Nota de editor:
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foram tomadas várias decisões quanto à
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Rita
Farinha (Dez. 2009)
OPUSCULOS
OPUSCULOS
POR
A. HERCULANO
SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA
SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
SOCIO CORRESPONDENTE
DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID
DO INSTITUTO DE FRANÇA (ACADEMIA DAS
INSCRIPÇÕES)
DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM
DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.
TOMO VI
CONTROVERSIAS E ESTUDOS HISTORICOS
TOMO III
LISBOA
LISBOAVIUVA BERTRAND & C.a SUCCESSORES
CARVALHO & C.a
73, Chiado, 75
M DCCC LXXXIV
COIMBRA―imprensa da universidade
UMA VILLA-NOVA ANTIGA
1843
Se passardes pelos olhos uma carta topographica
de Portugal, em cada provincia, em
cada comarca, talvez em cada pequeno districto,
achareis escripto, ao lado de alguns d'esses signaes
que marcam as povoações, a palavra
Villa-nova:
Villa-nova de Rei, de S. Cruz, de Gaya,
de Cerveira;... que sei eu?―Villas-novas de
todos os sobrenomes, e até villas-novas de ninguem
e de nada; villas-novas espurias.
Villa-nova é o
dom
municipal, o dom villão;
porque, por extravagante antiphrase, villa-nova
quasi sempre indica um antigo burgo com suas
rugas de velhice, com seu castello desmoronado,
com seus vestigios de templo ou de palacio da
meia-edade. Villa-nova moderna, sem pedras amarellas,
tombadas, ogivaes, é cousa descommunal,
[4]
milagrosa, e ao réz do impossivel. É que o
passado,
remoto, remotissimo, como o imaginardes,
já foi presente, e então a villa que se
alevantava
ou no desvio, até ahi inculto e intractavel,
ou sobre os vestigios de povoação deshabitada
e destruida, era realmente
nova;
mas os seus
edificadores esqueciam-se, ao dar o nome á obra
das proprias mãos, que elles passariam bem depressa
e com elles a mocidade da sua filha querida;
esqueciam-se de que o correr dos annos
brevemente havia de converter em palavra sem
sentido essa denominação que lhes
parecêra tão
clara e precisa. Aos primeiros respiros de paz e segurança,
depois das guerras barbaras de religião
e de raça que devastaram outr'ora este solo
portuguez, o espirito municipal ia semeando os
concelhos ao passo que debaixo dos marcos das
fronteiras christãs se embebia o territorio mussulmano,
e então acontecia que o burgo, recentemente
plantado em terra até ahi erma e sáfara,
ou sobre as ruinas carcomidas de municipio romano
ou godo, sentindo-se cheio de vida e de
esperanças, folgava de contar ao mundo no proprio
nome a sua juventude, e tomava para si o
titulo tão querido, tão popular, tão
casquilho―de
Villa-nova.
[5]
E ás vezes as villas-novas vinham encostar-se
aos muros carrancudos e robustos das cidades
reaes ou episcopaes. Eram como uma criança
rosada, risonha, travessa, que se atira ao collo
da velha rebarbativa, e se lhe pendura ao pescoço,
e desata a rir―a bom rir. Acontecia tambem
que uma ou outra ia assentar-se á beira
de um rio, defronte de povoação orgulhosa, e
similhante a trasgo inquieto zumbia-lhe insolentemente
aos ouvidos, e desangrava-a roubando-lhe
o seu commercio: mettia-se até em bandos
politicos para lhe fazer perraria; e inimiga d'ao
pé da porta não havia casta de incommodo que
lhe não causasse. Que outra cousa fez Villa-nova
de Gaya ao burgo episcopal do Porto, burgo tão
grave, tão serio, tão devotamente enroscado em
volta da sua cathedral, aos pés dos seus sanctos
bispos? Quem, senão Villa-nova de Gaya, assoprou
provavelmente entre os honrados burguezes
da cidade do Douro aquelle espirito de irmandade
e revolta que tanto veio depois a incommodar
os successores do veneravel D. Hugo?
Lisboa―guerreira e depois mercadora―tambem
teve, não uma, mas duas villas-novas abraçadas
á sua cinta de muralhas: a primeira ao
sul, a segunda ao poente. Chamava-se aquella
[6]
Villa-nova de Gibraltar: esta Villa-nova d'Andrade.
A segunda, nascida no seculo XV, viveu
dois dias apenas, porque Lisboa, essa
villa[1]
limitada
nos fins do seculo XII a 15:000 habitantes,
em quanto a mourisca Silves contava 25:000,
cresceu com tal rapidez na epocha dos descobrimentos
que, rompendo ou, antes, galgando por
cima dos lanços occidentaes dos seus muros, a
devorou ainda no berço, ou para melhor dizer
partiu-a em fragmentos, e aos seus membros
despedaçados chamou Bairro-alto, Chagas, Sancta
Catharina. Villa nova d'Andrade foi uma cousa
fugitiva, sem gloria, sem individualidade. D'ella
poderia dizer-se o que o psalmista dizia do impio―«vi-a
exaltada como o cedro do Libano: passei,
e não existia; busquei-a, não lhe achei
rasto.»
Deixemol-a, pois, na paz do esquecimento e do
nada.
Não assim Villa-nova de Gibraltar. Fallae-me
de Villa-nova de Gibraltar! Esta sim, que viveu.
A sua origem perde-se nas trevas dos tempos
chamados barbaros, entronca-se no berço da monarchia.
Assentada á beira do Tejo, fóra do
lanço
[7]
de sul e sueste da muralha arabe, ou talvez
goda (quem poderá hoje dizel-o?!), que cercava
Lisboa antes do seculo XIV, saudavam-na os primeiros
raios do sol oriental, aqueciam-na todos
os do alto dia, douravam-na os derradeiros que
vinham do poente roçando pela superficie das
aguas. A cidade lá estava sombria entre as torres
e altos muros da sua cerca; agachada nas faldas
do seu castello soberbão e malcreado; prostrada
em volta da sua cathedral ampla e triste. Mas
que importava isso a Villa-nova de Gibraltar?
Ahi não havia nem muros, nem torres, nem castellos,
nem campanarios. Ella mirava-se no rio,
e achava-se bella; bella por si e pelo luxo dos
seus atavios; porque Villa-nova de Gibraltar era
a atravessadora de quasi toda a mercancia; a
patria dos rendeiros e
sacadores
das rendas e
direitos reaes: era rica e potente; e ao sobrecenho
altivo da velha Lisboa, confiada na sua
epiderme de marmore, respondia ella mostrando
a sua armadura d'ouro, e depois punha-se a rir,
porque bem sabia já, como nós hoje sabemos,
que o ouro é mais forte que o marmore.
D. Fernando I, que foi para com Lisboa como
um amante selvagem, ora querendo aniquilal-a
porque lhe preferia em amores o alfaiate Fernão
[8]
Vasques, ora lançando-lhe no regaço riquezas,
privilegios, tudo, quiz n'um accesso de ciume
escondel-a aos olhos d'estranhos. Já ella, a namoradeira,
sahindo da Porta do Ferro, pelo terreiro
da cathedral, corrêra para o valle de Valverde
e se reclinára por ahi abaixo indo espreitar
a barra cá da margem do rio; já
começava
até a galgar pela encosta fronteira para o lado
do gothico mosteiro de S. Francisco e para a
ermida dos Martyres, e pela Pedreira do Almirante
para o convento dos sanctos frades da
Redempção. «Alto
lá!» disse o bom do rei D. Fernando,
e, chamando os villões sujeitos á adúa
por todas as villas e logares d'arredor, lançou
á cintura da doudinha uma nova faixa de muros,
para que não passasse alem. Ficou-se, é verdade,
espairecendo Lisboa pelo valle e pela encosta,
mas ao menos, atraz das novas torres e
quadrellas, já não podia fazer gatimanhos de
presumida aos que vinham visitar em som de
paz ou de guerra os campos das suas cercanias,
ou as aguas da sua enseada.
E que era nesse tempo feito de Villa-nova de
Gibraltar? Lá estava senhoril e desdenhosa, á
beira do Tejo, indifferente aos arrufos de Lisboa
e aos ciumes de D. Fernando. Pacifica e fiel não
[9]
se entremettia em negocios alheios, não tumultuava,
não se namorava d'estranhos. Assim a
muralha real que bojava para poente, passou pé
ante pé por entre ella e a cathedral para não a
affligir: encorporou-se ahi com os antigos muros
para a deixar, como até então, exposta
á sua tão
querida restea de sol. Novas portas, todavia, a
uniram com a antiga cidade, que tão rapidamente
crescêra e se fizera garrida. Foi por ahi
que lenta e traiçoeiramente Lisboa pôde chegar
a submettel-a e devoral-a.
E quereis saber por qual razão, e como? Dir-vol-o-hei.
Era que na fronte de Villa-nova de
Gibraltar, abaixo do seu diadema rutilante de
princeza, estava escripta uma lenda fatal e maldicta;
uma lenda que por muito tempo foi apenas
ignominiosa; mas que nos fins do seculo XV
se converteu em sentença de morte, em signal
estampado pela mão do archanjo do exterminio.
Esta lenda encerrava apenas duas palavras, mas
palavras blasphemas, que só podiam ser apagadas
destruindo-se a existencia individual da povoação
que se atrevia a apresental-as deante da
luz do céu.
Villa-nova de Gibraltar era a
Communa dos
Judeus!
[10]
A edade-media, essa epocha altamente poetica,
porque tinha crenças, e profundamente
symbolica, porque era poetica, havia feito de
Lisboa um symbolo da historia religiosa e politica.
O municipio christão, partindo do alto alcaçar
ou castello, dilatava-se até ás raizes do
monte, em cujo topo campeava, a cavalleiro de
todos os cabeços dos arredores, a torre de menagem―a
guarida do alcaide-mór―como representante
do senhorio real e da aristocracia:
á sombra do alcaçar, e a mais de
meia
encosta,
a cathedral alçava os seus dois campanarios altivos,
quadrangulares, massiços: entre essas duas
expressões materiaes da monarchia, da nobreza,
e da egreja, a casa da camara―os paços plebeus
do concelho, proximos do campanario septentrional
da sé, chãos e humildes―representava
o povo que em silencio se preparava para
ir estender os braços endurecidos pelo trabalho,
e subjugar algum dia, á direita o alcaçar,
á esquerda
a egreja. Na configuração da cidade resumia-se
a historia social do passado e a prophecia
do futuro. Como tantas cousas da edade-media,
Lisboa era um verdadeiro symbolo.
Não o era só, todavia, do pensamento politico:
tambem o era da idêa religiosa. No amago da
[11]
povoação, no logar eminente, estava o
christianismo;
ao norte, em profundo valle e apinhado
em volta de mesquita apenas tolerada, ficava o
bairro dos mouros, a
Mouraria; e
ao sueste,
quasi ao oriente, lançada ao pé da
Esnoga, a
Judearia:―uma
crença verdadeira, mas temporaria,
do lado donde o sol surgia na sua ascensão
para as alturas; a religião do Christo, complemento
divino d'aquella, assoberbando-a do monte
sobranceiro; o islamismo, transformação impia e
tenebrosa d'ambas, como escondido ao norte na
penumbra da cruz triumphante; e ao longe as
vastas solidões do oceano, atravez das quaes
os filhos do evangelho o deviam levar algum
dia ás regiões ainda incognitas de novos mundos.
O velho Portugal tinha feito da cidade do
Tejo um symbolo e uma prophecia sublimes!
A monarchia, vencedora da edade-media, esqueceu
a poesia d'ella; porque nos seus velhos
habitos de organisar, de legislar, de livellar,
perdêra inteiramente o senso esthetico. A poesia
estava principalmente nas idêas, no sentir, nas
formulas das classes aristocraticas: o povo era
infeliz e selvagem, e a monarchia positiva, calculadora,
e egoista. Com a victoria final d'esta
desappareceu tudo o que representava o ideal.
[12]
Belem é a agonia da arte; é o estrebuchar
descomposto
da architectura christan que morria; e
o cancioneiro de Resende o ultimo concerto dos
trovadores em que já se misturam os sons discordes
da poesia romana.
Neste crepusculo da vida nacional, nesta passagem
da originalidade para a copia, as ruinas
tombavam sobre outras ruinas: a nova sociedade
sobrepunha as suas obras incertas, frias, ou estupidas,
aos restos ainda palpitantes do cadaver
do passado; cirzia-as ridiculamente com remendos
e fragmentos das obras e factos que destruira;
fazia, emfim, por um pensamento de ordem e
de organisação exaggerado, o que nós
muitas
vezes fazemos hoje por um amor de liberdade
indiscreto e excessivo.
É curioso o vêr como a
edificação do celebre
mosteiro Jeronimitano de Belem se liga com a
destruição da communa judaica de Villa-nova de
Gibraltar; como esse monumento de transição
da architectura, esse cahos de todos os systemas
que luctavam no principio do XVI seculo, reunidos,
e por assim dizer petrificados de subito
n'um edificio só, traz forçosamente á
lembrança
a ruina d'um facto da ordem moral que existira
inconcusso entre nós por quatrocentos annos―a
[13]
tolerancia da edade-media. De feito a tolerancia
religiosa expirava ao passo que a architectura
christan morria, e as bullas da inquisição
vinham-nos talvez pelo mesmo correio que trazia
aos nossos architectos os desenhos puros e materialmente
formosos, mas pagãos e peregrinos,
de Bramante ou de Raphael.
Um phenomeno por certo singular nos apresenta
a historia antiga de Portugal. Na larga
serie de leis, de artigos de côrtes, de factos publicos
até os fins do seculo XV, a crença viva de
nossos avós se limita sempre dentro dos termos
d'aquella intolerancia legitima que a verdade
não póde deixar de ter para com o erro. O
christianismo
proclama-se ahi franca e energicamente
a unica religião verdadeira: o christão
julga-se um homem de condição superior ao judeu.
O povo vigia, até, com ciume que o israelita
conserve sempre no trajo um distinctivo da
sua raça reproba, das suas doutrinas erradas.
Mas a intolerancia acaba neste ponto: não se
imagina ainda que o desterro, os tractos do potro,
e o cheiro de carne humana queimada subindo
da fogueira expiatoria, sejam sacrificios
agradaveis a Deus. Na gente judaica havia mais,
por assim dizer, um caracter de triste fatalidade
[14]
pesando sobre uma raça condemnada pelo seu
peccado original do Deicidio, que o de uma raça
maldicta por crimes proprios. «Os judeus, como
testemunhas da morte de Jesu-Christo, devem
ser defendidos só porque são homens»:
estas
palavras de D. Affonso II resumem o pensamento
da edade-media ácerca d'elles. É o pensamento
de que Lisboa com Villa-nova de Gibraltar foram
a imagem sensivel. No alto da sé a cruz, abrigada
á sombra do castello christão, via a seus
pés a synagoga―a humilhada
Esnoga―que testemunhava
alli a morte do Christo, a victoria do
Evangelho, e a redempção dos homens: e o que
orava na cathedral sentia só desprezo, e por
ventura compaixão, por aquelle que orava na
synagoga. Se o odio se misturava ás vezes com
esses sentimentos, motivos não religiosos, mas
puramente materiaes o geravam: geravam-no as
riquezas dolosamente accumuladas pela gente
hebrea, os vexames que practicavam como exactores
da fazenda publica, as suas usuras como
possuidores de capitaes, e mil outros motivos
humanos em que nada tinha que vêr a
opposição
das crenças.
E o seculo XVI, que era erudito; que traduzia
Cicero e Ovidio, e imitava Horacio: o seculo da
[15]
civilisação, das conquistas, de todas as
grandezas,
cuspia nas faces da edade-media, que jazia
morta a seus pés, o epitheto de barbara! E D. Manuel,
o culto e venturoso monarcha do oceano,
esquecia-se do que não esquecera a seu rude e
obscuro avô D. Affonso II: esquecia-se de que os
isralitas estavam condemnados pelo Rei da Eternidade
a vaguearem perpetuamente na terra
como testemunhas da morte de
Jesu-Christo. Portugal
devia ser exceptuado d'esse decreto de
cima, e a conversão violenta dos judeus foi um
dos factos mais estrondosos d'aquelle tão estrondoso
reinado.
Da communa hebraica, da risonha e opulenta
Villa-nova de Gibraltar, apenas nos resta a sua
synagoga―melhor diriamos o sitio d'ella―convertido
em templo christão. É uma collegiada da
ordem de Christo: é a Conceição Velha;
velha
porque já as cousas d'essa epocha manuelina,
tão fastosa, tão transformadora, tão
destructiva
de tudo o que quer que fosse, bom ou mau, das
eras poeticas, já hoje é caruncho e
podridão:
os seus monumentos já se confundem com os que
ella desprezava como barbaros. Fallae no portal
rendilhado da Conceição Velha a um vereador,
a um politico, a um pascasio de melenas, emfim
[16]
a qualquer inimigo nato das cousas mais
poeticas e sanctas da patria―os monumentos―e
responder-vos-ha torcendo o nariz e com um
ademan parvo de superioridade: «Poh diabo!
isso é gothico!» Gothico! Ouves, seculo dezeseis,
seculo romanista, seculo brilhante, seculo peralvilho?
Ouves lá debaixo da tua campa, pesada
como todos os crimes que commetteste no oriente,
confundirem-te hoje com os seculos rudes e
pobres da nobreza d'alma na fidalguia e da energia
popular? Mudaste a indole da nação; tornaste-a
de guerreira em mercadora; de municipal
em cortezan; de austera em voluptuaria.
Acceita de mãos como aquellas a paga da tua
boa obra.
A historia da esnoga e do mosteiro de Restello
é simples: têl-a-heis lido em dez livros
copiados uns dos outros com grande augmento
e gloria das lettras patrias. Onde hoje este edificio,
amplo como o poderio de D. Manuel, simula
aos olhos do vulgo, na vermelhidão dourada das
suas pedras, uma edade mais provecta que a
verdadeira, existia um conventinho de freires
de Christo. D. Manuel vasou-os na synagoga de
Villa-nova, desentulhou o chão da ermida de
Sancta Maria de Belem, que assim se chamava
[17]
ella, alevantou a machina que ahi vêdes, chantou-lhe
dentro não sei quantas duzias de frades
jeronimos de Penhalonga, e morreu deixando
a sua obra imperfeita. Tractou de continual-a
D. João III nos intervallos em que lh'o consentiam
as suas incansaveis diligencias para obter
a sancta inquisição, contra a qual reluctou muito
tempo a curia romana, que nem sempre é tão boa
como alguns a fazem, nem tão má como outros
o affirmam. Na regencia de D. Catharina parece
ter-se acabado a igreja como actualmente existe.
E a esnoga de Villa-nova? A esnoga estava reformada,
rendilhada, baptisada, christan e contrita
como.... como os judeus allumiados subitamente
pelo Espirito-Sancto no mesmo dia e á mesma
hora, por um decreto real, redigido provavelmente
pelo secretario Antonio Carneiro. Apósto
que não sabeis quem era Antonio Carneiro?
Era para D. Manuel o que fôra Antão de Faria,
que tambem provavelmente não conheceis, para
D. João II: um substituto da cadeira monarchica,
um marquez de Pombal de ha trezentos e quarenta
annos, de que ninguem se lembra hoje,
como d'aqui a outros trezentos annos ninguem
se lembrará do marquez de Pombal.
Sic
transit
gloria mundi.
[18]
Pois não o merecia Antonio Carneiro!―Foi
ministro de peso e volume. Os papeis da sua
secretaria, ou antes do Estado, eram em portuguez!
Quem me dera um Antonio Carneiro!
Antonio Carneiro foi até homem agudo e engraçado:
prova d'isso é o preambulo do regimento
dado á collegiada da convertida synagoga, em 29
de janeiro de 1504. Evidentemente o ritual rabinico
já não tinha applicação.
N'esse preambulo
conta o bom do secretario a historia da
transformação.
Eis as suas palavras: «Como entendemos
(é el-rei quem fala segundo estylo e direito)
na conuersão dos judeus de nosos reynos
pera á nosa santa fee serem ajuntados, he no
conhecimento he obras della se saluarem, com
muyta deuação nos oferecemos he deliberamos
da casa da esnoga dos judeos que estavam na
judiaria grande desta cidade, asi como ella era
a mays principal em que o nome de noso senhor
era blasfemado, he as coussas de nosa santa fee
catolica reprovadas e emmingoadas, fazermos
huma solene igreja e casa da enuocação de nosa
senhora da conseição, na qual com muy grande
solenidade e deuação os officios deuinos fossem
celebrados, he ali, onde a noso senhor por tanto
espaço de annos e tempos fora feyto tanto
deseruiço,
[19]
he o seu nome he as suas coussas blasfemadas,
perpetuamente he em toda a perfeyção
seus louuores se fizessem, he o culto deuino
fosse continuamente he com grande solenidade
exalçado.»―Basta. Não me digaes nada
do estylo
d'Antonio Carneiro: era o do seu tempo. Confessai
antes que não esperaveis que a
transformação
da synagoga em igreja fosse uma antithese
religiosa, um trocadilho ao divino. Essa
perseguição similhante á dos tyrannos
de Roma
contra os primeiros martyres do christianismo,
alevantada contra os judeus portuguezes, nos
fins do seculo XV, foi apenas uma figura de rhetorica
feita por D. Manuel. Ó elegante, ó immortal
Antonio Carneiro! Tu ajudavas teu senhor
a acabar a obra de D. João II, a anniquilar toda a
poesia da edade-media; mas tu eras mais poeta
do que ella. Creanças despedaçadas por seus
pais para não serem entregues aos beleguins
missionados; homens, havia pouco opulentos,
reduzidos á miseria e ao desterro, ou obrigados
a acceitarem um baptismo sacrilego, porque era
recebido por violencia: tudo quanto ha negro e
infame n'aquelle procedimento, em que até não
faltou a covardia de se respeitar o direito das
gentes para com os mouros (tambem expulsos
[20]
n'essa occasião) porque
tinham quem
podesse
vingal-os: tudo isto, ó excellente
Antonio Carneiro,
não passou de uma fórmula de Quintiliano,
applicada á theoria do culto! Quem poderá
duvidar de que os admiradores do
grande
seculo,
do seculo XVI, teem prodigiosamente desenvolvidas
as proeminencias do bom e do bello?
Da esnoga, reconstruida em templo por Antonio
Carneiro e por D. Manuel, apenas resta a
portada. Tambem era a cousa unica formosa
e alegre em toda essa negra e maldicta historia.
Se quereis estudar como artistas os seus delicados
lavores, ide contemplal-a á rua da Ribeira
Velha, antes que o progresso passe por lá e a
derribe. O progresso é gordo e ancho: não cabe
onde quer que esteja um monumento.
