The Project Gutenberg eBook of Viagem ao Parnaso

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Title: Viagem ao Parnaso

Author: Frei Ugedio

Release date: July 27, 2010 [eBook #33276]
Most recently updated: January 6, 2021

Language: Portuguese

Credits: Produced by Pedro Saborano

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK VIAGEM AO PARNASO ***

Produced by Pedro Saborano

IMPRESSÕES DA LEITURA

DA
VELHICE DO PADRE ETERNO
POEMA NOTAVEL DO DISTINCTO POETA
GUERRA JUNQUEIRO
VIAGEM AO PARNASO
POR
FREI UGEDIO

                                SANTAREM
                            MINERVA INDUSTRIAL
                                  1885

IMPRESSÕES DA LEITURA

DA
VELHICE DO PADRE ETERNO
POEMA NOTAVEL DO DISTINCTO POETA
GUERRA JUNQUEIRO
VIAGEM AO PARNASO
POR
FREI UGEDIO

                                SANTAREM
                            MINERVA INDUSTRIAL
                                  1885

Ao seu antigo condiscipulo e velho amigo

ABEL ACCACIO
O. D. E C.

O auctor.

Aos realistas indigenas como testemunho de admiração pelo seu brilhante estylo.

AO LEITOR

Não aspiro a poeta, não cobiço a gloria, e por isso meu nome não firma esta historia.

AOS PUBLICISTAS

Ó criticos da Parvonia, ó sabios menestreis: eu não pretendo applausos; eu só quero uns tantos réis.

VIAGEM AO PARNASO

I

Sonhava com as rosas e boninas, com o lirio do valle e c'o arroio; com as gentis e louras campesinas em bucolico e rude amor saloio.

    Sonhava… E já compunha um poema
    na mente escandecida de poetico:
    um amor innocente era seu thema;
    estylo… do effeito o mais pathetico.

    Procurei as surprezas com cuidado;
    os nomes dos heroes bem sonorosos;
    e dispunha-me amar, sem ter amado,
    cachopas com uns olhos bem fermosos.

Julgando-me elevado poetaço, a musa invoco todo sobranceiro… Eis me sacode as orelhas mão d'aço, tão fria como o frio de janeiro.

* * * * *

Arregalei os olhos lestamente, esfreguei-os não crendo estar em mim: estava, sorrindo, na minha frente, um estafermo que descrevo assim:

    Era uma velha esguia e desgrenhada
    com sorrisos bastante insinuantes.
    Vestia á grega; cara descarada;
    os olhos encovados mas brilhantes.

Sem tempo me dar a pôr-me álerta, com gesto de fina regateira, mão posta na ilharga e perna aberta, um discurso faz, desta maneira:

—«Larapio e massador! tu és um impostor que queres imitar, de Daphnis e Chloë, a maneira de amar.

Meu tolo, meu pedante! eu vou-te, n'um instante, mostrar que vaes errado, e que tens por cabeça grandissimo telhado.»

Uma pausa fez, e de tom mudando, em pose academica, foi chiando:

—«O tempo do romantismo já vae bem longe: morreu, quando morreu o derradeiro monge. A sciencia moderna dá a orientação á arte, á litteratura, á civilisação. Segue a sociedade na maneira de ser que hoje manifesta; copia-lhe o viver, se queres que te leiam, queres que te admirem, se queres que te applaudam e por ti suspirem: —porque o suspirar, embora termo antigo, é um acto real que todos teem comsigo.—

Descantar amores é carunchoso, é velho: atira isso ao lixo, toma o meu conselho.

As flores não cantes… Canta sómente as brancas, a côr da pureza: com isso não espancas o realismo puro, embora as côres quentes tenham mais procura e sejam as mais decentes, —por serem mais sadias á face da sciencia— não que as brancas sejam alguma indecencia.

Não cantes os lirios: isso é velharia; tens o roxo das chagas que está mais em dia.

