeitão, instituído por Afonso e D.ᵃ Maria de Ayala, mas também com respeito ao vínculo que Albuquerque, o Grande, formara na Índia.
Darei, de passagem, notícia deste morgado e sucessão.
Albuquerque, no testamento que fez na Índia, criou uma capela para seu filho Brás, e, estabelecendo a sucessão, dizia:
«E acontecendo os casos que dito tenho, a não haver filhos do meu filho, ou falecendo antes de mim e ficando assim, quero que Pero Correia os haja (os bens) e seus filhos com condição de os dar a quem o fizer melhor e cumprir e, não ficando filhos, torne-se esta capela ao filho de D. Fernando, o mais velho, e de D.ᵃ Constança minha irmã.»
Por morte do instituidor, a capela passou para seu filho Brás; ao tempo da morte deste, porém, Pero Correia era falecido sem geração, D. Fernando, D.ᵃ Constança e seus filhos também haviam morrido, o parente mais próximo que por então existia era D.ᵃ Luísa de Noronha, neta daqueles cônjuges.
Os filhos de D.ᵃ Constança e D. Fernando haviam sido: D. Afonso, primogénito, D. Álvaro, D. Garcia e D. António.
Como opositores ao morgado da Índia, apresentaram-se D.ᵃ Luísa de Menezes, bisneta de D. Álvaro, D. Garcia, neto do outro D. Garcia, D. Aleixo de Menezes[41], neto de D. Álvaro, e D.ᵃ Violante, neta de D. Afonso.
O litígio durou até 1615, e no dia 20 de junho foi dada sentença, que conferia a administração vincular a D.ᵃ Luísa de Menezes, porque sua avó D.ᵃ Luísa de Noronha, neta de D.ᵃ Constança, era ao tempo da morte de Afonso de Albuquerque, filho, a mais próxima parente viva de D.ᵃ Constança de Castro.
Ao morgado instituído por Albuquerque e sua mulher D.ᵃ Maria de Ayala de Noronha apareceram outros opositores.
No testamento e instituição do vínculo dizia-se: «Outrossim não sucederão na dita administração filhos bastardos, nem espúrios, nem[65] adulterinos, salvo se forem filhos naturais de mulher honrada (nobre), estes havemos por bem que possam suceder, quando não houver filhos legítimos».
Em 1568, data daquele título, já Afonso, filho, não tinha descendência legítima e D. João Afonso de Albuquerque, que ele cria seu filho natural, ainda não era nado. Em tempo, Afonso de Albuquerque requereu a legitimação do filho, e obteve deferimento, declarando o rei que ele fosse tido como filho de legítimo matrimónio. Esta cláusula expressa parece que devia conferir-lhe todos os direitos para suceder a seu pai; estas seriam as intenções do requerente e o sentido do escrito real, contudo, como a jurisperícia é de urna versatibilidade toda feminil, D. João Afonso não foi julgado sucessor do vínculo de Azeitão, embora se lhe conferissem direitos a outros bens, que herdou de seu pai.
A viúva de Afonso de Albuquerque, não sei sob que títulos e direitos, pretendia a administração do morgado de Azeitão.
O Dr. Eduardo Brandão, lente de cânones na universidade de Coimbra, foi o patrono do menor, e fundamentando os direitos do seu cliente, alegou que D. João Afonso era filho de Afonso de Albuquerque, nascido de mulher nobre e honesta—que seu pai no requerimento para a legitimação bem claramente se expressara dizendo: «porque a minha intenção é legitimar ao dito D. João Afonso de Albuquerque como mais posso fazer»—que o rei, deferindo, confirmara o sentido destas palavras com estoutras: «legitimo, habilito e faço legítimo como se de legítimo matrimónio fosse nascido», que o pai o escolhera para suceder-lhe pelo direito, que cabia ao instituidor sobrevivente, conforme o texto da instituição «o que derradeiro falecer poderá nomear um dos descendentes de Gonçalo de Albuquerque, meu avô, qual ele quiser», e que esta mesma disposição aproveitava ao seu cliente, único filho de Afonso de Albuquerque e descendente direto de seu avô Gonçalo.
Os direitos de D. João Afonso prevaleceram aos de D.ᵃ Catarina de Menezes, viúva de Afonso; o menor foi metido na posse do morgado, pelo menos, até 1585, porque encontro documento que o comprova; no entanto, as dúvidas suscitadas durante o litígio despertaram novos contendores.
De Gonçalo de Albuquerque e de D.ᵃ Leonor de Menezes, filha do primeiro conde de Atouguia, haviam nascido:
—Fernando de Albuquerque, primogénito;
—Afonso de Albuquerque, o Grande;
—D.ᵃ Constança, casada com D. Fernando de Noronha;
—D.ᵃ Isabel, casada com D. Pedro da Silva «o Reles»;
—Álvaro Gonçalves de Ataíde, que foi prior de Vila Verde, e
—Martins Gonçalves de Ataíde, morto pelos mouros em Arzila.
Fernando, que sucedeu a seu pai no senhorio de Vila Verde, casou com D.ᵃ Catarina da Silva, filha do senhor de Barra-a-Barra. Desta união nasceram duas filhas: D.ᵃ Guiomar e D.ᵃ Joana.
D.ᵃ Guiomar de Albuquerque casou com D. Martinho de Noronha. Herdou a casa de seus pais, e foi por este casamento que os descendentes alcançaram a casa de Vila Verde e continuaram no appelido de Noronha.
Destes nasceu D. Pedro de Noronha, que casou com D. Violante de Noronha, filha do senhor de Sarzedas, e foi o sexto senhor de Vila Verde.
Destes nasceu outro D. Pedro de Noronha, que casou com D.ᵃ Catarina de Ataíde, filha do conde da Vidigueira, e foi o sétimo senhor de Vila Verde.
Deste nasceu D. Francisco Luís de Noronha, que tomou o apelido Albuquerque quando quis em 1596 suceder no morgado de Albuquerque em Azeitão. Casou com D.ᵃ Catarina de Vilhena e Sousa, sua sobrinha, filha de D. Manuel de Sousa e Távora, e foi o oitavo senhor de Vila Verde.
Foi D. António de Noronha, décimo segundo senhor desta casa, que recebeu de D. João IV em 1654 o título de conde de Vila Verde, e seu filho D. Pedro António de Noronha Albuquerque e Sousa o de primeiro marquês de Angeja por mercê de D. João V em 1714.
D.ᵃ Joana, segunda filha de Fernando de Albuquerque e de D.ᵃ Catarina da Silva, tomou o apelido de sua mãe; chamou-se D.ᵃ Joana da Silva e Albuquerque, e casou com Jorge Barreto, comendador de Castro Verde.
Destes nasceu Pedro Barreto, comendador de Almada, que casou com D.ᵃ Paula de Brito, de quem nasceu:
D.ᵃ Joana de Albuquerque, que casou com Manuel Teles Barreto, comendador de Aveiro e que foi governador do Brasil. Esta dama existia ao tempo, que D. João Afonso litigava com D.ᵃ Catarina de Menezes a posse do morgado de Azeitão, e apresentou-se também como oponente.
De uns papéis da casa Mesquitela colhi que D.ᵃ Joana estivera na posse do morgado, mas isto seria temporariamente, pois que a causa foi sentenciada na relação a favor de seu filho Jerónimo Teles Barreto, e, requerida revista pelo advogado de D. João Afonso, foi-lhe denegada pelos juízes drs. Álvaro Lopes Moniz e Jerónimo Pimenta de Abreu[42].
Em 1588 já andavam tão descurados os bens do morgado, que o albergue de S. Simão era um pardieiro, sem camas nem outra coisa para agasalho dos caminhantes. Melchior Lopes, administrador da albergaria, ignoro por que título, havia vendido ao conde de Portalegre, D. Álvaro da Silva, por 25000 reis, uma casa e chão, que faziam parte do estabelecimento. É da visitação do bispo de Targa, D. Sebastião da Fonseca, feita à freguesia de S. Simão a 26 de maio daquele ano, que isto consta.
Pela visitação de 1607 não se conhece quem estava na posse do morgado, e não era o proprietário melhor cumpridor dos encargos, porquanto a igreja de S. Simão era ainda em parte sem forro e toda sem sobrado, de modo que o visitados manda que seja juncada três vezes por ano, pela Semana Santa, pelos Santos, e pelo Natal; a albergaria continuava sem camas, e corria execução contra Melchior Lopes por ter alheado casa e chão sem licença régia.
Em 1588 o bispo de Targa manda que a igreja seja forrada de madeira de bordo, sob pena de 50 cruzados. A visitação de 27 de outubro de 1607 é feita pela ordem de Santiago, e nela os visitadores Jacomo Ribeiro de Lemos e Fernão Velho da Silva dizem: «porquanto corre demanda sobre quem há de ser herdeiro do dito defunto (Afonso de Albuquerque, filho) nem há administrador certo ..., e mandam aos oficiais da igreja «que tanto que houver herdeiro certo e administrador dos bens e fazenda» lhes façam notificar as ordens dos visitadores e a pena em que incorrem não cumprindo.
De D.ᵃ Joana de Albuquerque e Manuel Teles Barreto tinham nascido cinco filhos:
—Afonso Teles Barreto, que morreu solteiro sem geração;
—Manuel Teles Barreto, frade dominico, também sem geração;
—Lizuarte Teles Barreto, que morreu sem geração;
—Jerónimo Teles Barreto, a favor de quem foi sentenciada a causa, ficou na Índia prisioneiro dos holandeses; faleceu sem geração, e o morgado de Afonso de Albuquerque coube a sua irmã;
—D.ᵃ Maria de Mendonça e Albuquerque, casada com D. Jerónimo Manuel, de alcunha «o Bacalhau».
A sentença que deu a estes a posse do morgado seria dos primeiros dias de janeiro de 1609, porquanto encontro uma escritura de 24 daquele mês, que já dela faz menção.
O registo de um batismo na freguesia de S. Simão, de 21 novembro de 1610, já dá notícia da estada daquela família na casa de Afonso de Albuquerque em Azeitão, fazendo menção de D. Jorge Manuel de Albuquerque, filho de D.ᵃ Maria e D. Jerónimo, como padrinho de uma criança.
Cabe aqui uma retificação. No Resumo histórico dos Albuquerques diz-se «que a quinta de Azeitão e Casa dos Bicos foram fundadas pelo primeiro conde de Linhares e dadas em dote a sua filha D.ᵃ Maria de Ayala», que os terrenos da quinta foram cedidos por D. Jerónimo de Noronha, por alcunha «o Bacalhau», sobrinho do conde.
Já atrás fica demonstrado o erro, dando-se a génese da quinta, que vem de tempos muito anteriores.
Também no mesmo Resumo histórico, dando-se conta da origem da alcunha «Bacalhau», comum a dois Jerónimos, diz-se assim: «Em uma das expedições, que de Portugal foram para a Índia, embarcaram nela D. Jerónimo de Noronha, sobrinho do primeiro conde de Linhares, e D. Jerónimo Manuel.
O primeiro, como se sabe, era mais velho que o segundo, e, além disso, ia por capitão da nau.
Dizem que a viagem foi longa e tormentosa e o escorbuto principiava a grassar na tripulação, atribuindo-se tal enfermidade à constante alimentação de bacalhau, que nesse tempo era havido como muito nocivo à saúde.
D. Jerónimo Manuel dirigiu-se um dia ao capitão-mor da nau e disse-lhe que era mister providenciar sobre o caso, etc., etc. O capitão respondeu-lhe: E por que modo? Os doentes que comam as nossas rações e nós o bacalhau.
Na volta destes dois cavalheiros à corte, soube-se do facto, e, como era então mania alcunharem a todo o mundo, ficaram os dois sendo conhecidos pelos «Bacalhaus».
D. Jerónimo de Noronha tolerou a alcunha, que só durou em sua vida, D. Jerónimo Manuel ufanava-se de a ter, e foi por isso que passou a ser usada por seus filhos e netos.»
Decerto isto não foi invenção do autor do escrito referido, mas erro de informação.
D. Jerónimo de Noronha, filho de D. Henrique de Noronha, irmão do primeiro conde de Linhares, foi por capitão da nau S. Pedro na armada, que partiu para a Índia em 17 de março de 1545, conduzindo o vice-rei D. João de Castro. Ali foi capitão-mor de Baçaim. Voltando ao reino, nunca mais embarcou[43].
D. Jerónimo Manuel de Albuquerque, «o Bacalhau», teve em 1614, isto é, sessenta e nove anos depois da viagem de D. Jerónimo de Noronha, o comando da armada, que nesse ano foi para a Índia, donde só voltou em 1618. Morreu na sua quinta de Azeitão a 16 de janeiro de 1620, como se vê setenta e cinco anos depois da viagem de D. Jerónimo de Noronha.
Se o que exponho ainda não bastasse para convencer, poderia acrescentar que D. Henrique, pai de D. Jerónimo de Noronha, já era alcunhado «Bacalhau». Num nobiliário manuscrito da casa dos condes de Carvalhais, e que tenho à vista, lê-se: «D. Pedro de Menezes, casou três[70] vezes, a primeira com D.ᵃ Leonor de Castro... e houve... a D.ᵃ Maria de Menezes, mulher de D. Henrique de Noronha, por sobrenome o Bacalhau, filho do primeiro marquês de Vila Real.»
D. Jerónimo Manuel, o Bacalhau, de posse do morgado, vem com sua família residir no seu palácio de Azeitão, e a 26 de setembro de 1613 aqui faleceu sua mulher, que foi sepultada em S. Simão junto com o altar-mor.
Chegado ao reino, depois da viagem da Índia, voltou D. Jerónimo para a sua quinta, aonde faleceu a 16 de janeiro de 1620, e sepultou-se na mesma igreja no tabuleiro do altar-mor, disseram-me, (acrescenta o cura Pedro de Magalhães), com testamento ao conde da Vidigueira.
D. Jerónimo Manuel e D.ᵃ Maria tiveram três filhos, já nascidos quando se estabeleceram na quinta de Azeitão: D. Jorge Manuel de Albuquerque, D. Lourenço Manuel e D. António de Mendonça.
—D. Lourenço Manuel morreu sem geração.
—D. Jorge Manuel de Albuquerque sucedeu na casa de seu pai, e teve de sua mãe o morgado de Azeitão, continuando aqui a residência.