COGITAÇÕES
SOLTAS
DE
UM HOMEM OBSCURO
1846
O modo como os fragmentos que vamos publicar
nos vieram ás mãos é cousa que
não
importa aos leitores: o que lhe pode importar
é se haverá n'elles idéas que os levem
a reflectir
sobre o estado da sociedade no meio das
questões de organização que se agitam
entre
nós. São estas folhas avulsas como uma serie de
apontamentos para um livro que talvez fosse de
algum valor se chegasse a escrever-se. Incapazes
litterariamente de preencher as lacunas e de
coordenar as idéas, que as mais das vezes apenas
estão indicadas n'estas notas, imprimimol-as como
nos foram transmittidas pela derradeira vontade
de um homem que já não existe, e que tinha
mais habito de pensar que de escrever, o que,
seja dicto sem offensa de ninguem, não é
demasiado
[24]
vulgar. Cremos que todos os partidos
reconhecerão que estes pensamentos se movem
n'uma esphera differente d'aquella em que giram
as opiniões ou as paixões por cuja causa
combatem uns com outros e mutuamente se detestam,
e que por isso nenhum d'elles os considerará
como adversos ou favoraveis aos seus
interesses momentaneos, e, digamol-o, ás vezes
bem pouco graves. Da altura dos systemas os
publicistas olharão para estas
cogitações como
para um sonho de homem acordado, não raro
em flagrante contradicção com as doutrinas das
escholas. É provavel que tenham razão. Mas
como elles ainda não poderam intender-se entre
si, nem sequer ácerca dos principios fundamentaes
da sciencia politica, deixem passar o pobre
sonhador, e perdôem-lhe a ignorancia em
attenção
ao seu amor de patria e á nova luz a que nos
parece ter visto um certo numero de factos sociaes
importantes. Notas, cujo destino era o
serem conservadas na pasta do auctor, até se
completarem e receberem a conveniente ordem,
estas ponderações não teem ainda as
fórmas modestas
com que deveram apresentar-se; nós,
porém, não nos atrevemos a revestil-as d'essas
fórmas com receio de diminuir-lhes a energia.
[25]
Mais como duvidas sobre as causas e remedios
da febre que agita as sociedades modernas, que
como pretenções de fundar uma eschola politica,
esperamos sejam consideradas as
Cogitações de
um homem obscuro por aquelles que se applicam
a reformar as instituições dos povos.
São
idêas informes, incompletas, e rudes: mas bem
grosseira é a silex, e é d'ella que sahe a
faúla
com que accendemos o facho que nos guia nas
trevas de noite profunda.
Possam os devaneios d'aquelle que passou
desconhecido ao mundo não serem inteiramente
inuteis para o progresso humano, e sobre tudo
para a liberdade e bem-estar futuro da terra
sacrosancta da Patria!
I
Fraco, pequeno, e pobre na origem, Portugal
teve de luctar desde o berço com a sua fraqueza
original. Apertado entre o vulto gigante
da nação de que se desmembrara e as
solidões
do mar, o instincto da vida politica o ensinou a
constituir-se fortemente. Quando se lançam os
olhos para uma carta da Europa e se vê esta
estreita faixa de terra lançada ao occidente da
Peninsula e se considera que ahi habita uma
nação independente ha sete seculos,
necessariamente
occorre a curiosidade de indagar o segredo
d'essa existencia improvavel. A anatomia
e physiologia d'este corpo, que apparentemente
debil resistiu assim á morte e á
dissolução, deve
ter sido admiravel.
Que é feito das republicas da Italia tão
brilhantes
e poderosas durante a edade-media?
Onde existem Genova, Pisa, Veneza? Na historia:
unicamente na historia. É lá onde
sómente vivem
o imperio germanico e o do Oriente, a Escossia,
[27]
a Noruega, a Hungria, a Polonia, e na nossa propria
Hespanha a Navarra e o Aragão. Fundidas
n'outros Estados mais poderosos ou retalhadas
pelas conveniencias politicas, estas nacionalidades
exteriormente fortes e energicas dissolveram-se
e annullaram-se, e Portugal, nascido apenas
quando essas sociedades já eram robustas,
vive ainda, posto que em velhice abhorrida e
decrepita. Ha n'isto sem duvida, se não um mysterio,
ao menos um phenomeno apparentemente
inexplicavel.
Estará a razão da nossa individualidade tenaz
na configuração physica do solo? Somos
nós como
os suissos um povo montanhez? Separam-nos
serranias intransitaveis do resto da Peninsula?
Nada d'isso. As nossas fronteiras indicam-nas
commummente no meio de planicies alguns marcos
de pedra, ou designam-nas alguns rios só
no inverno invadiaveis. Quem impediu a Hespanha,
esse enorme colosso, de devorar-nos?
Poder-se-ha dizer que desde o seculo XVII é
a rivalidade das grandes nações da Europa que
nos tem salvado. Talvez. Mas antes d'isso era
por certo uma força interior que nos alimentava,
e que ainda actuou em nós no meio da decadencia
a que chegámos no seculo XVI, decadencia
[28]
que virtualmente nos veio a subjeitar ao
dominio castelhano.
Mas durante esse mesmo dominio o instincto
da vida politica, o aferro á individualidade, existia
se não nas classes elevadas ao menos entre
a plebe, porque a plebe é a ultima que perde
as tradições antigas, e o amor da sua aldeia e do
seu campanario.
A lucta do vulgacho―exclusivamente do vulgacho―a
favor de D. Antonio prior do Crato
contra a corrupção de tudo quanto havia nobre
e rico em Portugal, e contra o poder de Philippe
II, é um reflexo pallido e impotente da
epocha de D. João I; mas é um facto de grande
significação historica. Completam-n'o as
diligencias
feitas nas côrtes de Thomar para que a linguagem
official do paiz se não trocasse pela
dos conquistadores. Este facto comparado com
ess'outro obriga a meditar.
Philippe II foi um grande homem―astuto,
activo, dotado de um character ferreo; foi o representante
mais notavel da unidade politica
absoluta, e não pôde ou não soube delir
e incorporar
este pequeno povo na vasta sociedade
hespanhola, sobre a qual seu pae e elle haviam
passado uma terrivel rasoira que lhe destruira
[29]
todas as asperezas e desegualdades. E todavia
Philippe II tinha geralmente por alliados entre
os vencidos os homens mais eminentes por
illustração,
por linhagem, por faculdades pecuniarias.
É que as multidões obscuras eram ainda
portuguezas
no amago, posto que corrompidas no
exterior pela corrupção das classes
privilegiadas.
Todas as outras explicações são
insufficientes ou
falsas.
II
Tambem os tempos que precederam immediatamente
o dominio hespanhol offerecem um complexo
de factos que fazem pensar.
Na segunda metade do seculo XV resolveu-se
Affonso V a conquistar Arzilla. Aprestou trinta
mil combatentes e uma frota de perto de quinhentas
velas. Os esforços de Portugal para
supprir uma tão poderosa expedição
parece não
terem sido excessivos. Aquelles de quem o principe
estava descontente eram ameaçados por
todo castigo de não se lhes consentir o participarem
dos riscos da empreza. Para emenda de
muitos bastava o incentivo de se lhes recusar o
affrontarem os combates e a morte.
Na segunda metade do seculo XVI tractava-se
de ajunctar doze mil homens para a infeliz jornada
de Alcacer-quibir. As violencias que se
practicaram para arrancar do paiz as victimas
d'aquelle grande holocausto foram inauditas, e
esgotaram-se os recursos da nação para satisfazer
[31]
o custo de uma tentativa, de cujo resultado
a consciencia da propria fraqueza e degeneração
fazia com que o povo augurasse mal.
Entre estas duas epochas é necessario suppôr
um periodo de decadencia profunda, moral e
material, e esse periodo deve ser longo. Uma
nação
não decahe de um dia para outro dia. A virtude
e os recursos de Portugal deviam ter-se
consumido lentamente.
Mas o que é esse periodo intermedio? É o do
estabelecimento da monarchia absoluta sobre as
ruinas da monarchia liberal da edade-media.
É a epocha dos descobrimentos e conquistas.
Entre as idéas de engrandecimento e poderio
da epocha anterior a D. João II, e as da epocha
posterior a elle, ha um abysmo que nunca deixará
confundil-as.
A politica da edade-media era em tudo religiosamente
historica: a do renascimento era em
tudo hypocritamente revolucionaria.
Expliquemo'-nos.
Portugal surgira no meio de uma reacção de
crença e de raça. A Africa e o islamismo tinham
subjugado a Hispanha e o christianismo. A raça
goda e christan repellia a conquista. Durante o
progresso da reacção, Portugal nascêra
e d'ella
[32]
se tinha alimentado como os outros Estados da
Peninsula. Era este o grande facto da sua existencia:
o mais era accessorio e secundario.
A conquista mussulmana fôra uma vaga dos
grandes éstos humanos que, galgando por cima
do Estreito, viera tombar e espraiar-se sobre o
solo que habitava a familia romano-gothica.
Para obedecer á natureza das cousas, para a
reacção ser verdadeira e completa, a vaga
romano-gothica
tambem devia transpor o Estreito
e, estourando sobre a Mauritania, dar-lhe a provar
o amargor do dominio extrangeiro. O futuro
pertencia a Deus; mas as probabilidades do final
triumpho cabiam áquelle dos dous contendores
que viesse a ter por si a superioridade da
civilisação,
e o decurso dos tempos mostrou que
esta superioridade recahiu, não na Africa, mas
sim na Peninsula.
Assim as tentativas dos nossos antigos reis
para se apoderarem dos territorios africanos eram
logicas historicamente, e além d'isso eram justas.
O islamismo fôra quem lançára a luva
á raça
christan: não podia queixar-se da
prorogação do
combate.
E, descendo da idéa essencial da politica da
edade-media ás circumstancias secundarias que
[33]
podiam servir como meios de a realizar, vê-se
entre ellas e essa idéa mãe uma admiravel
harmonia.
As conquistas d'Africa deviam sorrir ao
povo: estribavam-se nas tradições e nos odios
de uma guerra de seculos, guerra ao mesmo
tempo de religião e de liberdade; no habito da
victoria, que desde a batalha das Navas de Tolosa
os proprios mussulmanos consideravam como
devendo, mais tarde ou mais cedo, pertencer definitivamente
aos christãos. Accrescia a vizinhança
das costas da Berberia e, portanto, a
facilidade de conduzir d'aquem mar tropas, viveres,
munições; o serem os sarracenos adversarios
antigos, e por isso avaliados com exacção
os seus recursos, o seu valor, os seus ardiz e
usanças militares; o existirem necessariamente
ligações entre os mouros, livres em Portugal
debaixo
do dominio christão, e os sarracenos africanos,
o que por muitos modos facilitava a conquista.
Tudo isto conspirava em tornar nacional e
plausivel o systema d'engrandecimento da nossa
edade-media; systema claro, consequente, legitimo,
e do qual já se devisavam os symptomas,
como era natural, pouco depois da conquista do
Algarve por Affonso III, isto é, no reinado de seu
neto Affonso IV.
[34]
Esta politica mudou na conjunctura em que a
monarchia primitiva se caracterisava definitivamente
em monarchia absoluta.
A causa final de todas as tentativas de engrandecimento
colloca-se desde essa epocha na
pessoa do rei, e não no paiz: a
tradição historica
perde-se. As expedições maritimas abandonam
o rumo da Africa septentrional e vão correndo
ao longo das costas meridionaes. Os descobrimentos
além do Bojador, que até ahi eram
accessorios da intentada conquista do Maghreb,
convertem-se em objecto principal das ambições
de poderio. Affonso V tomára o titulo de
rei de
Portugal e dos Algarves, d'aquem e
d'alem
mar:
fôra esta a derradeira expressão do pensamento
antigo. D. João II accrescentou a esse titulo o
de
senhor de Guiné: era
a primeira palavra do
symbolo moderno. As conquistas de Affonso V
representavam um accrescimo de territorio ao
reino; pertenciam ao paiz
[2]:
os descobrimentos
[35]
de D. João II tendiam a achar ouro e escravos
para o rei. Assim, em quanto os seus antecessores
costumavam congratular-se francamente com
o orbe christão pelas victorias obtidas na Mauritania,
este principe escondia por todos os meios
de terror e mysterio o
seu
senhorio de Guiné,
como o velho avaro procura occultar o cofre que
encerra o seu thesouro.
Desde então a vida energica de Portugal, distrahida
do caminho historico e justo, do alvo
solido e dos resultados permanentes a que a dirigira
a anterior politica, foi empregada no proseguimento
da nova idéa de pessoalidade, da
substituição do rei ao Estado. A gloria adquirida
n'essa epocha foi das maiores que o mundo tem
visto; mas comprámol-a com a desgraça futura,
com a morte de toda a esperança, com o tragar
golo a golo, por seculos, um calix immundo de
males e affrontas.―Adquirimos um largo patrimonio
para dividir com as outras nações:
reservámos
para nós a fraqueza interior, consequencia
de esforços mui superiores aos nossos recursos
[36]
para remotas conquistas: reservámos para nós
a corrupção moral e a decadencia material. Que
significa, pois, qual é o valor real d'essa gloria?
Puramente negativo.
A seiva da arvore social esgotou-se no bracejar
descomposto. A Asia e a America perderam-nos.
O antigo aferro á terra natal, o odio do
jugo extranho, o nobre e altivo character de homens
livres, o esforço indomavel, deixámos tudo
isso pelos palmares da India, pelas minas auriferas
da terra de Sancta-Cruz, pelos emporios do
nosso illimitado commercio. Puzemos hypocritamente
a cubiça de mercadores e as correrias de
corsarios á sombra veneranda da Cruz. Pensámos
que atraz d'ella não nos veria a historia.
Enganámo'-nos. Quando a febre que nos alimentava
se trocou em consumpção lenta, os povos,
que vieram recolher o fructo do nosso esforço
ou dos nossos crimes, levaram alguns annos a
verificar a partilha, e quando acabaram olharam
para nós e riram-se.
As nações maritimas da Europa representaram
n'este horrivel drama o papel de espectadores
romanos assentados nos degraus de um circo;
nós o de gladiadores. No fim do espectaculo ellas
voltaram o pollegar para a terra em signal de
[37]
desapprovacão. A pateada era justa: tinhamos
cahido mal.
E ainda ha quem acceite com vangloria os
elogios insolentes dos extrangeiros que, insultando
a nossa decadencia presente, exaltam os
feitos admiraveis com que lhes abrimos laboriosamente
atravez do oceano o caminho da prosperidade?
É um singular genero de surdez, ouvir o
elogio sem sabor e não ouvir a gargalhada que
o segue e que o converte n'um escarneo.
III
Quem quizer saber o que a monarchia absoluta
tinha feito do Portugal antigo leia a segunda
carta de Sá de Miranda, dirigida ao senhor de
Basto.
Este Sá de Miranda não seria um grande poeta;
mas era mais do que isso: era um homem de
fino tacto, que não tomava a febre do paiz por
força normal de vitalidade, e que via a decadencia
e ruina nas riquezas e pompas de Lisboa;
n'aquillo em que uma cubiça miope via engrandecimento
e progresso.
Desde que o rei deixou de ser rei para ser
senhor, o paiz annullou-se diante da capital.
Quando o principe é o Estado, que importam as
provincias? A côrte é tudo; é o manto
real. Cubra-se
de ouro e pedrarias, está obtido o esplendor
do
Estado.
Se D. Sebastião fosse um Sá de Miranda,
não
teria ido morrer a Alcacer-quibir. O pobre rapaz
era uma alma nobre e teve uma inspiração da
[39]
politica da edade-media; quiz ser descendente
dos reis cavalleiros, dos reis municipaes, dos
reis chefes da reacção christã, no
meio de uma
nação de bufarinheiros, de sobrecargas, de
judeus-agiotas,
de cortezãos, e de tartufos. Pagou-o.
Malaventurado mancebo! Nunca viu passar por
entre seus sonhos dourados e puros os phantasmas
melancholicos de D. João II, de D. Manuel,
e do inquisidor-mór D. João III: não
soube que
para resuscitar o pensamento destruido nos fins
do seculo XV era preciso primeiro reconstruir
uma sociedade que perecera com elle. D'aqui o
seu mal.
Puzemos agora o dedo sobre a chaga que corroeu
e corroe Portugal. O que até este momento
apontámos é uma serie de phenomenos, de factos
externos, posto que de alta importancia por
nos conduzirem á avaliação das causas
intimas
da ruina do paiz.―Estas causas estão unicamente
nas circumstancias que se deram na transformação
da indole politica da sociedade portugueza.
É essa a chaga em que tocámos.
ARCHEOLOGIA PORTUGUEZA
1841―1843
Hoje que a arte começa a deixar de ser entre
nós imitadora, pagan, e falsa; hoje que a poesia
se torna nacional; hoje que o drama renascendo
no theatro vai buscar a sua tela e as suas personagens
na historia patria; hoje, emfim, que
começam a apparecer nos jornaes populares tentativas
e esboços da novella historica, é uma
necessidade litteraria o desenterrar das chronicas,
dos diplomas, e de toda a especie de monumentos
a archeologia portugueza na mais vasta
significação d'esta palavra. Os que se
têem applicado
a escrever n'estes diversos generos da
arte, chamados poema, drama, romance, generos
despresados por certos sabios que nada escrevem,
ou que só copiam
profundamente o que
os outros disseram; aquelles que, dizemos nós,
[44]
trabalham n'estas varias especies de litteratura,
para as quaes se requerem em subido grau duas
cousas que raras vezes se encontram
junctas―imaginação
para inventar, logica para deduzir
e ligar factos e pensamentos; esses conhecem
por experiencia custosa quão duro é ter de
accrescentar
ao seu trabalho de artistas as tediosas
e mirradoras investigações de antiquarios e
eruditos.
Depois d'uma larga exploração pelos campos
aridos e empoeirados das velhas chronicas
civis e monasticas, dos pergaminhos esquecidos
nas gavetas dos archivos, das obras confusas e
por vezes contradictorias dos eruditos, se não
é difficultoso salvar a propria logica, é quasi
impossivel
não sentir amortecida a imaginação,
sem
a qual não existe arte. É esta a maior
difficuldade
que hoje ha para entre nós apparecerem
obras de artistas: os estudos aridos das antigualhas
matam os engenhos, ao passo que sem
a verdade dos costumes as producções artisticas
são falsas, e n'esse caso tanto ou mais valêra
fazer poemas epicos, tragedias com córos, pastoraes
virgilianas, e romances como o
Theagenes
e Chariclea, do bispo Heliodoro d'Emesa.
Mas qual é o meio de evitar gradualmente
esta difficuldade? É trazer cada qual á
praça o
[45]
seu peculio n'esta materia: assim os artistas se
ajudarão mutuamente, poupando uns aos outros
largas horas de indagações impertinentes e
aborridas.
A minima circumstancia dos antigos costumes
não é indifferente: muitas vezes ella vai
dar côr e vida a um verso, a uma scena, a um
capitulo: por pobre que cada um se julgue venha
com sua mercadoria que alguem lhe achará o
preço: para a arte de hoje não ha terra de
sepulchro
que nas mãos d'ella não possa converter-se
em ouro; porque a vestidura de pedra
que dá agasalho aos cadaveres encerra toda a
vida antiga.
Um jornal popular é por todas as razões o
repositorio mais accommodado para enthesourar
essas riquezas historicas. Um livro requer grande
copia de materiaes nas mãos do obreiro que
commette essa obra; requer certa disposição e
methodo para o qual poetas nem sempre são
mui proprios, por isso raros poderiam fazer sobre
isso um livro com intuito artistico, que ao mesmo
tempo fosse uma boa obra archeologica. Por outra
parte, o commum dos leitores―os mesmos que
hão de ler o poema ou o romance, e assistir á
representação do drama―se habituarão
ao tracto
e frequencia dos costumes e idéas que essas
[46]
composições resuscitam: as crenças, as
opiniões,
a vida material dos tempos passados deixarão
pouco e pouco de ser para elles como estranhas,
e as obras d'arte serão intelligiveis e populares,
o que aliás difficultosamente aconteceria.
Nós, pois, convidamos todos aquelles que comprehendem
a importancia e necessidade de similhantes
materias para que venham inserir
algumas paginas avulsas, alguns capitulos soltos
dos seus estudos historicos n'esta serie que hoje
abrimos: para nós e para os outros o requeremos;
mas sobre tudo o pedimos em nome das esperanças
que despontam de uma arte nacional.
Não nos adstringindo nem á divisão das
materias,
nem á ordem chronologica, n'este caso
absolutamente indifferente, começaremos pelo
extracto de duas obras
[3]
ineditas e inteiramente
desconhecidas entre nós, mas preciosissimas por
uma multidão d'observações sobre os
costumes
[47]
portuguezes dos fins do seculo XVI. Estas obras
escriptas por extrangeiros, que não tinham motivos
de affeição nem de odio contra os portuguezes,
parecem-nos de summa curiosidade por
descreverem o character de nossos avós n'uma
epocha em que a severidade dos antigos costumes
se começára a corromper grandemente, e
as riquezas e o luxo, que nos perderam, tinham
feito desapparecer a primitiva singeleza de mais
remotas eras.
VIAGEM DO CARDEAL
ALEXANDRINO
1571
Enviando o papa Pio V seu sobrinho Miguel
Bonello, mais conhecido pelo titulo de Cardeal
Alexandrino, como legado aos reis de França,
Hespanha, e Portugal, no anno de 1571, entre
as pessoas que formaram a sua numerosa comitiva
vinha um certo João Baptista Venturino, que
tomou a seu cargo descrever em italiano o processo
da viagem, acompanhando a sua relação
de notas e observações sobre as terras por onde
passavam e sobre os individuos com quem tractavam.
Depois de atravessarem França e Hespanha
entraram em Portugal pelo lado do Alemtejo,
e é d'aqui ávante que a viagem do legado se
torna extremamente importante para a historia
da sociedade portugueza n'aquella epocha: é
pois só n'esta parte que extrahiremos as mais
[50]
curiosas passagens da copia que temos diante
de nós, tirada do codice 1.607 da Bibliotheca do
Vaticano
[4].
Entrada em Elvas
«Avistando á mão esquerda uma torre dos
portuguezes
[5],
que estava como para defesa da
fronteira, appareceu D. Manuel...... senhor de
Monsaraz (?), villa proxima, de cem fogos. Vinha
com cincoenta cavalleiros bem montados e vestidos,
e logo apoz elle D. Constantino de Bragança,
tio do duque d'este titulo, e do sangue
real de Portugal, junctamente com o conde de
Tentugal, seu cunhado, com vinte pagens vestidos
das suas côres, preta e amarella, com trezentos
cavalleiros, montados em formosos ginetes
e cavalgando á gineta, que vem a ser com a
[51]
perna curva e com os pés mettidos em grandes
estribos, que cobrem quasi todo o pé: e montam
assim tão bem e estão a isso tão
costumados,
que fazem, pondo-se em pé nos estribos, toda
a casta de forças. Usam de esporas sem rozeta,
e só com um bico agudo similhante ao de uma
lanceta. Traziam botins vermelhos de carneira,
uns lisos outros lavrados, ou prateados e dourados,
e guiavam á déstra dez ginetes sellados
e cobertos de brocados e veludos extremamente
bellos.»
«D'ahi a pouco veiu o bispo d'Elvas, primeira
cidade e povoação de Portugal por esta banda,
homem já muito velho. Acompanhava-o o corregedor
do civel (?), isto é, o prefeito de justiça,
e o seu juiz ou ouvidor, os alcaides e meirinhos,
isto é, alguazis, e outros magistrados e officiaes
com vestiduras talares e varas nas mãos. Os
cavalleiros que vinham com elles seriam trezentos.»