Nunca falles nas puras aguas do arroio: isso é asneira; apenas rima com saloio e poucos termos mais. Falla na copahiba, que é liquido bom, muito usado lá p'ra riba pelas altas regiões do deboche doirado. Pódes fallar, tambem, no cel'bre preparado de Gibert, de Raquin, e na Salsa-parrilha…»

—«Quem és tu? minha cara de pandilha! serás abelha-mestra, ou boticaria? serás bruxa com loja de hervanaria, ou annuncio de drogas, por acaso?»

        —«Eu sou a velha musa do Parnaso
        que, inspirada na sciencia dos effeitos,
        despida de rançosos preconceitos,
            abracei a moderna poesia,
        e conquisto mil adeptos por dia.»

        —«Ó musa moderna, eu te saúdo!
        e por ti me declaro amurudo
        se ensinas a fazer al'xandrinos
        mais sonoros, bellos, mais divinos
        que os gorgeios do proprio rouxinol.
        Juro!… nem cantar o girasol,
        que preciso é aqui para rimar.
        Antes, porém, haveis d'explicar
      como, velhos preconceitos tu despindo,
      a vestimenta conservas, que no Pindo
        usavas em a era romanesca.»

        —«Conservo-a por ser bastante fresca.
        A frescura é cousa indispensavel
        para crear um nome perduravel.»

            —«N'esse caso vou cantar o nú
            como diz o dito—mesmo crú.»

—«Amigo: até isso vae sendo já safado… e comtudo explorar o que está explorado, por séria difficuldade, passa hoje em dia. Com arte fina e certas manhas, todavia, tudo se consegue.

Vem tu dahi commigo, verás como é certo e bem certo o que te digo.»

II

Eis-me transportado pelo espaço furando por pesada athmosphera, com risco de quebrar o espinhaço, pois nem umas azas de chimera a pulha da musa m'emprestou. Ella pela gola me agarrava e todo o caminho me levou suspendido, emquanto caminhava.

Por fim pousou-me n'uma rua estreita como um bêcco da decantada Alfama.

—«Amigo! tudo que vires, attento, espreita, se queres ser apregoado pela Fama. Estamos no meu Reino: aqui tudo respira quanto a teu estro falta e tão sedento aspira.»

E vi o solo lamacento, immundo, exhalando o cheiro acre e nauseabundo que sae das negras aguas d'um enxurro. Aqui, além, saltavam do monturo vadios e magros cães de torvo olhar, desconfiados que lhes vão disputar, andrajosos mendigos seus collegas, as presas immergidas nas bodegas.

Escorregando como um borrachão vi-me em risco de beijocar o chão; e se a musa amiga me não ampara certamente que partiria a cara.

* * * * *

Corridos varios bêccos tortuosos, que a bebeda co'os nomes mais pomposos, cantando, nomeava alegremente, á laia de cicerone intelligente: topei com um palacio illuminado, e com lacaio á porta enfardalhado.

—«Quem mora ali?»—perguntei assombrado.

—«É a orgia! a filha do argentario que gasta o ouro vil do usurario, que roubando o suor do proletario…»

        —«Ai! Deus meu! historia da carochinha
                que é formosa e bonitinha…»

        —«Não me falles á mão! aliás
        nunca alexandrinos tu farás!

        Presta ao meu discurso toda a attenção
        se queres que te dê inspiração.

—É a orgia! a filha do argentario, que gasta o ouro vil do usurario, e que talvez deixasse na miseria o pobre proletario—vil materia!

É a orgia! a impura mulher do vicio! que tem ha tanto seculo o baixo officio de macular as timidas consciencias.

É a orgia! que, sem guardar conveniencias, prostitue as gordas carnes oleosas n'um sidereo leito, ideal, de nublosas.

É a orgia!… Com seu halito pestifero (que é mil vezes ainda mais mortifero do que o bacillus-virgula do Ganges) mata o coração das virtuosas Langes; e tem feito baquear testas coroadas quando o povo levanta barricadas.

É a orgia que fez cahir os Romanos, aqui ha uns centos d'annos.

É filha della a walsa tentadora que, veloz, sensual, animadora, queima innocencia e queima candura.

        Alcovitas prazer de pouca dura
        e nos dás bellos sonhos côr da rosa:
    mas findas na botica—ó walsa caprichosa—
    comprando copahiba, enxofre e capa rosa.»