Os livros de notas dos tabeliães e os registos paroquiais até meado de 1624 fazem-lhe repetidas referências. Em África portou-se sempre como soldado valente. Irrequieto nos seus procedimentos[44], foi por alguns crimes degredado para Mazagão, aonde esteve preso por ordem do governador D. Gonçalo Coutinho.
Pela restauração estava em Madrid, recebendo de Filipe IV de Espanha o título de conde de Lavradio, que em Portugal lhe não foi confirmado.
Algum tempo depois voltou para a sua casa de Azeitão, aonde faleceu no 10 de outubro de 1651, sendo sepultado na capela-mor de S. Simão. Tinha casado com D.ᵃ Teresa Maria Coutinho, filha de D. Francisco da Gama, quarto conde da Vidigueira e almirante da Índia, de quem nasceram D. Jerónimo Manuel de Albuquerque, batizado em S. Simão a 21 de[71] dezembro de 1639, e D. Francisco Manuel de Albuquerque, nascido a 20 de janeiro 1650 e balizado na mesma freguesia no dia 5 de fevereiro.
A viúva de D. Jorge Manuel, que nascera em 5 de agosto de 1616, morreu na quinta de Azeitão a 25 de outubro de 1657, com testamento a seu irmão o marquês almirante, e foi sepultada ao pé do altar-mor de S. Simão.
D. Jorge Manuel em 1630 requereu a tombação do morgado, designando para este serviço o licenciado Manuel Álvares Frausto, juiz de Marvão, e que fizera o tombo das freiras do Salvador de Lisboa. Diz o requerente que as propriedades se achavam alheadas, divididas e sonegadas pelas muitas demandas que houve sobre a sucessão do morgado. O alvará, que defere o pedido, é de 31 de maio de 1631.
Deixemos a petição e alvará para podermos conhecer o palácio e cerca nesta época, conforme a descrição feita na tombação:
«Umas casas muito grandes e muito nobres, edificadas com muito primor, com varandas de todas as partes e casas, e muitas salas, câmaras, recâmaras, como abaixo se declarará especialmente e o número delas, postas da parte do norte e do levante, ficando a quinta e pomar com seus jardins da parte do sul e poente, e tem o sítio das ditas casas em circuito pela extremidade da parte de fora a saber:
Da banda do nascente, indo do norte a sul, de extremo a extremo do edifício e assento das casas, tem trinta e quatro varas e meia, e cada vara de cinco palmos, dos que falia a ordenação deste reino.
E da parte do norte, de nascente a poente, de extremo a extremo, tem trinta varas e meia.
E da parte do poente, em uma ponta que o edifício faz, tem catorze varas e meia, e vindo da parte do poente para o nascente contra o sul, tem vinte e seis varas, e voltando de norte a sul, pela banda do poente, na ponta que o sítio das casas faz para o sul, tem vinte e quatro[72] varas e, neste vão, ao longo do edifício das ditas casas, está um jardim com uma fonte e casa de água no meio, de que se faz a declaração e medição seguinte:
E pela parte do sul de nascente a poente e pelo extremo da ponta, que as ditas casas fazem para a dita parte do sul, tem, de canto a canto, oito varas e nesta forma fica o edifício todo medido em circuito, todo com as ditas pontas, que fazem as ditas casas para o poente e sul, e tem cento e trinta e sete varas, que são juntas as medições atrás declaradas.
Tem mais estas casas três cubelos nos três cantos, que se fazem para fora contra o norte, dois ao norte e um ao sul, com que ficam muito realçadas e lustrosas, e a entrada, que está em um pátio muito grande com seus portais, cerrado de muro, em que se correram e podem correr touros, está uma escada toda de pedraria com uma volta, toda com seus balaústres de mármore, que formosa a entrada da primeira sala. As quais casas têm de salas, câmaras, recâmaras, retretes e antecâmaras dezoito em número, todas espaçosas e todas ladrilhadas e com azulejos pelas paredes, altura de mais de um covado e algumas retretes todas lavradas de azulejo e os tetos lavrados de bordo e com molduras, e pintados de diversas e agradáveis pinturas, e por baixo outras muitas casas e oficinas e armários, que respondem às casas superiores, mas repartidas em muito maior número.
Tem mais duas varandas com seus arcos de jaspe e colunas do mesmo, uma para a banda do poente e outra para o norte com suas grades de ferro até ao meio, com seus azulejos até meio das paredes com figuras. Tem a varanda da parte do poente de comprido onze varas e meia e de largo quatro varas. E a varanda da parte do norte, em que não há grade de ferro, tem uma meia parede de pedra lavrada, com seus azulejos por dentro, sobre que armam as colunas, tem de comprido dez varas e de largo quase três varas. E os portais de todas estas casas são de pedraria de jaspe, com suas portas de bordo e muito bem lavradas e com suas chaminés de pedraria e todas as mais pertenças respondentes à qualidade do edifício.»
«Tem um pátio defronte das ditas casas cercado de muro com dois meios cubelos, com duas portas, pelas quais se entra e são a entrada pública e é comum a todos e feito em quadro. Tem do norte a sul trinta e cinco varas, e de nascente a poente trinta e cinco e meia, e para a parte do nascente tem uma varanda de colunas de jaspe, que serve entre as casas térreas e gasalhados de criados, e tem um chafariz de água a uma parede da banda do norte.»
«Um jardim, que fica entre as duas pontas das casas atrás medidas, com o qual fica o sítio das ditas casas em quadrângulo. Tem de norte a sul pela parte do poente e por onde confronta com o pomar, que se segue, vinte e quatro varas e de poente a levante outras vinte e quatro, e pelos outros dois lados confronta com as casas, com uma fonte ao meio e em roda com seus canos de água e pelas paredes cidreiras e limoeiros, com meias paredes de azulejo feito em quadro. É arruado e ladrilhadas as ruas.»
«Tem um pomar contíguo às casas e jardim, que lhe ficam para a parte do levante, todo plantado de infinitas laranjeiras em ordem, limoeiros e cidreiras fora todo o mais género de frutas, muito espessas e plantadas em ordem e fileiras, o qual está todo cercado ao redor de um muro mais de doze palmos em alto e pela parte de dentro com suas ruas de azulejo, que abaixo se declaram. Tem do nascente, ou jardim, atrás declarado, até ao tanque de água por uma rua cercada de azulejos e alegretes e ladrilhada de largura de mais de três varas, oitenta e quatro varas e neste canto, que o dito pomar faz para o poente, está um tanque de água, ladrilhado por baixo, que cobre um homem, cercado de pedraria e de azulejos, feito em forma quadrada; tem vinte e nove varas de canto a canto e fazem em circuito cento e dezasseis, do qual se rega todo o pomar atrás declarado com água do rio de S. Simão, de[74] que lhe pertence toda a dita água quatro dias naturais e três horas cada nove dias.
Tem o dito tanque, na cabeceira pela parte do sul, cinco casas de prazer armadas com colunas de jaspe e forradas todas de azulejo e os tetos pintados em estuque com várias histórias e figuras, e ao lado das ditas casas de prazer, para a parte do nascente, tem um jardim com seus alegretes na distância e largura das mesmas casas.
E a água que cai para o dito tanque, cai pela boca de uma baleia artificiosa com um Tritão em cima, que formoseia muito o dito tanque e casas de prazer, e com figuras várias em nichos, feitos de pedraria pelas paredes do dito tanque.
Tem mais o dito pomar pela parte do poente, começando do sul e norte, outra rua, que vai do dito tanque, da mesma largura e feitio com seus azulejos e alegretes e pela parede seus nichos com várias figuras, que tem cento e dezasseis varas, e no remate do canto de baixo, da banda do norte, tem uma casa quadrada com quatro janelas, em que estão pintadas sobre estuque[45] as histórias da Índia, com as quatro cidades principais conquistadas pelo grande Afonso de Albuquerque, pai natural de Afonso de Albuquerque, instituidor deste morgado.
Tem esta rua, da parte do poente, uma porta, que sai para a igreja e freguesia de S. Simão, pouca distância de portal a portal, da qual igreja é costume sair a procissão da Ressurreição de Cristo Nosso Salvador e correr as ruas do dito pomar e tornar-se a recolher pela mesma porta à mesma igreja.
Tem o dito pomar do dito canto da Casa da Índia, atrás declarada, de poente a nascente, pela banda do norte, cento e trinta e sete varas, que também servem para medição da vinha abaixo declarada, que confina com o dito pomar pela banda do norte e do canto, que o muro faz para a banda do nascente até ao jardim, donde esta demarcação e medição começa, subindo de norte a sul, tem cento e seis varas, ficando no meio a ponta que as casas fazem para o parte do poente, que se metem entre o jardim e o pomar. Pela parte donde a dita demarcação dele começou, em o dito canto de baixo, está[75] uma casa, que se chama das Pombas, com um bufete de jaspe ao meio. E da dita casa, na largura dela, que corre de norte a sul, como se diz atrás, até às ditas casas principais, vai uma rua de ladrilho com seus alegretes de azulejo na forma das outras ruas atrás declaradas.»
«Tem mais uma vinha pela parte do norte, que dos lados fica dentro dos muros do pomar atrás confrontado e dividida do dito pomar pelo muro menos principal. Tem do sul ao norte, pela parte do nascente, cento e trinta e três varas e de nascente a poente, pela parte do norte, cento e quarenta e duas varas e meia, e pelas outras duas partes tem a mesma medida de varas por estar em forma quadrada.»
«Tem defronte do pátio das casas principais, atrás confrontado e medido, para a parte do nascente está um pátio contíguo ao outro atrás, o qual tem as casas seguintes e de comprido de norte a sul vinte e três varas e de nascente a poente treze e meia, e para este pátio se entra por duas portas, a saber: uma, a porta menos principal, que vai do outro pátio para este entre as casas dos criados e outra porta maior e principal para a parte do norte, por onde pode entrar um coche, e defronte dela fica uma cocheira, e à ilharga, da parte do norte, fica um lagar de vinho, e à outra ilharga, para a parte do nascente, um lagar de azeite com quatro varas e dois moinhos e duas caldeiras e todas as mais pertenças necessárias aos ditos lagares, e para a moenda destes lagares vem a água do rio de S. Simão, que lhe é necessária por servidão enquanto moer.
E por baixo do dito lagar pela parte do norte, junto à porta principal por onde se entra no pátio, correm umas estrebarias para a parte do norte, que têm de comprimento vinte e sete varas e meia, e de largo quatro varas, cuja porta de serventia está dentro do dito pátio com porta fechada sobre si, dentro do qual pátio estão dois fornos de cozer pão...»
«Uma terra, que serve de rossio e parte com as mais casas da quinta atrás, da parte do sul com os muros dos pátios, do nascente com as casas das estrebarias e vizinhos que seguem... do norte parte com estrada pública, que vai das Vendas para o mosteiro de Azeitão, e do poente com cerca e muro da vinha e pomar da dita quinta...»
O documento de que me estou servindo, segue na descrição de outras propriedades do morgado, que não importa conhecer, no entanto, aproveitar-me-ei dele, na parte referente às:
«Um pátio e casa grande, que serve de hospital e outra do hospitaleiro e outra dos doentes, que são por todas três e um pátio, que está em aldeia de Vila Freixe, junto à igreja de S. Simão. Tem de comprido, de levante a poente, pela parte do norte e sul, dezoito varas e de largo onze varas. Parte ao norte com as casas da mulher de André Fernandes e ao sul com a igreja de S. Simão e ao poente com logradouro da aldeia e ao nascente com logradouro e cerca da quinta deste morgado.»
A casa do açougue também era pertença do morgado e é descrita assim:
«Uma casa, que serve de açougue, que está fora dos muros da quinta, parte do nascente com muro do cano da água, que vai aos lagares da dita quinta e do norte com os mesmos lagares e do poente com terra e logradouros da quinta e do sul com as casas de Francisco Nunes, foreiro à dita quinta. Tem de comprido quatro varas e meia e de largo duas varas.»
A descrição desta casa pouca importa para a nossa história; mostra, porém, que na quinta e palácio se concentrava toda a vida do lugar; de um lado e quase junto aos muros, o hospital e a igreja, do outro a casa do mercado.
Seguirei tratando dos senhores do morgado.
O primogénito de D. Jorge Manuel é, nos nobiliários, chamado D. Jerónimo Manuel, no entanto, nos contratos, feitos por sua mãe durante a tutoria deste filho, é apelidado D. Jerónimo Afonso de Albuquerque.
Sobreviveu a seu pai, sucedeu-lhe na administração do morgado de Azeitão, mas não foi (se foi) muito além da morte de sua mãe. D.ᵃ Theresa faleceu em outubro de 1657. No fim do ano seguinte já se encontra por herdeiro de Jerónimo seu irmão Francisco Sebastião de Albuquerque, criança de oito anos, sob a tutela de seu tio materno D. Vasco Luís da Gama, almirante da Índia e primeiro marquês de Nisa.
Bem novo encetou D. Francisco a carreira das armas, pois em 1663 já se encontra na restauração de Évora. Em 1666, quando o conde de S. Vicente, João Nunes da Cunha, passou à Índia por vice-rei, D. Francisco Sebastião acompanhou-o e em breve ali morreu, como seu irmão Jerónimo, solteiro e sem geração legítima. Até fins de 1668 ainda os contratos são celebrados pelo marquês de Nisa, como tutor de seu sobrinho Francisco. Em princípio de 1669 já era falecido.
De D. Francisco Sebastião de Albuquerque[46] apenas ficou uma filha natural, D.ᵃ Maria de Albuquerque, freira em Odivelas.
Extinto este ramo, a casa foi devolvida ao primogénito de D.ᵃ Antónia de Mendonça, irmã de D. Jorge Manuel.
Dos filhos de D. Jerónimo Manuel, «o Bacalhau», D.ᵃ Antónia de Mendonça casou com Pedro de Mendonça, alcaide-mor de Mourão, comendador de Santiago de Cacém e que, depois da conspiração do marquês de Vila Real, teve de D. João IV a comenda de Vila Franca, que havia vagado pelo crime daquele fidalgo.
D.ᵃ Antónia e seu marido residiram no palácio de Azeitão, aonde lhes nasceram dois filhos:
—Luís de Mendonça, batizado em S. Simão de Azeitão a 4 de julho de 1627, e Jerónimo Manuel, batizado na mesma freguesia, a 14 de agosto de 1630.