«Ao entrar da dicta porta (d'Elvas) appareceram
muitos homens e mulheres vestidos do modo
em que já tinhamos visto em Castella estando
com o cardeal Spinosa. Formavam estes tres
[52]
corpos de dançarinos. A primeira dança, chamada
a
Follia, compunha-se de oito
homens vestidos
á portugueza, com gaitas e pandeiros acordes
e com guizos nos artelhos: pulavam á roda
de um tambor, cantando na sua lingua cantigas
de folgar, de que obtive copia, mas que não
ponho aqui por me não parecerem adaptadas á
gravidade do assumpto. Bem merecia a tal dança
o nome de
follia[6],
porque
volteavam como loucos,
fazendo ademanes uns para os outros, como
quem se congratulava da vinda do Legado, para
o qual constantemente se voltavam. A segunda
dança, chamada a
Captiva, era de oito mouros
agrilhoados, que, dançando á moda mourisca, se
declaravam escravos do Legado. A terceira, chamada
a
Gitana, era composta de ciganas
vestidas
e bailando como as que já descrevi do cardeal
Spinosa
[7].
Vinham entre ellas duas mouras,
[53]
trazendo cada uma em pé sobre os hombros uma
rapariga
[8]
vestida de pannos cozidos em ouro
e talhados de galantes e variados modos. Com
aquelle peso bailavam levemente, ao som de um
tambor, enfunando-se com o vento os vestidos
das raparigas, que faziam esvoaçar um lenço por
varios modos, ora com a mão direita ora com a
esquerda; ora segurando-o debaixo do braço ora
nas costas: momos estes que depois repetiram
com facas por diversas maneiras.»
«Elvas está assentada em sitio mui similhante
ao de Badajoz. E cingida de muros e forte: tem
falta d'agua pela altura em que está: o seu territorio
é bom, e bello o seu aspecto: a
povoação
terá obra de quatro mil fogos. As casas são
[54]
caiadas por fóra á maneira de Portugal. As
mulheres
são gentis e desembaraçadas: usam trajos
similhantes aos das castelhanas, mas não andam
tão embuçadas, nem tão arrebicadas e
brunidas.»
Encontro do duque de Bragança
«Á segunda feira seguinte, tendo saido d'Elvas,
vimos um aqueducto de oitocentos arcos
murados, que d'um monte, distante legua e meia,
conduzia a agua até ao pé da cidade. Rebentaram
depois os canos, não podendo subir a agua
á altura que se pretendia para a fazer entrar
dentro em beneficio dos moradores, mas sempre
corre perto da cidade. E caminhando por bellos
e ferteis campos de planuras e outeiros apraziveis,
encontrámos a distancia de duas leguas
D. João, duque de Bragança, mancebo de vinte
e nove annos
[9],
de mediocre estatura, trigueiro,
[55]
e de boa côr, vista curta, e de pouco robusta
compleição, o que lhe serve de desconto
á muita
grandeza e fortuna de que gosa, como depois se
dirá. É do sangue real de Portugal, tendo por
armas as mesmas do reino. Vinha vestido com
uma capa de panno razo, abotoado o capuz com
diamantes e fechos d'ouro, e as bandas compridas
aprezilhadas com rubins e ouro: o barrete
era de veludo com fios de rubins, diamantes,
perolas e ouro: as calças eram de veludo turqui
(azul escuro) agaloadas d'ouro. Montava em um
cavallo rodado, cavalgando á gineta, e precedido
por dois ginetes, que, sobre as sellas cobertas
d'escarlata com franjas d'ouro, traziam duas malas
similhantes ás que os cardeaes levam adiante
de si quando vão para o consistorio. Eram tambem
escarlates com as armas de S. Ex.
a bordadas
em brocado d'ouro com florões e franjas de prata,
na verdade bellissimas.»
«Vinham quatro alcaides, e quatro meirinhos
ou alguazis com varas vermelhas, ao contrario
[56]
das de Castella e ainda d'Elvas, que eram brancas.
Seguia-se a pessoa de S. Ex.
a e apoz elle
duzentos cavalleiros gentis-homens montados á
gineta em bellissimos cavallos.»
«Passada meia legua de caminho aspero e pedregoso,
chegámos ao pé de uma fortaleza sua
(do duque) que ficava á mão esquerda, na qual
salvaram com artilheria e tocaram tambores.
Um pedaço adiante, á direita, descobrimos um
palacio do duque, bello e commodo, similhante
a um serralho, cingido de muros que teriam tres
leguas pequenas, que são nove milhas, e que
fôra feito por S. Ex.
a para seu
divertimento, por
gostar muito da caça. Dentro da cerca havia
grande copia de javalís, cabritos montezes, veados,
e outras alimarias. Estava ordenado que se
désse uma batida ás feras para recrear o Legado,
que parou com o duque na chapada do monte
pegado com os paços. Mas uma grande chuva
acompanhada de vento não o consentiu, e tendo
o duque posto um capote de panno avermelhado
guarnecido de passamanes d'ouro, e um chapeu
de veludo preto com eguaes passamanes, nos
encaminhámos a passo cheio para Villa-viçosa,
residencia do dicto duque, onde chegámos perto
[57]
da noite.... Ao apear-nos á porta do seu palacio
houve grande estrondo de artilheria, que atirava
em um castello roqueiro bem fortificado; soaram
os atabales, tocados por pretos, os pifaros, trombetas,
tambores e sinos, mostrando-se por toda
a parte extraordinaria alegria.»
Villa-viçosa
«A esta villa corresponde bem o nome que
lhe dão, porque tanto dentro como fóra
está
cheia de vinhas, olivedos e pomares: é plana:
as casas são bellas e commodas, e de bom risco,
ou pelo menos melhor do que é costume em
Hespanha, caiadas por fóra, com chaminés brancas,
e no topo vermelhas, resaltadas para fóra
das frontarias, ou por causa da delgadeza das
paredes, ou por adorno, ou por assim ser costume.
Quasi todas as casas têem quintaes com
agua; e serão ao todo dois mil fogos, pouco
mais ou menos. É habitada por paisanos. Tem
formosas mulheres, e entre outras, uma que não
[58]
o é menos da alma que do corpo, da edade de
vinte e tres annos, filha de Thomé de Castro, á
qual por sua muita litteratura chamam Publia
Hortensia. Esta donzella, que tinha estado em
Salamanca, quiz defender conclusões naturaes,
e legaes, o que não teve logar por causa da subita
partida do Legado.»
Palacio de
Villa-viçosa―Luxo e opulencia
dos duques de Bragança
«O palacio é notavel, bello exterior e
interiormente,
e o mais aprazivel e commodo que até
aqui vimos em Hespanha (ao menos quanto a
mim), exceptuando, porém, o paço real de Madrid.
Como estivessem ainda alguns quartos imperfeitos,
o duque os mandou acabar por occasião
d'esta vinda do Legado. O edificio fecha todo
em volta, com grandes casarias, que dão para
jardins fresquissimos, um dos quaes mui espaçoso
está arranjado ao modo d'Italia. Tem vastas
cavallariças, adegas, e todas as mais officinas
[59]
necessarias. Está situado entre duas ruas, quasi
insulado, e na frontaria principal fica-lhe uma
formosa praça, á qual se segue um bosque de
ciprestes e logo um mosteiro de franciscanos.
Dentro dos paços estão pintadas muitas victorias
alcançadas pelos duques de Bragança,
principalmente
contra os castelhanos, e no alto da escada
se vê a tomada de Azamor, na Africa,.... tudo
ornado de riquissimos pannos de Flandres.»
«Os que estão, porém, na sala que fica
no topo
da escada da banda esquerda são de ouro, prata,
e seda, lavrados de figuras representando uma
victoria ganha por Nunalvares, condestavel de
Portugal, contra os castelhanos.... Dos mesmos
pannos está forrada outra sala tambem no cimo
da escada, da parte opposta, bem como a camara
e antecamara do Legado, na qual estava
uma cama de brocado d'ouro de canotilho, a
mesa d'estado coberta da mesma tela, a cadeira
de veludo carmesim franjado d'ouro, e o chão
alcatifado de finissimos tapetes. Ao pé ha um
oratorio bem ornado e devoto. No topo da escada
que já mencionei, sobre um estrado da altura
de dois palmos ou palmo e meio, coberto de tapetes
de seda, havia um docel de brocado d'ouro,
debaixo do qual havia de comer o Legado. Com
[60]
outro de brocado de prata estava um aparador
grandissimo contendo peças de ouro, de prata,
e douradas, que avaliaram em cento e cincoenta
mil escudos d'ouro. Havia ahi dois vasos, como
urnas antigas; duas bacias, dois gomis, e duas
copas grandes, lavradas de figuras primorosamente.
Os vasos dourados eram cincoenta e seis
de diversos feitios, uns levantados, outros lisos,
além de muitas taças, e de um numero quasi
infinito de pratos. A prata era da mesma qualidade.
Aqui comeu o Legado no dia seguinte
em publico, do modo seguinte: assentou-se em
uma das cabeceiras da mesa, depois de ter lavado
as mãos, só, porque o duque não quiz
lavar-se ao mesmo tempo por cortezia, apezar
de rogado e quasi constrangido para o fazer,
á qual cortezia de sua alteza corresponderam
os nossos prelados, os quaes, apezar de convidados
e rogados por elle, o deixaram lavar só.
Assentou-se o duque ao pé do Legado, mas não
antes d'este estar assentado. Juncto ao duque
ficou D. Jaime seu irmão, de edade de dez annos,
vestido como o duque, e apoz elle D. Francisco,
de edade de vinte annos, e D. Henrique, de
dezoito, de aprazivel aspecto e bom porte, filhos
do conde de Tentugal, vestidos com tabardos
[61]
e....
[10]
de panno mesclado á moda soldadesca.
Seguia-se D. Constantino de Bragança, vestido
de raxa preta com a cruz da ordem de Christo
ao peito. Do outro lado estavam os nossos prelados,
e na extremidade d'uma e d'outra parte
estavam outros fidalgos e cavalleiros, segundo o
grau de cada um. A mesa estava delicadamente
ornada e coberta com toalhas de bretanha.....
[11]
e tela da India.....
[12]
Os manjares eram abundantissimos
e sumptuosissimos, mas postos desordenadamente,
pouco lautos ou exquisitos, e
na maior parte pouco agradaveis ao paladar,
porque lhes deitavam á toa e em todos grande
quantidade de assucar, canella, especearias, e gemas
d'ovos cozidos, ao mesmo tempo que lhes faltavam
os môlhos, temperos, etc. Todavia nenhum
[62]
havia ahi que fosse extravagante, ou desusado
em Italia, constando de salvaginas, pavões, perdizes,
e boas carnes, entre as quaes o capado
era excellente, e nada má a vitella. Vieram muitas
fructas cobertas que tornaram a polvilhar
d'assucar e cobriram com folhado de mel, cousa
que parece não ser ordinariamente usada. As
cobertas da mesa foram cinco, cada uma de cinco
serviços, a fóra o ultimo da fructa, confeitos, e
doces, com a galanteria de sahirem voando perdizes
e outros passaros ao abrir os pasteis. Durou
o jantar por espaço de mais de tres horas.
A cada coberta, que sempre era servida por fidalgos
ou cavalleiros, tocavam os atabales, trombetas,
e adufes, mais com ruido que com suavidade,
posto que os pifaros que faziam acompanhamento
tornassem supportavel a bulha. Quando
o duque bebia, o que fez só duas vezes durante
toda a comida, sendo a bebida agua pura segundo
costumava, vinha esta em um jarro de
cristal alto e largo, que elle despejou de todo.
N'este acto vinha adiante o mordomo com o bastão
na mão, e atraz o mestre-sala com a salva.
Dos lados estavam dois creados vestidos de veludo
preto e tabardos de panno, e canas nas
mãos, chamados porteiros; seguiam-se outros
[63]
dois do mesmo modo, chamados maceiros, com
maças de prata macissa e as armas ducaes; e
além d'estes, dois vestidos com sobrevestes, a
modo de tunicas de brocado d'ouro, cobertas de
armas do duque e dos seus, chamados reis d'armas;
todos os quaes, tendo no meio o escanção
com a copa d'ouro e com o dicto jarro coberto,
estavam de joelhos, como fazem sempre aquelles
que fallam com o duque, e do mesmo modo
estava o escanção, tocando entre tanto os
instrumentos.
Repetiu-se esta mesma ceremonia quando
o Legado bebeu.»
«As ceremonias (da missa na capella ducal)
foram segundo o rito romano. A musica era estrepitosa
e retumbante: o canto era de boas
vozes, mas tão altas, sendo os cantores pela
maior parte eunuchos, que não pareceu sonora,
nem bem concertada, como talvez fôra em aposento
mais vasto.»
«Depois da missa, voltando o Legado ao seu
quarto encontrou á porta da camara ducal, esperando-o
em pé, a infanta D. Isabel, filha do
defuncto duque D. Jaime, viuva do infante
D. Duarte, filho d'elrei D. Manuel...... Trazia
[64]
um vestido preto afogado, coberta quasi toda
com o manto: é de estatura alta e direita, de
idade de sessenta annos. Ao pé d'ella estava sua
filha D. Catharina, duqueza de Bragança, a qual,
parecendo-lhe porventura abatimento de sua
real grandeza intitular-se duqueza, se chama a
senhora Catharina. Teria de edade
vinte e nove
annos. Trazia vestido de velludo preto afogado,
cheio de espiguilhas galantes d'ouro, rubins e
diamantes, com meias mangas, abertas ao meio
com rede d'ouro, cabello liso e levantado em
topete como usa a rainha de Hespanha, com um
rosicler de diamantes e rubins ao peito de inestimavel
valor, e pulseiras e brincos de grossissimas
perolas. Pegava-lhe na cauda d'uma
saia de gorgorão branco, que trazia por baixo,
uma graciosa donzella, acompanhada d'outras
dez vestidas de diversas telas e todas do mesmo
feitio, com muitas joias, além de quatro donas
vestidas como a infanta viuva, só com a
differença
de não serem os véus tão compridos.
Tinha ao pé de si, de um lado D. Theodosio seu
filho, duque de Barcellos, de edade de quatro
annos, e D. Duarte, de tres, vestidos com gibões
e calças de tela bordados de prata listrada de
vermelho, côr tão louvada do Ariosto, com
cordões
[65]
de ouro e perolas, estando ainda na ama
o terceiro filho D. Alexandre. Do outro lado estavam
as suas duas filhas D. Maria, de sete annos,
e D. Seraphina, de seis, vestidas de razo
carmesim bordado d'ouro...... Feitos os cumprimentos
ao Legado, o convidaram a sentar-se
em uma cadeira de brocado d'ouro, debaixo de
docel, e a infante e a senhora Catharina no chão
sobre um estrado que ficava defronte. Conversaram
algum tempo, estando as damas em pé
do outro lado, e o duque assentado á esquerda
do Legado, falando com o patriarcha Alexandrino,
e os outros prelados e gentis-homens em
pé no meio da sala.»
«Tem o duque nos seus estados grandes bancos
de marmores alvissimos, de veios amarellos,
e d'outras especies, muitos e excellentes. A artilharia
dos seus castellos é numerosa.»
(Falando dos escravos, a linguagem do auctor
é bastante solta, e por isso não transcreveremos
esta passagem. Basta saber que estes desgraçados
eram considerados e tractados
como as
raças
de cavallos em Italia, e pelo mesmo methodo;
que o que se buscava era ter muitas
crias para
as vender a trinta e a quarenta escudos. Diz elle
[66]
que
d'estes rebanhos de mulheres havia muitos
em Portugal e nas Indias.)
«Affirma-se que este duque póde levantar sessenta
mil homens de peleja, dando só Barcellos
treze mil afóra seis mil cavallos.»
Partida de
Villa-Viçosa―Estremoz―Evora
Monte-mór Novo―e Barreiro
«Veiu o duque com seu irmão e cem cavalleiros
acompanhando o Legado, obra de meia
legua, e despedindo-se passou a Borba, villa
sua formosa e plana, de seiscentos fogos, a distancia
de uma legua. Pouco depois encontrámos
o corregedor e alcaide d'Estremoz, villa de quatrocentos
fogos e distante uma legua, acompanhados
de cem cavallos. Aqui pernoitámos.....
o Legado em casa do donatario D. Constantino
de Bragança, e os demais por casas particulares,
incommodados por dormirem em colchões
no chão, sendo este o costume do paiz, por se
usarem poucos leitos...... Ao redor da villa ha
montes de pedra marmore com veios vermelhos,
a qual serve para edificios, e n'algumas partes
[67]
barro vermelho misturado de branco, do qual
fazem diversos vasos muito lindos, e jarros, pelos
quaes costumam beber os fidalgos e até o proprio
rei.»
«Foi de grande prazer, ao entrar n'esta vílla,
vêr tres corpos de danças similhantes
ás d'Elvas,
e dos lados fogos d'artificio e foguetes, e ouvir
o estrondo da artilharia e dos sinos, sendo acompanhado
o Legado com dez tochas accezas, e
com muitas outras os prelados e gentis-homens,
aos seus respectivos aposentos.»
«No dia seguinte...... chegámos a uma estalagem
distante tres leguas, por caminhos algum
tanto pedregosos e ingremes, posto que o territorio
fosse bom e fructifero. Ahi encontrámos o
bispo d'Evora, homem de cincoenta annos, de
aspecto mortificado e de sanctidade, acompanhado
de parte do clero, e outras pessoas, ao
todo de duzentas......... Na dicta estalagem
almoçámos doces, presunto do melhor que
é
possivel comer-se, capões assados frios, queijo
excellente, pão alvissimo, e optimos vinhos, tudo
ordenado pelos mantieiros d'elrei com muito cuidado
e diligencia: a louça era de prata e os
copos de ouro. Depois encaminhando-nos para
Evora, veio-nos ao encontro D. Diogo de Castro,
[68]
homem de cincoenta annos e pessoa principal
entre os visinhos da cidade, logar-tenente d'elrei
nas cousas de guerra. Cavalgava um formoso
e bem arreado ginete, e vinha acompanhado de
quinhentos homens de serviço ordinario, além
de dez mil peões de sua milicia, e quatrocentos
soldados bem postos, montados em formosos cavallos,
pela maior parte á gineta........ Perto
d'Evora, obra de um terço de legua, appareceu
o governador, o alcaide, e o juiz com vestiduras
talares de panno, seguidos de meirinhos e outros
magistrados na ordem seguinte. Enfileirados
d'uma banda vinham oito trombetas tocando,
vestidos de lhama d'ouro, egual á das bandeirolas
das trombetas, com divisas brancas e verdes,
tabardos de méscla e barretes de panno
vermelho. Seguiam-se dez alabardeiros com a
mesma divisa e barretes brancos, que eram a
guarda do governador. Atraz d'estes vinham outros
dez vestidos de panno de méscla com barretes
pretos, os quaes eram a guarda do alcaide.
Da outra banda viam-se tres pretos montados
em mulas cobertas até o chão com gualdrapas
de panno negro e amarello, e vestidos de.....
[13]
[69]
com um pequeno capuz atraz, e com calças curtas
de marinheiro, das mesmas côres, e barrete
liso e alto com a aba revolta até meia altura, e
uma facha de cendal ao redor. Cada um d'elles
tocava dois atabales pendurados de um e outro
lado da sella. O som era ás vezes aprazivel e
suave; mas batendo com mais força, aspero
e espantoso, o que fizeram ao approximar-se o
Legado em signal de maior alegria, e tem por
costume em tempo de guerra quando alcançam
victoria. Seguiam-se tres troços d'alabardeiros,
cada um de seis homens diversamente vestidos,
os quaes formavam a guarda dos outros magistrados.
No meio d'estas companhias caminhavam
os dictos senhores, precedidos de muitos ministros
com varas nas mãos, insignia da justiça,
todas compridas e brancas, á excepção
da do
governador, que era como bastão da grossura
de um braço, pintado de verde e branco. Juncto
da cidade appareceram dez rapazes vestidos de
verde, dançando á mourisca ao som de pandeiro,
e logo depois outros dez vestidos d'amarello
com tambor e flauta, dançando tambem, e
saltando com um meio arco, que cada um d'elles
trazia, enredando-se e desenlaçando-se rapidamente.
Apoz estes vieram mais dez vestidos de
[70]
romeiros, bailando á roda de um tambor, e cantando
os louvores do Legado. Ainda appareceram
mais dez egypcias ou ciganas, vestidas como
já descrevemos, fazendo além da sua
dança costumada,
e ao som de tambor, varios jogos com
lenços e varas. Vieram logo apoz dez ciganos,
que ao som de outro tambor, collocando-se cada
um entre duas d'ellas, formaram uma graciosa
cadeia. Ultimamente á porta da cidade dez rapazes
vestidos de branco com vergonteas nas
mãos bailavam á roda d'uma cadeira de velludo
carmesim franjada d'ouro, a qual traziam oito
rapazinhos mais pequenos com briaes brancos e
com aureolas d'ouro na cabeça, apresentando-se
ao Legado, e curvando-se, como todos os outros,
que vinham fazer, um por cada vez, sua mesura,
e depois todos junctos, em quanto as danças,
jogos e cantos continuavam sempre adiante do
Legado.»
«....Entrou no palacio do arcebispo (em
Evora) que hospedou á sua custa o Legado, os
prelados, e alguns mais, com toda a sumptuosidade.
O mesmo foi nas casas dos fidalgos que
recebiam esplendidamente os que eram hospedados
n'ellas. Os aposentos, além dos forros de
[71]
finissimos pannos de Flandres, tinham os pavimentos
cobertos de tenros e verdes juncos marinhos,
que usam em occasião de festas e de
casamentos. Costumam estar á mesa duas ou tres
horas. Cada qual tem o seu copo: a meio jantar
mudam-se os guardanapos: os guisados de carne
põem-se na mesa já partidos em bocados e
cobertos,
e tanto n'estes como em outros deitam
dentro ovos cosidos, muitas especiarias, e assucar.
Não são lautas as comidas; mas são
abundantes,
e dizem que a maior parte d'ellas são
usadas pelos mouros. De cada vez não trazem á
mesa mais que um manjar, e por isso os jantares
duram tanto tempo, o qual entretêm conversando,
fazendo saudes, e offerecendo uns aos
outros o que vem á mesa, mostrando-se todos
muito alegres.»
«....Viemos, a tres pequenas leguas d'ahi,
á estalagem de Monte-mór Novo, onde
almoçámos
doces e pasteis de peixe fresco e salgado,
e andadas mais duas leguas pequeninas
chegámos a Monte-mór, bella villa de oitocentos
fogos, cercada de prados e assentada á margem
de um rio. Acha-se povoada no sopé do monte,
não podendo habitar-se a villa antiga (hoje deserta)
[72]
por causa do incommodo e despeza de
subir ao alto e conduzir lá as cousas necessarias,
por ser elevadissimo o monte. Nem lá está
auctoridade
alguma á excepção de Fernando Martins,
alcaide e castelleiro d'uma fortaleza e palacio
antigo.»
«No dia seguinte chegámos, d'ahi duas leguas,
ás estalagens chamadas da Silveira e da.....