        —«Lá estás tu com pharmacia a contas
        e, de rimar, no officio não me apromptas.»

—«Attenta bem, tu, n'isto, meu bilhostre; attenta bem, se queres que te mostre os arcanos da sabencia—hodierna, que é velho e é soez dizer—moderna.

—Nas luxuosas salas ostentam roçagantes, rafadas toilettes, dignas de farçantes, os gotosos e senís peccados mortaes, emquanto, ao fogão, as virtudes theologaes fazem soalheiro da vida das visinhas.

E se não fossem umas bellas niñas —obras de misericordia positivas— com toilettes de verão allusivas a appetitosas scenas sensuaes, das de comer e de gritar por mais: juro-te! ninguem iria ás soirées. Pelo menos, eu, não punha lá pés.»

—«Não comprehendo como, sendo tu mulher, em assumptos de—femea—mettes a colher.»

—«Ó innocente e parvo poetoide, acaso serás tu o purgueroide? Não sabes tu, que a musa e a poetiza se podem pôr em mangas de camisa? amar como qualquer homem bem macho?

Em a nossa litteratura ha um facho que de homem tem o nome e é mulher, e assigna seus artigos como quer.

O Antonio Maria procurou-lhe o til e para tal assumpto não pediu bill.»

—«Vou explorar o caso, embora indecente!»

—«Indecente és tu, por seres innocente!»

* * * * *

De novo caminhámos. A manhã rompia.

……………………………………….

—«Andemos mais depressa…» a musa me dizia, «ao novo Parnaso, ao grande laboratorio das idéas modernas; não a esse mistiforio das drogas litterarias da classica escola: d'isso bem sabemos que já não sou carola. É bom ficar sabendo que ninguem faz caso do velho e carunchoso e classico Parnaso.

Aperta mais o passo. O ceu está nublado; se chove molho-me eu, que só tu tens—telhado, pois inda fallas na Flor, no Sonho, e na Lua e coisas que só prestam p'ra deitar á rua.

        Apanhamos uma chuvada tesa…
        É mais que provavel, tenho a certeza;
        até parece que senti na cara
        um pingo d'agua…»
                            —«Isso, sim!»
                                          —«Repara.

O POETA

            —«A agua que do ceu cae
            e em gotas pousa na planta,
            como a perola a abrilhanta
            até que por fim se vae
                rolando p'ra o chão,
            indo tornar mais fermosa
                co'a vegetação,
            quem tornou, talvez, vaidosa
                pela ostentação.

            —E a gota d'agua singela
            duas vezes a faz bella.»—

A MUSA

—«Cala-te, menino! não digas tanta asneira que me obrigas a pôr atraz uma torneira. E, demais, isso é velho na fórma e na idéa, e foi, com certeza, roubado d'obra alheia.»

—«Que este pensamento, alguem já tivesse tido, isso póde ser, póde ter acontecido; porém, não me recordo de o ter encontrado em prosa, nem verso d'esta fórma guisado.»

* * * * *

Dez minutos depois chovia em pingos grossos, batendo na cara como batem tremoços, doendo, como dói jogando entrudo bruto. Ameaçava não ficar um fio só enxuto.

A lua no seu occaso illuminava a chuva par'cendo queda de brilhantes bagos d'uva, e no dizer da musa—escarros luminosos— genuinos rivaes dos—brilhantes fulgurosos.

Dando uma corrida ligeira, alfim chegámos á entrada do Parnaso, onde descançámos.

III

    Estava n'uma gruta escura e fedorenta.
    Havia emanações d'ardores de pimenta.
    Tal escassez de luz havia á sua entrada
    que adiante do nariz não se via mesmo nada.
    E, como isto estranhasse, a musa me explicava:

O azeite litt'rario de preço não baixava: assim, cada luz tinha apenas a ração igual á d'aguardente que d'inverno dão aos soldados da Parvonia, filhos de Marte; que muito de proposito em aquella parte se punham as luzes em menos quantidade, a fim de mais brilhar a interna claridade… —é a arte dos effeitos, a arte phenom'nal, a grande alavanca do moderno ideal.—

E, caminhando por eterno corredor lodacento e escuro e de grande pendôr, topamos finalmente co'um largo portão, feito por modelo dos de repartição, com oculos de vidro e faces de baêta de sebenta, ignota côr, mas que par'cia preta.