Estes outros filhos:
—Nuno de Mendonça,
—João de Mendonça e
—D.ᵃ Maria Josefa de Mendonça, cuido não haverem nascido em Azeitão, porque ao encontro os seus registos batismais.
Luís de Mendonça Furtado alistou-se cedo no exército do Alentejo, cujas campanhas fez com distinção. Grandes seriam as suas qualidades e largas as suas aptidões para ser passado ao serviço marítimo, confiando-se-lhe, ainda bem novo, comandos importantes.
Depois de duas viagens à Índia como capitão-mor da armada, voltou para aquelas paragens na monção da primavera de 1657 por general dos galeões de alto bordo, posto a que foi elevado por carta de 24 de março daquele ano, assinada por D. Luísa de Gusmão, regente do reino.
Nas notas dos tabeliães de Azeitão encontra-se registado em 1701 um documento que tem relação com esta viagem, apresentado por João Viana Franco, procurador de D.ᵃ Maria Josefa de Mendonça e Albuquerque, herdeira e irmã de Luís de Mendonça.
É como se segue:
«Requerendo Luís de Mendonça Furtado, filho de Pedro de Mendonça Furtado, satisfação dos seus serviços, houve Sua Majestade por bem mandar-lhe dizer, por despacho de 16 de março de 1657, que tendo respeito a seus serviços, que havia feito a se embarcar nesta monção para o estado da Índia, aonde o vai servir, e tendo em consideração o haver sido de Pedro de Mendonça Furtado, seu pai, fidalgo tão benemérito a este reino, a comenda de Vila Franca de Xira da ordem de Cristo, que a possuía Francisco de Mendonça Furtado, seu filho e irmão de Luís de Mendonça, havia por bem, que, falecendo o dito Francisco de Mendonça sem filhos legítimos, ou bastardos e, que não se dando esta comenda a eles, ou a outra alguma[79] pessoa por serviços do mesmo Francisco de Mendonça[47] na forma do papel da letra e sinal de Luís de Mendonça, sucedesse ele na mesma comenda com a própria pensão de 300.000 reis, que se puseram a Francisco de Mendonça, quando se lhe fez mercê dela, entrando as pensões, que houver vivas no tempo em que esta mercê possa ter efeito, a qual terá o mesmo Luís de Mendonça em segredo e a perderá, constando que se rompeu por sua parte. E mandou Sua Majestade, que deste despacho se lhe passasse somente certidão em sumo segredo, para que dele possa valer a seu tempo, em o caso que esta mercê possa ter efeito. Assim o certifico. Lisboa, 22 de março de 1657. E o papel, de letra e sinal de Luís de Mendonça, acima referido, fica nesta secretaria. Gaspar de Faria Severim.»[48]
Luís de Mendonça ainda não tinha trinta anos completos, quando foi nomeado general dos galeões de alto bordo em 1657. Não havia muito de chegado à Índia, quando recebeu do governador o comando das naus, que deviam varrer os holandeses dos mares de Goa. A armada fez-se de vela a 5 janeiro de 1658 e breve se deu um reencontro com os inimigos, em que Luís de Mendonça levou a melhor.
A guerra marítima, continuada naquelas paragens pelos capitães portugueses, corria com vário sucesso, enquanto na capital do estado reinava a anarquia e a desordem, promovidas pelos fidalgos e pelo clero, divididos em facões pessoais, que mutuamente se guerreavam. Luís de Mendonça, de volta a Goa, não fugiu à sorte comum; a sua chegada incendeou os ânimos, as duas parcialidades armaram-se e bateram-se, sem que os governadores tivessem força para evitá-lo e conter os desordeiros.
Luís de Mendonça e Bartolomeu de Vasconcelos foram os contendores que mais se distinguiram, organizando forças suas, e dando mesmo verdadeiros combates, que custaram a vida a soldados que só a deviam perder em serviço da pátria.
Por carta de 5 de março de 1657 a regente tinha nomeado vice-rei da Índia António Teles de Menezes, conde de Vila Pouca de Aguiar, cujas qualidades bastariam para o restabelecimento da ordem; no entanto, a[80] morte surpreendeu-o na viagem, e no dia 7 de setembro daquele ano entrava a barra do navio que conduzia o cadáver do vice-rei.
Abertas as vias de sucessão, formaram o governo Manuel Mascarenhas Homem, Francisco de Melo e Castro e António de Sousa Coutinho, que já estavam em exercício desde o falecimento do conde de Sarzedas. Poucos dias depois morria o membro do governo Mascarenhas Homem e os seus dois colegas continuaram a administração sem mais força para tornar respeitada a sua autoridade.
Em 22 de março de 1660 a regente nomeou novo governo para a Índia, composto de D. Manuel Mascarenhas, Luís de Mendonça Furtado e Albuquerque e D. Pedro de Lencastre. O primeiro renunciou o cargo, D. Pedro de Lencastre, que fora por capitão da armada, que conduzira o vice-rei, conde de Vila Pouca, e Luís de Mendonça assumiram o governo em 14 de junho de 1661 e em continuada divergência o exerceram até 14 de dezembro do ano seguinte, data da posse do vice-rei António de Melo e Castro.
D. Pedro de Lencastre partiu para o reino logo em seguida à entrega do poder, falecendo na viagem; Luís de Mendonça, porém, conservou-se na Índia até 1668, ano em que voltou para Portugal.
Luís de Mendonça se crescia em honras aumentava ao mesmo tempo em cabedais. «Nenhum ministro, diz um contemporâneo, serve aos príncipes para os servir, senão para se acrescentar»[49], e não era sem propriedade que aplicava a sentença ao general dos galeões partidos para a Índia em 1657.
Quando se tratava de casar o infante D. Pedro com a mulher de seu irmão, tomando-se por pretexto desta união incestuosa a impossibilidade de restituir o dote de Maria de Nemours, Luís de Mendonça, filho segundo de uma casa de medíocres haveres, ofereceu-se a concorrer com 9000 cruzados para satisfação da quantia necessária, pedindo apenas o prazo de três dias para a sua apresentação, fazendo-se deles consignação em dez anos. A soma era avultada para o tempo e crescida para quem, como Luís de Mendonça, tanto se preocupava de possuir.
As intrigas da corte, desde a morte de D. João IV até à entronização de seu filho Pedro, são bem conhecidas, para que precise rememoreá-las; Luís de Mendonça poderia cair no desagrado do príncipe oferecendo-se a contribuir para a restituição do dote da rainha, era uma demonstração hostil aos intentos de D. Pedro e de Maria de Aumale; todavia, de tal modo soube haver-se que, em dezembro de 1669, foi nomeado pelo regente vice-rei da Índia.
Muitas eram as esperanças que se firmavam em Luís de Mendonça, e de que parece não ter desmerecido. «É este fidalgo, diz o contemporâneo citado, por prendas e qualidades, digníssimo do lugar e se prometera a todos que em seu governo e indústria se melhoraria muito o estado da Índia»[50].
A frota que devia partir com o novo vice-rei foi de cinco vasos, e para a guarnição, além dos que voluntariamente se alistaram, prenderam-se em Lisboa e no reino todos os inquietos e divertidos, que puderam haver-se; nos mareantes não houve melhor escolha nas qualidades ou aptidões.
O vice-rei, que devia partir na primeira monção de 1670, foi feito conde de Lavradio em março, e a armada levantou ferro do porto de Lisboa em princípio de abril, chegando à Índia no ano seguinte, em que Luís de Mendonça tomou posse do vice-reinado.
A sua fidelidade ao regente não foi sem suspeitas; em fins de março de 1674 aprestaram-se com diligência duas caravelas, bem guarnecidas e apetrechadas, que partiram para a Índia no 1.º de abril, levando o capitão instruções secretas com respeito ao vice-rei; as suspeitas, contudo, eram infundadas; mais prudente que seus irmãos Francisco e Jerónimo, não se envolveu como eles nos tramas contra o governo do regente.
Desempenhou o lugar de vice-rei por espaço de sete anos e vinte dias e, embarcando para o reino, faleceu na Baía em 1677 com cinquenta anos de idade.
Se fez bom governo, ou a contento do soberano, não foi menos solícito nos negócios de sua casa e interesses pessoais, e não aprendeu pouco nas viagens, que fez à Índia, sobre o modo de fazer fortuna. Se Luís de Mendonça, ao partir para o seu vice-reinado, pensava nos neócios da[82] república, não sei; é certo, porém, que não descurava os seus interesses particulares, e se propunha continuar ou estabelecer em larga escala o seu giro comercial. Em 10 de março de 1670 ordenava ele as suas coisas, mandando lavrar uma procuração ampla a seu irmão Jerónimo e a dois irmãos Diogo de Chaves e Simão Rodrigues de Chaves para a administração dos seus negócios na Europa. Morava então Luís de Mendonça Furtado e Albuquerque na sua quinta extra-muros de Lisboa, junto ao mosteiro de S. Bento da Saúde.
Farei notar os principais pontos a que a procuração se refere. Os poderes são iguais para os seus três delegados, deixando-lhes todo o seu livre e comprido poder, mandado especial e geral... para poderem cobrar, arrecadar e haver a seus poderes todas as suas dividas de dinheiro, oiro, prata, juros, tenças, ordenados, fazendas, mercadorias, encomendas e seus procedidos, fretes, avarias de seus navios, bens de raiz e seus rendimentos... cobrança por conhecimentos e sem eles... letras de câmbio e de risco, consignações e carregações, cartas amigáveis e de crédito, contas correntes e fenecidas por leis de seguro, ou por outra qualquer via, título, modo que seja, e todas as fazendas e mercadorias que remeter da ditas partes da Índia e de outras quaisquer partes e conquistas, tudo também poderão cobrar e despachar, ou vender e beneficiar, estando a contas e tomando-as com entrega a todas as pessoas que lhas devam e hajam de dar e as fenecer e liquidar, recebendo o líquido, restos e alcance delas o poder até de nomear mestres para as embarcações de que for senhorio e, depois de nomeados, os despedirem e elegerem outros, como melhor lhes convier...
Esta procuração, estranha totalmente aos negócios de administração pública, nada nos pode dizer das ideias do vice-rei sobre o modo por que se propunha gerir os negócios do estado, mas dá-nos claras mostras de que Luís de Mendonça não descurava os seus interesses, de que na Índia ia estabelecer uma forte casa comercial, e que no reino deixava agentes, de certo bem escolhidos, para as permutações e vendas das mercadorias que enviasse para a metrópole.
A procuração, datada de 10 de março, só foi outorgada no dia 16; é esta a própria data da carta régia, que lhe confere o título de conde de[83] Lavradio; no entanto, a assinatura ainda é de Luís de Mendonça Furtado de Albuquerque.
Ninguém, ao ler desprevenidamente o documento, suporá que são as disposições de um vice-rei, que vai exercer funções majestáticas e de soberania real; talvez fosse isto que menos preocupasse Luís de Mendonça, pois é certo que, recolhendo ao reino com sete anos de governo, vinha riquíssimo. Que contraste com o grande Albuquerque, que, próximo à morte, pedira, não se fizesse leilão do seu fato para que não vissem suas calças rotas que tinha!
Nas suas últimas disposições fez seu universal herdeiro Jerónimo de Mendonça e na sua falta seu irmão Nuno.
—Jerónimo de Mendonça Furtado, nascido no palácio de Azeitão e batizado na freguesia de S. Simão a 14 de agosto de 1630, foi cavaleiro de Malta, mas não professou. Serviu nas campanhas do Alentejo como capitão de cavalos e mestre de campo de um terço. Deixou a carreira militar; todavia, como particular, assistiu à batalha do Ameixial ou Canal a 8 de junho de 1663, sendo louvado pelo conde de Vila Flor, que o enviou a Lisboa com a notícia da vitória.
Em remuneração destes serviços, teve o governo de Pernambuco, aonde cometeu tais excessos que, amotinado o povo, veio preso para Lisboa e da prisão pôde escapar-se para Castela. Instaurou-se-lhe o processo, mas por influência de seu irmão, que estava em favor, suspendeu-se todo o procedimento e pôde regressar à pátria.
Talvez para não dar tanto nas vistas a proteção a um delinquente e tê-lo como que escondido aos seus julgadores, Luís de Mendonça pôs seu irmão Jerónimo na administração do morgado de Azeitão. Tenho presente uma procuração datada de 1 de março de 1669, em que Luís de Mendonça dá poderes a seu irmão para o arrendamento dos frutos dos muros a dentro da quinta; abriu-se aqui praça no dia 4 e neste mesmo dia se lavrou a escritura, o preço foi de 200$000 reis, pagos metade pelo S. João e metade por S. Simão.
Em março do ano seguinte, conforme a procuração que atrás extratei, Jerónimo de Mendonça partilhou com os irmãos Chaves a administração de toda a casa e haveres do vice-rei.
O conde de Lavradio parte para o vice-reinado, falta a Jerónimo de Mendonça a bandeira que lhe cobria as culpas e, fosse resultado das devassas ou novidades de crimes, na expressão de um escritor coevo[51], o regente manda-o prender no Limoeiro em princípios de julho de 1671. Jerónimo de Mendonça teve conhecimento das disposições a seu respeito e pôde escapar-se para Espanha. De Xerez de los Caballeros data de 7 de agosto do mesmo ano o substabelecimento da procuração de seu irmão para um Manuel Lopes fazer certos contratos em Azeitão.
Em 1672 ainda ali se achava, e no dia 1.º de outubro substabelece parte dos poderes da procuração de seu irmão, vice-rei, no capitão Luís de Valença da Rocha, para que ele possa cobrar e arrecadar e haver a seu poder todas as dívidas de dinheiro, oiro e prata, juros, tenças, ordenados, fazendas, mercadorias, encomendas, seus procedidos, fretes e avarias dos navios, bens de raiz, móveis, rendimentos e coisas outras de qualquer qualidade, sorte, quantidade e substância. Dias depois, a 6, junta ao substabelecimento uma declaração para o mesmo Rocha poder tomar todo o dinheiro na praça, que lhe for necessário para o fornecimento dos navios, assim de Luís de Mendonça, como dele; pelo que se vê, que também Jerónimo era armador.
