Title: Castilho e Quental: Reflexões sobre a actual questão litteraria
Author: Augusto Malheiro Dias
Release date: November 21, 2010 [eBook #34386]
Most recently updated: January 7, 2021
Language: Portuguese
Credits: Produced by Pedro Saborano
AUGUSTO MALHEIRO DIAS
CASTILHO E QUENTAL
REFLEXÕES
SOBRE A ACTUAL QUESTÃO LITTERARIA
AUGUSTO MALHEIRO DIAS
CASTILHO E QUENTAL
REFLEXÕES
SOBRE A ACTUAL QUESTÃO LITTERARIA
PORTO
LIVRARIA E TYP. DE FRANCISCO GOMES DA FONSECA, EDITOR
1866
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AO SEU AMIGO
IGNACIO DE VILHENA BARBOSA
SOCIO
DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA
E REDACTOR DO ARCHIVO PITTORESCO
Off.
O AUCTOR.
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Na Carta ao Editor Pereira, que precede o Poema da Mocidade, o snr. Castilho fulminou a escola de Coimbra com um despiedoso anathema, que veio levantar uma grande procella no mundo litterario. Causou isso estranheza. Ha muito que em Portugal não havia tempestades litterarias; bonança e calmaria constantes permittiam seguir todos os rumos, vogar pelo vasto oceano das lettras sem que impetuosas correntes, ventos contrarios ou perigosos parceis estorvassem a passagem.
Escondêra a critica as suas agudas garras; sobre as ruinas da imparcialidade levantára-se orgulhosa a escola do elogio-mutuo, apoiando-se nas theocracias litterarias. Aplanaram-se todos os caminhos, arredaram-se com carinhoso disvelo as sarças agudas e os asperos seixos, tapetaram-se de flôres os inhospitos desvios, coroaram-se de louros todas as frontes e elevaram-se ao Capitolio todos os escriptores. Desapparecêra o fel, o odio e a inveja, e os thuribularios do elogio-mutuo entornaram o mel do Hymetho sobre todas as obras, sobre todos os escriptos. A baba immunda{6} de Bavio fôra condemnada ao ostracismo. Era bom? era máo? não sei:—se as tempestades não fecundam o oceano, fecundal-o-hão a bonança e a calmaria?
Desencadeou-se alfim a procella; ergueram-se altas serras d'agua e cavaram-se fundos abysmos. Revolveu-se Encélado nos seios da montanha, e desentranhou-se o vulcão em ardente lava. Os odios adormecidos, as rivalidades mascaradas, os despeitos mesquinhos, despertaram do longo somno, arrojaram os mantos que os acobertavam e estão face a face, provando as forças e os brios. As armas de cortezia foram postas de parte, vestiram-se os arnezes de prova, empunharam-se as espadas açacaladas, travou-se a lucta, renhida, desapiedada, terrivel, e para aquelle que ficar vencido no campo da batalha, não haverá perdão nem misericordia. É odio de familia, o peior de todos os odios, que lhes guia os fundos golpes.
São dois os campeões que se avançam ousados a perturbar a paz; um, cheio de mocidade, de vida e de fogo, o outro velho e cego—cego!—mas não importa: a experiencia, equiparando as forças, supre o valor da mocidade; a sciencia da vida, o esforço não inferior ao do mancebo, igualam os annos, equilibram as probalidades da victoria.
Qual será o resultado da lucta? Qual será o vencedor e qual o vencido? Ficará a pendencia por decidir? Julgo que sim; só se algum Brenno audaz vier lançar a sua espada na balança da contenda—mas a raça dos Brennos está extincta!—
Anthero do Quental levantou a luva, que lhe lançára o auctor da Primavera, e vem ousado e destemido rasgar e calcar aos pés a purpura, que cobria os hombros do illustre cego.
O mancebo inspirado, cheio de vida e de talento, e o velho com os pés na sepultura, o Homero portuguez, estão{7} frente a frente. Um quer cortar as azas á aguia que paira no espaço, o outro despenhar do pedestal da gloria o poeta laureado pelas academias, saudado e applaudido nas duas extremas plagas do Atlantico.