Companheira musa com chave original (pois era retorcida em fórma d'espiral), a porta abrindo, diz, em tom desprezador:

—«Livraria-museu dos poetas de valor.»

Espantado, vi mumias negras e mirradas em buracas, nas duras rochas escavadas, immoveis, lugubres, horrivelmente feias. Passeavam por cima vermes e centopeias; toldavam-nas o bolor, a humidade e o pó; e torpes ratos insultavam-nas sem dó.

—«Ahi tendes Homero todo encapotado pelas teias d'aranha como um juiz togado. Vê, á Sapho gentil, como lhe ficam bem aquellas vegetações que nos labios tem: e como são curiosos esses cogumellos, pelo logar onde estão… tão roseos, tão bellos.»

    «Deixa-me, por quem és, ó musa tagarella,
    d'este quadro medonho fazer a—aguarella

        —«Será a tua estreia: está dito então.
        Mas has de fazel-a, logo, no salão.»

* * * * *

Talhado em rocha escura, formas angulosas e salientes, phantasticas e caprichosas, era o antro infecto, sinistro, a que a megera o pomposo nome—salão—ufana dera.

No topo havia um throno infame, original, feito de coisas varias que cheiravam mal. N'elle, repimpada, dirigia os trabalhos velha deshonesta, c'roada a resteas d'alhos: na dextra aureo sceptro—colossal estadulho; e, para dominar a borrasca do barulho, empunha, na esquerda, safardana chocalho, chavelho retorcido, armado co'um bogalho servindo de badalo—estranha campainha!

Aos pés os classicos por almofada tinha.

As outras musas estavam acocoradas sobre grossos montões de pardas papelladas. Eram como gallinhas: estavam no chôco chocando muito poema, tal como este,—ôco.

    Em mochos de pinho vil, os modernos bardos
    sobraçando mais pennas que no campo ha cardos,
    com carga de papel manteigueiro, barato,
    como o grosseiro alarve d'um burguez pacato.

Ao centro do salão, crepitante fogueira da mais genuina essencia da mais pura asneira, aquece com chammas febris, avermelhadas, o enorme caldeirão das grandes versalhadas.

Os olhos em mim postos, o auditorio tinha; e quando esp'rava a eterna e velha ladainha do—quid petis—chronico, do gráu Coimbrão, e me preparava p'ra pedir ser poetão: larga dama presidenta um—«como pachaste?»

        Acaso viste já, do rojão a haste
                ao toiro apontada?
        a ferrea ponta penetrar-lhe o coiro,
                e c'o a cruel picada
        saltar feroz com fero olhar de moiro?

        O—como pachaste—foi o rojão;
        o mal ferido toiro o meu coração.

A MUSA

—«Eis a reles conquista pulha que hoje fiz: e, com quanto este asno não tenha bom nariz, espero delle muito; tem muita vontade.»

A PRESIDENTA

—«Tem cara de pateta;-lá isso é verdade. Emfim, mostrar-lhe-hemos n'uma só lição o solido material da nossa instrucção.»

O POETA

—«Cobrado tenho o animo, ó musa minha, bella: annuncia lá, se queres, a minha aguarella. É bom que mostre ao povo que não sou novato, e tambem sei usar do material barato que por ahi se impinge por bem bom dinheiro.»

A MUSA

—«O neophito conhece o poema—palheiro— e diz saber guizar o miolo d'enxergão p'ra vender ao povo n'uma encadernação.»

A PRESIDENTA

—«Ouçamos. Que titulo tem?»—

O POETA

—«Uma aguarella. Isto é, vou fazer uma ligeira barrela do museu-livraria que tendes á entrada.»

CORO DAS MUSAS

—«Fóra! isso de—barrela—não é cá usada.»