Alcançou voltar a Portugal, mas descoberta em setembro de 1673 nova conspiração para o restabelecimento do rei Afonso VI, viu-se dos papéis encontrados a Diogo de Lemos, que Jerónimo de Mendonça e seu meio irmão Francisco eram cúmplices. Francisco de Mendonça pôde escapar-se para Castela, sendo-lhe em Portugal confiscados os bens e ele degolado em estátua no rossio de Lisboa a 11 de maio de 1674; Jerónimo de Mendonça pretendeu também fugir; mas, como estava enfermo, teve de acoutar-se num moinho e, conhecido o seu paradeiro, foi preso.
Encerrado na torre de S. Julião da foz do Tejo, ali se conservou, até que em 3 de janeiro de 1680 foi sentenciado por traidor a ser degolado no pelourinho de Lisboa. Dois corregedores e duas companhias de cavalos ali o[85] foram buscar. Esta pena infamante foi embargada pelos parentes, alcançando-lhe a troca do pelourinho pelo cadafalso, havendo de executar-se a sentença no dia 5. O marquês de Fronteira, que pretendia casar uma filha com Nuno de Mendonça, irmão de Jerónimo, e que se achava ao tempo em Évora, pôde conseguir que a princesa intercedesse pelo criminoso, e o rei comutou-lhe a pena em degredo para a Índia.
Em 1687 ainda ali vivia e tinha residência em Goa, para onde sua irmã D.ᵃ Maria Josefa, de Mendonça, a quem veio a caber a herança do conde de Lavradio, enviou procuração para arrecadar os bens do falecido vice-rei, como adiante direi. Nunca voltou da Índia.
Por falecimento de Luís de Mendonça sucedeu-lhe nos morgados seu irmão:
—Nuno de Mendonça Furtado, clérigo minorista, com um canonicato em Évora. Foi casado com D.ᵃ Madalena de Távora, de quem não houve filhos.
Numa entrada, que fez em Castela, foi ali aprisionado, só alcançando a liberdade pela paz entre Portugal e Espanha.
Conhecida a morte do conde de Lavradio, disputaram a sua herança seus irmãos Nuno de Mendonça e D.ᵃ Maria Josefa, D. Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre por sua mulher D.ᵃ Maria Manuel de Albuquerque[52], e D. Pedro António de Noronha, conde de Vila Verde.
A causa foi julgada a Nuno, que parece só entrou na posse do morgado de Azeitão em princípios de 1692 (conforme uma certidão de apelação passada em 29 de novembro deste ano), tendo de renunciar ao canonicato de Évora. Nuno veio residir para o seu palácio de Azeitão, aonde faleceu a 15 de fevereiro de 1684, sepultando-se na capela-mor da freguesia de S. Simão. D. Madalena sobreviveu a seu marido.
—D.ᵃ Maria Josefa de Mendonça, única sobrevivente a seus irmãos, casada com Pedro Guedes de Miranda Henriques, senhor de Murça, sucedeu[86] a seu irmão Nuno no morgado de Azeitão e mais casa de seus pais. Não lhe faltavam qualidades administrativas, nem era menos desejosa de haveres do que seu irmão Luís.
D.ᵃ Maria tinha tido quatro filhos:
—João falecido aos dez anos,
—Antónia, freira no convento do Salvador em Lisboa,
—Joana de Mendonça, casada em 1672 com D. António José de Melo, por quem o morgado veio aos Costas de Mutela, e
—Luís Guedes de Miranda Henriques, casado em 1673 com D.ᵃ Maria de Ataíde, filha de Nuno de Mendonça, segundo conde de Vale de Reis.
Em 1687, D.ᵃ Maria Josefa de Mendonça Albuquerque achava-se em Azeitão, e no dia 4 de março, já viúva, faz uma procuração a seu irmão Jerónimo, que se achava na Índia, como já atrás disse, para ele em Goa e em todos os mais estados da Índia e quaisquer outras partes poder cobrar e haver a seu poder todos os bens e fazendas, ... pertencentes ao conde vice-rei, seu irmão, assim móveis como de raiz, dinheiro, oiro, prata, dívidas, encomendas, carregações, seus procedidos, diamantes, joias e coisas outras de qualquer qualidade, quantidade e substância, que sejam, fazendo a tal cobrança do poder dos devedores, seus herdeiros e sucessores, testamenteiros, depositários, tesoureiros de defuntos e ausentes, cofres de orfãos, casa da santa misericórdia e de quem mais a paga deva de fazer... e para melhor notícia dos ditos bens e dos que estiverem ocultos poderá mandar ler e publicar uma carta Paulina que com esta lhe será apresentada, que lhe foi concedida pelo núncio apostólico desta corte e procederá contra as pessoas que os ditos bens tiverem na forma da dita Paulina...[53] Dava-lhe poderes para vender o que lhe parecesse, ou enviar para o reino quaisquer bens ou fazendas carregando-os e arriscando-os a seu livre arbítrio. Limitava, porém, ao seu procurador a faculdade de garantia dos contratos somente aos bens da dita herança. As mais disposições são as comuns a todas as procurações gerais, com poderes de substabelecer, como era necessário absolutamente,[87] pois degredado, como era Jerónimo de Mendonça, não podia sair do lugar do exílio.
Luís de Mendonça havia feito testamento, deixando à misericórdia de Lisboa grosso legado para dotes anuais a donzelas, e o remanescente a seus irmãos. Foi pela sua terça, que veio ao morgado de Azeitão a quinta da Fonte da Pipa, no termo de Palmeia, que D.ᵃ Maria Josefa, pelo seu procurador e criado Vicente Lourenço Pinto, cavaleiro do hábito de Cristo, arrendou em maio de 1693 por 120$000 reis anuais.
D.ᵃ Maria Josefa de Mendonça passava tempos em Azeitão, tendo a principal residência na sua quinta de Arroios, termo de Lisboa, até que em 1701, ou proximamente, se estabeleceu no palácio de Azeitão.
No dia 1.º de março fez aqui testamento cerrado, escrito pelo tabelião José Félix Falcão, e no dia 2 fê-lo guardar no arquivo do convento dominico de Nossa Senhora da Piedade, de Azeitão, cujo prior, Fr. Domingos da Cruz, passou certificado de o haver ali arrecadado.
Até 1709 encontram-se nos livros de notas e registos paroquiais repetidas referências a D.ᵃ Maria Josefa; a última, de 27 de julho daquele ano, é uma carta de alforria a duas escravas, Francisca de Mendonça e sua filha Luísa Maria de Mendonça, a quem libertou por sua morte, legando 10$000 reis à mãe e 30$000 reis à filha.
Pouco importa saber os nomes das duas escravas, menciono-os apenas por não ser muito conhecido o uso que faziam do apelido dos seus senhores.
D.ᵃ Maria Josefa ligava ao D. o L inicial do nome de seu marido; a sua assinatura era clara, mas nesta carta de alforria já a letra denuncia pesados anos.
Não faleceu em Azeitão, e o seu fim foi talvez posterior a 1712, pois viveu aproximadamente oitenta anos.
Não seriam poucos os desgostos por que passou D.ᵃ Maria Josefa.
Seu filho Luís foi um fidalgo de notáveis paradoxos, no dizer de Sousa[54], que o levaram aos cárceres da torre de S. Julião. Seu neto João Guedes roubou-a e maltratou-a.
Conta assim o autor anónimo de um nobiliário manuscrito, que tenho à vista[55]:
«João Guedes de Miranda Henriques, sendo muchacho, mal aconselhado de uns criados, entrou em casa de sua avó D.ᵃ Maria Teresa[56] de Mendonça e Albuquerque, de quem ele era herdeiro, e a descompuseram, ferindo-a e maltratando-a infinito, tendo quase oitenta anos, e lhe tomaram as chaves e lhe roubaram mais de 80.000 cruzados[57] entre dinheiro e joias de preço e bons diamantes, que tinha herdado de seu irmão Luís de Mendonça, que foi vice-rei da Índia. Com este cabedal fugiram para Castela, onde se puseram com ele seguramente e, estando já muito pela terra dentro, os dois motores deste negócio, que eram pai e filho, criados, que mal aconselhavam a este cavalheiro, os tentou o demónio a tornarem a Portugal a cobrarem uns duzentos e tantos mil reis, por não estar ainda de todo satisfeita a sua ambição, ou, parece, permitiu Deus, fosse para castigo da sua culpa, porque mal tinham passado a raia, quando, pelas armas, que traziam, os prenderam, tempo a que chegavam as ordens para que os prendessem. Trouxeram-os para a prisão da corte, de onde foram a padecer a forca de Santa Bárbara, em que lhes ficaram as cabeças para memória do seu delito. O furto se tornou a Portugal se lo restituiu, e João Guedes de Miranda Henriques veio oculto e se homiziou em casa do embaixador de França.»
Se Luís de Mendonça foi ambicioso de riquezas, a modo de em sete anos de vice-reinado alcançar cabedal enorme, sua irmã foi uma avarenta, que só viveu para entesourar.
A D.ᵃ Maria Josefa de Mendonça e Albuquerque sucedeu seu filho Luís Guedes de Miranda Henriques, que outros apelidam de Miranda e Lima, casado em 1673 com D.ᵃ Maria de Ataíde, filha dos segundos condes de Vale de Reis. Por seu pai cabia-lhe o cargo de estribeiro-mor, todavia, o regente D.[89] Pedro e ainda depois de entronizado, recusou-lhe a posse do lugar, e tão solto foi de palavras e ações por este facto, que lhe valeu ser encerrado na torre de S. Julião.
Em 1712 ainda havia filhos menores de Luís Guedes, de quem este não tinha a tutela. No dia 2 de dezembro, Manuel Carvalho de Ataíde[58], moço fidalgo da casa de sua majestade e comendador da ordem de Cristo, parente de Luís Guedes, data de Sernancelhe uma procuração a Pedro Vieira da Fonseca, residente na quinta de Azeitão (Bacalhôa), para poder comprar um pinhal para o menor Francisco de Assis, e outra a Manuel Salgado de Araújo, advogado da casa da suplicação, para cobrar de Luís Guedes de Miranda 80$000 reis mensais de alimentos para cada um dos filhos menores deste, compreendido Francisco de Assis, dos quais Manuel Carvalho era curador.
Não parece que Luís Guedes se detivesse na sua quinta, ou mesmo na Extremadura, pois se encontram até fins de 1718 procurações para determinados negócios do morgado datadas de Murça[59].
De Luís Guedes de Miranda e D.ᵃ Maria de Ataíde nasceram:
—Pedro Guedes, que morreu moço;
—Francisco de Assis, de quem só acho a notícia atrás dada, e
—João Guedes de Miranda Henriques Mendonça e Albuquerque, «o muchacho», que espancou e roubou a avó D.ᵃ Maria Josefa. Ao que parece, enlouqueceu mais tarde, tirando-se-lhe a administração da casa, conforme uma provisão régia, de que falarei. Digo parecer haver enlouquecido, porque os documentos desta época, para guardarem conveniências, muitas vezes encobrem más ações com palavras de significado bem diverso. João Guedes casou em 30 de janeiro de 1707 com D.ᵃ Francisca de Noronha, filha dos terceiros condes de Aveiras.
Em 15 junho de 1721 Fernando de Morais Madureira Machado Pimentel tomou posse do morgado da Bacalhôa por procuração de João Guedes. A 28 do mês seguinte já sua mulher D.ᵃ Francisca de Noronha data de Lisboa ocidental uma procuração para arrendamento de uma propriedade do morgado, em virtude da administração de que a encarregou seu primo o Sr. João Guedes de Miranda e Lima. Desconheço a conveniência de D.ᵃ Francisca dar a seu marido o tratamento de primo.
Em março de 1726 estava João Guedes em Azeitão; em 1728 era ausente, havendo deixado procuração a seu filho Luís, imediato sucessor; no ano seguinte, porém, estava na sua quinta com a família e o padre João Lopes Nogueira, seu capelão. Em 1730 continuou a residir no palácio. D.ᵃ Francisca tem a administração da casa e daqui arrenda a herdade da quinta da Corona, na freguesia de Nossa Senhora A Bela em Santiago do Cacém, a herdade da Júlia e outras propriedades na ribeira do Guadiana, em Mourão, Moura e Monsaraz. No ano seguinte ainda aqui reside, dando de arrendamento a herdade do Miranda no termo de Alcácer, e entre as condições há a do rendeiro pôr em Azeitão, ou na quinta do Montijo, as pitanças, que eram: 12 porcos de dois anos, 6 marrãs de um ano e 30 galinhas. Os porcos eram avaliados a 3$000 reis e as marrãs a 1$500 réis, no caso de não agradarem os da herdade.
Em 29 de janeiro de 1732 um decreto do rei, e despacho do desembargo do paço do dia 31 ao provedor das capelas, interdizia João Guedes por demência. Transcrevê-lo-ei:
«D. João, etc. Faço saber a vós provedor dos orfãos e das capelas destas cidades[60] que, sendo-me presente que João Guedes de Miranda Albuquerque Mendonça lhe sobreveio demência tal que necessita pronto remédio pelas contínuas e públicas discórdias, que comete contra o decoro da sua pessoa, e que também se deixa enganar de vãs palavras, que com promessas fantásticas lhe tiram dinheiro em prejuizo de suas rendas, o que devia evitar; atendendo às qualidades que concorrem na sua pessoa: hei por bem e vos mando entregueis a administração de sua casa a sua mulher D.ᵃ[91] Francisca de Noronha, por ter por certo a fará como convém, fazendo primeiro termo de dar contas todos os anos, perante o juiz dos orfãos, a que tocar cumprir. Assim el-rei nosso senhor o mandou pelos doutores Gregório Pereira Fidalgo da Silveira e António Teixeira Álvares, ambos do seu conselho e seus desembargadores do paço. José Maria de Faria o fez. Lisboa ocidental 31 de janeiro de 1732.»
Até fim de 1747 encontra-se D.ᵃ Francisca de Noronha em Azeitão ou em Lisboa ocidental dirigindo os negócios de sua casa, como tutora e administradora da pessoa e bens de seu marido João Guedes de Miranda.
Destes esposos nasceram:
—José Guedes, e
—Juliana de Noronha, que morreram crianças;
—Luís Guedes de Miranda Henriques, que em 1741 casou com D.ᵃ Madalena Vicência de Mascarenhas, filha dos terceiros marqueses de Fronteira D. João e D.ᵃ Helena.