[14] pouco distantes uma
da outra, e tomando leve
collação andámos outras duas leguas e
chegámos
á Landeira, povoação ou burgo de vinte
fogos
espalhados, na qual, posto que esteril e incapaz,
tinham feito mercado de mantimentos trazidos
dos arredores. Ergueram-se alli dez tendas de
campanha ao modo mourisco, e como o campo
estava verde e alegre, n'ellas se recolheram alguns
prelados e gentis-homens, querendo antes
outros soffrer dentro das casas o dormir sobre
um colchão deitado no pavimento que debaixo
das tendas onde cada um tinha dois, só por não
ficarem expostos ao ar. Apezar d'isto o Legado
se accommodou bem em uma casa, e foi servido
de tudo. Gostámos do sitio por ser desaffrontado
e gracioso. De dia todo o territorio parecia coberto
[73]
de um exercito em campo: á noite viam-se
de redor muitas fogueiras que alegravam os moradores
da povoação. Eram estes promptissimos
em servir-nos, e tendo vindo obra de uns trinta
ao encontro do Legado, montados em ginetes
creados n'aquelles sitios, nos divertiram bastante
fazendo carreiras, dois a dois, com as mãos dadas,
correndo com grande velocidade, e parando
no meio da carreira com toda a facilidade.»
«No outro dia (sabbado primeiro de dezembro)
depois d'almoço, partimos com chuva por uma
estrada plana e arenosa, por meio de bosques;
e deixando á esquerda Setubal,
povoação de
quatro mil fogos e de muitas marinhas, que são
onde o oceano espraiando-se fórma uma lagôa,
da qual como da de Cervia em Italia se tira sal
com abundancia, chegámos a Palmella, villa de
mil fogos......
[15]»
«......Caminhámos por via plana e por entre
bosques apraziveis, encontrando ora á esquerda
ora á direita algumas aldêas pouco distantes
[74]
umas das outras, todas graciosas, com as casas
mui claras por fóra, e rodeadas de regatos, olivaes,
e prados. Eram estas aldêas: Coína de
trinta e cinco fogos, Alhos-vedros de trezentos,
Palhaes de quarenta, Telha de trinta..... Pela
volta da noite, acompanhados com dez tochas,
chegámos ao Barreiro, bella villa de trezentos
fogos. Apeámo'-nos á porta d'uma boa casaria,
onde mora o alcaide, e onde os reis costumam
receber as rainhas, quando casam em Castella,
ou outras personagens que por ahi passem. Estava
toda adereçada de finissimos pannos de
Flandres de seda e ouro, excellentemente historiados.
A antecamara do Legado tinha um leito
com columnas embutidas de ouro e negro, com
varios lavores de animaes e arvores. O cortinado
era de damasco preto, orlado de recamo d'ouro,
os travesseiros de preciosa hollanda, recamados
d'ouro, abotoados com muitos botões d'ouro macisso.
A camara tinha um leito de brocado d'ouro,
canotilho sobre canotilho, com docel irmão, e
travesseiros eguaes aos de fóra. A sala onde comiam
os prelados tinha um docel de velludo
negro todo coberto de lyrios d'ouro, e orlado de
brocado de prata com florões pretos. No aparador
estava louça, entre dourada e de prata, que valeria
[75]
doze mil ducados, havendo muitas peças
lavradas de figuras, e quatro frascos ou talhas
irmãs de treze palmos d'altura. Na sala dois
castiçaes de prata, que davam pela cintura, sustinham
grossissimas tochas brancas, delicadamente
lavradas de relevo. Em todos os aposentos
havia cheiros suavissimos, adornos pelas paredes,
e juncos pelo chão. Os do Legado estavam
todos tapizados. Nas casas onde nos alojámos
tudo era commodissimo e bem adornado, como
camas de seda, e comida prompta para os que
preferiam comer no seu quarto, que eram poucos,
sendo muito mais agradavel o sumptuoso
apparato da casa do alcaide, onde, ainda que a
mesa fosse mal ordenada, porque esta gente tem
pouco geito para isso, tinhamos uma cêa magnifica
e melhor que todas as que até ahi tiveramos,
sendo servida por trinta mancebos fidalgos,
e em riquissima baixella d'ouro e prata. Em
outras duas casas os gentis-homens e mais familia
foram tractados com egual magnificencia,
bebendo por copos de prata até os infimos criados,
não faltando tochas para acompanhar os
que vinham cêar, voltando para a pousada, ou
iam para qualquer parte. Á mesa dos prelados
o improvisador
Cueres (?) cantou
á guitarra, em
[76]
honra do Legado e da infanta D. Maria de Portugal,
de quem era tudo aquillo e que fazia toda
a despeza, os louvores dos prelados e d'alguns
gentis-homens; e depois varios outros á viola,
aos tres e aos quatro, cantaram madrigaes engrapados,
e bem trovados com palavras castelhanas.
Muitos mancebos nobres, além dos trinta,
cuidavam com toda a attenção e presteza em
servir o Legado, e depois os prelados e mais
pessoas, não deixando faltar cousa alguma que
fosse necessaria ou que se desejasse, tendo sido
com este intento mandados de Lisboa pela serenissima
infante. Além do que os donos das pousadas
faziam aos seus hospedes toda a casta de
obsequio e cortezia. Á tarde, depois do escurecer,
foi espectaculo admiravel o vêr Lisboa, a
distancia de duas leguas, assentada n'um alto,
que parecia arder todo, tal era a multidão de
fogueiras.»
[77]
Passagem do Tejo―Lisboa―El-Rei D.
Sebastião
A Rua Nova
«No outro dia á tarde...... cresceu a
maré
e podémos embarcar. Appareceram de repente
muitos barcos de pesca e varios outros, afóra
cinco bateis. Embarcaram os cavallos por uma
ponte de madeira que ha aqui, não sem a difficuldade
e o perigo de se estropiarem, e pela
passagem pagou-se meio escudo de cada um.
Os familiares passaram em seis barcas toldadas
de velludo ou tapetes finos, com muitas bandeirolas
variadas, e o Legado e demais prelados
em outra que era pintada de vermelho e toldada
de damasco da mesma côr, com uma quantidade
ainda maior de similhantes bandeirolas; e n'outra,
toldada de velludo encarnado e verde,
D. Constantino de Bragança com varios fidalgos
portuguezes. Teriamos andado obra de uma legua
quando aferrou comnosco uma barca grande do
feitio do Buccentauro de Veneza, pintada e toldada
do mesmo modo, na qual entrou o Legado
com todos os seus, e D. Constantino com todos
[78]
os fidalgos de sua companhia. Á pôpa havia um
docel de téla d'ouro, e debaixo d'elle uma cadeira
de brocado d'ouro para o Legado, estando
tudo defronte forrado de finos pannos de Flandres,
e cobertos de tapetes os escabellos em que
se assentavam os prelados, bem como o pavimento
da pôpa, e até o da proa. Pelo que parecia
que não estavamos em uma barca, mas sim em
magnifica e bem ornada sala. Os bordos d'ella
estavam cheios de ramos de louro, e por cima
esvoaçavam bandeiras de damasco verde e amarello.
A galeota, para que por extrema velocidade
não corresse algum risco, posto que o vento
fosse de feição, não trazia
véla; mas vogava
com remos a compasso e rebocada por dez bergantins
pintados de vermelho. A marinhagem
estava vestida de.....
[16]
e barretes vermelhos.
Chegavam a nós dez barcas variamente pintadas
e ornadas, nas quaes ouvimos pifanos, trombetas,
adufes, tímbales e outros instrumentos, com
cantores e bailarinos vestidos á mourisca, os
quaes bailavam com garbo, mas o canto parecia-se
com o que cantam os judeus nas suas
sinagogas. Esta gente rodeando a galeota e fazendo
[79]
seus cumprimentos deleitavam-nos muito.
Depois disto ainda se approximaram muitas mais
barcas, talvez trinta, que salvaram a galeota
cada uma com dois tiros d'artilheria. N'uma d'ellas
veio o arcebispo de Lisboa, com muito clero,
e beijando a mão ao Legado se despediu para
o receber depois em terra com ceremonial. Partindo
o arcebispo vieram ainda mais bergantins
toldados e vestida a marinhagem, uns de verde,
outros d'amarello, outros de vermelho, outros
emfim de côres misturadas, com muitos estandartes
similhantes, nos quaes vinham pintados,
n'este um mundo, n'aquelle um jardim, n'aquell'outro
um céu estrellado: em alguns as armas
e brazões de seus donos, ou outras divizas, e
até as havia com motes e tenções que
não se
podiam bem discernir no meio d'aquella confusão.
Varios d'estes bergantins eram dos magistrados
da cidade, outros das ordens militares de
Portugal. Alguns fidalgos e todos os officios mechanicos
mandaram seu bergantim. Muitos indiaticos
que residem em Lisboa enviaram dois
cheios de varias plantas, flôres e fructos da India,
feitos de cêra, que representavam uma primavera,
não faltando ahi rosas, violas e hervas
odoriferas, naturaes e verdadeiras, colhidas em
[80]
Lisboa. Eram tantos os barcos vindos de toda a
parte que se computaram em mais de quinhentos.......
Distariamos um terço de legua da cidade
quando chegaram dez galés pequenas, seguidas
por uma grande, que chamavam o galeão,
as quaes saudaram o Legado com cem tiros
d'artilheria, e o galeão com vinte e quatro, deitando
ao mesmo tempo muitos foguetes e outros
fogos de vistas.»
«Com esta bella e alegre companhia chegámos
finalmente á cidade, em cuja praia havia tanta
gente que se calculava em cincoenta mil pessoas.
Deitou-se uma ponte de madeira, e por
ella desembarcámos para outra ponte fixa, no
meio da qual démos de rosto com o serenissimo
cardeal D. Henrique que nos esperava com muitos
cavalleiros.»
«Deram principio á entrada muitos cavalleiros
portuguezes, caminhando aos dois, aos tres, e
aos quatro, e misturados com elles os familiares
do Legado, a cuja esquerda ia o cardeal infante.
Tendo andado vinte passos vieram cumprimental-o
todos os magistrados e officiaes publicos de
Lisboa, que seriam noventa, uns vestidos de
[81]
vestiduras compridas até o chão, outros de saios
até o joelho feitos de diversas fazendas, com as
varas nas mãos, e trazendo muitos alabardeiros
e creados apoz si, uns mais, outros menos, segundo
as suas graduações. Veio então,
encontrar-se
com o Legado, D. Sebastião, rei de Portugal,
mancebo de vinte e oito annos, de boa
côr e muito parecido com D. Joanna, princeza
de Portugal, sua mãe, e irman d'el-rei catholico.
É de estatura mediocre, de olhar e sobrecenho
algum tanto carregado e altivo. Trazia uma capa
de panno preto, e o capuz com botões de diamantes,
rubins, e perolas, saio com abotoadura
tambem de diamantes e as faldas até o joelho,
calças vermelhas com poucos tufos e quasi lizas,
barrete chato de velludo, carregado para a testa
quasi até o sobrolho, e adornado com um cordão
d'ouro, diamantes e perolas: trazia botas largas
nas pernas, de cordovão preto, que lhe subiam
até os joelhos. A espada, cinto, estribos e esporas
eram dourados, e a sella do cavallo de velludo
preto recamada de ouro e perolas: na cabeça
trazia o cavallo pendentes de pedras preciosas
e ouro. Adiante d'el-rei dois escravos pretos
conduziam dois ginetes, um claro, outro baio
claro, com xaireis de brocado d'ouro e jaezes
[82]
d'ouro. Ao redor vinham cincoenta alabardeiros
vestidos de panno preto, com capas compridas até
meia perna, saios com faldas pelo joelho, e
botas de cordovão preto largas. Seguiam-se o infante
D. Duarte e muitos outros cavalleiros, que
seriam mil, quasi todos montados em formosos
ginetes bem arreados, fazendo aquelle todo maravilhosa
vista, principalmente os cavalleiros,
que eram de bella presença e ricamente vestidos.
El-rei parou á direita do Legado e, descobrindo
a cabeça ao mesmo tempo que este, fez uma
leve inclinação, tornando immediatamente a
pôr
o barrete. Feitos os cumprimentos e correspondida
a cortezia que fizera, caminhou ao lado do
Legado, e sempre á direita, seguindo-se depois
o cardeal infante e D. Duarte, e depois D. Constantino,
D. Francisco, e D. Henrique: apoz estes
o duque d'Aveiro e seu irmão D. Pedro, aos quaes
se seguiam os marquezes, condes e outros fidalgos
titulares, e depois os magistrados da cidade
com os seus alabardeiros e os cavalleiros das
quatro ordens militares, além de outras pessoas
distinctas, cada qual segundo a sua graduação.
Caminhámos obra de uma boa milha por bellas
ruas, direitas e largas (principalmente a que
chamam
rua nova, a qual
é bellissima e povoada
[83]
de nobres edificios) até que chegámos ao
paço real, situado no sitio mais alto da cidade,
que d'alli se descobre quasi toda, fazendo uma
vista soberba com o braço de mar que a cérca,
cheio de grande multidão de navios. Por todas
estas ruas era tão basto o povo que se calculou
haver ahi mais de cento e cincoenta mil pessoas.
Estavam as dictas ruas adornadas todas de finos
pannos de Flandres e d'outras qualidades, não
havendo columna ou parede que d'elles não estivesse
coberta. Dobrado era o adorno das janellas,
porque não só estavam a ellas damas
tão louçans, que não sei a que
comparal-as, mas
tambem estavam colgadas de riquissimos tapetes
e colchas, o que era tanto mais esplendido,
quanto as casas teem muitas janellas e muito
junctas, e cada morada tres ou quatro andares,
que se alugam facilmente pela grande frequencia
d'extrangeiros. Era por este motivo que d'um e
d'outro lado se não via vão do tamanho d'um
dedo, que não estivesse coberto de tapetes e
pannos, divididos por quadros de figuras em
vulto, ou bordadas, de vistosa apparencia.
Quando chegámos á egreja de Sancta Maria
[17],
[84]
perto dos paços reaes, el-rei, fazendo leve
menção
de descobrir a cabeça, partiu para os dictos
paços acompanhado de cincoenta tochas, e o
Legado entrou na egreja.»
O paço de D.
Sebastião―A côrte
«Partindo da sé o Legado com o cardeal infante
e muitas outras pessoas, foi apear-se ao
dicto palacio, chamado do castello, era sol posto.
Acompanhado de cincoenta tochas, conduziram-no
a um aposento no andar nobre, por cima do
quarto d'el-rei, onde ceou só, e os prelados e
gentis-homens de seu serviço em publico, n'uma
sala, e em outra maior os gentis-homens dos
prelados. Assim os mais criados cada um segundo
a sua jerarchia e classe.»
«As mesas não eram tão bem ordenadas,
lautas,
e abundantes como em Madrid, porque os
portuguezes não teem habito de banquetear-se.
Conhecia-se-lhes a boa vontade com que davam
tudo, e que eram abastados de peças de ouro e
de prata, e servidos por muitos criados; mas
[85]
as comidas eram mais grosseiras que delicadas;
os vinhos fortes; a fructa pouco singular. Quanto
ao pão e carne, eram optimos.»
«O palacio do castello, todo por fóra de cantaria,
assim como não tem fórma alguma d'architectura,
por ter sido feito aos poucos em diversas
epochas, tambem por dentro é mais commodo
que vistoso. Sobe-se por uma grande escada a um
atrio que gira em volta, e que dá entrada para diversas
quadras, ficando á mão esquerda da entrada
uma porta que dá para outra escada ingreme
e estreita, pela qual se sobe a alguns quartos
bem ornados, nos quaes se alojaram varios prelados.
Tomando por outra escada subimos a uma
varanda que dá passagem para as camaras d'el-rei,
por cima das quaes fica uma grande sala,
que tem quarenta e oito passos de comprido e
dezoito de largo, dividida em naves com um
tecto pintado de brutescos, e forrada toda de
bellas razes de Flandres e de lhama d'ouro. Seguia-se
um quarto feito a modo d'escada, por
ser em degráus, onde os gentis-homens dos prelados
comiam. O tecto d'este quarto era feito á
maneira de pinha e de muito mau gosto. D'aqui
subia outra escadinha de madeira para um aposento,
ao lado do qual ficava outro onde estavam
[86]
os aparadores com a copa, assaz copiosa de peças
d'ouro e prata, mas não tanto como a do duque
de Bragança. D'esta casa se passava para uma
sala forrada dos mesmos pannos de Flandres, na
qual os prelados comiam. No fundo d'esta sala
se descia para uma varanda feita de novo, em
cujo topo havia um bellissimo panno de Flandres
com uma imagem da virtude que segura pelo
collo e pelos cabellos uma fortuna com seu letreiro
latino que significa:
não sabe escapar,
nem póde fugir a fortuna, quando a virtude
com sua força a retem. Do meio d'esta
varanda
se desce para uma sala forrada de lhama d'ouro,
com seu docel de brocado, debaixo do qual está
um estrado com tres degraus, coberto de panno
verde. D'aqui se entra em uma camara, ornada
do mesmo modo, onde está um grande leito de
brocado d'ouro, com travesseiro e duas almofadinhas
de razo
[18]
carmezim ricamente bordados
d'ouro. Fica immediata outra, onde estava um
leito para dormir o Legado, cuja armação era de
finissimos razes de seda e d'ouro, com bem
lavradas figuras poeticas, e franjas subtilissimas.
Havia tambem ahi uma mesa pequena de couro
[87]
preto da India mais bello que o ebano, todo lavrado
ao redor de folhagens d'ouro. Ao pé d'esta
camara estava um oratorio, armado de razes similhantes
aos da camara, com a differença de
serem as figuras ao devoto........... D'estas
camaras sahe-se por uma porta secreta para um
terrado donde se descobre uma extensa vista,
tanto de mar como de terra.»
«Os quartos d'el-rei ficam por baixo d'estes e
em tudo lhes são similhantes, salvo em alguma
pequena diversidade nos estrados e doceis, e
em serem bordados os pannos de raz com historias
do Testamento Velho, e ao mesmo tempo
com quantas ficções teem inventado os poetas.
Havia ahi alguns que valiam bem dois mil escudos.»
«Na quarta feira seguinte foi o Legado visitar
el-rei, o qual veiu encontrar-se com elle ao meio
da sala grande, acompanhado de muitos cavalleiros,
e vestido singelamente, todo de panno
preto. Tirou o Legado o barrete primeiramente,
e depois tirou el-rei o seu, mas tornou-o a pôr
logo, tendo-o o Legado ainda na mão; e sem
dizer palavra, tomando a direita ao Legado, se
encaminhou para o seu quarto, sem fazer a menor
[88]
ceremonia ao passar as portas, entrando
primeiro que elle na camara, onde só havia uma
cadeira. Ordenou então el-rei que viesse outra,
mas antes que ella chegasse, ou por inadvertencia
ou por altiveza, assentou-se debaixo do docel,
e o Legado defronte d'elle na que trouxeram,
que era de velludo. Tendo fallado obra de uma
hora, o Legado tornou a descobrir-se, fazendo
el-rei apenas signal d'isso, e acompanhando-o só
até á porta do aposento, onde parou, com o
barrete na cabeça, em quanto os prelados lhe
faziam suas cortezias, pondo o joelho em terra,
e retirou-se depois.»
«O Legado jantou n'esse dia em publico, mas
só á mesa, na sala do docel, n'um estrado de
cinco degraus, assentado em uma cadeira de velludo
carmezim, franjada d'ouro, assistindo-lhe os
prelados e grande numero de fidalgos portuguezes.
Ao mesmo tempo jantava el-rei tambem em
publico e só á mesa, na sua sala principal
debaixo
do docel, em estrado levantado, e assentado
em cadeira de brocado d'ouro. Quatro padres
jesuitas benzeram a mesa e depois deram
graças. O serviço era d'ouro: dez os criados que
serviam, não mais! As comidas poucas, mal
temperadas e grosseiras. Sobre a mesa estava
[89]
sempre um grande vaso de prata cheio d'agua,
do qual se deitava em um jarro, chamado na
lingua portugueza
pucaro, do
feitio de uma urna
antiga, d'altura d'um palmo, e feito de certo
barro vermelho, subtilissimo e luzidio, que chamam
barro d'Estremoz, pelo qual el-rei
bebeu
seis vezes. Ahi estava tambem sempre uma salva
de prata cheia de guardanapos, que se renovavam
cada vez que el-rei bebia ou mudava de
prato. Comia depressa, e com a cabeça baixa,
com pouca delicadeza. Um pagem posto atraz da
cadeira lhe tinha entre tanto a espada. Dez estavam
de joelhos. Apesar de lhe assistirem muitos
fidalgos, nunca disse palavra, nem olhou para
nenhum, e levantando-se da mesa, retirou-se
para a sua camara com passos velozes.»
«Depois de jantar, o Legado cavalgou em uma
mulla, acompanhado dos prelados e de quinhentos
cavalleiros portuguezes, e seguindo quasi uma
milha ao longo da margem do rio, foi apear-se
á porta de um convento de freiras franciscanas,
donde passou ao palacio da rainha D. Catharina,
viuva de D. João III e irman de Carlos V, avó do
rei actual. Terá d'edade sessenta annos ou mais,
mas está bem conservada: é d'alta estatura e de
gentil aspecto. Estava vestida como a duqueza
[90]
de Bragança viuva, de que já falei.
Achámol-a
em pé n'um aposento desadornado, como o era
todo o palacio. Deu só dois passos a receber o
Legado, com uma leve cortezia. Juncto d'ella
estavam quatro matronas e seis donzellas formosas
e ricamente vestidas. Despedidos os prelados
e mais pessoas, começou a conversar com
o Legado em lingua hespanhola e em voz alta,
por espaço de hora e meia, tendo-se ella assentado
no chão e o Legado defronte, em uma cadeira
de couro, ambos sem docel, estando entretanto
os prelados n'outro aposento, onde, por
orgulho ou por descuido, não havia cadeiras.
Á partida do Legado foram estes chamados dentro
para cortejarem a rainha, o que fizeram
pondo o joelho em terra, sem ella se mover; e
quando o Legado se despediu pôz-se em pé, mas
não sahiu do seu logar, e apenas fez uma leve
inclinação de cabeça.»
«Tendo anoitecido, acompanhados com vinte
tochas adeante fomos ao palacio da infanta D. Maria,
irman de D. João III, a qual, tendo ficado
orphan em tenra edade, não quiz jámais casar,
posto que fosse robusta, formosa, e procurada.
Era alta, e teria d'edade cincoenta annos, posto
[91]
que não pareça á primeira vista. Dizem
que é
a princeza mais rica da christandade, possuindo
innumeraveis joias e milhão e meio de bens patrimoniaes,
que gasta com os pobres.»
«Estava vestida a princeza com um vestido
afogado de velludo preto com orla d'ouro e botões
d'ouro no colarinho, coifa de rêde d'ouro
na cabeça, e uma corôa no braço, de
rubins e
diamantes, que avaliámos em trezentos mil escudos.