O POETA

—«Perdão se acaso offendi as instituições: á—limpeza—não quero fazer allusões.»

A PRESIDENTA

    —«Não divague, senhor! entre já na materia!
    Não se faça massador e tenha pilheria.»

O POETA

—«Mote.

Eu vi o Camões c'roado com coroa de papel doirado.»

A PRESIDENTA

—«Decimas, amigo, não se usam cá na tenda; isso serve só p'ra escrivães de fazenda. E, demais, vossê prometteu uma aguarella, quer possa, quer não, ha de aguentar-se com ella.»

O POETA

—«Tal é a dôr que este meu peito opprime, vendo os classicos tão abandonados, que não encontro rima com que rime, nem attento, por mal dos meus peccados, em descrever o estado lastimoso em que os conservam cá pelo Parnaso.

É preciso ser de peito animoso para affrontar tão inaudito caso, sem á dôr e á vergonha succumbir, ao vêr a Patria Lingua derruir.»

—«Fóra! Fóra!»—berrou em tremebunda grita, dos poetas e musas a troupe maldita.

Esperando, pela turba, em borra ser desfeito, co'os olhos no ceu, cruzo os braços sobre o peito. …………………………………………..

—«Bravo! Bravo!» me applaudem todos presto.

        —«Salvaste-te sómente pelo gesto.
        Serve-te d'elle; não é má pimenta.»

Accrescentando logo a presidenta:

—«Em honra ao teu gesto fradesco e manual, vaes ter espectac'lo com todo o ritual. Aprestae, minha côrte, as armas, a metralha que impavido, o realismo, emprega na batalha.»

* * * * *

Circulam os poetas e giram as musas (umas fufias velhas, caras de semi-fusas), mechendo em armarios e cortando papel, e borrando pinturas co'um grosso pincel, d'uns que são usados em lavar certos vasos que pomos em serviço em reservados casos. Andam sempre em vertiginoso rodopio atarefados todos, té que um assobio de machina a vapor sibila pelo espaço.

Entra um prélo gigantesco, luzidio, d'aço, puchado p'lo Pegaso e movido a vapor.

—«A postos, meus senhores, se fazem favor.»

IV

Apollo, que até então tinha estado occulto, da sombra destacando o luminoso vulto, desatrella o Pegaso do prélo bemdito e o manda pastar em pello a aveia do infinito.

    Depois, berrando como qualquer sacristão
    que na egreja ronca safado cantochão,
    com voz desafinada entoa esta cantiga,
    batendo, á cautella, o compasso na barriga:

        —«Companheiras senís, acanalhadas,
        que, quando era potente, tanto amei:
        o grande caldeirão das versalhadas
                    descei! descei!»

        Ligeiras, como a rapida gazella,
        atiraram-se ao cabo da panella;
        e o caldeirão desceram, pressurosas,
        tomando, pelo esforço, a côr das rosas.

        Depois tomaram posições sensuaes
        dos quadros vivos reles e triviaes.

    E os poetas, então, prostrados pela terra,
    entoaram este côro, na mais alta berra.

ORAÇÃO DOS POETAS

            —«Ó vestaes da inspiração,
                velhas donzellas:
            assumptos de sensação
                idéas bellas,
            fazei-nos inventar
                em nossos cacos;
            e fazei-nos ganhar
                bem bons patacos.

            Multiplicae os tolos
                p'ra nosso bem,
            que vos daremos bolos.
            Amen, amen, amen.»—

        E, levantando os seus coiros do chão,
        sacudiram o pó co'um escovão.

        A um signal d'Apollo, dado com pratos,
        fizeram as rev'rencias dos gaiatos.

Longa penna tirando da sacola, papel na mão, como rapaz d'escola, e p'ra a lição estando muito attentos, tomavam com cautella apontamentos.

APOLLO (cantando)

    —«A sciencia genial das bagatellas,
    que tendes como a compota nas tijelas,
            lançae no caldeirão.
    Adjectivos hydropicos, lancinantes,
    figuras colossaes; como os elephantes
            em grossa multidão,
    com quanta massa realista de balelas
            tendes em vossa mão:
            lançae no caldeirão
    co'a sciencia genial das bagatellas.»