Ha entre os dois um abysmo: a distancia que medeia entre o mais alto pincaro do Hymalaia, escondido entre as nuvens, e o profundo ribeiro que se enrosca lá na sua extrema fralda; não na intelligencia, no talento; não me cabe averiguar isso; mas na escola, nas idêas, nas tendencias. Um, é o resto d'um seculo lançado pelas ondas do tempo nas praias d'outro seculo, um ecco do passado, uma reminiscencia da idade d'Augusto e de Pericles, enfeitada com as galas ridiculas e piegas da Arcadia; é um grego, um romano resuscitado no seculo desenove, sem ter atravessado a Egreja mystica, sem lhe terem borrifado as mãos as lagrimas da Magdalena, sem a corôa d'espinhos de Jesus Christo lhe macerar a fronte, sem que um raio divino lhe rasgasse o véo, que encobre o ideal. Debalde Theocrito e Virgilio lhe emprestaram a agreste frauta, Pindaro e Ovidio as lyras d'ouro; não o visita a inspiração celeste, vagueia entre o céo e a terra; se não é humilde tardigrado, que se arrasta preguiçoso e confundido com a urze da charneca, tambem não é a aguia altiva, que encara ousada o esplendor do sol.
O outro, Anthero do Quental, imbuido de todas as virtudes, de todos os vicios do seculo, baloiçado e combatido pelas doutrinas scepticas e desoladoras do tempo presente, d'espaço a espaço illuminadas por um brilhante lampejo de vivissima fé, de confiança no futuro, não detem sequer um instante, nos tempos que já lá vão, o olhar perdido em vagas contemplações.
A esplendente luz da inspiração abre-lhe as portas dos mundos invisiveis, elevando-lhe a alma para o ideal e mostrando-lhe as suas aspirações realisadas: as cadeias, que{8} algemam o pensamento, partidas, as nevoas do futuro dispersas como fumo, a humanidade caminhando sempre, sempre, como Ashavero, aproximando-se pouco a pouco da perfeição infinita.
N'esse vasto quadro do progresso o Christianismo apparece-lhe como um passo collossal; um monumento gigante, um pharol luminoso; mas não o ultimo estadio da perfeição;—além dos mundos mais mundos, além da perfeição finita a perfeição infinita, além do real o ideal!...
As sarças do caminho não entorpecem o passo do audaz caminheiro, vae sempre ávante—um momento de reflexão, um volver d'olhos para o incendio de Sodoma, não o metamorphoseariam em estatua de sal?—e de que monta isso?—a phantasia sabe doirar tudo.
A doutrina do progresso indefinido prégada por Leroux e Pelletan, apezar de profundamente abalada e desmantelada pela logica de Proudhon e pelos anathemas de Lamartine, tem ganho adeptos em toda a parte. As consolações que derrama, o orgulho e a confiança que insufla, podem mais no espirito do que a aragem desoladora d'esse vento frio e regelado chamado Proudhon, e do que os raios d'esse pallido sol d'outomno, que tem por nome Lamartine—a illusão vence a realidade. É mais doce, mais agradavel, viver embalado por sonhos encantadores do que arcar com as difficuldades da existencia, do que encarar com as tristuras da vida real. Se essa crença no progresso indefinido não resiste ao ataque do raciocinio, se é um devaneio de imaginações brilhantes, tem prestado grandes serviços á poesia, tem feito desentranhar a lyra em sons bem harmoniosos, cheios de magica melodia, repassados de vivida esperança!—e o Christianismo não fez da esperança uma virtude?
O auctor da Primavera embalado no berço pelos murmurios do Tibre, pelas cataractas d'Albano e de Tibur, pelo manso susurrar da fonte do Pausilippo, pelas ondas doiradas{9} do oceano que se quebram mansamente junto do cabo Sunium, pelo melodioso ramalhar dos pinheiraes do Ida, agitados pelas brisas tepidas do Oriente, por todas essas harmonias reflectidas nos versos de Ovidio e de Virgilio, de Mochus e de Hesiodo, pantheista e pagão, entregue todo ás saudades do passado, não crê nas aspirações do tempo presente. O poeta de Coimbra nasce na época da renovação em que as velhas instituições se desmoronam, em que o martello do iconoclasta derruba sem piedade as divindades gregas e romanas; nasce no tempo em que os homens crêem num só Deus, não são pantheistas, nem pagãos, nem atheus—atheus!... crêem em Deus todo poderoso; mas ousam travar uma lucta, arca por arca, com a divindade, novos Titans, collocam Prometheu sobre Ashavero, Ashavero sobre Napoleão e escalam os céos; nasceu no tempo em que Edgard Quinet, Renan, Victor Hugo, Hegel, Vico, Heine, tentando ultrapassar as raias, que separam o finito do infinito, quebraram as columnas d'Hercules, recuaram os limites de tudo; mas, fraco vislumbre de pejo! encobriram as suas aspirações, as suas arrojadas doutrinas, os seus devaneios, as suas profanações, com os nevoeiros metaphysicos e mysticos de Swedenborg e de Boehm; nasceu no tempo em que as intelligencias elevadas, sonhando um ideal para além do céo, procurando a idêa além do mundo real, não encontraram as mais das vezes senão o phantasma, a sombra d'ella, abraçaram a nuvem, julgando apertarem nos braços profanos a formosa Juno!