Esperava em pé pelo Legado, n'um aposento
forrado de pannos de Flandres de sêda e
ouro, debaixo de um docel de brocado. Ajoelhou
ao entrar de s. exm.
a, e levantando-se veio
recebel-o
á porta do quarto. Depois assentou-se no
chão debaixo do docel, e o Legado defronte d'ella
em uma cadeira de velludo carmezim franjada
d'ouro. Estavam presentes quatro matronas, quatro
damas, e tres donzellas não menos honestas
que formosas, e similhantes ás tres Graças, duas
vestidas de velludo preto, e a do meio de damasco
branco, e todas cobertas de joias tanto
no pescoço como nas mangas, com coifas de fio
d'ouro que lhe chegavam só a meia cabeça, e
os cabellos bem assentados na frente, algum
tanto crespos mas não entrançados. Depois de
[92]
uma curta conversação, o Legado voltou ao
palacio.»
«Esta capella (a dos paços d'Alcaçova)
é de
bom tamanho. Tem um S. Miguel expulsando
Lucifer que é obra de mestre: está forrada de
tapeçarias, uma das quaes representa ao natural
el-rei D. Manuel, rodeado do conselho dos grandes,
quando resolveu mandar conquistar as Indias
que hoje chamam de Portugal. É de grande
preço.»
«Quando o Legado voltou para a sua camara
(depois da segunda visita de ceremonia a el-rei
na qual nada ha notavel) os administradores do
thesouro real lhe levaram para vêr uma sella
de diversas peças, com os demais arreios, feita
na India. O corpo d'ella, ou assento, é de ouro
e as orlas lavradas subtilissimamente. Está toda
semeada de rubins, diamantes, perolas, e outras
joias similhantes. Dizem que vale novecentos mil
escudos, e é peça só digna de um
rei.»
«Na segunda feira seguinte fomos ver o arsenal
ou armaria d'el-rei, pegado com a praça
principal, á beira do Tejo. Na verdade é cousa
[93]
digna d'espanto! Compõe-se de tres grandes salas
todas cheias. Os cossoletes que ahi ha são para
cincoenta mil homens. N'outra que fica por cima
estão lanças para outros; e n'outra
morriões e
arcabuzes para egual numero de soldados (os
portuguezes dizem que são para oitenta mil),
além de trinta mil armaduras inteiras para cavallaria.
Em baixo estão cem peças d'artilheria
grossa, e cento e cincoenta de artilheria miuda,
bem que muitas d'estas se podiam contar entre
as de grande calibre. As munições são
abundantissimas,
assim como os materiaes para a fabricação;
nem n'esta parte ha mais que desejar.»
«Fomos tambem vêr as cavallariças reaes
que
estão juncto a S. Domingos. Havia n'ellas duzentos
ginetes todos excellentes e tractados com
grande estimação.»
O cardeal tinha-se despedido d'el-rei D. Sebastião.
Segue-se a descripção da partida e da
viagem para Castella atravez do Alemtejo, na
qual nada ha novo ou notavel, digno de ser
transcripto para estudo dos costumes d'aquella
epocha.
ASPECTO DE LISBOA
AO AJUNCTAR-SE E PARTIR A ARMADA PARA A JORNADA
D'ALCACER-QUIBIR
1578
Apesar de os historiadores do infeliz D. Sebastião
haverem aproveitado muitas memorias
coetaneas para tecerem as suas narrativas, esta
de que hoje damos um extracto lhes foi desconhecida.
E todavia ella apresenta o quadro
mais miudo e talvez mais completo da grandeza
e importancia d'aquella desgraçada
expedição,
em que as riquezas, os sacrificios de todo o genero,
e as violencias inauditas, de que todo o
paiz foi theatro, não poderam remediar a decadencia
do antigo esforço portuguez, nem restaurar
a energia indomavel dos seculos anteriores,
[96]
corrompida pela morte da liberdade municipal
e da independencia aristocratica, annulladas
por D. João II e por D. Manuel.―Do estylo,
do modo por que a relação dos successos se
apresenta, do ponto em que ella termina, e dos
signaes paleographicos do manuscripto se deduz
que esta memoria, pertencente á Bibliotheca Real,
foi escripta por um contemporaneo e testemunha
ocular dos aprestos da armada.
«Estava a cidade de Lisboa em todas as cousas
mui differente do que era, porque a gente que
n'ella havia não se lhe dava numero, nem havia
homem que passeasse nem andasse de vagar,
assim naturaes como extrangeiros, porque todos
se negociavam para a jornada de Africa, onde
el-rei queria passar, e mostrava-se em todos
tanto alvoroço que parecia que iam a folgar ou
a ver umas grandes festas.»
«Havia muita gente estrangeira a fóra os tudescos,
que el-rei mandara vir e que estavam
[97]
em Cascaes alojados, afóra seiscentos soldados,
os quaes, indo para a Rochella por mandado do
papa em soccorro dos catholicos contra os herejes,
vieram a Lisboa tomar refresco, e pedir
embarcação a Sua Alteza, a qual lhes
não pôde
dar, por ter necessidade de todos os navios para
esta viagem, antes disse ao capitão d'esta gente,
que era o duque de Lenister de Irlanda, que o
quizesse acompanhar n'esta jornada, e que para
isso mandaria pedir licença a Sua Sanctidade,
para o qual o duque lhe deu de prazo quarenta
dias para dentro d'elles vir a resposta, a
qual não veiu até á partida d'el-rei;
mas emfim
os fez embarcar e levou comsigo. Era gente
muito lustrosa, e soldados velhos exercitados.»
«Havia em Lisboa muita gente extrangeira,
assim castelhanos como de outras nações, que
vieram para irem n'esta jornada por aventureiros,
gente honrada e muito lustrosa, que vieram
servir el-rei á sua custa e sem partido. E assim
acudiram muitos officiaes de instrumentos militares;
porque mandou el-rei declarar por Italia,
Castella, e Allemanha, que todo homem que em
sua terra tivesse officio de guerra e quizesse
acompanhar n'esta jornada lhe faria partidos
avantajados.»
[98]
«El-rei Filippe em Castella mandou apregoar
que todo o homem que passasse com seu sobrinho
n'esta jornada lhe levaria em conta todo o
tempo que servisse, como se acompanhára sua
propria pessoa.»
«Fez el-rei quatro coroneis, a saber: Diogo
Lopes de Sequeira do terço de Lisboa e seu
termo; D. Miguel de Noronha do de Santarem;
Vasco da Silveira do de Alemtejo; Francisco de
Tavora do terço do Algarve. Não fez coronel
d'Entre Douro e Minho, nem da Beira, porque a
gente que de lá vier se ha de repartir por estes
coroneis.»
«Estes despediu el-rei a vinte dias de maio,
para que cada um fosse fazer sua gente e pagasse
logo a todos, e começasse a paga a correr
desde o dia que cada um partisse da sua terra.
A gente de Lisboa e a dos terços de Santarem
e do Alemtejo veiu embarcar aqui em Lisboa; a
outra se embarcou em os portos mais chegados:
e para esta gente se embarcar mandou el-rei vir
aqui de Setubal sessenta urcas que estavam á
carga do sal. Todas estas entraram em Lisboa
em um dia, e ficaram lá em Setubal outras setenta
urcas, que el-rei mandou hi carregar de
cousas necessarias. Vai por general de toda a
[99]
armada D. Diogo de Sousa, governador que foi
do reino do Algarve.»
«Era el-rei tão cioso ou curioso da
negociação
d'esta jornada, que de ninguem a fiava nas cousas
necessarias senão de si mesmo. E foi por
vezes visto em pessoa mandar carregar e negociar
os seus galeões; e tão occupado que pela
sésta se viu um dia no caes, sem chapéu, mandar
arrumar em um galeão umas poucas d'armas: e
era a sésta ardentissima.»
«É infinito querer contar do apparelho das
cousas de guerra, que el-rei mandou embarcar:
de artilharia muita e muito grossa, uma de
campo e outra de bater, e outra para o mar,
toda de bronze, infinitos corpos d'armas, piques,
arcabuzes, pelouros, ceirões, carretas, enxadas,
alviões, barras, polvora, marrões, e
murrões; e
para isto levava muitos gastadores, que diziam
que eram quatro mil: levava muitas azemulas,
bois, carros, e todo o mais d'estas cousas: levava
mais para os gastadores um galeão cheio
de çapatos de malhóo.»
«Chegou a Lisboa o duque de Bragança no fim
de maio com sua gente escolhida, vestida de
amarello, e guarnecida de vermelho: outra alguma
de seu serviço vinha de vermelho fino,
[100]
com calças e gibões da mesma côr. Leva
muita
gente, e a mais d'ella mandou embarcar em Setubal,
onde tinha para isto, e para sua matolotagem
e cavallos, vinte e sete urcas apenadas
por mandado d'el-rei. O duque veiu pela posta,
e ao outro dia adoeceu e esteve muito mal; e
quando viu que não podia ir por sua
indisposição,
mandou vir de Villa-viçosa o filho mais velho,
para em seu logar ir com el-rei. Não lh'o
quiz a duqueza mandar, e mandou-lhe o filho
segundo, que lhe elle logo tornou a mandar, e
que em todas as maneiras lhe mandasse o filho
mais velho, o qual veiu, e partiu de Lisboa apoz
el-rei em uma náu veneziana, tão grande como
uma da India, muito bem concertada com muita
artilharia grossa, com muitos estandartes e padezes;
e foi por Setubal para levar comsigo a
sua gente que lá estava embarcada.»
«Ao primeiro de junho mandou el-rei lançar
bando que todas as companhias fossem receber
soldo, e que todo homem assi natural como extrangeiro
que recebesse ou tivesse recebido
soldo, e não passasse á Africa, que
morresse.»
«Foi el-rei por vezes ao campo vêr os
esquadrões
e os capitães como o faziam, e elle mesmo
andava nas resenhas e entre o pó e fumo da
[101]
arcabuzaria, muito alegre e contente. E é de notar
o fervor com que negociou estas cousas: e
depois que se isto começou a apparelhar lhe era
pesada toda a practica, que não tractava de
guerra ou do apparelho d'ella.»
«N'este meio tempo houve algumas brigas,
mui travadas, e algumas de bandos, como foi
uma dos portuguezes e tudescos na praia da
Boa-vista, sendo mais de duzentos tudescos e
outros tantos portuguezes, que durou por muitas
horas, sem os poderem apartar nem apasiguar:
e não morreu mais de um tudesco, e houve
muitos feridos de uma parte e outra: e nasceu
esta briga de dois portuguezes quererem obrigar
a dois tudescos que pagassem a uma taberneira
o que lhe comeram, que lh'o não queriam pagar.
Outra briga houve de portuguezes contra
castelhanos, porque tres portuguezes inconsideradamente
arrancaram contra um esquadrão de
castelhanos, e succedeu-lhes bem, que em pouco
se junctaram quarenta ou cincoenta portuguezes
que brigaram valorosamente, onde mataram
quatro castelhanos e feriram mais de vinte: dos
portuguezes não mataram nenhum, mas ficaram
alguns feridos. Esta briga se fez no rocio, á
porta do hospital d'el-rei, e armou-se de estes
[102]
tres portuguezes chamarem ladrões a seis ou
sete castelhanos dos d'aquella companhia, porque
estando um mouro de Cide Muça com tres
moedas d'ouro de quinhentos réis na mão, lhe
disseram estes sete castelhanos se as queria
trocar, que lhe dariam de ganho quarenta réis
por cada uma: acceitou o mouro, e pediram-lhe
os castelhanos as moedas para vêr se eram de
peso, e mostrando-lhes as tres, as passaram de
mão em mão uns pelos outros de maneira que
desappareceram; e o mouro pediu ajuda a estes
tres portuguezes e emenda da zombaria que lhe
fizeram, e que lhe tornassem o seu dinheiro.
Vendo el-rei que estes negocios iam para mal e
que cada dia havia brigas, mandou lançar bando
que todo homem assim natural como extrangeiro,
que na côrte arrancasse espada, morresse
por isso, e assim se atalharam as brigas.»
«Mas depois que el-rei se partiu houve uma
só, que foi a gente do duque de Bragança com
uma companhia de castelhanos que ficou em
Lisboa para receber soldo; e tanto que a briga
se começou, o capitão dos castelhanos recolheu
sua gente o melhor que pôde nas varandas dos
paços da ribeira, e a briga começou-se
á Porta
do-mar juncto ás casas de Affonso d'Albuquerque.
[103]
Ajunctaram-se da gente do duque mais de
duzentos homens, e o fizeram como muito soberbos
e pouco esforçados; porque, sahindo o
capitão dos castelhanos com uma bandeira de
paz, e pondo-se de joelhos diante d'elles dizendo
que por amor de Deus o matassem a elle e deixassem
os seus soldados; que olhassem que
eram irmãos dos portuguezes, e vinham a servir
el-rei de Portugal; elles sem deferirem a isto
iam seguindo sua furia, e vendo algum castelhano
ás janellas ou varandas lhe tiravam ás
arcabuzadas, e ao mesmo capitão que lhes pedia
paz lhe tiraram muitos golpes e pedradas, que
foi milagre não o matarem ou ferirem. Fez este
capitão maravilhas, e deu mostras de muito
esforçado;
e porque já alguns do duque haviam
tido os dias atraz brigas com alguns da sua companhia,
e era em rixa velha, foi este capitão ao
duque pedir-lhe amqestasse a sua gente não lhe
quizesse matar seus soldados, e como já o duque
estava informado das finezas que este capitão
fizera, lhe agradeceu muito e lhe mandou dar
um cavallo e duzentos cruzados, e um chapeu
seu, que tinha, para levar, porque o capitão ia
sem elle, que o perdera na briga.»
«E pela cidade se começou a alevantar um
[104]
rumor que seria bom prenderem ao mesmo duque;
que não era possivel que elle não mandasse
á sua gente fizessem bandos e as taes brigas,
sendo el-rei ausente; e que sempre a casa de
Bragança fôra avessa ás cousas do rei.
Não faltou
quem avisasse o duque d'isto, o qual mandou
chamar toda a justiça, e lhes pediu com muita
instancia que todo seu criado prendessem e julgassem
no mesmo instante, e que, se conheciam
alguns dos outros da briga passada, os prendessem
logo e se julgassem como a el-rei e a suas
justiças parecesse. Conheceram doze dos que
começaram a briga; prenderam-nos: todos os
mais fez logo o duque embarcar, e partiram com
o duque novo. Afóra estas brigas todas, amanheciam
muitos homens mortos das brigas de
noite.»
«Aos oito dias de junho mandou el-rei lançar
bando que todos se aviassem, porque elle se
embarcava a quatorze do mesmo mez, que foi
um sabbado; e tão firmemente que, perguntando-lhe
Christovão de Tavora se havia de passar
alguns dias depois dos quatorze, lhe respondeu:―que
bem se podia o céu ajunctar com a terra,
sem haver falta no que tinha mandado apregoar.»
[105]
«N'este sabbado quatorze de junho foi el-rei,
dos paços da ribeira á sé, a buscar a
bandeira
real. Tanto que amanheceu começaram a correr
os fidalgos para o acompanharem: e parece que
á porfia trabalharam para ir cada um mais galante
e custoso: cousa que espantou muito as
gentes, vêr como todos iam ricamente vestidos;
porque, se a materia dos vestidos era rica, a
obra, feitios e invenções de mais rica sobejava;
porque tudo era brocado, tela d'ouro e prata,
tecidos d'ouro e prata, tecidos de seda mui custosos.
Os velludos, damascos, e todas as mais
sedas perderam sua valia; e se alguma tinham
era pelos muitos passamanes, rendilhas, espiguilhas,
torchados e alamares d'ouro que lhe
punham. Mas tudo isto era de pouco gasto em
comparação dos feitios, que estes destruiram os
homens.»
«Além d'isto, foi espanto vêr a muita
pedraria
que n'este dia sahiu: os botões d'ouro, as
tranças
dos chapéus cheias de rubins, diamantes, e
esmeraldas de preço infinito, entresachadas a
compasso umas com as outras; os camafeus,
medalhas e estampas de feitio singular; as cadeias
d'ouro grossissimas aos pescoços, de dez
e doze voltas; as couras borladas d'ouro com
[106]
botões d'ouro, cristal, perolas e demais pedraria;
os gibões e coletes sobre telilha (d'ouro com
invenção de córte, pique, presponte
maravilhoso;
os capotes de damasco, setim, chamalote
de seda, bandados com barras de velludo e torçaes
d'ouro.»
«Os arreios dos cavallos eram cousa de
admiração;
porque todos os fidalgos levavam em
seus cavallos cabeçadas e esporas de prata, esmaltadas
d'ouro e azul; as estribeiras com mil
figuras e maneiras de bichos abertos n'ellas,
obrados por singular arte; as nominas, peitoraes,
cigolas e cordões com muitas borlas d'ouro e
torçaes; as muchillas com os jaezes e cobertas
quando menos eram de velludo com mil franjas
d'ouro e prata, e os mandis de velludo.»
«Nem era menos vêr como os fidalgos vestiram
todos a sua gente, uns de gran, outros de
raxa de méscla e tamate, isto assim a escudeiros
e pagens como a lacaios e escravos, cada
um de sua libréa de suas côres, e alguns os
vestiram
de calças e gibões de seda da côr de
sua
libréa, com meias de agulha de seda.»
«Emfim foram os fidalgos esperar a el-rei á
sala, e d'ahi desceram com elle até cavalgar.
Estava a este tempo o terreiro do paço, que é
[107]
um espaço grande, muito cheio de gente, que
não havia poder andar; e além d'isso era para
vêr estar as libréas de dez em dez homens, pegados
nos cavallos de seus senhores, de côres
differentes todos, com muitas plumas de diversas
côres nos chapéus, com cendaes aos
pescoços
com borlas d'ouro e seda, que faziam um campo
esmaltado de diversas boninas.»
«Finalmente passando el-rei pela varanda,
juncto da escada por onde havia de descer a
cavalgar, olhou para todo o espaço da gente,
e conhecidamente se lhe enxergou no rosto o
contentamento de vêr tanta gente, tão lustrosa
e tão alvoroçada; e cavalgando foi passando
pelos fidalgos, pondo os olhos em cada um com
uma alegria e benignidade desacostumada. D'esta
maneira foi acompanhado até a sé, onde, depois
de ouvir missa, se benzeu com muita solemnidade
a bandeira, na qual estavam de uma parte
postas as armas reaes, e da outra um crucifixo,
com el-rei D. Sebastião tirado pelo natural.»
«Já que tudo era acabado, el-rei com os joelhos
no chão e os olhos arrazados d'agua esteve
um pedaço diante do Sanctissimo Sacramento
rezando. Acabando a oração entregou a bandeira
a D. Luiz de Menezes, alferes-mór, que coberto a
[108]
levou diante; e assim acompanhado até o caes
da rainha, se embarcou na galé real, cuja obra
é estranha, porque só na pôpa, onde
el-rei vai,
se affirma que se gastaram mais de oito mil cruzados,
porque é da mais estranha e singular
invenção que se viu. Toda era cozida em ouro,
com muitas historias abertas no mesmo páu,
com outros muitos vultos formosissimos, e outras
personagens de temerosos aspeitos, tudo obrado
com maravilhoso artificio; e o farol real era
conforme a dicta obra de maravilhosa
invenção.»
«E porque não haja quem diga que não
tractaram
os homens mais que de se enfeitarem,
nem lhes lembrára mais que suas louçainhas e
vaidade, sei dizer que o gasto que fizeram nos
vestidos foi pouco em comparação das armas e
apparelhos para pelejarem.»
«Não houve homem fidalgo que não
comprasse
muitos corpos d'armas muito lustrosos, e não
mandasse pintar n'ellas suas armas em campos
de diversas côres: mil peitos de próva de muito
preço, muitas couras e coletes de anta, couraças
de laminas cobertas de velludo e setim de todas
as côres com tachas d'ouro e prata, muitas saias
de malha, e gibanetes, tudo muito galante e de
muito gosto, e muitas rodelas d'aço tauxiadas
[109]
de lavor d'ouro com suas armas pintadas n'ellas,
muitas adargas muito fortes, muitas lanças dourados
os contos e engastes, espadas largas e
cortadoras, muitos montantes, leques, terçados,
e todo outro genero d'armas muito fortes e galantes.»
«Levam muitos homens fidalgos um cavallo
acobertado de cobertas d'anta muito fortes e
louçans, pintadas n'ellas suas armas de tintas
finissimas. Houve cobertas d'estas que passaram
de mil cruzados. Não houve genero d'armas, assim
offensivas como defensivas, que os homens
não comprassem com muito gasto e custo, e com
mais gasto ainda que nos vestidos.»
«Levam tambem muitas tendas muito ricas, e
muitas d'ellas de seda, com suas grimpas douradas
e bandeiras de seda, e tendilhões para a
gente e cavallos; e el-rei leva muita somma de
tendas que mandou trazer de Allemanha; e se
affirma que as d'el-rei e dos fidalgos e extrangeiros
serão mais de quatro mil com os
tendilhões.»
«É de notar como os homens vão
alfaiados, e
o muito provimento de todas as cousas que levam,
que parece que levam casa mudada, como
se lá houvessem de estar vinte annos. Foi de
[110]
maravilhar em todo este tempo, com tanta confluencia
de forasteiros e gente de todo este reino,
não faltarem nunca os mantimentos n'esta terra,
nem alevantar o preço d'elles, antes que nenhum
outro tempo houve mais, nem mais baratos. Esta
foi uma das cousas em que Lisboa mostrou bem
sua grandeza.»
«Comquanto el-rei mandou lançar bando com
penas grandes que ninguem vendesse as cousas
por mores preços do que d'antes valiam, e com
ao principio prenderem alguns por isso, não
deixaram as sedas, pannos, e armas, e todas as
cousas necessarias para esta jornada de custar
cinco e seis vezes mais do costumado. Isto destruiu
os homens; e na rua-nova, onde todas
estas cousas se vendem, apreçando um fidalgo
algumas cousas de seda para se vestir, pelas
quaes lhe pediram tanto mais do que valiam,
que fazia medo, disse com assaz dôr de
coração:―que
mais arreceavam os homens a guerra
que se lhes fazia na rua-nova, que a que se esperava
em Africa. D'estes havia muitos, e os
mais d'elles negociavam em pessoa, que assim
era necessario para se melhor negociarem, e,
pelo muito gasto que fizeram, ficaram todos destruidos,
e uns venderam as herdades e casas e
[111]
casaes e quintans por dois seitis, e outros empenharam
as commendas e morgados por muitos
annos por d'ante mão, para se aviarem, por
muito pouco preço valendo muito, e haviam
provisões d'el-rei para o poderem fazer sem embargo
de serem morgados: e outros vendiam a
prata e ouro, e tudo o mais de que se podia
fazer dinheiro se punha em leilão.»
«Não houve nenhum officio que não
estivesse
com obra, e todos elles alevantaram sem consciencia.
Ao menos os officiaes de vestidos, pintores,
douradores, armeiros, sirgueiros, e officiaes
de tendas, ficaram ricos para sempre, e os
mais não ficaram pobres.»
«Deu o arcebispo licença, pelo principio de
maio, que d'ahi até se partir el-rei trabalhassem
todos os officiaes de todos os officios dias e sanctos
de guarda, nas cousas que pertenciam á
guerra ou seu apparelho; e assim se fez, que
todos trabalharam; e com tudo isso não se poderam
acabar de aviar todos os fidalgos, que ainda
cá ficaram alguns que apoz el-rei se partiram.»