    Tres vezes cantou isto e calou-se.
    O Pegaso fóra deu um coice.

        Avançam Euterpe e Clio
        cantando ao som de assobio.

        —«Lançamos no panellão
        um primoroso croquis
        da guerra do Rossilhão
        e dos bordeis de Paris.

        Lançamos a Rigolboche
        com rameiras messalinas,
        fazendo todo o deboche
        junto aos sapos das latrinas.

            N'alma d'um paria,
            Locusta má,
            cantando uma ária
            em tom de lá;

            Cesares romanos,
            Faustos impotentes,
            mil ratas dos canos,
            risos innocentes,

lançamos com copahiba mais o nitrato de prata. Tirando d'um carahiba luxuria sensual de gata,

teremos, com toda esta misturada, um adubo real p'ra a panellada.»

    Feitos uns fradescos cumprimentos
    as musas tomaram seus assentos.

    Avançam Melpomene e a Thalia
    trazendo material de gran valia.

    —«Lançamos roseas petalas d'alma
                e beijos de Julietta:
    de Tartufo a seriedade calma
                e muita outra peta;

            muitas portas falsas,
            maridos c'roados,
            mulheres com calças,
            noivos esfaimados.

Tudo isto se acondimenta com choradeiras de fel, cantharidas e pimenta e beijos da lua de mel.»

    Ninguem faz caso d'uma tal cantiga
    porque o theatro não enche barriga.

    De Terpsichore e Urania chega a vez:
    pouco, porém, dão p'ra este entremez.

        —«Lançamos os cometas d'aço
        em leitos sensuaes de nublosas;
        a gran mangedoura do espaço
        alem de—muchas otras cosas:

a abobada commua, o grande guarda-sol dos requeijões da lua, e o tinteiro do sol.

Refrescamos toda esta panellada com agua do ceu e gelo em palitos; e p'ra terminar tamanha estopada deitamos a dança dos aerolithos.»

    (Um vate apontou: alguns fandangos…
    uns requeijões da lua com morangos…)

        Tocou a vez á agoirenta Erato.
        Esta recitou este cavaco:

        —«Não tenho que botar no caldeirão,
        seguindo uma bem sensata opinião,
                        senão:
        coisas funebres e outras porcarias
        na Parvonia publicadas ha dias.

    Acompanhae meu canto, Apollo, ó menestrel,
    tocando n'um pente forrado de papel.

—Almas côr de rosa, subindo p'ra o céu; a morte amorosa tirando o chapéo.

Vae n'este bilhete, desenhado a giz, loculeo banquete:

podridões gentis, larvas proletarias em mesa quadrada roendo nos parias…

Não lhes digo nada… Se um dia morrer, —ai que desprazer!— não posso ter dobres de modo nenhum:

            foram-se-me os cobres
        *Na valla commum.*

    O ultimo dueto se faz ouvir alfim;
    Calliope e Polymnia cantaram assim

        —«Temos grande collecção
        de hyperboles arrojadas,
        e portentosas rajadas
        de causar admiração.

        Ha no nosso botequim
        gordos melros com chouriço,
        e tonsurado toitiço
        com carcassas d'arlequim;

evangelhos com trufas e Biblia com champagne; e ha quem isto amanhe tudo em operas buffas.

    Escrevei, ó poetas namorados!
    com a tinta geniosa dos enxurros
    estes sadios e modernos guisados
    capazes só de sustentar os burros.

    Libae poetas! e bebei n'um pulo
            o sangue com gangrena
    pelas aurifras taças de Loculo,
            nos braços da pequena.

      Lambei os lambusados pratos
      d'esta babylonica orgia:
      e p'ra rimar mettei Pilatos,
      mettei no credo a gemonia.

    E Gehovah e Jonas e Vitellio
    almoçaram aqui ventres de sapos,
    e embrulharam-nos em ostias de trapos,
    andando na pandega com Aurellio.

    Astarteia com os dentes de Ugolino
    roe por vezes podridões syphiliticas,
    indo depois ás sergetas mephiticas
    com Torquemada descantar um hymno.