Castilho cultiva a fórma, a feição litteraria, a harmonia e a melodia das palavras, cinzela a taça com perfeição; mas esquece-se do incenso oloroso, que dentro d'ella hade arder. Despreza Quental os lavores, não cuida dos adornos, dos arabescos; escolhe só a essencia que hade lançar dentro do vaso, descurando cinzelal-o com esmero.
Deprehende-se d'isto, que levamos dito, que são{10} diversissimas as escolas dos dois contendores; mas ha, n'uma e n'outra, bom e máo. São bôas todas as escolas, não ha escolas más, ha máos artistas.
A reforma ou renovação romantica, que os vastos genios de Goethe, Chateaubriand e Byron operaram no mundo das lettras, ganhou adeptos em toda a Europa.
Philinto Elysio, respirando em Pariz as primeiras brisas da estação moderna, lançou em Portugal as sementes da revolução romantica com as suas versões dos Martyres e do Oberon, e Bocage, deslumbrado pela esplendente luz, que alumiava a França, principiou insensivelmente a vasar, na estreita fórma das regras classicas, a idêa romantica, mas ainda entorpecida pelos assumptos da invenção pagan; veio depois o auctor de D. Branca trazer o facho, que nos encaminhou pelas novas veredas. Mas a revolução romantica, no principio, estendeu mais a sua authoridade pelos dominios da idêa do que pelos da fórma; se a fórma foi um pouco alterada, deve-se achar a causa dessa alteração na corrente impetuosa das idêas que arrastava os velhos padrões, modelando-os e reformando-os á feição do pensamento, que haviam de revestir. O que era bom era aproveitado e enfeitado, o máo repellido ou melhorado; mas comtudo o pensamento, como força primordial, sujeitou sempre o estylo á sua authoridade. Os sectarios da nova escola, depois, transviados da brilhante senda, illuminada pelo ingenho dos authores de Werther, de Atala e Childe-Harold, exaggeraram a fórma e desprezaram a idêa. Era obvia a razão. Facil era variar a contextura do periodo, cambiar a harmonia, ajuntar palavras melodiosas, e difficilimo innovar o pensamento. O vôo ousado até o throno do Senhor, o pensamento soberano, o genio, a revelação{11} do poeta é luz que illumina poucas frontes; só os escolhidos, os eleitos, se elevam a tão altas paragens no extasis da inspiração. Raros são os videntes, as intelligencias elevadas que encontram o ideal, lembrança e saudade do céo que adeja no pensamento da creatura, ou aspirações anhelantes e anciosas para os sublimes esplendores do paraiso; só do coração dos verdadeiros poetas é que se desdobra a aza que transporta o espirito aos mundos invisiveis. A execução, pelo contrario, filha do estudo, é a arte material; por todos os lados a cercam alcantiladas muralhas; algemam-n'a as regras, as escolas e até as modas, e o circulo limitado, que lhe traça a imitação, não a deixa attingir as alturas aonde floresce o Ideal; mas se o lado subjectivo, o pensamento e a idêa escapam ao seu dominio, a parte pittoresca e objectiva, assim rodeada de tantos perigos e escolhos, quando é vasada num molde artistico, quando se deixa fecundar pelo Bello, tem direito a homenagem profunda.
A escola da fórma, julgou que o estylo constituia a primeira e unica belleza das obras d'arte, e considerando esse theorema como axioma, veio a naufragar nos parceis do ridiculo. Não podendo, ou não ousando, transpor a funda barreira que separa o finito do infinito, o visivel do invisivel, desprezou essa escola o pensamento—enlevada do amor do corpo, que havia de revestir a idêa, deixou escapar atravez dos seus dedos sensuaes a paixão e o ideal. Mas comtudo se não tinha essa escola o arrojo de ir roubar ao céos o fogo sagrado como Prometheu, deliciava o ouvido com musica harmoniosa e encantadora, se não elevava a alma, deleitava os sentidos.