«Foi recommendado a Jeronimo Corte-Real e
a D. João de Mafra e a outro fidalgo, que não
soube o nome, que inventassem o que poria el-rei
no timbre de suas armas novas, com que
[112]
n'esta jornada havia de sahir. Accordaram que
pozesse abaixo das armas reaes dois piramides
ao modo de columnas, e de um d'estes ao outro
pozessem umas letras que dissessem:―Amor,
fé, amor.»
«Depois de el-rei assim estar embarcado, este
sabbado que disse, ao domingo seguinte, que
foram 15 dias do mez de junho, sahiu a ouvir
missa na igreja de Sanctos velho, e d'ahi se tornou
outra vez a jantar á sua galé, e n'ella andou
toda a tarde vendo a frota e dando pressa que
se aviassem, e da mesma maneira todos os dias
d'aquella semana andou visitando as náus e vélas
grandes, dando-lhes pressa que se aviassem;
e na segunda feira pela manhan mandou el-rei
lançar bando com trombetas que todos se embarcassem,
porque elle botava na quarta feira
seguinte de foz em fóra, e o mesmo fez na segunda
feira á noite, e á terça feira pela
manhan
e á noite.»
«Na quarta feira se mudou o tempo do mar,
e esteve assim até segunda feira vespera de
S. João té o meio-dia.»
«
[19]N'este
meio tempo aconteceu uma desgraça
[113]
grande ao senhor D. Antonio, prior do Grato,
com el-rei e com Christovão de Tavora; e foi
que tinha o senhor D. Antonio fallado a um
criado da infanta D. Maria, grande reposteiro, e
mantieiro maravilhoso e mui destro n'esta cousa
de banquetes: e estava concertado leval-o comsigo
n'esta jornada, e a esta conta esteve, comeu
e pousou alguns dias em casa do senhor D. Antonio.
Teve Christovão de Tavora noticia d'este
homem: mandou-o chamar, e lhe rogou ou lhe
mandou que o acompanhasse n'esta jornada; que
cumpria assim. Como Christovão de Tavora é do
bafo d'el-rei e tanto seu privado, e quer, póde
e manda, acceitou este homem de boa vontade
ir com elle, sem embargo da palavra que tinha
já dado ao senhor D. Antonio, o qual na vespera
da partida o mandou chamar a sua casa e
lhe disse que se acabasse de aviar. Respondeu-lhe
elle sem pejo que ia com Christovão de Tavora;
que não podia ir com S. Ex.
a. Faltou
a paciencia
ao senhor D. Antonio, e por sua mão lhe
deu com um páu umas poucas de pancadas e o
tractou mal. Tomado Christovão de Tavora d'isto
[114]
fez queixume a el-rei que o senhor D. Antonio
lhe espancara um homem seu, porque não quizera
ir com elle. Estando isto d'esta maneira
acertou de ir o senhor D. Antonio á galé
d'el-rei,
e antes que chegasse a elle fallou a cinco ou
seis fidalgos que estavam afastados da pôpa,
entre os quaes estava Christovão de Tavora, e
todos salvaram e tiraram o chapéu ao senhor
D. Antonio senão elle, que virou o rosto para
outra parte. Disse-lhe o senhor D. Antonio:―«Sois
mal ensinado, Christovão de Tavora»:
a que elle respondeu:―«Nunca o eu sube ser,
senão quando me sobejou razão para
isso.» Anojado
o senhor D. Antonio se foi fazer queixume
a el-rei, parecendo-lhe que emendasse a descortezia:
elle lhe respondeu de má graça e por
cima do hombro:―«Vós lh'o tereis
merecido.»
Sahiu-se o senhor D. Antonio da galé aggravado.
Informado depois el-rei do que passava, e sabendo
que tractava de se ir para Castella, o
mandou chamar e apaziguou o caso.»
«Em todo este tempo que el-rei esteve embarcado,
o estiveram os fidalgos principaes, porque
tinham por má fidalguia estar el-rei embarcado,
e elles em suas casas; ainda que de noite iam a
furto dormir a ellas, e de dia estavam em suas
[115]
embarcações. Á segunda feira, vespera
de S. João,
mandou el-rei lançar bando que toda a pessoa,
que estivesse apontada nos roes, estivesse embarcada
dia de S. João pela manhan, sob pena
de serem presos á mercê de S. A.: e ao dia de
S. João pela manhan mandou el-rei levar ancora
defronte da igreja de Santos, onde costumava a
mandal-a botar todas as noites, e d'ahi se botou
defronte de toda a armada de largo, e mandou
disparar uma peça, que é signal de recolher, e
se despediu de todo; e deixando os que ficavam
muito saudosos se foi caminho de Oeiras, tres
leguas de Lisboa, onde fez embarcar os seiscentos
romanos, e mandou que o mesmo fizessem
os tudescos. Ahi esteve até o outro dia ao
jantar, e toda a manhan andou o patrão-mór
em um bergantim da ribeira de Lisboa, a bordo
de todos os navios, dizendo da parte d'el-rei que
se partissem logo, que esperava por elles em
Oeiras.»
«N'este mesmo dia á tarde, elle com a frota
que estava juncta em Oeiras, se partiu com um
tempo bem assombrado como el-rei desejava
para sua jornada; e comquanto todos determinaram
de se aviar depressa, ainda ficaram na
ribeira de Lisboa cento e sessenta vélas, entre
[116]
caravellas de fidalgos e outros navios d'alto-bordo
que muitos fidalgos tinham fretados. Todos
estes navios que ficaram se negociaram com a
mór brevidade que pôde ser para se irem apoz
el-rei; e para isto mandou que ficasse em Cascaes
o galeão S. Martinho, um navio formosissimo
e mui forte, o qual ficou para dar guarda
e seguro ás vélas que ficaram em Lisboa, para
as acompanhar até Africa.»
«Foi cousa mui formosa de vêr a multidão
de
vélas que foram com el-rei; porque as vélas que
estavam no rio de Lisboa para ir com el-rei
eram novecentas e quarenta, entre as quaes
eram mais de quinhentas d'alto-bordo mui bem
artilhadas, e entre estas algumas guerreiras e
inexpugnaveis, como eram os galeões d'el-rei,
e as náus venezianas, e urcas, e outras muitas
portuguezas, todas com artilharia de bronze,
com muitas bombas de fogo, e outros artificios
e petrechos d'esta qualidade. Iam estas vélas
todas junctas e embandeiradas com seus estandartes
de seda nas gaveas, que chegavam com
as pontas á agua empavezadas, com varandas
pintadas e cortinas de seda, e as caravellas com
seus toldos e bandeiras de quadra; e vêr andar
el-rei por entre as náus mandando-lhes que se
[117]
aviassem depressa, e disparar toda a artilheria,
e cobrir-se tudo de fumo.»
«Quando el-rei partiu de Oeiras, que desamarrou
e levou ancora, desamarraram com elle
pouco menos de oitocentas vélas, com as vélas
todas mettidas, que faziam uma vista formosissima;
e quando chegar a Africa deve de ir com
mais de mil e quinhentas vélas, porque tem
mandado que se ajunctem no Algarve as da cidade
do Porto, de Vianna, d'Aveiro, Villa do
Conde, Buarcos, Setubal, em o qual estão esperando
mais de duzentas vélas, e outras muitas
que estão em Cezimbra, Sagres, Lagos, Tavira,
e em todos os portos do Algarve, onde se havia
de embarcar a gente do terço de Francisco de
Tavora.»
«A ordem do soldo é que dá el-rei a
cada soldado
quatro cruzados cada mez, e os mantimentos
hão-se de vender por elle, e para isto mandou
ir muitos taboleiros de todas as partes para venderem
no campo os mesmos mantimentos d'el-rei
pela taixa, e d'esta maneira não se póde
alevantar o preço d'elles.»
VIAGEM A PORTUGAL DOS
CAVALLEIROS
TRON E LIPPOMANI
1580
Quando offerecemos aos leitores varios extractos
da viagem do cardeal Alexandrino tendentes
a fazer conhecer, melhor do que se conhecem,
as nossas antigas cousas, promettemos ahi extrahir
algumas passagens de outro livro inedito,
que nos pareciam dar no alvo em que tinhamos
posto mira. Este livro é uma narração
da viagem
dos dois embaixadores mandados pela republica
de Veneza cumprimentar Philippe II pela conquista
de Portugal. A epocha da viagem é quasi
a mesma da que já extractámos; mas o auctor
anonymo d'esta toca outros pontos mui diversos
dos que em grande parte haviam dado materia
ás observações do antecedente
escriptor. No presente
[120]
manuscripto, a relação do caminho que os
embaixadores fizeram pelas provincias nada contém
que não se ache em obras portuguezas impressas.
Na descripção, porém, particular de
Lisboa apontam-se tantas particularidades sobre
os usos, habitos e grau de civilisação do paiz, e
tantas noticias economicas ignoradas, por certo,
dos leitores, que julgámos conveniente lançar
aqui a memoria d'essas cousas, que porventura
importam mais á historia do que commummente
se cuida.
Na descripção geral de Lisboa e particular das
egrejas, paços reaes, hospital, etc., nada ha notavel
n'esta viagem, senão os muitos erros ácerca
de quasi tudo o que é historico, em que o auctor
só parece ter consultado pessoas menos instruidas
em taes materias. N'essas descripções
o bom do venezeano, auctor do livro, segue o
estylo commum do seu tempo: as egrejas são
grandes, aceadas, ricas; os paços vastos, sumptuosos,
nobres; e com isto se contenta. Não
assim no que vamos extractar, começando pela
noticia da
fonte dos cavallos
d'arame, já tão celebre
no tempo de D. Fernando.
[121]
«Para o lado da porta que chamam da Cruz
ha outra fonte, ou antes lago, que denominam
dos cavallos; porque da boca d'alguns cavallos
de metal sáe tanta agua, que fórma uma corrente
a modo de ribeiro.»
«Posto que Lisboa seja tamanha e tão nobre
povoação, não tem palacio algum de
burguez ou
de fidalgo, que mereça consideração
quanto á
materia; e quanto á architectura apenas são
edificios
muito grandes. Ornam-os, porém, de tal
modo que na verdade ficam magnificos. Costumam
forrar os aposentos de rasos, de damascos,
e de finissimos razes no inverno, e no verão
de couros dourados mui ricos, que se fabricam
n'aquella cidade.»
«As ruas, bem que largas, são muito incommodas,
por subidas e descidas continuas a que
obriga a desegualdade do terreno..... Por isso
usam os moradores andar a cavallo, do que procede
verem-se n'aquella cidade bellissimos ginetes,
que os portuguezes compram por todo o
[122]
dinheiro, attendendo á grande
estimação em que
os têem. Não usam de coches, e quatro ou seis
que ahi havia eram de castelhanos que seguiam
a côrte. Quanto as ruas, em geral, são
más e
incommodas para andar assim a pé como em
coche, tanto é fácil, deleitosa, e bella a
Rua-nova
pelo seu comprimento e largueza, mas sobre
tudo por ser ornada de uma infinidade de lojas
cheias de diversas mercadorias para o uso de
nobre e real povoação.―Entre ellas ha quatro
ou seis que vendem objectos trazidos da India,
como porcellanas finissimas de varios feitios, conchas,
côcos lavrados de diversos modos, caixinhas
guarnecidas de madreperola, e outras obras
similhantes, que d'antes se compravam por moderado
preço, mas que ultimamente eram carissimas
por tres respeitos: o da peste que havia
assolado a cidade; o do sacco dado pelos castelhanos
quando entraram em Lisboa, bem que
el-rei houvesse ordenado ao duque d'Alva tal
não consentisse aos soldados; e ultimamente pela
razão de não terem vindo armadas da India durante
dois annos. Na mesma Rua-nova ha muitas
lojas de livros, com infinito numero d'elles em
portuguez, castelhano, latim, e italiano. Todos
são mui caros; e por isso os estudantes, por serem
[123]
pobres, costumam mais
alugal-os
(como ahi
dizem) a tanto por dia, do que compral-os. Não
deve esquecer aqui que na praça chamada do
Pelourinho-velho estão de continuo assentados
muitos homens com mesas ante si
[20],
os quaes se
podem chamar notarios ou copistas sem caracter
de officiaes publicos, e que n'este exercicio ganham
a sua subsistencia. Sabida que é a idéa
de qualquer freguez que se chega a elles, immediatamente
redigem o que se pretende, de
modo que ora compõem cartas d'amores, de que
se faz grande gasto, ora elogios, orações,
versos,
sermões, epicedios, requerimentos, ou outro
qualquer papel, em estylo chão ou pomposo.
Juncto da Rua-nova ha muitas outras ruas, cada
uma das quaes tem suas lojas de uma só especie
de mercadorias. Na dos ourives do ouro havia
muitas mal abastecidas de pedras preciosas, de
perolas, d'ambar, e d'almiscar, em consequencia
da tardança da frota. A prata de Lisboa é lavrada
com delicadeza e variedade, por ser costume,
[124]
assim entre nobres como entre plebeus, usarem
de pratos e bacias de prata. Ha egualmente ahi
lojas cheias de doces e fructas seccas, e cobertas,
primorosamente preparadas, de que se faz
grande trafico, mandando-as para diversas partes
do mundo. Vende-se tambem, em uma unica rua,
grande quantidade de télas de toda a sorte, portuguezas,
flamengas, e italianas: das primeiras
são na verdade bellas algumas que chamam
casiquino
(?), mui finas e alvas, e alguns lenços
á mourisca, que são baratos e lindos. N'outra
parte, em certa viella, trabalham delicadamente
ao torno, em que fazem guarda-soes de barba de
baleia, obra acabada, e côcos lavrados a modo
de taças, com embutidos de madeira do Brazil.
Vasos de estanho e mais objectos d'este metal se
fabricam abundantemente n'outra rua, e se carregam
para a India, onde dão grande lucro.»
«O commercio da praça de Lisboa é muito
consideravel pela correspondencia que tem ordinariamente
com todas as outras da Europa e
do Novo-Mundo, de modo que as permutações
são importantissimas, e os negociantes possuem
grossos cabedaes; porque só nas especiarias e
drogas, que vêm a Lisboa, depois que expirou,
pelos annos de 1504, o commercio da Syria e
[125]
d'Alexandria, ganham rios de dinheiro, que perdem
os nossos venezianos, pois eram elles quem,
fazendo trazer estas preciosas mercadorias pelo
Mar-rôxo a Beyruth e a Alexandria, d'alli as
transportavam a Veneza nas galés d'alto bordo.
Bem como costumam partir de Sevilha todos os
annos armadas para irem ás indias occidentaes
pertencentes á corôa de Castella, assim costumava
el-rei D. Sebastião mandar ordinariamente
uma frota de Lisboa ás Indias orientaes. No anno
em que este rei morreu, partiu no mez de março
para Malaca, segundo me contaram, uma nau de
mil e quatrocentas toneladas, e um mez depois
mais cinco do mesmo porte para Gôa. Era este o
numero de vasos que ia annualmente, e aquella
a monção da partida. Essas naus levavam carga
d'el-rei e dos particulares. Por conta d'estes ia
vinho, azeite, pannos finos de varias côres, d'Inglaterra,
Flandres, e Castella, barretes finos e
ordinarios de Toledo, escarlatas de Veneza e de
Valencia, rasos de Florença, sarjas de lan de
Flandres, marlotas de Constantinopla, acolchoados
e calças de seda de Napoles, velludos de
Genova, damascos de Lucca, taffetás e calças de
seda de Toledo, sarjas de seda e luvas de Valencia.
Por conta d'el-rei carregavam-se coráes
[126]
em bruto e lapidados, azougue, cinabrio, arame,
espelhos e diversos vidros de Veneza, mercadorias
que ninguem podia enviar sem expressa
licença d'elle. O que, porém, principalmente se
exportava era uma grandissima porção de prata
em reales castelhanos, negocio em que se ganhavam
trinta por cento; e affirmaram-me que
os contractadores das especiarias e varios outros
negociantes mandaram nas cinco ultimas náus
para Gôa um milhão e trezentos mil ducados.
Este tracto havia crescido a tal ponto que era de
maior lucro a ida que a volta......»
«A carga para Lisboa consistia principalmente
em pimenta a granel, que devia subir, por contracto,
pelo menos a trinta mil quintaes, e que
se dividia, metade para el-rei, que não entrava
n'este negocio com somma alguma, e a outra
metade para os contractadores que tinham o exclusivo
da pimenta: o quinhão d'el-rei compravam-no
ordinariamente os mesmos contractadores
a trinta e dois ducados o quintal. Aos particulares
era licito mercadejar em qualquer outra especiaria,
pagando os direitos........»
«Do reino de Soffala vinham todos os annos a
Lisboa cento e setenta barras d'ouro, e uma
barra vale para cima de trezentos ducados: tambem
[127]
de Soffala e de toda a Guiné vinha grande
quantidade de marfim...... Traziam-se egualmente
a Lisboa sedas da China, pannos finissimos
e ordinarios de algodão do Brazil, bellos tapetes
da Persia, ébano, aguila, páu brazil, dixes e
louça transparente de porcellana, borax, camphora,
laca, aloes-hepatico, tamarindos, cêra,
almiscar, ambar, algalia, beijoím, perolas, rubins,
diamantes, e mais pedras preciosas em
abundancia, e outras varias mercadorias que iam
do Egypto para Alexandria, as quaes, todavia,
não eram a millesima parte das que vinham a
Lisboa nas sobredictas frotas.........»
«Os homens da cidade de Lisboa e de todo o
Portugal são de mediana estatura, mais baixos
que altos, magros, de côr ferrenha, cabellos e
barba pretos, olhos negrissimos, e mui similhantes
no exterior aos gregos. O seu trajo, antes da
morte do cardeal rei, era mui mesquinho, em
consequencia da pragmatica, que não consentia
usassem vestidos de seda; pelo que trajavam
um saio de baêta preta, calções de
panno escocez,
borzeguins de marroquim, chapeu de feltro
e capa comprida da mesma baêta. Com a chegada
d'el-rei catholico alteraram o seu antigo
trajo, porque, posto que conservaram a capa de
[128]
baêta, começaram a usar do gibão de
raso, bragas
e calções de velludo, e meias de seda, cousa
que nunca tinham calçado, bem como escarpins,
dos quaes não era possivel achar um só par
antes da entrada d'el-rei, porque todos, sem
excepção,
calçavam borzeguins. São os portuguezes
mais ambiciosos de louvores que outra qualquer
nação do mundo, affirmando que as suas
façanhas
são milagrosas. Celebram Lisboa com tal
copia de palavras, que a fazem egual ás principaes
cidades do mundo, e por isso costumam
dizer:―«Quem não vê Lisboa,
não vê cousa
boa―». A gente miuda gosta que lhe dêem o
tractamento de
senhor, manha esta
commum a
toda a Hespanha. Vivem parcamente, porque
a plebe pela maior parte é pobre, e os cavalleiros
que se teem em conta de ricos fundam a
opinião da sua riqueza em possuirem uma ou
duas aldêas, com trinta ou quarenta visinhos
cada uma, no meio de campinas estereis com
vinte ou trinta folhas cultivadas, e tudo o mais
inculto, aspero, e coberto de pedras, com alguns
cazebres mesquinhos e mal concertados, como eu
o experimentei durante muitas semanas d'aquella
viagem.»
«Poucas pessoas se dão ahi ás letras;
mas
[129]
applicam-se muitos ao commercio, genero de
vida aborrecida dos nobres, que não podem ouvir
falar em tal, tendo por gente villissima os mercadores.
Exercitam-se apparentemente nas armas,
e algum tanto em cavalgar, contentando-se
com ter leves principios d'estas duas profissões,
sem quererem supportar mui diuturno ensino.»
«As mulheres portuguezas são singulares na
formosura e proporcionadas no corpo: a côr natural
dos seus cabellos é a preta; mas algumas
tingem-nos de côr loura: o seu gesto é delicado,
os lineamentos graciosos, os olhos negros e scintillantes,
o que lhes accrescenta a belleza; e podemos
affirmar com verdade que em toda a viagem
da peninsula as mulheres que nos pareceram
mais formosas foram as de Lisboa; posto
que as castelhanas e outras hespanholas arrebiquem
o rosto de branco e encarnado, para tornarem
a pelle, que é algum tanto, ou antes
muito trigueira, mais alva e rosada, persuadidas
de que todas as trigueiras são feias. O trajo feminino
em Lisboa é o commum de toda a Hespanha;
isto é, o manto grande de lan ou de seda,
segundo a qualidade da pessoa. Com elle cobrem
o rosto e o corpo inteiro, e vão aonde querem,
tão disfarçadas que nem os proprios maridos as
[130]
conhecem: vantagem esta que lhes dá maior
liberdade do que convem a mulheres bem nascidas
e bem morigeradas. As damas nobres costumam
ser acompanhadas, pela cidade, de creados
bem vestidos, que lhes precedem com passos
lentos e socegados, e de donas que as seguem
com grandissima gravidade, não tendo por signal
de boa reputação o serem acompanhadas de
donzellas.»
«O povo miudo vive pobremente, sendo a sua
comida diaria sardinhas cosidas, salpicadas
[21],
que
se vendem com grande abundancia por toda a
cidade. Raras vezes compram carnes, porque o
alimento mais barato é esta casta de peixe, que
se pesca em notavel cópia fóra da barra, como
se pesca muito outro de todas as qualidades e
muito grande; mas em geral menos gostoso do
que o das aguas de Veneza, e tão caro, que faz
espanto aos extrangeiros e custa muito aos naturaes,
que passam mal pelo preço excessivo
de tudo o que serve para o sustento. Comem os
pobres uma especie de pão nada bom, que todavia
é barato, feito de trigo do paiz, todo cheio
de terra, porque não costumam joeiral-o, mas
[131]
mandal-o moer nos seus moínhos de vento, tão
sujo como o levantam da eira. O pão bom e alvo
faz-se de trigo de fóra, que trazem de França,
Flandres e Allemanha os navios d'estas nações
quando vêm a Lisboa buscar sal e especiarias.
Este, na verdade, tambem não é joeirado; mas
as mulheres pobres o escolhem grão a grão,
assentadas á porta da rua, com paciencia fleugmatica
mais propria d'allemans que de portuguezas.
Estas mulheres têem licença para fabricar
o pão e vendel-o pela cidade onde e como
lhes apraz, o que sempre é por alto preço.
O trigo vale a duzentos e oitenta réis o alqueire.
Nutre-se tambem a gente pobre de fructa, que
abunda muito e é baratissima.»
«O vinho commum é pouco bom, por não
dizer
mau; porque não sabem, ou não querem ter o
incommodo de o fazer bom. Vale geralmente
a vinte e quatro réis a canada. Os vinhos finos
são excessivamente caros: os senhores embaixadores
tiveram de pagar o branco para o consumo
ordinario da sua mesa a sessenta escudos
a pipa..............»
«Quanto ás vitualhas não é
em Lisboa que se
hão de buscar cousas muito exquisitas. Até a
vitella é rara; porque não costumam matar estes
[132]
animaes, guardando-os para crescerem e servirem
nos trabalhos do campo ou de abastecimento
da cidade, sendo, além d'isso, ahi a comida ordinaria
o capado, que é excellente.»
«No tempo de el-rei D. Sebastião as rendas
reaes consistiam nos direitos das alfandegas de
Lisboa e de todo o reino, assim sêccas como molhadas.