Em maio de 1749 já encontro procurações do novo administrador do morgado de Afonso de Albuquerque. Diz-se ele:
Luís Guedes de Miranda Lima de Mendonça e Albuquerque, senhor das Vilas de Murça, Brunhais, Água Revés, Torre de D. Chama, comendador e alcaide-mor das vilas de Cabeço de Vide, Alter Pedroso e Granja do Hospital e capitão de dragais, etc.
Luís Guedes pouco tempo teve o morgado, falecendo em dezembro de 1757. Residiu sempre em Lisboa, administrando-lhe os bens de Azeitão, um feitor que, com procuração de seu amo, intervinha nos contratos enfitêuticos.
Não sei que de Luís Guedes e D.ᵃ Madalena houvesse filhos; no entanto, esta dama por morte de seu marido ficou cabeça do casal e com a administração do morgado de Azeitão até fins de 1782, conforme uma serie de procurações todas datadas de Sete Rios, lugar da sua residência.
O terramoto de 1755 arruinou a sacristia e lançou por terra as torres da freguesia de S. Simão, e a corporação administrativa da igreja, depois de pedir inutilmente a Luís Guedes a sua reconstrução, teve de recorrer aos meios judiciais para obrigar os senhores do morgado a cumprirem a[92] cláusula da escritura de 1570, em que Afonso de Albuquerque lançara sobre o vínculo os encargos da conservação do templo. Este litígio foi em tempo da administração de D.ᵃ Madalena Vicência de Mascarenhas, e pelos documentos, que tenho à vista, durou desde agosto de 1765 até meado de 1768. Os advogados da igreja foram D. Francisco António Vannicelli e José Luís Soares de Barbosa, pai do conhecido poeta Bocage, ambos com banca em Setúbal. D.ᵃ Madalena recusava-se a pôr o edifício no primitivo estado, querendo restaurar o que julgava absolutamente necessário. No dia 3 de julho de 1768, de Lisboa fez uma proposta para levantar só uma das torres e reparar os demais estragos.
Parece haver-se chegado a acordo, apeando-se a frontaria até ao portal e construindo-se a torre atual, que é de um talhe estranho ao mais do templo.
Desconheço o título por que D.ᵃ Madalena Vicência de Mascarenhas teve por demorados tempos a administração do morgado.
Se Luís Guedes de Miranda e Albuquerque não deixou filhos legítimos, teve-os naturais, um Manuel José Guedes de Miranda, outro cujo nome ignoro.
Luís Guedes fez testamento, do qual poucas disposições e em favor destes me são conhecidas:
Um título de abril de 1785 fala do morgado da quinta da Bacalhôa, de que é senhor o preclaríssimo Manuel José de Miranda, e na procuração diz-se isto:
«Manuel José Guedes de Miranda, do conselho de sua majestade fidelíssima, senhor de Murça, Brunhais, Água Revés, Torre de D. Chama, alcaide-mor e comendador das comendas de Cabeço de Vide e Alter Pedroso», etc.
Por fins de 1785 ainda Manuel José Guedes tinha a administração do morgado de Albuquerque; em abril de 1786, porém, já encontro um contrato feito em nome do armeiro-mor D. José Francisco da Costa e Sousa.
Teremos de retroceder alguns anos para vermos como o morgado de Afonso de Albuquerque pode chegar aos Costas de Mutela.
D.ᵃ Maria Josefa de Mendonça e Albuquerque e Pedro Guedes de Miranda tiveram, além de outros filhos, Luís Guedes, que sucedeu a seus pais, e cuja linha legítima se extinguiu, e D.ᵃ Joana de Mendonça, que em 1672 casou com D. António José de Melo Homem. Destes nasceram:
—D. Pedro e
—D. Madalena.
D. Pedro José de Melo Homem casou com D.ᵃ Maria Antónia de Bourbon, que faleceu em março de 1716, e seu marido em maio de 1740.
Destes foi filho:
—D. António José de Melo Homem, que nasceu a 26 de setembro de 1709[61] e casou em 1731 com D.ᵃ Mariana Joaquina de Mendonça, filha de D. Filippe de Sousa, capitão da guarda alemã.
—D.ᵃ Madalena Luísa de Mendonça casou em julho de 1690 com D. António Estevão da Costa, nascido em dezembro de 1671 e falecido em janeiro de 1724. Destes nasceram, entre outros:
—D. José da Costa, a 6 de setembro de 1694[62], e
—D. António José da Costa.
D. José da Costa casou em 1734 com D. Maria de Noronha, filha dos quintos condes dos Arcos. Sucedeu na casa e títulos de seu pai, foi armeiro-mor e faleceu a 10 de março de 1766 sem geração.
D. António José da Costa casou com D.ᵃ Antónia Rosa de Melo, foi servir na Índia e, em 1748, morreu no naufrágio da fragata Vencimento.
Destes havia um filho:
—D. José Francisco da Costa e Sousa, nascido a 28 de maio de 1740.
Em 1766 herdou a casa e títulos de seu tio paterno D. José da Costa, e foi armeiro-mor. Em 1772 casou com D. Maria José de Sousa de Macedo, segunda viscondessa de Mesquitela, por morte de seu pai em 1783.
De D. José Francisco e de D.ᵃ Maria José foi filho:
—D. Luís da Costa e Sousa de Macedo, nascido a 25 de março de 1780 e que veio a suceder a seu pai.
Expostas esta notas biográficas, necessárias para compreensão da narrativa, tratarei da sucessão do morgado depois da morte do senhor de Murça, Luís Guedes de Miranda e Albuquerque, cuja descendência legítima não houve ou se extinguiu.
Vimos que D.ᵃ Madalena Vicência de Mascarenhas, viúva de Luís Guedes, depois da morte de seu marido, por muitos anos esteve na administração do morgado como cabeça do casal. Manuel José Guedes de Miranda Henriques, filho natural de Luís, teve também aquela administração, mas é de notar que nunca usasse o apelido de Albuquerque, como todos os outros administradores do morgado.
Se D. João Afonso de Albuquerque, de bastardia muito contestável, foi apto para suceder a Afonso, filho, e esteve por muitos anos na posse dos bens livres e vinculares de seu pretenso pai, Manuel José Guedes de Miranda, filho bastardo e mais velho de Luís Guedes, não deveria ter menos bons direitos do que aqueles à sucessão dos morgados de seu pai.
Como D.ᵃ Madalena de Mascarenhas, viúva de Luís Guedes de Miranda, esteve na posse do morgado, não sei; é certo, porém, que até 1782 o administrou. Também é certo que em 1784 o morgado era litigioso, que em 1785 estava na sua posse Manuel José Guedes de Miranda, e que em 1786 era senhor do mesmo morgado D. José Francisco da Costa e Sousa como herdeiro de seu tio D. José da Costa.
Há anos vi umas cartas trocadas entre Manuel José Guedes e seus primos Costas (José Francisco e Luís), e delas pude depreender que aquele era um caráter não vulgar pela sua honradez, largueza e desprendimento; Manuel José Guedes, posto na posse do morgado, julgou-se em consciência ali intruso, e, parecendo-lhe que seu primo D. António José de Melo Homem estava na melhor linha descendente de sua bisavó D.ᵃ Maria Josefa, por proceder por via masculina de D.ᵃ Joana de Mendonça, chamou-o a tomar[95] posse do morgado; o caso despertou as atenções de seu primo José Francisco da Costa e Sousa, que se apresentou como oponente.
Vamos agora ver em que D. José Francisco fundamentava os seus direitos.
Ao tempo da morte de Luís Guedes de Miranda de Mendonça e Albuquerque, em 1757, eram vivos D. José da Costa, nascido em 1694, e D. António José de Melo Homem, nascido em 1709, ambos primos do falecido em terceiro grau canónico e sexto civil.
De D. José da Costa, falecido em 1766, fora universal herdeiro seu sobrinho D. José Francisco da Costa e Sousa, armeiro-mor, filho de D. António da Costa, irmão de D. José da Costa, e falecido em 1748, como atrás disse.
D. José Francisco viu que seu tio D. José da Costa podia preferir pela prioridade do nascimento, e, embora ele não tivesse apresentado e feito prevalecer os seus direitos, quis fazê-los valer D. José Francisco, como herdeiro e sucessor de seu tio. Rico e preponderante na política e sociedade da época, D. José alcançou que a idade prevalecesse à melhor linha, e desapossou D. António de Melo dos bens que seu primo Manuel José Guedes lhe entregara.
Guedes residia em Moura e, logo que teve conhecimento da resolução dos tribunais julgando a sucessão de José Francisco, preferindo a D. António de Melo, fez entrega ao novo senhor do morgado de Azeitão dos vínculos da Landeira e de Santiago do Cacém.
Não parece que este novo senhor residisse no palácio de Azeitão. Por este tempo já os grandes deixavam as suas casas de província pela habitação na corte, ou proximidades. Em 1796 estava na sua quinta de Mutela, solar dos Costas, e em 1799, numa procuração datada da sua quinta da Luz[63], diz-se:
«D. José Francisco da Costa e Sousa de Albuquerque, visconde de Mesquitela, armador-mor de S. M., do seu conselho, cavaleiro professo da ordem de Avis, comendador da comenda de S. Vicente da Beira», etc.
Muito se ufanavam todos de terem uns laivos de sangue de Afonso, o Grande, todos lhes queriam muito; mas só usavam o apelido Albuquerque, quando ele vinha envolto num título de propriedade.
D. José Francisco faleceu em 6 de janeiro de 1802. Sucedeu-lhe seu filho:
D. Luís da Costa e Sousa de Macedo e Albuquerque, mancebo de vinte e dois anos, que em 13 de setembro de 1807 casou com D.ᵃ Maria Inácia de Saldanha Oliveira e Dão, filha dos primeiros condes de Rio Maior. Em 22 de janeiro de 1818 foi feito conde de Mesquitela, e em 1826 par do reino.
D. Luís da Costa e Sousa de Macedo e Albuquerque, primeiro conde de Mesquitela, armeiro-mor, como seus avós, faleceu em Lisboa a 27 de novembro de 1853.
Do enlace matrimonial de D. Luís com D.ᵃ Maria Inácia de Saldanha, nasceram:
—D.ᵃ Maria Amália, a 10 de março de 1809;
—D.ᵃ Maria José, a 2 de março de 1811;
—D. João Afonso, a 11 de fevereiro de 1815;
—D. Luís António, a 25 de outubro de 1816;
—D. Pedro, a 14 de maio de 1821;
—D. António, a 24 de novembro de 1824.
A D. Luís da Costa sucedeu seu filho:
—D. João Afonso da Costa e Sousa Macedo e Albuquerque, segundo conde de Mesquitela, par do reino, do conselho de S. M., décimo segundo armeiro-mor, grau-cruz da ordem da Conceição, comendador de Cristo e condecorado com diversas ordens estrangeiras, serviu de capitão da guarda real de arqueiros por impedimento do duque de Palmela.
Em 1886 foi criado duque de Albuquerque pelo rei D. Luís I.
Foi um cortesão distintíssimo, conhecedor de todas as etiquetas palacianas, e de tão fina polidez que preferiu a todos os fidalgos da corte para receber no desembarque as princesas Estefânia, desposada do rei D. Pedro V, e Maria Pia, do rei D. Luís I. Na vida de sociedade era o mais fino cavalheiro; numa sala com damas não havia quem se lhe avantajasse.
Acostumado às amabilidades feminis, a render culto à beleza, foi fanático nesta religião, o que já na decrepitude lhe não ia bem.
Da sua casa foi um mau administrador; as suas propriedades rústicas ou urbanas distinguiam-se pelo desleixo total, e por se verem cair a pedaços.
A sua alma era boa.
Faleceu sem geração em 24 de setembro de 1890, com setenta e cinco anos de idade; sucederam-lhe na casa, que era grande, seus irmãos, cabendo a quinta, palácio e mais propriedades de Azeitão a seu irmão:
—D. Luís António da Costa e Sousa de Macedo e Albuquerque, atual conde de Mesquitela. Ama o solar dos Albuquerques, aprecia-lhe as belezas de arte que encerra, e cuida de restabelecer as ruínas. Que Deus lhe conserve as felizes disposições.
Havendo tratado de toda a sucessão no morgado de Azeitão, instituído por Albuquerque, filho, farei uma singela lista de todos os senhores:
1.º Brás ou Afonso de Albuquerque, filho;
2.º D. João Afonso de Albuquerque;
3.º Jerónimo Teles Barreto;
4.º D.ᵃ Maria de Mendonça e Albuquerque;
5.º D.ᵃ Jorge Manuel de Albuquerque;
6.º D. Jerónimo Afonso de Albuquerque;
7.º D. Francisco Sebastião de Albuquerque;
8.º Luís de Mendonça Furtado e Albuquerque;
9.º Nuno de Mendonça Furtado e Albuquerque;
10.º D.ᵃ Maria Josefa de Mendonça e Albuquerque;
11.º Luís Guedes de Miranda e Albuquerque;
12.º João Guedes de Miranda e Albuquerque;
13.º Luís Guedes de Miranda e Albuquerque;
14.º Manuel José Guedes de Miranda Henriques;
15.º D. António José de Melo Homem;
16.º D. José Francisco da Costa e Sousa de Albuquerque;
17.º D. Luís da Costa de Macedo e Sousa e Albuquerque;
18.º D. João Afonso da Costa e Macedo de Sousa e Albuquerque;
19.º D. Luís António da Costa Macedo de Sousa e Albuquerque.
De Gonçalo de Albuquerque, avô de Brás, ou Afonso, filho, até aos atuais senhores do morgado, encontram-se de permeio as varonias seguintes:
1.º Barreto—Jorge Barreto, comendador de Castro Verde, marido de D.ᵃ Joana da Silva, neta de Gonçalo de Albuquerque;
2.º Teles Barreto—Manuel Teles Barreto, governador do Brasil, marido de D.ᵃ Joana de Albuquerque, neta dos precedentes;
3.º Bacalhau—D. Jerónimo Manuel, «o Bacalhau», marido de D.ᵃ Maria de Mendonça, filha dos precedentes;
4.º Mendonça—Pedro de Mendonça, guarda-mor da pessoa de D. João IV, marido de D.ᵃ Antónia de Mendonça, filha dos precedentes;
5.º Guedes de Miranda, senhores de Murça—Pedro Guedes de Miranda, marido de D.ᵃ Maria Josefa de Mendonça, filha dos precedentes;
6.º Melo—D. António José de Melo, marido de D.ᵃ Joana de Mendonça, filha dos precedentes;
7.º Costa—D. António Estevão da Costa, marido de D.ᵃ Madalena de Mendonça, filha dos precedentes.