Ha vinte annos a esta parte operou-se então uma nova revolução no mundo das lettras. A idêa, com o seu poder soberano, tendo ganho no desterro novas forças e ousadia, partiu as gramalheiras que a algemavam e campeou de novo,{12} ousada e destemida. Mas não se mostrou aos olhos de quem a procurava, nua como a Verdade sahindo do poço, cercou-se de pudico nevoeiro, que só olhos d'aguia podiam atravessar. Até ahi a melodia e a musica das palavras nada significavam, depois a idêa, envolvida e encoberta em expressões sybillinas, em vagas abstracções, em symbolos mysticos, que só os adeptos e os iniciados podiam comprehender, arrojou-se a taes alturas, perdeu-se em tão alto vôo, que quem ousasse seguil-a até essas longinquas paragens arriscava-se á sorte de Icaro; mas que importa?... contemplava mais de perto a brilhante claridade do sol, os esplendores, que depois encontrava, pagavam-n'o dos perigos que soffrera. Muitas vezes o audaz caminheiro transviava-se por entre os nevoeiros espessos e densos, que o cercavam; mas se a vontade era robusta, que luz divina vinha de quando em quando illuminar-lhe a fronte!
Para encontrar o veio d'ouro, escondido nos seios da montanha, que escuridões é preciso atravessar, que perigos, que horrores! mas não augmenta depois o prazer com a reminiscencia dos penosos trabalhos que se soffreram? Que difficuldades em comprehender a Biblia! mas que alegria tambem quando algum tenue clarão nos esclarece o mystico sentido das palavras, escriptas sob a inspiração divina!
Escutemos bater o coração e arrojemos o odioso cilicio; deitemos por terra tudo o que estorva o ar vivo das montanhas e das florestas, e as frescas brisas do oceano, de afagarem as frontes inspiradas. É o methodo o valhacouto dos estereis; a republica das letras vive do ar, do espaço, do imprevisto. Mas tambem, terrivel dilemma! o que é um livro sem estylo? de que vale? que significa?
O estylo constitue a primeira belleza d'uma obra litteraria—é verdade mil vezes repetida; mas verdade quasi sem objecção. Mudam as idêas, tomam novo curso, succedem-se{13} umas ás outras como as vagas do oceano, e se o estylo as não adorna, se as galas da linguagem as não enfeitam, as não endeusam, o livro lido hontem com interesse, com entranhado prazer, é hoje repellido com tedio e fastio. Se o livro tiver estylo viverá; atravessará, brilhante e esplendente, as idades futuras, faltando-lhe essa condição, entre o levantar do sol no oriente e o mergulhar-se no occidente, desapparecerá da face da terra a sua memoria, ainda que o sentimento do infinito transpareça em todas as suas paginas.
Não ha contradicção no que dizemos; o que se deprehende fatalmente d'aqui, é que a critica tem o direito de procurar nas obras d'arte, o que se encontra na creação; o pensamento e o estylo, o espirito e a fórma, a intelligencia e o corpo, que a reveste: será um inspirado sublime, um semi-deus aquelle, que reunir estas duas forças.
Não é sómente a poesia o perfume das flores da terra, nem a chamma accesa nos céos, é necessario que o perfume habite um calice trabalhado por Deus, é forçoso que o finito se não separe do infinito, que o Bello visivel falle do Bello invisivel, como a creação, o universo, fallam de Deus.