D'umas cousas pagava-se o quinto, d'outras
a decima; e do peixe, em muitas partes,
mais de metade. Havia tambem rendas em cereaes,
vinho, e outros generos; as rendas dos
mestrados a que pertenciam as ilhas de S. Thomé,
Terceiras, Cabo-Verde, Madeira, e Principe; as
da Mina que pertenciam á Ordem de Christo.
As especiarias e outras fazendas que vinham
annualmente da India e do Brasil produziam
tambem um avultado rendimento. Apesar, porém,
d'este ser tamanho, nada vinha a entrar
no thesouro; porque tudo se dispendia em armadas
e mais cousas necessarias para a conservação
d'aquelles estados, e afóra isso se distribuia
em salarios d'officiaes e ministros da justiça
no continente; em mercês vitalicias, que chamam
tenças, aos benemeritos da corôa, aos fidalgos,
e mais pessoas, que serviam assim no reino
[133]
como na Africa e India; em juros perpetuos, que
os reis vendiam, estabelecidos nos direitos reaes;
em despezas com a gente e petrechos necessarios
para a defensão das praças d'Africa; em
cinco galés constantemente armadas, e no armar
dos navios redondos, que todos os annos sahiam
junctos, assim para comboiar as frotas que iam
e vinham dos portos com que Portugal commerciava,
como para mandar ao Brasil, a Guiné, á
Mina, a S. Thomé; e finalmente em moradias,
gastos da côrte e casa real, paga de creados,
esmolas, presentes, embaixadas, dotes ás filhas
dos creados, e conservação das fortalezas de
Lisboa
e do reino.»
As noticias do viajante relativamente a Portugal
versam desde este ponto sobre a organisação
judicial e administrativa, ácerca da qual nada
se accrescenta que não se ache na nossa antiga
legislação. Conclue o narrador com uma historia
succinta do reinado de D. Sebastião e das causas
do desastre de Alcacer-quibir, da acclamacão de
Philippe II em Thomar, etc.―Abstemo'-nos de
extractar essa parte relativa á historia politica,
não porque seja pouco interessante e curiosa;
mas porque é demasiado extensa.
POUCA LUZ EM MUITAS
TREVAS
1844
POUCA LUZ EM MUITAS TREVAS
1579―1580
Se ha alguma epocha da nossa historia que
nos offereça uma alta lição; se ha
algum successo
que nos possa fazer energicamente sentir quaes
sejam as consequencias fataes da perversão moral
de qualquer paiz, e como aos povos corrompidos
não tarda o dia da servidão, ou de serem
riscados da lista das nações, os fins do seculo
XVI
e a conquista feita por Philippe II são essa epocha
e esse facto. As virtudes politicas de nossos
maiores, o seu amor de independencia, grosseiro,
feroz até, se quizerem, tinham esmorecido
gradualmente com as pompas dos reinados de
D. Manuel e de D. João III; com o vão luxo, e
com as desgraçadas riquezas adquiridas na Asia,
quasi sempre por preço de immoralidades e crimes.
[138]
As resistencias e luctas da edade-media,
que alimentaram o sentimento da propria dignidade,
não só nas classes sociaes, mas tambem
nos individuos, haviam cedido o passo a um
servir mais ou menos abjecto para obter como
mercê ou privilegio o gôzo de vantagens e direitos,
que a fraqueza dos municipios e a decadencia
da nobreza tinham deixado perder. O homem
do concelho, o burguez, em logar de se
unir aos seus eguaes para repellir nos parlamentos
os vexames dos poderosos, achava mais facil
para a timidez, que substituira na sua alma a
antiga ousadia, receber como recompensa de serviços
humildes ou como esmola de charidade
uma parte dos tributos oppressivos e rigorosamente
illegaes que se lhe extorquiam, e as classes
elevadas entendiam que era menos arriscado,
e sem comparação mais commodo, obterem de
joelhos e por carta de graça ante os chancelleres,
privados, e desembargadores, alguns fragmentos
das suas legitimas ou illegitimas prerogativas,
do que imitarem o duque de Bragança
pondo a cabeça n'um cadafalso por amor d'ellas.
Como a moeda antiga, cujos cunhos o roçar de
muitos annos apagára, o caracter portuguez estava
poído e quasi de todo gasto quando chegou,
[139]
pela desgraça d'Alcacer-quibir, o curto reinado
do velho cardeal D. Henrique.
Á morte d'este principe, a cuja completa
degeneração
moral só póde servir de desculpa o
ter sido apenas um agonisante coroado, seguiu-se
a conquista castelhana e o dominio dos tres Philippes
durante sessenta annos. Por todo esse largo
periodo, quasi não passou um dia sem affrontas
ou oppressões para o povo subjugado. Portugal,
amarrado ao poste da tyrannia extrangeira, assistiu
como se fosse uma cousa morta e inerte
á desmembração do proprio corpo. Os
ministros
de Castella, que pouco melhor tractavam o seu
paiz natal, a cada porção das nossas colonias de
que hollandezes, inglezes, ou francezes nos expulsavam,
a cada nau ou comboi que nos saqueavam
ou mettiam a pique, accrescentavam um
novo tributo, um novo vexame, uma nova quebra
de nossos direitos; e foi só nessa especie de
estufa ardente que pôde semear-se, nascer, e
vecejar a planta de odio vivaz, que nos restituiu
ao menos um symulachro da extincta energia, e
nos temperou de novo para reconquistarmos
n'uma lucta de quasi meio seculo a antiga independencia
como nação, senão a antiga vida
politica e os antigos fóros de liberdade.
[140]
A tradição conservou na memoria do povo a
lembrança dos largos e variados males que nos
trouxe o senhorio extranho: contra elle nos tem
guardado e guarda ainda, pelo temor, essa
recordação;
mas as causas que os geraram, essas,
como mais remotas e mais difficultosas de avaliar,
é que pouco a pouco nos vão esquecendo,
e este esquecimento é ajudado pelos escriptores
menos reflexivos, a quem deslumbram as tristes
glorias dos descobrimentos e conquistas, e os
elogios que por ellas nos dão com admiravel
magnanimidade aquelles para cujo proveito tantas
gentilezas d'armas, tanta ousadia, e tantos crimes
practicámos, e que esperaram tranquillamente
nos suicidassemos moralmente para recolherem
a herança que lhes ajunctaramos. As paginas
laudatorias que ainda hoje ahi se lêem ácerca
das eras manuelina e joannina, e que nos fazem
lembrar dos
panegyrici veteres, em
que os rhetoricos
romanos ridiculamente antepunham a fastosa
decadencia do imperio aos tempos asperos,
mas viris e robustos, do crescimento da republica,
são a maneira mais segura de inutilisar as
proveitosas admoestações da historia, cujo estudo
encerra, por via de regra, a explicação do
presente e a prophecia do futuro. Diz-se, na verdade,
[141]
que um grande numero de fidalgos e pessoas
principaes se venderam a Philippe II no reinado
do cardeal D. Henrique: cita-se o nome
de D. João Mascarenhas, o heroe de Diu, com
uma certa indignação pelo contraste da sua vida
passada; o de D. Christovão de Moura, como o
de um franco renegado da patria; o do bispo Pinheiro
como o de um insigne hypocrita; emfim,
os nomes de muitos outros, e especialmente os
dos quarenta mercadores politicos que receberam
dos castelhanos os celebres
cartazes ou cedulas
para as recompensas futuras. Mas a que
nos conduz isto? A imaginarmos que os corrompidos
eram alguns homens, ou quando muito
alguma classe. Todavia a verdade é que estendemos
covardemente o collo ao jugo extranho,
porque a nação estava degenerada. Onde quer
que Philippe II encontrava uma resistencia, acudia
ahi com ouro ou com promessas, e quasi que
tinha a certeza de superar a difficuldade: a questão
estava, não na compra e venda, mas só no
quanto do preço. A tenacidade e o amor da independencia
nacional dos Phebos-Moniz foram
excepções monstruosas. O proprio D. Antonio,
que era chamado pelas circumstancias a representar
o papel de D. João I, e que, bem como
[142]
elle, tinha por si o amor popular, foi um miseravel,
que só se collocou á frente das resistencias,
as quaes dirigiu sem ordem, sem juizo, e
sem energia, porque não lhe chegaram os castelhanos
ao preço por que lhes queria vender
alma e corpo. Dizem que Philippe II se queixava
de ter feito uma cara mercancia em comprar
Portugal: esta irrisão insolente da tyrannia, cuspida
com legitima causa nas faces de uma nação,
foi á sua parte um castigo mais severo da immoralidade
publica do que todas as oppressões
de sessenta annos de jugo extrangeiro.
Quando se compara a epocha de 1580 com a
de 1385 é que se conhece quão largos passos
tinha dado Portugal no caminho da corrupção
durante o
brilhante e
glorioso seculo dos descobrimentos
e conquistas: é n'essa comparação
que está a prova de que o antigo caracter portuguez
se pervertêra completamente não só nas
classes privilegiadas, mas no proprio povo; n'esses
que nos apraz considerar unicamente como
victimas das traições da nobreza. O povo
não
resistiu á invasão extrangeira, porque lhe
faltava
esforço, crença e patriotismo: isso tudo jazia no
sepulchro da edade-media. As situações eram
rigorosamente analogas.―O poder de Castella
[143]
no tempo de Philippe II tem servido de desculpa
á geração apoucada que estendeu os
pulsos ás
algemas. Mas para saber se ella podia ou não
resistir era necessario tental-o. Não o fez, salvo
se se quizer chamar resistencia aos tumultos de
um vulgacho desordenado, em duas ou tres
povoações
do reino e na capital. Tem-se exaggerado
o poder de Philippe II, e imagina-se que
entre as forças das monarchias castelhana e portugueza,
na epocha do filho de Carlos V, havia
uma superioridade a favor d'aquella muito maior
que no tempo do rival do mestre d'Aviz, de
D. João I de Castella; mas qual é o
facto?―É
que Philippe II mandou o duque d'Alva com vinte
mil homens tomar conta de Portugal, o que esse
general fez quasi sem combate; e que D. João I
veiu pessoalmente á frente de trinta e cinco mil
homens enterral-os em Aljubarrota.―Portugal
teria acaso menos recursos materiaes ou menos
população em 1580 que em 1385?―Duas mil
lanças, as melhores de França, ajudavam D.
João
de Castella contra nós. Quem ajudava Philippe II?
Haviamos perdido em Africa dez ou doze mil soldados
com D. Sebastião. É verdade. E quaes
não
tinham sido as nossas perdas durante as longas
e desastradas guerras de D. Fernando, em que
[144]
Lisboa chegou a ser cercada, e destruida na sua
melhor parte? A aristocracia seguia o bando do
rei extrangeiro em 1580. Em 1385 a quem se
inclinava decididamente a principal fidalguia?
Tambem ao rei extrangeiro. E todavia a nação
venceu então, e foi vencida depois sem peleja.
Os successos do fim do seculo XVI não se explicam
por accidentes e circumstancias, que estão
longe de terem o valor que lhes têm dado:
explicam-se por um facto gravissimo da ordem
moral―a morte da nacionalidade.
A epocha em que se preparou o dominio castelhano
é, na tão mal estudada historia portugueza,
uma das mais imperfeitamente conhecidas. E
todavia ella offerece uma altissima lição aos
povos.
Se a narração dos successos acontecidos nos
tempos em que tinhamos virtudes, e a energia
e amor de patria que nos distinguiram antes do
reinado de D. João II, nos póde excitar uma
honrada
emulação, o espectaculo dos ultimos paroxismos
da nossa lastimosa decadencia, ainda,
porventura, considerada nas suas causas, nos
será mais proveitoso pelo nojo e horror que deve
causar nos animos essa especie de prostituição
politica a que nos chegou a soltura de costumes,
e de que foram manancial perenne os habitos
[145]
de desenfreio, cubiça, e egoismo, que em cada
monção carreavamos do oriente para a Europa. A
historia da segunda metade do seculo XVI póde
fazer ante as gerações presentes o papel do ilota
embriagado, que os lacedemonios expunham aos
olhos dos mancebos nas horas da refeição, para
pelo tedio e despreso os premunirem contra o
vicio da embriaguez.
Mas o fazer dignamente o quadro das traições
covardes, das corrupções hediondas, das torpes
cubiças, da indifferença e imbecilidade popular
d'aquelles tempos não é facil tarefa. Tudo isso
se ha de ainda ir em grande parte arrancar das
trevas de archivos particulares e nacionaes, de
documentos e memorias que nunca viram a luz
do dia. A historia, como hoje existe, está bem
longe de nos fazer sondar o abysmo de tanta
perdição, e achar as causas verdadeiras de
tão
extraordinarios effeitos. É depois d'essas laboriosas
indagações e da publicação
d'ellas, que o
historiador poderá pintar com exacção
o estado
deploravel da sociedade portugueza na epocha
em que alcançou, emfim, subjugal-a a sua antiga
rival.
Uma serie de documentos temos diante de nós
não só conducentes para esse fim, mas bastantes
[146]
em si para moverem a curiosidade. Daremos a
substancia d'elles, acompanhando-os de notas necessarias
para intelligencia dos menos versados
nos successos politicos d'aquelles tempos, e no
conhecimento das personagens que figuraram no
drama, mais repugnante ainda que lastimoso,
da venda de Portugal a Castella. Os documentos
a que alludimos pertencem a uma collecção da
bibliotheca real.
Durante o curto reinado do cardeal D. Henrique
(1578-1580) os animos estiveram sempre
occupados com a questão de saber quem seria o
seu successor. Aquelles que pareciam ter maior
numero de probabilidades eram o prior do Crato,
D. Antonio, filho bastardo do infante D. Luiz e
sobrinho do cardeal; o duque de Bragança, por
sua mulher D. Catharina, neta d'el-rei D. Manuel;
e Philippe II, neto tambem de D. Manuel por sua
mãe. D. Antonio, chegado do captiveiro de Berberia
pouco depois da acclamacão de D. Henrique,
era o mais popular dos pretensores, e o
que parecia estar mais resolvido a obter a coroa
a todo o custo. O duque de Bragança procedia
frouxamente no negocio, posto que as suas riquezas,
a sua influencia, e o esplendor com que
vivia, o tornassem a primeira pessoa do paiz
[147]
depois do monarcha. Philippe II, fazendo menos
ruido que D. Antonio, porém mostrando mais
decisão e firmeza que o duque, trabalhava principalmente
nas trevas para reinar sobre toda a
Peninsula.
D. Christovão de Moura, portuguez, e o duque
d'Ossuna eram os agentes de Castella em Lisboa.
Moura recorreu a um vasto systema de corrupção,
aproveitando a influencia que lhe davam as suas
relações de parentesco e amizade com a fidalguia,
e as promessas e ouro de Philippe II, que
não se mostrava escaço. O proprio cardeal-rei,
desaffecto á casa de Bragança, e muito mais a
D. Antonio, favorecia a ambição do castelhano.
A camara de Lisboa, depois de mostrar o desejo
insensato de que o velho monarcha se casasse
para obter successão, passou a requerer que nomeasse
elle um successor. Reuniram-se côrtes,
e de quinze pessoas propostas por estas escolheu
el-rei cinco governadores para regerem o paiz
depois de sua morte, e de vinte-quatro jurisconsultos
onze para julgarem a causa da successão,
ficando occultos os nomes dos escolhidos.
Jurou-se acceitar o que estes julgassem por legitimo
rei depois da morte do cardeal. Dos tres
pretensores, deram juramento o duque de Bragança
[148]
e D. Antonio, posto que este depois protestasse,
declarando que só o fizera por medo
d'el-rei seu tio, de cuja côrte já andava
desterrado.
Os embaixadores de Philippe II recusaram
jurar em nome de seu amo, dizendo que a legitimidade
d'elle não podia ser contestada, e que
por isso não acceitariam juizes. Já
então os homens
mais influentes que rodeavam o cardeal,
vendidos aos castelhanos, o tinham feito inclinar
a Philippe. Por isso, em quanto perseguia o prior
do Crato, tentava por escripto persuadir D. Catharina
de Bragança que cedesse de todo o direito
á corôa, contentando-se com ficar o duque
senhor do Brazil, onde poderia tomar o titulo de
rei, e em Portugal com a administração perpetua
do mestrado de Christo. A duqueza, porém, na
sua resposta regeitou estas offertas por si e por
seu marido. A carta original da duqueza ainda
existia no tempo do conde da Ericeira, D. Luiz
de Menezes, segundo elle affirma.
Conhecidos pelo povo os designios do cardeal
rei, começaram a apparecer symptomas de serias
perturbações. As côrtes em que se
haviam nomeado
governadores e juizes tinham acabado.
Nos fins do mesmo anno de 1579, em que foram
celebradas, convocaram-se outras novas para o
[149]
anno seguinte, com o fim de acalmar os animos
inquietos. N'estas côrtes, reunidas em Almeirim
(onde el-rei se achava por causa da peste) no
janeiro de 1580, apresentou o celebre Phebo-Moniz,
procurador por Lisboa, um protesto sobre
o direito que tinha o povo de eleger rei por
morte de D. Henrique; protesto que no meio das
tramas a favor de Castella não teve effeito algum.
O cardeal já moribundo veiu a fallecer no
fim do mesmo mez. Os cinco governadores nomeados
antecedentemente, e que eram o arcebispo
de Lisboa, D. Jorge d'Almeida; o vedor
da fazenda, D. João Mascarenhas; o camareiro-mór,
Francisco de Sá; D. João Tello de Menezes;
e Diogo Lopes de Sousa, governador da casa do
civel, tomaram então conta do governo, proseguindo
as côrtes. O povo insistia nas suas
pretensões, e dava já visiveis signaes de
revolta,
cujo foco era Santarem, e cuja alma parece ter
sido Phebo-Moniz, que ousou appellidar de traidores
e vendidos a Castella os tres governadores
que realmente o eram―Mascarenhas, Sá de Menezes,
e Lopes de Sousa, requerendo fossem
substituidos por outros. Temendo talvez que a
minoria d'aquelle symulachro de representação
nacional servisse de centro a uma energica resistencia
[150]
ás pretensões castelhanas, o governo
dissolveu a assembléa, e a acceitação
de Philippe
II para rei de Portugal foi definitivamente
resolvida.
D. Antonio, cujo nascimento de bastardia, cujo
caracter audaz, e uma grande popularidade recordavam
n'elle o mestre d'Aviz, depois de ter
covardemente negociado com o manhoso filho
de Carlos V, e de não lhe haverem sido acceitas
as propostas pelo alto preço em que avaliava a
sua traição á patria,
lançou-se nos braços da gentalha,
persuadido de que com ella poderia disputar
a corôa ao seu poderoso rival. A casa de Bragança,
essa contentava-se com fazer allegações de
direito; porque o genio brando e timido do duque
não o habilitava para proceder do modo que requeria
a gravidade das circumstancias politicas.
Finalmente a revolta dirigida por D. Antonio,
que se fez acclamar rei de Portugal, rebentou
em Santarem, e estendeu-se a Lisboa, e a Setubal,
donde os tres governadores affeiçoados ao
dominio extrangeiro, e que ahi se tinham acolhido
como a logar seguro, fugiram para Ayamonte
e declararam francamente, por uma sentença
a favor do rei castelhano, que de feito
renegavam a independencia do seu paiz.
[151]
Entretanto o famoso duque d'Alva, talvez o
primeiro capitão do seu tempo, entrava com um
poderoso exercito pelo Alemtejo e subjugava sucessivamente
todas as povoações importantes.
Chegado a Setubal e rendida esta villa, embarcou
o exercito hespanhol na armada de D. Alvaro
Bazan, e desembarcando em Cascaes accommeteu
Lisboa, que debalde D. Antonio tentou defender.
Assenhoreados os castelhanos da capital,
o reino seguiu brevemente o destino d'ella, e
D. Antonio, foragido por muito tempo, teve de
ir por fim buscar um asylo em França, onde machinou
todas as suas vans tentativas para recuperar
um sceptro que não soubera conservar.
Tal é em resumo a fórma por que Portugal
cahiu debaixo do jugo castelhano. Os documentos
de que vamos dar noticia illustram uma parte
das tramas que Philippe II empregou para obter
o seu tão facil triumpho, o qual deveu mais a
esses enredos e á corrupção do paiz
conquistado,
que á pericia dos seus generaes e ao valor dos
seus soldados, que debalde luctavam por subjugar
os Paizes-baixos, onde na verdade o povo
queria e sabia ser livre.
Uma collecção de papeis varios, em grande
[152]
parte originaes, relativos ao periodo do dominio
castelhano, existe entre os manuscriptos da bibliotheca
real. Puzeram-lhe por titulo:
Governo
d'Hespanha. No primeiro volume se acham os
documentos de que vamos dar noticia, e que
são os mais importantes, talvez, de toda a
colecção,
não só por desconhecidos e originaes,
mas por dizerem respeito a uma epocha da nossa
historia, cujos acontecimentos, sendo de altissima
importancia, são, como dissemos já, dos
mais imperfeitamente estudados, ao menos nas
causas que os produziram.
O volume começa por algumas cartas originaes
da rainha D. Catharina, e dos infantes D. Luiz,
D. Izabel (rainha d'Hespanha), D. Duarte, cardeal
D. Henrique, D. Fernando, e emfim D. João III.
Segue-se o auto de posse do mestrado da Ordem
de Christo, tomada em nome d'el-rei D. Sebastião
por ordem da rainha D. Catharina, e depois
uma carta que parece de Antonio Perez, o famoso
secretario de Philippe II, dirigida a este
principe em 1562, ácerca de negocios com Portugal,
que do contexto não consta quaes sejam,
senão no artigo que versa sobre questões
d'etiqueta
na recepção de um embaixador portuguez.
Esta carta, cotada á margem pela letra de Philippe
[153]
II, não offerece nada notavel. Acha-se apoz
isto uma copia de nomeação dos governadores
que D. Sebastião deixou no reino partindo para
Africa, e immediatamente um relatorio em castelhano
da acclamação do cardeal rei depois da
morte de D. Sebastião. Seguem-se a estes papeis
os documentos de que vamos tractar.
É o primeiro o celebre maço que, em virtude
da resolução das côrtes de 1579, se
mandou
guardar em um cofre de tres chaves, e em que
se continha a patente ou nomeação dos onze
juizes que deviam julgar a causa da successão,
e o regimento que lhes cumpria guardar. Juncto
a estes dois diplomas está a nomeação
dos cinco
governadores e o regimento de seu cargo. Todos
os quatro documentos são datados de 12 de junho
de 1579. Os dois regimentos conservam
ainda o sello grande d'el-rei em cera vermelha,
posto que já damnificado no dos juizes. Nas patentes
apenas restam vestigios d'elle
[22].
Precede
[154]
a tudo o invólucro em que estavam mettidos os
dois diplomas relativos aos juizes: tem por fóra
a declaração dos papeis que continha, datada
de 13 de junho e assignada de chancella por
el-rei. Conserva ainda tres sellos ou antes sinetes
em lacre vermelho com que o maço estava fechado
[23].
A circumstancia mais notavel que se encontra
n'estes documentos é conhecer-se nas cartas
de nomeação ou patentes que ambas ellas
foram escriptas antes de se haver resolvido quaes
seriam tanto os governadores como os juizes;
porque, posto que os nomes estejam lançados
pela mesma letra, vê-se, todavia, claramente que
foram ahi introduzidos depois, nos claros que
para isso se deixaram.