Os Costas, atuais senhores da quinta e palácio dos Albuquerques em Azeitão
Querem alguns que os Costas se encontrassem em Portugal anteriormente à formação deste reino, outros fazem-nos coevos de D. Afonso Henriques. Uns e outros dão-lhes por solar a quinta ou aldeia da Costa, em Estarreja, ou, como então se dizia, na comarca da Esgueira.
Com bons fundamentos alguns outros genealogistas não vão tão longe, e fazem dos Costas um ramo da casa de Lemos; dizem-nos oriundos da Galiza e vindos para Portugal no reinado de D. Fernando I.
Vou citar um genealogista, que, mais prudente, não antecede os tempos de D. Manuel, e segui-lo-ei textualmente.
«D. Álvaro da Costa, filho de Fernão Rodrigues de Lemos e de Isabel da Costa, foi um homem honrado em tempo de el-rei D. Manuel e de D. João III. Foi o primeiro provedor da misericórdia de Lisboa, criado e feitura de el-rei D. Manuel, que o fez seu camareiro-mor e armeiro-mor e lhe deu o dom e o fez veador de sua fazenda e da rainha D.ᵃ Leonor, sua mulher. Casou com D.ᵃ Brites de Paiva, filha de Gil Eanes de Magalhães, «o Cavalleiro», que era um cidadão honrado. E a este Gil Eanes de Magalhães lhe chamavam «o Cavalleiro», por ter sido cavaleiro do Tosão, que lhe deu o imperador Maximiliano, e está sepultado no capítulo de S. Francisco de Enxabregas e mais sua mulher Isabel de Paiva, de que houve a D. Gil Eanes da Costa, cujo apelido lhe vinha por Isabel da Costa, sua avó, que foi mulher de seu avô Fernão Rodrigues de Lemos. Teve mais a D. Duarte da Costa.
D. Gil Eanes da Costa, filho primeiro deste D. Álvaro da Costa, foi veador da fazenda de el-rei D. Sebastião, casou com D. Maria, filha de João de Toeiro, um homem honrado das ilhas dos Açores, de quem houve a D.ᵃ Catarina, que casou com Luís da Silva e, por morte dela, casou segunda vez com D.ᵃ Joana da Silva, filha de D. Filipe de Sousa, que foi veador de D. Sebastião, de quem houve a D. Álvaro da Costa.
D. Álvaro da Costa, «o Queimado», filho primeiro deste Gil Eanes da Costa, fê-lo seu pai clérigo e lhe houve muitos benefícios. Foi deão da Guarda e teve filhos bastardos de Maria Manuel, sua amiga: D. Duarte da Costa, que morreu sem casar, e D. António da Costa.
D. António da Costa, filho bastardo e segundo deste D. Álvaro da Costa, deão da Guarda, foi doutor em cânones e, depois da morte de seu irmão, herdou o morgado, que lhe fez seu pai, e casou com D.ᵃ Madalena de[100] Mendonça, filha de Luís de Góis Perdigão, de quem houve a D. Luís da Costa[64].
Teremos de voltar atrás ao segundo filho de D. Álvaro da Costa para encontrarmos na descendência de D. Duarte da Costa a dama que foi mulher de D. Luís.
D. Duarte da Costa, filho segundo de D. Álvaro da Costa, veador da fazenda, foi armeiro-mor e casou com D.ᵃ Maria de Mendonça, de quem houve a D. Álvaro da Costa e a D. Francisco da Costa.
D. Francisco da Costa, filho segundo de D. Duarte da Costa e irmão de Álvaro da Costa, foi capitão de Malaca e embaixador a Marrocos ao xerif sobre o resgate, onde morreu[65]. Foi casado com D.ᵃ Joana Henriques, dama da infanta D.ᵃ Isabel, filha de Rui Vaz Pinto, senhor de Ferreiros e Tendães e alcaide-mor de Chaves, de quem houve a D. Duarte da Costa e a
D. Gonçalo da Costa.
D. Gonçalo da Costa, filho segundo de D. Francisco da Costa e irmão de D. Duarte da Costa, por morte de seu irmão teve a comenda de S. Vicente da Beira; casou com sua prima D. Joana e, por morte desta mulher, casou com D.ᵃ Francisca, filha de D. Pedro de Almeida, presidente da câmara de Lisboa, de quem teve a D. Pedro da Costa.
Veio-lhe esta alcunha de ter aos cinco anos queimado o rosto com pólvora. Pela deformidade que lhe sobreveio e por agradar a seu pai, fez-se padre, mas sob condição de nunca dizer missa.
D. Pedro da Costa, filho segundo de D. Gonçalo da Costa, comendador de S. Vicente da Beira, e de sua mulher D. Francisca Coutinho, herdou a casa de seu pai e foi armeiro-mor. Casou com D.ᵃ Violante Henriques, que foi dama do palácio, filha de D. Francisco de Noronha e de D.ᵃ Maria de Azevedo, e deste matrimónio teve a D. Maria de Noronha, que herdou a sua casa.
D. Maria de Noronha, filha herdeira de D. Pedro da Costa, armeiro-mor, casou com D. Luís da Costa, que era filho de D. António da Costa, que era bastardo de D. Álvaro da Costa «Queimado», deão da Guarda e, por este[101] casamento, foi também armeiro-mor, e teve deste matrimónio a D. António Estevão da Costa e Sousa.
D. António Estevão da Costa e Sousa, filho de D. Luís da Costa, armeiro-mor por sua mulher, herdou a casa de seu pai e ofício de sua mãe e foi armeiro-mor, casou com D.ᵃ Madalena Luísa de Mendonça, filha de D. António José de Melo, de quem teve a D. José da Costa e a D. António José da Costa.
D. António José da Costa casou com D.ᵃ Antónia Rosa de Melo, foi servir na Índia, e pereceu no naufrágio da fragata Vencimento em 1748.
Destes nasceu D. José Francisco da Costa e Sousa, que foi armeiro-mor pela morte de seu tio paterno D. José da Costa. Casou com D.ᵃ Maria José de Sousa e Macedo, filha do primeiro visconde de Mesquitela. A este sucedeu seu filho:
D. Luís da Costa e Sousa de Macedo, que casou com D.ᵃ Maria Inácia de Saldanha Oliveira e Dão, filha dos primeiros condes de Rio Maior. Foi elevado a conde de Mesquitela em 22 de janeiro de 1818 e a par do reino em 1826. Deste matrimónio nasceram:
—D.ᵃ Maria Amália, a 10 de março de 1809;
—D.ᵃ Maria José, a 2 de março de 1811;
—D. João Afonso, a 11 de fevereiro de 1815;
—D. Luiz António, a 25 de outubro de 1816;
—D. Pedro, a 14 de maio de 1821;
—D. António, a 24 de novembro de 1824.
D. João Afonso da Costa e Sousa de Macedo e Albuquerque foi décimo segundo armeiro-mor, segundo conde de Mesquitela e primeiro duque de Albuquerque por carta de mercê de 1886. Não casou; faleceu sem sucessão em 24 de setembro de 1890 e sucedeu-lhe seu irmão.
D. Luís António da Costa e Sousa de Macedo e Albuquerque, atual conde de Mesquitela e senhor do morgado de Albuquerque em Azeitão.
Os títulos de que gozam estes Sousas de Macedo têm as seguintes datas:
Ofício de armeiro-mor, 27 janeiro de 1522;
Barão de Molingar e par de Inglaterra, 28 de junho de 1661;
Senhor de Mesquitela, 23 de dezembro de 1665;
Barão de Mesquitela, 27 setembro de 1666;
Visconde de Mesquitela, 28 de maio de 1754;
Conde de Mesquitela, 22 de janeiro de 1818;
Duque de Albuquerque, em 1886.
O palácio da Bacalhôa, alojamento real—Hóspedes célebres
D. José I, por ocasião dos exercícios militares no acampamento dos Olhos d’Água, veio estabelecer-se com a corte e ministros em Azeitão e alojou-se no palácio da Bacalhôa.
O conde de Oeiras hospedou-se na próxima casa da quinta da Palhavã. Era um pequeno edifício, bem situado, com certa nobreza de formas e bom gosto, residência de família abastada, que vivia no campo. Ao andar nobre e à capela da vocação de Nossa Senhora do Cabo, dava serviço uma escadaria e varanda de cantaria. Hoje é por terra.
O rei, no dia 1.º de dezembro de 1767, data de Vila Fresca de Azeitão um alvará de providências sobre o depósito público, e outro ordenando certas disposições disciplinares para o colégio dos Nobres.
No dia 5 respondeu ao breve do papa Clemente XIII.—«A quo die illa inciderunt», de Roma, 31 de agosto do mesmo ano.
No dia 11 de dezembro D. José faz passar um alvará de descoutamento da parte norte da serra da Arrábida, atendendo às queixas dos cultivadores, a quem a caça e os animais bravios, criados no terreno defeso, destruíam as searas e plantações.
O conde de Oeiras aproveitou, como seu amo, o remanso do campo, para responder ao breve—«Etsi plurimce»—que o pontífice romano tinha dirigido ao—«Dilecte Fili Nobilis vir Comes Oeyrensis»—«Datum R091103 apud Sanetam Mariam Majorem sub annullo Piseatoris die XXXI Augusti MDCCLXVII». A resposta é datada—«In oppido de Azeitão V die mensis decembris anno Domini MDCCLXVII.»
Também de Azeitão e no mesmo dia o conde de Oeiras responde ao arcebispo de Niceia, núncio em Madrid, que em 28 de outubro enviara os breves para Portugal[66].
É de crer que o palácio, por ocasião da pousada ali do rei D. José, ainda estivesse mobilado; depois disto, entregue a feitores e rendeiros, nu de quaisquer móveis, foi caindo a pedaços até ao estado de ruína em que se acha. Como por esquecimento, existiu numa das salas, até há poucos anos, um formoso armário de bela talha em carvalho, que foi retirado para Lisboa depois da morte do duque de Albuquerque. Mesmo nisto a sorte quis dar à Bacalhôa uns laivos do castelo de Alvito; na primeira sala deste palácio há um móvel, espécie de grande contador, não comum nas formas e que não é de todo mau, ainda que muito inferior ao da Bacalhôa, por ser aquele apenas obra de marchetaria a duas madeiras.
Em 1838 o marquês de Saldanha, marechal e depois duque do mesmo título, descontente do governo, veio para a Bacalhôa, de que então era senhor o conde D. Luís da Costa, casado com D.ᵃ Maria Inácia, irmã do marechal; habitou por meses o palácio, sendo-lhe companheiro o conde da Cunha.
Disse quanto sabia.
O Sr. Theodoro Rogge, ilustre professor alemão e amador distinto e enthusiasta de faianças, veio a Portugal e, no seu regresso à pátria, deu a lume no periódico «Blätter für Kunstgewerbe» (Ano de 1895, caderno 3.º e 4.º) um excelente artigo sobre alguns azulejos que encontrou no nosso país e que julgou dignos de menção especial. Tão pouco se tem tratado em Portugal deste género de cerâmica que me pareceu conveniente tornar conhecido aquele interessante escrito, de que se fez tiragem em folhas separadas, das quais e respetivas estampas o ilustre professor me brindou com um exemplar, cuja tradução segue:
Tiragem separada do Jornal da arte. Ano de 1895, caderno 3.º e 4.º
Em Portugal a cerâmica serve para fins decorativos pelas maneiras mais variadas, começando nos mais simples objetos de necessidade imediata, como o fogão, os ladrilhos toscos do chão e análogos, e rematando nos magníficos azulejos de faiança artisticamente arranjados tanto sobre o ponto de vista do arquiteto como do pintor.
O emprego destes azulejos (ladrilhos fabricados de argila cozida e esmaltados de um só lado) imprime nos edifícios portugueses uma graça especial, dando-lhes ao mesmo tempo solidez e beleza.
Em geral nos paízes do sul as paredes das casas não são construídas tão solidamente como no nosso norte, sendo apenas as molduras das portas e das janelas e os cunhais das casas construídos de pedraria rigorosamente talhada, enquanto o grosso das paredes é fabricado, sem grande prodigalidade de argamassa, de pedras irregulares, tais como as pedreiras as fornecem. Nestas circunstâncias o emprego de ladrilhos vidrados para abrigar as paredes contra a inclemência do tempo torna-se quase uma necessidade absoluta.
Tão frequente é o uso dos azulejos que eles constituem um característico do país, podendo até dizer-se que poucas igrejas e casas há onde eles se não encontrem. Ora formam as molduras dos portais das casas e dos jardins, ora constituem a decoração alegre dos vestíbulos e das escadarias.
Em muitas casas, e até em bastantes pobres, as paredes interiores são forradas de azulejos pelo menos até 1 metro de altura. Frequentemente os azulejos são empregados para decoração das fachadas desde a base até ao telhado, ora com pinturas simples, ora enfeitadas com quadros da mão de artistas, muitas vezes também cobrem eles as torres e cúpulas, sendo o seu luzir ao brilho do sol meridional de um efeito verdadeiramente esplêndido.
Os azulejos são quadrados de 0,13m até 0,16m de lado, sendo de formas e dimensões mais variadas do que as molduras dos quadros. O que dá um valor artístico e especial a estes artefactos, ás vezes aparentemente toscos, é a ligeireza e elegância do desenho, muito em harmonia com a própria índole do material. Como já disse, os azulejos são de terra de[106] majólica, de pouca espessura, cozidos e pintados antes de serem esmaltados.
A tinta é rapidamente absorvida pela argila, sendo impossível destruir ou emendar o desenho; o esmalte, sobreposto depois, dá a tudo muito brilho e duração. Sendo limitado o número de tintas que resistem ao processo da fabricação, a variedade das cores não é grande, mas este facto mesmo produz uma harmonia de composição, que redunda em especial proveito da cerâmica. A cor mais vulgarmente usada é o azul, derivando daí (azul, ou asur é o nome árabe de Japis-lazuh) a designação dos ladrilhos; há, contudo, autores que derivam a palavra do árabe zallaja, que significa liso, polido.