        A luxuria d'um frade
        com varios paradoxos,
        dão da melhor vontade
        relinchos orthodoxos,
    rindo-se do cisco dos ripansos,
    e das varreduras dos missaes,
    e cabritando pelos passaes
    de pescoço alçado como um ganso.

            Aqui temos muitas vezes
            Job e Falstaff e Ezequiel,
            o que rima com Ariel
            e come esterco das rezes.

        Aqui vêm todas as Venus sensuaes,
        carregadas d'escarros luminosos,
        abraçadas com uns pobres gotosos
        que lhes pagam as scenas jantaraes.

        Temos a latrina de Pandora
        p'ra casos do aperto mais velhaco.
        Tambem ha a caverna de Caco
        mas vive n'ella, Agrippina, agora.

        Á noute, luzes ha, de brancos ais,
                velas, tochas de pedantes,
                ais de luz agonisantes
        e mais outras lamparinas que taes.»

E tomando as reles pinturas allegoricas de todas estas hyperboles semaphoricas, com os recortes das figuras principaes, funambulas e grotescas e originaes, tudo no panellão deitaram em tropel.

(Um poeta não tira os olhos do papel; e movendo a penna com rapidez electrica escreve, a serio, esta michordia phonetica.)

* * * * *

Então a musa Clio, que á festa presidiu, a palavra alterosa assim me dirigiu:

—«Neophito! acabas de penetrar os arcanos do saber que sómente dão os muitos annos. Não julgues porém tu, que sómente com isso, que não passa de bagaço e reles palhiço, conseguirás talvez hombrear os geniaes, altivos, sonorosos poetas actuaes.

Isso só consegues indo calçar ao ferrador, e dando muitos coices, com ataques de estupor, na grammatica mais na Lua, em Deus e na Razão. Descoberto este segredo serás um sabichão.»—

* * * * *

Termina a festa. Apollo empunha a lyra d'ouro e, soltando aos ares o seu cabello louro, dedilha, debruçado no instrumento qu'rido, o puro do fadinho, o popular, corrido.

E as musas dando á gambia, á canella, batem o fado em roda da panella.

Com zumbidos feios, torpes emanações, a grande panellada ferve em borbulhões lascivos de luxuria, quentes, abbaciaes, espalhando no espaço vapores sensuaes, emquanto que o Pegaso farto de pastar, como burro indecente, se poz a ornear.

V

Sabes leitor, o que é perder a noute no Penin, no Magina, ou nos Penachos? ou ir á Brazaliza, ou ao Dáfundo, Poço dos Mouros, ou Perna de Pau? Farta e boa ceia regada de briol, devorada em companhia feminina por ventura tu já exp'rimentaste? Já comeste bom mexilhão na Pincha, os beefs no Gallo, as iscas no Semellas? no Magina, nos Cestos, no Cunhal, bebeste já o fino de Bucellas?

Leitor: se nada d'isto tu tens feito mal pódes apreciar como se acorda depois d'uma tremenda borracheira. Emfim, nunca fizeste tal asneira… Pois sabe como fica um desgraçado depois da cama se ter levantado.

Os olhos parecem estar pegados e, mesmo após o serem esfregados, nunca ficam lá muito bem abertos. Ouvimos sons determinados, certos, exquisitos, raros, indefiniveis. Pelo estomago, sensações terriveis, quentes e causticas, effervescentes, e na barriga ruidos indecentes. Lingua sêcca; beiços intumecidos, e viscosos, pegados, e feridos. O nariz com cheiro acre, apimentado. Mesmo que se não tenha vomitado temos na bocca, como coiros rélhos, —um sabor especial a ferros velhos.—

Ahi tendes o lastimoso estado que encontro esta manhã, sendo acordado por um maldito burro d'um visinho.

    Não imagines que hontem bebi vinho.
    Vaes ver o que em tal estado me poz;
    vaes ficar sabendo o nome do algoz:

—Este damninho sonho no Parnaso.—

E quem tem toda a culpa d'este caso é o poema moderno:

*VELHICE DO PADRE ETERNO*