Mas assignalados serviços fizeram á litteratura estas duas escolas. Se a escola da fórma não tinha o vôo ousado, que eleva a alma até ás regiões do infinito, se sensual e material, violava os mysterios do coração e não tinha o segredo de os possuir, contribuiu poderosamente para apurar e enriquecer as linguas; a outra se desprezava os ouropeis, com que se enfeita o pensamento, se escreveu sem freio, sonhando por toda a parte um ideal para além do céo, elevou o sentimento moral rebaixado, e manteve as aspirações do espirito, levantando a alma e o coração para as celestes visões dos mundos melhores, sem as quaes a terra seria um vasto e triste deserto.{14}
A Arte, a Poesia, na sua missão suprema, devem aspirar sempre ao infinito, trepando a montanha invisivel, que desce até aos nossos pés, e que se eleva até o throno de Deus. Sobre essa alcantilada montanha é que floresce o Ideal. São necessarios vontade robusta e impulso divino para subir até á extrema agulha—a poucos é dado lá chegar! O cansaço e a fadiga prostram os caminheiros, alquebrados e sem forças, a metade da encosta; mas, quem não tiver os pulmões assaz vastos para chegar até á corôa do gigante alcantil, tome por uma larga estrada, que se abre na lombada do elevado monte, enroscando-se nas suas viçosas e verdejantes fraldas; ao cabo d'esse caminho, encontrará o viajeiro a verdade, a outra face radiosa do Bello. Ha duas sendas a seguir para attingir o Bello—ou caminhar pela terra, ou elevar-se aos céos, ou o sabor agreste da natureza, ou as pulsações do coração, ou o vôo ousado da aguia, ou o rastejar da timida arvéola. O Ideal e a Verdade, eis os dois supremos caracteres da Arte, da Poesia. Mas que Jano potente reune as duas faces radiosas do Bello?...
Mas comtudo o Bello, o esplendor do Verdadeiro, encontra-se sómente no ideal—entre a verdade, que os nossos olhos podem encontrar e a verdade que a arte deve escolher, ha um abysmo.—O fim supremo da Arte não é a realidade; não se deve a invenção limitar a traduzir, a copiar servilmente a natureza, tem um fim mais nobre, mais elevado: transformar, interpretar, comprehender a realidade na sua significação mais intima, e achar para essa significação, isto é, para a Verdade, uma expressão cabal e completa. Desconhecer a distancia que separa a realidade da verdade, é desconhecer a propria essencia do{15} Bello—não ha arte sem a amplificação, sem a interpretação da natureza.
O estudo e a reproducção litteral da realidade são um ensaio util, uma prova indispensavel, uma como que iniciação; mas a realidade nunca deve ser o fim, o alvo, aonde se dirigem os esforços do Artista; cumpre, que seja um meio, e nada mais.
A imaginação humana, manifestando-se sob as suas fórmas diversas, deve seguir este trilho para attingir o Bello, e a poesia que dimana directamente da imaginação, que faz, por assim dizer, parte da sua essencia, que é quasi a antithese da realidade, deve elevar-se sempre para as regiões sublimes, para os mundos ideaes, solta dos asperos e incorrectos limites da natureza. Não é sómente a Arte a combinação judiciosa dos elementos da realidade, a reunião de parcellas reaes escolhidas com discernimento e criterio, é a transformação logica, mas ousada e atrevida, da realidade.
A lucta travada pela escola realista é uma lucta insensata, é uma lucta acima das forças humanas; porque é insensata, porque é acima das forças humanas, a esperança de reproduzir a natureza, de copiar a realidade. Não prendem a admiração as obras realistas; o pensamento que presidiu á sua creação basêa-se num principio falso e impotente, traz comsigo a morte. E é obvio o motivo d'essa impotencia: é impossivel reproduzir a natureza com meios tão differentes daquelles de que ella dispõe.
Exaggerar, amplificar a verdade, não é renegal-a. É um dom sublime, divino, da phantasia crear segunda vez a realidade, metamorphoseando-a. Não é a natureza mais bella, não se adorna com galas mais vistosas, illuminada pelos esplendores do sol da Primavera?...
O snr. Anthero do Quental que tentou subir até os altos pincaros onde floresce o Ideal, e o snr. Castilho, que seguiu pelo{16} caminho da Verdade, encontraram o Bello? O que pesará mais na balança? os vôos ousados do auctor das Odes modernas, livres das peias do estylo, ou o rastejar do cantor da Primavera, adornado com as galas da linguagem, enfeitado com os ouropeis da fórma? É o snr. Castilho um architecto habil, ou ajuntou os materiaes e não soube construir o edificio? A escola de Coimbra encontrou o Ideal, ou abraçou como Ixion uma nuvem phantastica, uma sombra?
Difficil é a resposta; difficilima para nós, que não queremos aventar um juizo erroneo.
A escola de Coimbra envolveu os seus pensamentos, a sua doutrina, em nevoeiros talvez metaphysicos de mais, cahiu em monstruosa exaggeração—e a exaggeração não é um indicio de depravação de gosto?.. e esses nevoeiros, que teem uma harmonia intima, um laço mysterioso com a fria athmosphera do Norte, que povôa de phantasmas os campos e as florestas, poder-se-hão transplantar para os climas do sul, terão a mesma razão de ser, diante dos esplendores do sol do Meio-dia, do sol de Portugal?