A fabricação dos azulejos deve-se, sem dúvida alguma, como tantos outros processos da arte cerâmica, aos mouros, divulgando-se em todos os países onde penetrou o seu domínio. No princípio foram destinados a substituir os mosaicos bizantinos nas mesquitas; empregaram-se, porém, mais tarde, também na decoração dos edifícios cristãos. O desenho estava originariamente distribuído em chapas unicolores de diferentes tamanhos e formas, sendo pouco depois adoptado o sistema típico atual.
Como parece, os azulejos começaram a divulgar-se no século XI, se não mais cedo, mas os mais antigos, que ainda existem na península ibérica, os da Alhambra em Granada pertencem ao século XIV[67].
Com respeito à coloração pode afirmar-se que, em Portugal, nos primeiras tempos do fabrico só se empregaram tintas inteiras sem matiz, sendo mesmo raras as cores alegres (de lustre).
Depois da introdução das faianças italianas da Renascença, a sua influência na decoração dos azulejos não tardou a fazer-se sentir. São disto claro exemplo os magníficos azulejos do sumptuoso palácio da Bacalhôa em Azeitão, uma vila amena perto da margem sul do Tejo, em cujo sítio antigamente os fidalgos portugueses costumavam veranear.
Segundo as pesquisas profundas de Joaquim Rasteiro, português, acerca daquele interessante monumento de arquitetura portuguesa[68], a construção dele foi começada pela infanta D.ᵃ Brites, passando a[107] propriedade mais tarde às mãos de Afonso de Albuquerque, filho do célebre herói da Índia, que consideravelmente alargou as decorações do palácio e jardim com azulejos de cores. «Afonso de Albuquerque, filho do grande vencedor dos índios, edificou em 1554, reinando João III», diz uma inscrição sobre o portão principal do átrio.
O palácio com seus jardins constitui um verdadeiro museu de todas as espécies de faianças que se podem imaginar. Encontram-se ali o azulejo unicolor servindo para decorações no género munífico, o azulejo liso com ornamentos multicolores, o azulejo lustrado (estampado em relevo) à maneira dos espanhóis, os azulejos formando quadro simbólico, histórico ou mitológico, o medalhão à maneira dos de Luca della Robbia, de baixo ou alto relevo, de terra cota simples, ou colorido, ou esmaltado, com festões de frutos, ou simples grinaldas de folhas.
A galeria do lado ocidental do palácio, que dá para o jardim, tem revestimento de azulejos até à altura de 1m72. No meio de um desenho em azul, amarelo, verde maçã e castanho, sobre fundo branco, com friso de ovados, veem-se personificações dos rios Mondêgo, Nilo, Danúbio e Douro com ricas bordaduras, tudo obra de mão de verdadeiro artista e de inexcedível brilho e magnífico efeito[69].
Os pavilhões do jardim, as paredes e as galerias do lago artificial, no canto sudoeste daquele, são igualmente providas de ricas decorações em azulejo. Até os bancos e os alegretes das flores são revestidos de azulejos, posto que alguns destes mais simples e unicolores, formando uma espécie de mosaico. Os azulejos, que ornam as colunatas do lago são verdes com ornamentos de lustre, estampados em relevo cavado. No centro de uma destas paredes encontram-se as armas dos Albuquerques igualmente em azulejo. O pavilhão central, dos três situados no lago, tem não só azulejos de desenho ornamental, mas também três quadros figurais notáveis pelas suas formas e pelas suas cores. Um representa o rio Tejo, outro Suzana no banho. No fundo deste último quadro vê-se um palácio, em cujo pórtico se acha inscrito o ano de 1565. As chapas de terra cota (azulejos) que cobrem as paredes deste pavilhão estão colocadas com os cantos para baixo [<>],[108] excepto os ladrilhos dos quadros, cujas juntas são verticais e horizontais. A colocação especial dos azulejos motivou uma mudança agradável do desenho, sendo ainda aumentada pelo emprego de azulejos de desenhos diferentes.
Apresento no caderno 4.º um dos desenhos unicolores daquele pavilhão.
Toda a parede a oeste do lago, com a sua extensão de cerca de 30 metros e com a sua considerável altura, é coberta de azulejos verdes em baixo relevo, de muito valor artístico[70]. Um Neptuno lançando água, nichos e medalhões em relevo alto servem para dar mais vida ao extenso quadrângulo. O diâmetro dos medalhões é de 54 centímetros, com as grinaldas de flores e frutos de 78 centímetros. O muro sul do jardim, costeando o caminho do palácio para o lago, tem doze medalhões de baixo relevo, correspondendo a outras tantas pirâmides colocadas no alto do muro. Os relevos representam heróis da antiguidade, Alexandre, Cipião, César, Aníbal e outros. O conjunto de toda esta construção representa obra de mestre, de um arquiteto talentoso bem certo do efeito desta maneira decorativa.
Portugal é rico em ruínas grandiosas, muito pitorescas e, pela maior parte, desconhecidas no estrangeiro, como os castelos de Obidos, Leiria, Tomar e Palmela. Do último ainda se levantam ao belo céu azul as colunas isoladas de alguns arcos, e ali encontrei magníficas decorações de azulejos muito bem adaptadas às largas dimensões da igreja. Azulejos isolados, tais como se encontram nos museus da arte industrial, quase sempre de origem espanhola, não podem dar senão uma ideia muito imperfeita da magnífica harmonia e da arte genial com que os azulejos naqueles tempos foram aproveitados para a decoração. Na estampa junta vê-se o sistema de desenho empregado por cima das janelas e entre as colunas dos arcos.
A estampa, em cores, deste caderno apresenta o detalhe do desenho formado de dezasseis ladrilhos. Este desenho, como a sua roseta central, lembra alguma coisa os modelos romanescos, que provavelmente ainda se[109] conservavam tradicionalmente nas oficinas e que, nesta igreja de caráter romão dos tempos da Renascença, estão muito no seu lugar. Os frisos, porém, pertencem à Renascença pura, sendo pela maior parte formados por filas de folhas. A mesma estampa mostra uma parte composta de dois azulejos. Todos os ornatos mostram as mesmas cores, azul ou amarelo, contornados de azul sobre fundo branco, sendo não raras vezes o fundo enchido com a cor suplementar, o que faz aparecer o ornamento em branco.
O mesmo desenho de azulejos encontra-se em alguns outros edifícios do país, por exemplo na catedral de Portalegre, no Alentejo, fundada em 1565. Mas o sistema da composição dos azulejos é sempre variado, sendo deveras surpreendente a diversidade de desenhos que se podem arranjar com os mesmos ladrilhos. É claro que para isso se precisa uma mão experimentada, sendo especialmente difícil o fecho dos cantos. Os operários daqueles tempos tinham um exame especial com respeito ao assentamento dos azulejos.
A catedral de Portalegre, cuja torre teve a cúpula revestida de azulejos, contém no seu interior ainda muitos outros desenhos bonitos e notáveis de azulejos, como o representado no caderno 4.º. O artista desenhou uns retângulos e serviu-se apenas do azul e do amarelo, mas aplicando estas cores tão bem com respeito ao espaço que ocupam que, longe de parecerem desarmónicas, exaltam o efeito uma da outra[71]. O desenho da fita é também tirado daquela igreja.
Do século XVI existem ainda muitos azulejos lisos em Portugal; estampados em relevo encontram-se no convento da Pena e no palácio real de Sintra. As chaminés gigantescas deste último, que antes parecem pagodes da Índia, eram ornadas de azulejos estampados, desenhados por Duarte de Armas, pintor do rei D. Manuel.
Nos séculos XVI e XVII fabricaram-se azulejos magníficos. Ao lado de ornamentos, de vasos com flores, de arabescos, aparecem quadros figurais, emoldurados em ricos desenhos arquitetónicos, tudo apenas em dois tons de azul, contornados da mesma cor. Os quadros representam cenas bíblicas, feitos heróicos da história portuguesa, caçadas, touradas, danças, cenas[110] bucólicas e viagens. Estes trabalhos distinguem-se muitas vezes pelo talento do autor, mostrando sempre elegância e ligeireza do pincel, surpreendendo especialmente as figuras pela sua correção anatómica e boa representação do nu.
Forma isto um notável contraste com a moderna produção deste género na Alemanha, onde a figura humana é mal tratada até à caricatura. Da mesma época tenho de mencionar um túmulo[72] no mosteiro da serra da Arrábida, em que o revestimento azulejado da cúpula ainda está completamente conservado. Na sacristia da catedral de Portalegre todas as paredes são vestidas de azulejos, representando cenas da vida de Santa Maria, emolduradas de riquíssimas decorações da Renascença, arabescos com hipocampos, arnorettos e festões.
Também em algumas igrejas de Lisboa existem interessantes quadros em azulejo daquela época, mas a maior parte ficou destruída no grande terramoto de 1755.
Atualmente a fabricação de azulejos em Portugal restringe-se, infelizmente, a estampar os ladrilhos de padrões rotineiros, perdendo-se deste modo todo o encanto artístico, que tanto distingue as produções antigas. Não me foi possível verificar se em Portugal existiam oficinas especiais para a fabricação dos azulejos, parecendo-me por isso, que sejam produto das olarias e fábricas de porcelanas. Ainda hoje uma rua de um bairro antigo de Lisboa tem o seu nome derivado daquela indústria.
As olarias tinham por patronas Santa Justa e Santa Rufina e governavam-se por um regulamento antigo, que tratava de quatro espécies de faiança, branca, vermelha, amarela e outra chamada «da Maia».
Por ocasião da vinda de Filipe III de Espanha a Portugal, em 1619, os operários das fábricas de faiança construíram também um arco de triunfo, como os outros artistas.
João Batista Lavanha, no seu livro sobre as festas celebradas nessa ocasião, descreve o arco dos oleiros. No meio de diferentes emblemas alusivos à arte, via-se a figura alegórica da olaria estendendo a mão esquerda sobre o torno do oleiro, com a mão direita levantava um vaso semilhante àqueles que então se fabricavam em Lisboa pelos modelos chineses. Por baixo da figura lia-se o seguinte verso:
Noutro quadro estava representado um navio da Índia descarregando caixotes com porcelanas chinesas. Outros barcos estrangeiros carregavam porcelana portuguesa, vendo-se ao longe iguais saindo a barra.
Pode-se concluir daí que naquela época (1620) a arte estava bastante adiantada, não só imitando-se a louça chinesa, mas exportando-se até os produtos portugueses.
Em apoio do que disse sobre a origem mourisca dos conhecimentos dos portugueses a respeito das artes cerâmicas, posso acrescentar que rara é a designação de qualquer vaso que não derive do árabe. Assim, albarrada, alcadefe, alcatruz, almofia, almotolia, bacio, barranha, bateia, bátega, botija, copa e copo, jarro, taça, etc. É notavel que entre estes nomes não só figuram os de vasos de uso doméstico e comum, mas ainda alguns de objetos exclusivamente de luxo, como, por exemplo: albarrada, que designa um determinado vaso de flores e jarra, pote de flores, ainda hoje muito em uso em Portugal.
Não posso deixar de mencionar a louça de Extremoz com as suas formas originais, tendo como as alcarazzas do sul de Espanha, a propriedade de darem à água bastante frescura, em consequência da evaporação do líquido transpirando pela argila porosa e não vidrada.
Tradução do Dr. Hugo Mastbaum.
Para se avaliar do interesse com que na Alemanha se busca saber quanto pode importar a qualquer ramo da atividade humana, sirva de[112] exemplo o trabalho do professor Theodoro Rogge, que foi capaz de encontrar num jornal, essencialmente dado ao comércio e à política (Jornal do Comércio, de Lisboa), o escrito de autor obscuro e desconhecido, sobre a Bacalhôa, quase ignorada. Nunca supus que aquele meu trabalho valesse ser lido por um estrangeiro no seu país e, ainda menos, que eu merecesse as frases lisonjeiras que o ilustre professor me dirige. Não tive a honra de tratar com o Sr. Rogge, nem mesmo o gosto de o encontrar na sua viagem a Portugal, por isso mais me prendem as suas palavras de benevolente aplauso.
Ao meu amigo Dr. Hugo Mastbaum agradeço cordialmente o obséquio de me fazer conhecido pela tradução o escrito do seu ilustre compatriota.
J. R.
[1] Nota do autor: Resende, Vida e Feitos de D. João II.
[2] Nota do autor: Guarienti, Abecedario pittorico.
[3] Nota do autor: Carta do Sr. Ramalho Ortigão a J. R.
[4] Nota do autor: Vite de più eccellenti pittori, scultori ed architetti, de Giorgio Vasari.
[5] Nota do autor: Von Albrecht Haupt, Die Baukunst der Renaissance in Portugal, 1890.
[6] Nota do autor: L. 4.. da Chancel. de D. Jogo 1, fl. 24. Na Torre do Tombo.
[7] Nota do autor: O infante D. João vinha algumas vezes à sua quinta. De Azeitão a 13 de abril de 1440, data ele um alvará, proibindo, a requerimento de Diogo Mendes de Vasconcelos, comendador de Sesimbra, a pastagem de gados na ribeira da Yena (hoje Aiana). Num outro alvará, de Azeitão também, datado do dia 16 do mesmo mês e ano, reestabelece o juiz da mesma ribeira, para livrar e conhecer os ditos feitos (questões de esgotamento de terras, pastagens e regime de águas) e que apreme e constranja os lavradores da dita ribeira, que respondam perante ele. Este juiz deveria ser um lavrador. Tombo de Sesimbra, fl. 123 v. e 124.
[8] Nota do autor: L. 1.0 dos Místicos, fl. 53 v. Na Torre do Tombo.
[9] Nota do autor: L. 5.º da Chancel. de D. Manuel, fl. 21 v. Na Torre do Tombo.
[10] A escritura existe no cartório dos Srs. condes de Mesquitela, senhores do morgado dos Albuquerques. O título 3.0 do livro 4.0 da ordenação Manuelina tem por título: «Que nenhum faça contratos nem distratos, em que ponha juramento, nem boa fé». Archivo pittoresco, vol. V.
[11] Economista, jornal de Lisboa, n.ᵒ 1:097 de 1885.
[12] Nota do autor: Carta mandando criar em vila a aldeia de Vila Fresca. Lisboa, 5 de dezembro de 1759.
[13] Nota do autor: Alvará de Lisboa, 16 de agosto 1786.