É necessario ser um iniciado nesses mysterios d'Isis e de Eleusis, um hierophante, para encontrar, por entre esses hieroglyphos, o pensamento e a idêa, é necessário ter o fio de Ariadna para penetrar n'esses labyrinthos—e penetrando... que montões de duvidas! Quando se solta assim tão alto vôo, para as elevadas regiões do desconhecido, deixa-se á porta a Verdade, como esses aventureiros, que não vendo a fortuna junto do seu modesto e humilde lar, vão, atravez de mil perigos e fadigas, procural-a em longinquas plagas.
Será a aza da sabedoria que encaminha os sectarios da escola de Coimbra para esses incognitos paizes? viajam... chegarão ao porto?... mas será tambem a fórma das poesias do snr. Castilho haurida na pura e crystallina fonte do Bello? Duvidamos.{17}
As poesias do auctor da Primavera são reflexos das tradições gregas e romanas, são imitadas dos poetas da antiguidade pagã, com um pronunciado ressaibo do seculo desoito; é o snr. Castilho um Theocrito enxertado n'um Florian; mas muito, muito superior ao auctor de Estella, e quasi igual ao poeta da Grecia. Além de transparecer nas poesias do snr. Castilho a imitação da antiguidade, adivinham-se tambem n'ellas as numerosas e primorosas (?) versões gregas e latinas.
Não apuram o gosto as traducções, pelo contrario estragam-n'o. Fundamentaremos este asserto.
É impossivel conhecer-se e avaliar-se o merito d'um auctor estrangeiro, quando principalmente o merito se basêa no estylo e na dicção. Os pensamentos, que pertencem ao coração, que são cosmopolitas, sim; porque basta possuir-se uma alma elevada e uma intelligencia robusta para comprehendel-os; mas a dicção e o estylo, que teem uma terra natal, um sol que lhes pertence, não. A individualidade, a nacionalidade dos escriptores, dos poetas, teem mysterios que só um compatriota póde penetrar.
Se isto, que acabamos de dizer, passa como aphorismo em relação aos auctores modernos, é um axioma a respeito dos escriptores da antiguidade, separados do tempo em que vivemos por longos seculos, e escrevendo numa lingua cuja prosodia se ignora.
Como se poderá fazer idêa da harmonia da prosa de Demosthenes ou Cicero, da melodia e da cadencia dos versos de Virgilio ou de Hesiodo, articulados e recitados com as regras de pronuncia e de accentuação dos idiomas modernos e escutados por ouvidos de Barbaros?
Por melhor que se conheça um idioma estrangeiro, nunca será possivel penetrar no sacrario intimo dos seus mysterios; hade-se confundir milhares de vezes o fogo fatuo com o esplendor do sol—falta o leite da ama, faltão essas primeiras palavras,{18} brandamente murmuradas ao ouvido da criança, preza ainda dos seios maternaes.
E reflectindo, imitando a fórma que se não conhece, o estylo que se não póde avaliar, não é seguir um caminho errado?
Se a Musa do snr. Castilho não bebeu na fonte de Hipocrene, se saudosa, busca a inspiração no passado, a prosa do auctor dos Quadros Historicos, tambem vasada pelo molde dos antigos escriptores portuguezes, não segue e acompanha o curso das idêas modernas, retrocede com saudade para os tempos que já lá vão; não se deixa ir brandamente ao som da agua, lucta contra a corrente do caudaloso rio, tentando, sem cessar, attingir o monte d'onde rebenta e se desentranha o manancial.
E este combate entre as idêas novas e as antigas, combate, em que estas ultimas ficam sempre vencedoras, não será indicio d'um gosto pouco apurado?... De que monta que a linguagem seja bôa, se é máo o estylo?
Deve a linguagem ser filha legitima da lingua materna, ter com ella semelhança viva, como que concebida em união amorosa; mas assemelhar-se como uma rapariga formosa e louçan se assemelha á sua mãe. Deve, entre a belleza, os attractivos viçosos e frescos d'uma e os encantos murchos da outra, haver uma relação de parentesco, uma harmonia, um laço intimo e mysterioso; mas não se devem sulcar com fundas rugas as faces da gentil donzella, embaciar-lhe o brilho dos olhos, desmaiar-lhe o encarnado dos labios, denegrir-lhe o branco esmalte dos dentes, substituir-lhe as louras e abundantes madeixas por cabellos encanecidos, para a semelhança ser mais perfeita, para não haver duvidas sobre a genuinidade do parentesco.
Basta, que a imaginação transportada ao futuro, reconstrua na filha os estragos, que o tempo fez nos encantos da mãe, e resuscite no rosto d'esta, atravez das nuvens do passado, os attractivos viçosos, a frescura da mocidade, e as ache depois no pensamento eguaes, gemeas, uma Sosia da outra. Mas n'um barranco talvez mais fundo tropeçou o auctor das Odes Modernas.{19}
Muito lido e versado nas litteraturas do Norte, os vocabulos variados que lhe embaração a memoria tornam-lhe confusas as percepções; quando lhe apparece a idêa, não sabe o véo com que a ha-de envolver: pensou-a o cérebro em differentes linguas, e d'essa união resulta um aborto multiplice e indigesto de concepções synchronas. Carece a idêa d'esse typo de paternidade e raça, sem o qual as obras da intelligencia se assemelham a massas nebulosas. A idêa mais verdadeira não passa muitas vezes d'um enigma indecifravel, se o homem que a concebeu não soube escolher a fórma que lhe convem.
Não deitemos no leito de Procusto nem o sabio auctor da Primavera, nem o inspirado poeta das Odes Modernas; sejamos ecclecticos; saibamos distinguir as bellezas, que brilham nos escriptos d'ambos. Se unicamente considerarmos o merito litterario, qualquer das obras do snr. Castilho pesará mais na balança do que tudo o que tem escripto o snr. Anthero do Quental; mas para quem, n'este valle de lagrimas, se quizer sustentar d'ambrosia e de ideal, viajando com a imaginação pelos esplendores dos mundos invisiveis, dos mundos melhores, que differença entre o poeta philosophico e o poeta pagão, entre o Artista que procura o Bello no Ideal e o Artista que julga encontral-o na natureza, na verdade! entre o sectario da escola realista e o adorador fervente do idealismo!
Hoje em dia não ha convicções profundas; o vento gelado do scepticismo varre e dispersa como impalpavel poeira as persuasões intimas. Duvida-se de tudo; o sol que viu nascer uma opinião, presencêa-lhe varias phases e metamorphoses, e assiste-lhe á agonia. A liberdade, o espirito de nivellamento e de moralidade, o odio das superioridades, a inveja emfim, manifestada sob a fórma da democracia, invadiu os dominios da litteratura, como já invadira o resto da sociedade. As theocracias, as aristocracias litterarias cahem por terra desfeitas em pó: não se reconhecem mestres nem authoridades, nem se admittem regras. São consequencias do progresso do seculo.{20} Todos pronunciam e se arrogam o direito de julgar, segundo as suas luzes, o seu gosto, o seu systema, a sua escola, o seu odio, ou o seu amor. É uma lucta de morte travada entre a inveja, origem de todo o poder democratico, e o orgulho, pae de todas as aristocracias.
É este o motivo porque nada provam as insinuações do snr. Castilho contra Anthero do Quental nem o «Bom-gosto e Bom-senso» d'este ultimo. O despeito guia a penna de um, e a diatribe do outro foi dictada sob a inspiração d'uma paixão vingativa—despeito e vingança! máos affectos e pessimos conselheiros! Mas não será a manifestação d'uma vingança mais attendivel e desculpavel, que a manifestação d'um despeito mesquinho? Julgo que sim—presuppõe a vingança uma offensa primordial, o que d'algum modo a justifica e legitima.
Desceu do Olympo o snr. Castilho e veio á arena combater; mas, dura fatalidade! era o seu antagonista um novo Diomedes. Arcaram ousados os dois campeões, e o Deus pagão, rotas, aboladas as armas, apartou-se mal ferido da peleja—que importa que os seus golpes fossem tambem certeiros? estava consummado o sacrilegio.
Tira-se d'esta guerra litteraria uma moralidade: Deus não, mas os deuses pódem ter as armas falseadas—de nada vale a tempera do Styge—pódem ser feridos, se o braço que lhes atirar os golpes fôr robusto, forte e armado pela justiça—mas haverá perdão para o crime de lesa-divindade pagan?... se o meu bastasse...
Porto—20 de Dezembro de 1865.
AUGUSTO MALHEIRO DIAS.