[14] Nota do autor: A Arruda foi criada vila em 1574, e, desde os primeiros tempos da monarquia, é chamada vala, mas pelos mais antigos documentos se pode mostrar que esta vila quereria dizer granja, quinta. Em 1255 o mestre Paio Peres Correia e o comendador de Mértola, Gonçalo Peres, dão ao frei Estevão Mendes aquele campo que é chamado vila da Arruda. Em 1300 a Arruda é dada à rainha D. Isabel, recebendo a ordem de Santiago em troca a quinta da Horta Lagoa no termo de Santarém. Em 1236 já o mestre Paio Peres tinha trocado com o sobrejuiz Pedro Martins o usufruto da Arruda pelas herdades que este tinha nas lezírias da Toureira. Mais tarde, em 1300, a rainha D. Beatriz deu à ordem de Santiago a quinta da Rebaldeira em troca da Arruda. Depois ainda Afonso IV troca a Arruda pela herdade da Anisa no termo de Alcácer, isto em maio de 1329. NB. Os dois contratos atrás, de 1300, um é de 14 de junho, outro de 3 de outubro.
[15] Nota do autor: «Et qui habuerit aldeam, et uno jugo de bois et xxxx oues et uno asino et duos lectos, comparei caualum.» Foral de Sesimbra, de Palmela e todos os do tipo de Évora.
[16] Nota do autor: A divisa do infante D. Henrique escrevia-se «Talent de bien fere», por faire.
[17] Nota do autor: «Non tibi, inquit illa (Beatriz) solum regni hwreditas obvenit, sed etiam matri, et propinquis, et omnibus denique, qui in te spem rerum suarum collocatum habent.» H. Osorii, De Rebus Emmanuelis, liber prim. Edit. 1791, pág. 36.
[18] Nota do autor: L. 1.0 dos Místicos. Na Torre do Tombo.
[19] Nota do autor: Salva, Col. de doc. ineditos para a hist. de Hisp., tomo VI. Carta de Cristóvão de Moura ao rei Filipe, em 9 de março 1579.
[20] Nota do autor: O cardeal Bembo, secretario de Leão X, fez dizer a este papa, quando anunciou aos príncipes cristãos a sua elevação ao pontificado, que ele tinha sido feito pontífice pelos decretos dos deuses imortais.
[21] Nota do autor: Comentários, parte XV, cap. L.
[22] Nota do autor: Em pouco estará restaurada esta galeria, graças ao atual proprietário, o Sr. conde de Mesquitela, D. Luís, que soube compreender o valor daquelas edificações.
[23] Nota do autor: Luiz Domnech, Historia general del arte, caderno.
[24] Nota do autor: Henry Havard, La Céramique. L’histoire, 22.
[25] Nota do autor: Von Albrecht Haupt, Die Baukunst der Renaissance in Portugal, 1890.
[26] Nota do autor: Kunstgewerbeblatt. Oktober 1893, Leipzig. Tradução do meu bom amigo Dr. Hugo Mastbaum. O ilustrado professor, Dr. Theodor Rogge, publicou em 1895 um outro artigo, Keramik und Decoration in Portugal, cuja tradução seguirá, em apêndice, nesta monografia.
[27] Nota do autor: Al-makkari, tomo I. Tradução inglesa de Gayangos e port. do meu amigo Oliveira Parreira.
[28] Nota do autor: D. Francisco Javier Simonet, professor de árabe em Granada, Influencia del elemento indígena sobre la cultura de los mosos de Granada, 1894. Neste folheto, o autor, um traga-mouros de primeira força, mata-se por mostrar que a raça arabe é incapaz de qualquer aperfeiçoamento; só lhe concede as qualidades guerreiras, e quer que estes dominadores da península ibérica nenhuma lição aqui dessem, mas que todo o esplendor da sua época se deva à influencia do elemento indígena.
[29] Nota do autor: Nota de Simonet: Ibn-Said, citado por Al-mahkari. Tomo 7, 124.
[30] Nota do autor: Nota de Simonet: «Nebriga traduce por pavimento o suelo de azulejos y Freund por suelo de mosaico».
[31] Nota do autor: Oliveira, Grandezas de Lisboa. Tratado XV, cap.
[32] Nota do autor: A propriedade de Nuno Martins é a quinta chamada ainda hoje da Palhavã; foi-lhe dada de emprazamento na era de César de 1451 (ano 1413) por Afonso Martins Palhavã e sua mulher Constança Atines, pelo foro animal de duas mil libras dos reais de três libras e meia. O Palhavã e mulher morreram sem herdeiros, o foro passou à coroa, e D. Duarte, em 11 de novembro de 1436, fez dele mercê ao dito Nuno Martins da Silveira, seu criado, do seu conselho e seu escrivão da puridade.
[33] Nota do autor: Sr. Visconde de Sanches de Baina, Resumo histórico dos Albuquergues, pág. 13.
[34] Nota do autor: Silva Túlio, Archivo pittoresco.
[35] Nota do autor: Afonso de Albuquerque, Comentários, part. IV, cap. XLV.
[36] Nota do autor: Gaspar Correia, Lendas da Índia, tom. iv, pág. 461.
[37] Nota do autor: São de notar estas circumstancias na morte de D. Manuel. Ironias do destino: Dia de abstinência de carne, número aziago para muitos; e da hora, que direi?!
[38] Nota do autor: Casa dos Bicos.
[39] Nota do autor: Gaspar Correia, Lendas da Índia, tom. IV, pág. 376.
[40] Nota do autor: Afonso de Albuquerque, Comentários. Gaspar Correia repreende a permuta dizendo: «Mas esta esmola dos meninos se perverteu, que seu filho, que ficou no reino, o quis antes para si, que não para os meninos, nem para outra nenhuma esmola.» Lendas. Ibid. O mesmo autor (pág. 472) diz que o sucessor de Albuquerque, o Grande, Lopo Soares pela sua má tença que tinha às coisas de Afonso de Albuquerque, quisera derrubar a capela, o que não fez executar pelo grande despêndio, no entanto, mandou tirar-lhe o sobrado; também ordenou que dali se tirassem os ossos do grande capitão, mas foi desobedecido, e, a pretexto de que as boticas prejudicavam a defesa da cidade, fê-las derrubar e mandou que se fizessem noutro lugar. Que aplicação aqui não tem a fábula do ledo decrépito!
[41] Nota do autor: D. Aleixo de Menezes, eremita de Santo Agostinho, capelão-mor em 1590, arcebispo de Goa, primaz do Oriente, em 1595, arcebispo de Braga, primaz das Espanhas em 1611.
[42] Nota do autor: Melchioris Phabi, Decisiones, tom. I.
[43] Nota do autor: Sousa, História genealógica, tom. V, pág. 312. Falcão, Livro de toda a fazenda, pág. 161.
[44] Nota do autor: Sousa, História genealógica, tom. XI, pág. 445.
[45] Nota do autor: É erro. A pintura era em tela, de que restam as réguas, que a pregavam, e representava Goa, Calecut, Malaca e Ormuz.
[46] Nota do autor: Teve o sobrenome Sebastião por haver nascido no dia 20 de janeiro, que a igreja de Roma dedica a S. Sebastião.
[47] Nota do autor: Pedro de Mendonça havia casado em primeiras núpcias com D.ᵃ Catarina de Menezes, e deste matrimónio era filho este Francisco de Mendonça, a que o documento se refere.
[48] Nota do autor: Cartório dos tabeliães de Azeitão, liv. 20.
[49] Nota do autor: Monstruosidades do tempo e da fortuna.
[50] Nota do autor: Lendas da Índia, pág. 457.
[51] Nota do autor: Monstruosidades do tempo e da fortuna, pág. 169.
[52] Nota do autor: D.ᵃ Maria Manuel era filha de D. João Manuel de Albuquerque, filho natural de D. Jorge Manuel, senhor do morgado.
[53] Nota do autor: Paulina, carta comunicatória de excomunhão, a quem não revelar o que sabe em alguma matéria, da qual só por esta via se pode ter notícia. Chama-se Paulina, porque o papa Paulo III foi o primeiro que as mandou publicar. Eram lidas na ocasião da missa.
[54] Nota do autor: História genealógica, pág. 441.
[55] Nota do autor: Pertencente aos Almadas Carvalhais, provedores da Casa da Índia.
[56] Nota do autor: O sobrenome era Josefa e não Teresa.
[57] Nota do autor: Reis 320004000.
[58] Nota do autor: Manuel Carvalho de Ataíde, pai do célebre marquês de Pombal, era casado com D.ᵃ Teresa Luísa de Mendonça, filha de João de Almada e Melo, alcaide-mor de Palmela, casado com D.ᵃ Maria de Mendonça, filha ilegítima de Francisco de Mendonça, alcaide-mor de Mourão, meio irmão de D.ᵃ Maria Josefa de Mendonça e Albuquerque, mãe de Luís Guedes de Miranda. Na procuração Manuel Carvalho chama tio a Luís Guedes.
[59] Nota do autor: Em 12 de maio de 1720 ainda Luís Guedes era vivo, pois o patriarca de Lisboa, D. Tomás de Almeida, em visita à sua diocese, dispõe que ele, como administrador do morgado de Afonso de Albuquerque, proceda aos reparos de que necessita a igreja de S. Simão. Deve ter falecido neste ano ou princípios de 1721.
[60] Nota do autor: O papa Clemente XI concedeu a criação de duas sedes episcopais em Lisboa e, para as distinguir, chamou-lhes oriental e ocidental. D. João V continuou a extravagância, dividindo Lisboa em duas cidades do mesmo modo designadas por decreto de 9 de janeiro de 1717.
[61] Nota do autor: Sousa, em História genealógica, marca o nascimento de D. António no dia 3. A data que eu sigo é dos artigos do processo, que tenho à vista.
[62] Nota do autor: Sousa, em História genealógica, marca o nascimento de D. José a 22 de julho. Eu sigo a data dos artigos.
[63] Nota do autor: Esta casa ainda existe, na estrada da Luz, adiante do palácio e quinta das Laranjeiras, que foi do conde de Farrobo.
[64] Nota do autor: D. Luís da Costa foi coronel de cavalaria nas guerras da restauração de 1640, com reputação de soldado valente, e comendador da ordem de Cristo. Ibidem.
[65] Nota do autor: Moreri. Dicionário. 2.º Suplemento, pal. Costa.
[66] Nota do autor: Li nesta resposta do ministro do rei de Portugal uma passagem, de que não posso fugir à tentação de dar conta; por mostrar a rigidez deste personagem por tantos títulos célebre. A cúria, que desconhecia, ou fingia não conhecer o rei D. José e o seu primeiro ministro, o pacto feito entre estes dois homens e a escola política que seguiam, o juízo prudencial com que a natureza dotara o rei, a ilustração do conde de Oeiras, as sabidas qualidades do seu génio e o seu conhecimento dos ardis da diplomacia curial, usou nos breves Suggestivos, como lhes chamou Sebastião de Carvalho, de uma estudada linguagem, melíflua, aveludada e calculadamente sentida, repassada de dor de angústia e capaz de fanar aos ânimos desprevenidos. Nota do autor: No breve ao seu caríssimo filho José I, pedia-lhe Clemente XIII que se lembrasse do tormento do seu amantíssimo pai na hora final, de que estava próximo, se deixasse o mundo sem se haverem ambos consagrado, e da tranquillidade que lhe iria na alma ao morrer, se pai e filho se tivessem reconciliado. A intenção da cúria romana não escapou ao ministro do rei, que, numa ementa a esta passagem, escreveu: «Tudo isto são palavras patéticas, que só servem para moverem dos púlpitos o povo ignorante.» A cúria, julgando também que a rainha e o infante D. Pedro, irmão do rei, podiam influenciar para o conseguimento dos pretendidos fins, fez expedir breves a estes dois personagens e, para lisonjear o conde de Oeiras, foi dada ordem ao núncio em Madrid para fazer chegar abertos à mão do conde todos os quatro breves expedidos de Roma, a fim de que ele fosse o primeiro a conhecer o seu conteúdo «acciò ella (Ec.ᵃ) sia il primo d’ogni altro a saperne il contenuto.» O conde de Oeiras na sua resposta ao arcebispo de Niceia, depois dos cumprimentos da mais fina cortesia e de lhe falar da remessa da resposta do rei, cuja cópia lhe oferece, continua: «Ao mesmo tempo devo prevenir a v. ex.ᵃ que lhe não cause reparo a falta de outras respostas sobre alguma das mais cartas (refere-se aos breves para a rainha e infante) que acompanharam a de v. ex.ᵃ, porque S. M. as mandou ficar suspensas na secretaria de estado, em raspo de serem opostas à impreterivel forma do despacho do gabinete do mesmo senhor, segundo a qual os negócios das cortes são imediata e privativamente dirigidos à real pessoa de S. M. para os mandar tratar pelos ofícios dos ministros... sem que outras algumas pessoas... tenham neles a menor intervenção, como é pratica universal de todas as outras monarquias da Europa, onde se distingue o que é regularidade do que é sedição.»
[67] Nota do autor: Os azulejos de Córdova atribuem-se ao fim do século X. Nota da Red.
[68] Nota do autor: O respetivo trabalho intitulou-o A Renascença italiana em Portugal, e apareceu no Jornal do Comércio, Lisboa 1892. Nota de Th. Rog.
[69] Nota do autor: Em folha separada dá uma estampa do Douro. Nota de J. R.
[70] Nota do autor: O autor do presente escrito visitou a Bacalhôa e dali levou desenhos; nesta parte, porém, a memória, ou os apontamentos são-lhe infiéis; o azulejo verde é de uma galeria proxima. Este é amarelo, azul e verde em fundo branco. Nota de J. R.
[71] Nota do autor: O quarto dos duques de Aveiro no seu palácio de Azeitão tem uma faia em volta, de mais de 1 metro de altura, deste mesmo azulejo. Nota de J. R.
[72] Nota do autor: O ilustre professor alemão, que com tantos cuidados e verdadeiros conhecimentos explorou em Portugal este género de cerâmica e suas aplicações, guiado pelas aparências, julgou ver na Arrábida um túmulo no que é um templozinho esbelto, que sai com elegância de entre as frondosas matas da serra, apresentando ao sol para se mirar a sua espelhada cúpula. Foi fundado no meado do século XVII por D. António de Lencastre, da casa de Aveiro, e é da vocação do Bom Jesus. Nota de J. R.