Apoz estes documentos estão dois quartos de
papel escriptos pela mão de Philippe II, um em
linhas atravessadas, outro ao alto; este bastante
lacerado, mas que todavia se póde ainda ler
apezar do pessimo caracter da letra, e mais que
tudo das frequentes abreviaturas, algumas das
quaes é mui difficultoso adivinhar. O primeiro é
[155]
a continuação do segundo, sendo talvez os dois
uma meia folha dobrada e inserida assim no
volume. É uma especie de breve
instrucção dada
a alguem sobre as suas pretensões em Portugal.
Não tem data; mas pelo contexto vê-se que
é
posterior á inviatura de Christovão de Moura e
do duque d'Ossuna. Está escripta em castelhano
[24].
Transcrevemol-a porque a julgamos assaz interessante:
«Pedi-lhe que
pois está
tão clara e chan minha
justiça que me mande logo jurar;
dizendo-lhe
isto com mui boas palavras, pela muita
confiança
que faço da sua pessoa.»
«Que se disser que não será preciso,
porque
elle pensa em casar e póde ter filhos, se lhe diga
que não embargando isso o faça condicionalmente,
por quanto convem que fique aplanado
e prevenido o negocio da successão.»
«Que se elle respondesse falando na
carta
que
enviou, e dizendo que quer esperar resposta,
[156]
n'esse caso que se veja logo o que convirá
responder-lhe.»
«Que, além d'isso, me parece convem enviar
despacho ao duque
[25]
para o caso que el-rei faltasse
em quanto andam estas perguntas e respostas,
e haver poderes meus a elle e a D. Christovão
para o que conviesse tractar, e para os
protestos que poderia convir fazerem-se.»
«Que, ainda que isto se póde examinar mais
devagar, bom será, pelo que póde succeder, se
lhes envie logo para isso ao menos a
auctorisação.
E se veja tambem
se se entrará
agora[26],
e
se se lhes dirá que façam os protestos no caso
que sejam necessarios.»
O ultimo paragrapho é escripto com taes breves
e, segundo parece, com tal rapidez, que
apenas se podem lêr com muita difficuldade e
incerteza estas palavras: «
Demàs
de los del consejo
désse parte (?) al doctor (?) Rodrigo Vaz y
Molina. Fray Diego, fray....... si viniere (?)
por la platica que traen de lo de allà; y, si
pareciere,
[157]
Guardiola, por si convenieren tres, pues
queda ya allà.»
Já Carlos V pensava, durante a menoridade de
D. Sebastião, em unir a coroa da Portugal á de
Castella, o que se patentêa no documento immediato.
É este uma carta sem assignatura, mas
datada de 29 de outubro de 1578 e dirigida a
Philippe II, a qual contem o seguinte:
«Senhor―O padre Ribadeneira
[27],
um dos homens
mais graves da Companhia de Jesus, me
disse que o imperador N. S. commetteu ao padre
Francisco de Borja
[28],
sendo commissario d'aquella
Ordem, que fosse a Portugal a titulo de visitar
a sua provincia, sendo a sua commissão principal
falar á rainha D. Catharina, e dizer-lhe da sua
parte o muito que sua majestade desejava que
n'aquelle reino se jurasse por principe herdeiro,
na falta de el-rei D. Sebastião, o principe D. Carlos
seu neto
[29].
Sua Alteza respondeu ao padre
Francisco de Borja que, ainda que isso
era mui
conforme á razão e á
justiça, não ousaria, comtudo,
[158]
propol-o,
porque a apedrejariam n'aquelle
reino. Pareceu-me cousa de importancia para o
estado em que as cousas de Portugal estão, e
por isso o quiz communicar a Vossa Majestade.»
Á margem da carta está escripta por Philippe II
esta nota:
«Não me lembro de tal,
ainda que
assim aconteceu
por certo. Como eu, Gurza ignora-o. Não
estava cá então. No caso de importar, Gurza
podel-o-ha
saber...... mas não creio que importe
nada para o caso d'agora. Seria porém bom
que...... se soubesse d'este Ribadeneira que
bons officios poderiam fazer os da Companhia
[30]
n'este negocio, a seu tempo; porque creio que
os membros d'ella em Portugal não os fazem
agora dos melhores, e assim será bem que
estejam
por minha parte, se a isso se podér dar
remedio.»
Segue-se um bilhete com a data de 6 de fevereiro
de 1579, tambem cotado por Philippe II,
acompanhando a remessa de um officio para ser
visto por elle. Tem pela sua letra no fim: «Estou-o
vendo; que parece aperta o negocio de
[159]
Portugal. Tende o correio prompto, que já o vou
despachar.»
O documento immediato é uma carta assignada
por D. João da Silva
[31],
datada de 3 de
novembro de 1579, de Madrid. Não contém cousa
importante; mas n'um post-scriptum pede se lhe
mande certa allegacão feita para provar que, se
o cardeal der sentença contra Philippe, será isso
aggravo sufficiente para mover as
armas. Diz
que é para
corroboral-a
com outras allegações.
Segue-se outra carta assignada só com as iniciaes
J. S. da mesma letra da antecedente. É
um dos documentos mais curiosos da collecção,
porque nos revela quaes eram os meneios secretos
do prior do Crato. É da mesma data da anterior
e dirigida a el-rei de Castella.
«Catholica Majestade―No particular de D. Antonio,
parece-me que Mattheus Vasquez, para
entreter aquelle homem, lhe poderia dizer que
esta sentença
[32].
altera todo o
estado do
negocio,
[160]
e que depois d'ella não se pode ter certeza que
seu amo esteja do
mesmo parecer; e
tambem
se duvída se elle ousará ter
communicação com
D. Antonio, sendo
creado d'el-rei,
como é, e do
seu conselho[33].
Que declare,
pois, o que pensa
fazer n'este caso. E se todavia quer proseguir na
sua commissão, que escreva a D. Antonio, dizendo-lhe
que V. M. sentiu os trabalhos em que
el-rei o metteu, e que deseja saber se está ainda
do
mesmo animo de que o seu agente
significou
que estava; porque,
ainda que a proposta
offereça
terriveis difficuldades, a boa vontade que
V. M. lhe tem aplanará as que se poderem aplanar,
para lhe fazer mercê e contental-o. Diga-lhe
tambem Mattheus Vasquez que não sabe o caminho
que tomará o senhor D. Antonio; pois o
estar no reino lhe será tão difficil e perigoso
para
a sua segurança; e sahindo não tem no mundo
aonde se acolher senão aqui, porque a outra
qualquer parte aonde vá lh'o tomariam a mal:
que, se viesse para V. M., não poderiam as suas
[161]
cousas deixar de se comporem com muita vantagem,
ficando V. M.
penhorado de elle se entregar
em suas mãos: que veja se lhe parece
escrever-lhe
n'este sentido, pois com brevidade se
poderá saber a sua resolução para se
proceder
no ponto principal com mais clareza, sabendo-se
de que animo está depois da sentença.»
«Tambem se lhe póde dizer que V. M. se admirou
da opinião que na sua carta mostra ter
concebido de que os ministros de V. M. em Portugal
e em Castella lhe têem feito máus officios
com V. M., e que não sabe o que o moveu a
acreditar similhante cousa, sendo exactamente
o contrario do que passa em realidade, porque
a todos parece mui bem que V. M. o
recolha
e lhe faça toda a mercê possivel; e que elle
agente deveria desenganal-o d'isso e trazel-o a
partidos convenientes, visto que assim lhe fará
maior serviço do que pensa, e V. M.
lh'o
agradecerá
e satisfará como merece. E se o
podér
trazer a que escreva e espere resposta,
ganhar-se-ha,
porventura, todo o tempo de que precisamos
para saber o que se fez em Roma e se vai
obrando em Portugal, para conforme a isso se
temperar a practica do concerto.»
«Se, como receio, não quizesse
dilação alguma,
[162]
mas ir logo tractar do negocio, poder-se-lhe-ha
responder: 1.º que Mattheus Vasquez se
espanta de que tomasse a seu cargo propôr cousas
tão contrarias a toda a boa razão; que em
D. Antonio não é admiração
que o appetite de
reinar, sentimento tão poderoso, o não deixe
vêr
as impossibilidades que propõe; porque, quanto
ao primeiro ponto, o
que cede a V. M. é
deixar-lhe
o chamar-se rei e prover quatro officios, que
depois de providos fiquem subordinados a elle;
quanto ao segundo não adverte que, se não
conviesse
ao bem commum (o que poderia ser por
mil modos) que elle governasse aquelles reinos,
com que consciencia lhe parece que poderia V. M.
encommendar-lh'o por tempo limitado,
quanto
mais por toda a sua vida, sobre tudo tendo elle
em Portugal tantas causas de odio e de affecto
pelas pretensões em que tem andado, de modo
que nada haveria em que procedesse com animo
desassombrado?―que considere quando se viu
no mundo que um rei demittisse a outrem o
provimento temporal e espiritual d'officios e
beneficios?―que
se lhe parece que em tudo se póde
convir
para assegurar a posse de um
reino, que
ainda quando isso dependesse da vontade de
D. Antonio, não depende realmente senão da
justiça
[163]
e das forças de V. M.; que se desengane
que para não fazer uma semjustiça a um
particular,
quanto mais a um reino inteiro, aventuraria
V. M. não só o direito que tem a Portugal,
mas até quantos reinos lhe restam; que, ainda
quando assim não fosse, V. M. de nenhum modo
podia resolver ponto algum que tocasse ao governo
do reino até á declaração
d'el-rei, quer
favoravel, quer contraria; que não se lhe diz
isto porque se desconfie de que não podessem
dispôr-se as cousas de modo que não houvesse
inconveniente em dar-se-lhe o governo, mas
só porque entenda que as particularidades que
sobre isso aponta não se podem propôr nem
ouvir: quanto mais que reinos deu Deus a V. M.,
e cargos taes provê de mar e terra, que não
eram somenos para seu proprio irmão: de maneira
que o remedio de D. Antonio não está
só
no governo de Portugal.»
«Que para que V. M.
o accrescente em
fazenda,
que é o segundo ponto, sempre
é tempo de mover
practica e trazel-a a effeito; que encolha
um pouco a primeira pretensão e pense melhor
n'ella, porque, vindo mais moderada, V. M. ha
por bem que se tracte e resolva em seu proveito
e muito á sua satisfação. E, vindo
ás particularidades,
[164]
se lhe peça tempo para mandar saber a
Portugal
que fazendas são estas em que
pede
a recompensa, e a sua qualidade e quantidade,
e que se lhe offereça fazel-o com toda a brevidade
e segredo. Se não convier n'isto,
poder-se-lhe-hão
dar quatrocentos mil ducados pagos
em Portugal dentro de quatro annos, contados
desde o dia em que V. M. começar a reinar, e
mais cem mil que se hão de dar quando jurarem
a V. M. por principe: que isto lhe convirá
mais que tudo, para o empregar do modo que
quizer, e testal-o como lhe aprouver: que considere
que perderia o tempo em querer provar
que é legitimo; porque V. M. não
se funda senão
em ser maior na edade, sem attender a paes,
mas sim como se todos os sobrinhos d'el-rei fossem
seus filhos, entre os quaes V. M. é o
primogenito.
Até aqui me parece que se póde chegar;
e n'estes termos V. M. seja servido ordenar a
Mattheus Vasquez me avise para Toledo do que
se fôr fazendo e do que tiver parecido a V. M.
sobre o systema que proponho.»
A carta que vem apoz esta, por differente
letra, sem assignatura e datada de 22 de janeiro
de 1580, posto seja, segundo parece, relativa
ás intrigas tenebrosas d'aquelle tempo, não nos
[165]
dá luz alguma, salvo no ultimo paragrapho, e
no fim de uma nota á margem que parece da
letra de D. João da Silva. De uma e d'outra cousa
se vê que o agente de D. Antonio vacillava já
em servil-o, e que se tractava de o corromper
ou de remuneral-o da corrupção.
«Costa
[34]
está amofinadissimo de não
ter resposta
de D. Antonio, e quer retirar-se para sua
casa sem o tornar a procurar. Disse-o a S. M.
que quer saber o que parece a V. S.
a que se
diga a Costa n'este caso.»
Diz a nota:
«Parece-me que se restitua o papel a Costa,
e que se lhe diga por modo de conselho que
espere o primeiro correio que vier de Portugal,
o qual esperamos por horas, para que vá instruido
do que lá
poderá fazer em
beneficio destes
negocios, e do sr. D. Antonio, e se porfiar,
deixal-o ir,
dando-lhe alguma
cousa.»
[166]
Pelo documento anterior a este ultimo apparece-nos
em toda a sua hediondez o procedimento
do prior do Crato, que se contentava de vêr a
patria sob o cutello do
demonio do
Meio-dia,
denominação que bem coube a Philippe II pelo
seu genio suspeitoso, refalsado, feroz e tyrannico,
com tanto que elle fosse o instrumento do
despotismo extrangeiro. E foi este homem, por
quem Diogo Botelho, o conde de Vimioso, D. Pedro
da Cunha, em fim os raros que ainda conservavam
puras as tradições generosas da edade-media,
arriscaram ou perderam a fortuna, a liberdade
ou a vida: foi este homem que o vulgo,
entre o qual vivia ainda o amor da independencia
nacional, acclamava rei erguendo-o sobre o
pavez popular!―Governador de Portugal, recebidos
os bens da corôa que pedia, elle, descendente
do Mestre d'Aviz, teria sido o primeiro em
ir ajoelhar aos pés do despotico successor de
de D. João I de Castella.
Os documentos que se seguem apresentam-nos
alguns dos negros caracteres d'aquelles cuja
compra, na grande feira de vileza e deslealdade
em que Portugal se convertera, foi uma boa veniaga
para o manhoso comprador. Ahi veremos
tambem o que já dissemos―que não era um
[167]
ou outro o prevertido, mas sim que a dissolução
politica se tinha tornado profunda e geral.
Já dissemos que os agentes ostensivos de Philippe
II em Portugal, durante o curto periodo do
reinado do cardeal D. Henrique e da regencia
dos governadores, foram D. Christovão de Moura
e o duque de Ossuna, a que se haviam ajunctado,
tambem com um caracter official, tres jurisconsultos―Rodrigo
Vasques, Molina, e Guardiola.
Todas estas demonstrações publicas da
pretensão
do rei castelhano, e muitas das negociações
secretas, corriam por intervenção dos cinco;
outros individuos, porém, que se correspondiam
directamente com a côrte de Madrid trabalhavam
em silencio, mas porventura ainda mais efficazmente,
em mover os animos, e em aplanar as
difficuldades materiaes que embaraçavam o bom
exito da empreza. Uma parte d'esta correspondencia
existe ainda, se não no original, ao menos
n'uma especie de resumos, feitos talvez pelos
secretarios de estado, a quem era dirigida, para
serem apresentados a Philippe II, cujas
resoluções
estão postas á margem pela sua propria
letra, ora seguidamente, ora ao lado do extracto
respectivo de cada um dos paragraphos. São
[168]
estes extractos e outros os que ora seguem. O
primeiro é de uma carta de um certo Pedro Rol
de Lacerda datada de 15 de julho de 1579. Diz
assim:
«Recebeu a 9 d'este a de S. M. em que lhe
mandava que fosse para Valencia
[35].―Que
logo
o cumprira.»
«Que tivesse boa correspondencia com os portuguezes
para os persuadir na fórma que se lhe
ordena.―Que alguns e até muitos
conhecem
o
que se lhes diz; mas não ousam declarar-se até
que seja tempo.»
«Lembra
a carta de
crença de S. M. para poder
encaminhar melhor este negocio, e da qual fará
uso para com aquelles que lhe parecer,
fazendo-lhes
oferecimentos da parte de S. M.; e affirma
que isto seria de
muito
effeito:»
«Os que entendem o que se lhes ponderou
ácerca do que arriscam e podem perder, temem
que S. M. os metta em apertos. Elle tem procurado
desenganal-os, dizendo-lhes que podem
tractar dos meios (?) offerecendo-se-lhes para
[169]
medianeiro; mas respondem que
não se
atrevem
por ora.»
O resto do extracto não offerece cousa de importancia;
por isso o omittimos. A nota de Philippe
II, escripta no verso do papel, diz:
«Que prosiga. Sabei do.... se lhe foi enviada
carta de crença, e se não que se lhe envie como
aos outros: que lhes assegure que não se apertará
com elles, nem haverá novidade a seu respeito.
Avisai o conde.... que, se não responderam,
respondam; digo a dom.... para que se envie.»
O extracto immediato é de uma carta datada
de Almeirim a 27 de janeiro de 1580, e escripta
por André Gaspar, corso, agente secreto, segundo
parece, de Castella. Contem o seguinte:
«Que S. A.
[36]
esteve tres dias mui doente, e
que pensavam não escapasse, e que n'aquelle
dia melhorára e comia um pouco mais:»
«Que apesar da gravidade da doença vieram
no dia 24 os cinco primeiros bancos
[37]
dos procuradores
[170]
de côrtes, e se lhes mostrou o que o
braço ecclesiastico e militar (nobreza) tinham
resolvido. Pedindo-lhes que fizessem o mesmo,
replicaram que se ajunctariam e responderiam:»
«Que depois de se haverem junctado resolveram
que lhes tocava a eleição, e que declarasse
S. A. por sentença de letrados este ponto, pois
lhes havia acceitado a demanda, accrescentando
que Deus désse larga vida a S. A.: que depois
dos seus dias elles elegeriam rei; porém que,
se agora lhes declarasse successor portuguez, o
acceitariam; mas sendo S. M. (Philippe II), em tal
não queriam ouvir falar,
e antes
soffreriam a
morte:»
«Que posto S. A. estivesse tão infermo lhes
ouviu
pacientemente esta resposta
no dia 25, e
lhes respondeu que dentro de dois dias sentenciaria
sobre o ponto da eleição, e assim os
despediu:»
«Que depois mandou chamar os do seu conselho
e letrados, que assentaram não tocar aos
procuradores a eleição, e que se esperava a
sentença
sobre este artigo no dia seguinte:»
«Que n'aquelle mesmo dia enviara S. A. o
bispo Pinheiro com um recado aos procuradores,
[171]
aspero, segundo dizem, o que saberia quando
o bispo voltasse:»
«Que, vivendo S. A. oito dias, espera que amansem;
e quando não queiram, como diz
aquelle
amigo, tem S. A. determinado levar o negocio
ao cabo:»
«Que o
amigo faz mui
bons officios com S. A.,
e elle solicita esses officios, apertando-o com os
inconvenientes que poderiam sobrevir:»
«
Que os fidalgos e prelados
estão mui conformes
com a vontade de S. A., e que tudo
depende da sua vida:»
«Que D. Antonio é que traz alterados os
procuradores
por intervenção de frades, fazendo
todos os maus officios que podem contra S. M.:»
«Que com aquelle seu amigo francez, que está
por parte do seu rei solicitando os procuradores
e D. Antonio, procurou falar, e responder-lhe
que D. Antonio lhe tinha dicto que se a sentença
se désse a favor de S. M.
elle seria o
primeiro
a vir beijar-lhe a mão como a seu rei, e
quando
não, nada queria fazer:»
«Que soube do francez que o seu rei se via
muito embaraçado com os lutheranos, e que não
queria que os portuguezes confiassem muito no
soccorro d'elle:»
[172]
«Que S. A. manda hoje o meirinho-mór
[38] a Lisboa
para socegar a gente do povo e ter conta na
cidade, e vai com mui bom animo e vontade.»
(«Não ia a isso, segundo me escrevem, mas
sim a prevenir a armada que ha de ir para a
India, como vedor da fazenda, que é agora, o que
vem a ser como contador-mór. E teem n'isto das
armadas melhor fórma que
cá.»―
Nota de Philippe II,
á
margem.)
«Que, despedindo-se de S. A. (o meirinho-mór),
lhe disse que sentenceasse por S. M.,
visto
haver-lhe dicto que o direito era seu, e que se
apressasse em dar o seu a seu dono, e não deixasse
o reino em perdição:»
«Que S. A. lhe respondeu que em breve
sentenciaria.»
«Que a isto lhe replicou o meirinho-mór que
désse a sentença e não curasse de
tractar de
concertos com os procuradores, os quaes depois
se poderiam fazer com S. M.; ao que lhe tornou
que d'um modo ou d'outro não tardaria a dar a
sentença.»
«Que o meirinho-mór faz novas instancias sobre
[173]
a conveniencia de S. M. se approximar das
fronteiras d'aquelle reino.»
«Que S. A. não está bem com o duque de
Bragança,
nem o póde ver,
depois que não quiz
fazer o que lhe mandou propôr por Paulo Affonso,
e ainda mais depois que lhe disseram que
anda em ajustes com D. Antonio.»
«Louva o bom proceder e officios de D. Christovão
de Moura, e diz que elle por sua parte não
descançará.
«Espera que ainda que os procuradores bravateem
não se poderão defender, porque não
têem
dinheiro, nem munições, nem armas, nem gente
de vulto; nem pensam que S. M. haja de se
mover d'aqui.»
[39]
«Entende que em lá sabendo que S. M. se
encaminha para aquelle reino se aplacarão.»
Os extractos immediatos aos que anteriormente
publicámos são de uma carta, datada de
[174]
Almeirim a 22 de março de 1580 e escripta pelo
licenciado Medellin, que d'esta carta e d'outra
sua se vê ter sido um dos mais activos agentes
da usurpação castelhana. É um dos
documentos
importantes, pelas materias de que tracta e notas
que o acompanham. O seu conteudo é o seguinte:
«Recebeu as cartas que se lhe escreveram.»
«Representa haver feito lá todos os bons officios
que pôde, e que aos ministros de S. M.
parece que elles têem aproveitado.»
«Que Miguel Telles, alcaide de Marvão, ainda
não partiu, e que o acha duro de
condição,
ainda que o escutou placidamente, e que espera
reduzil-o, posto que lhe affirmasse que
a qualquer outro não soffreria o que lhe elle
disse.»
«Que Manuel Alvarez, homem nobre e rico,
que é feitor do irmão do alcaide, e todo d'elles,
e que vive n'aquella praça, levou elle Medellin
a casa de Rodrigo Vasquez; que este se offereceu
para servir devéras a S. M. tractando em Marvão
com todas as cautelas com Miguel Telles para o
pôr em bom caminho.»
«Que as cartas que S. M. mandou escrever
aos Tres-Estados foram bem recebidas, e fizeram
[175]
muito effeito, junctamente com o discurso que
Rodrigo Vasquez lhes fez.»
«Diz que houve descuido em não falar aos
procuradores antes, e principalmente quando el-rei
morreu: que isto fôra de grande importancia,
como o advertiram Antonio Carrilho, procurador
por Marvão, e outros. Que elle o lembrou e assim
se resolveu, mas que até agora se não
fez.»
«Tambem diz que foi de parecer que os procuradores
estivessem em Almeirim, para que
todos os dias se podesse tractar com elles, e
não ficassem entregues a D. Antonio; que os dictos
procuradores se mostram sentidos do pouco
caso que se fazia d'elles.»
«Que os que tinhamos por nossa parte se ausentaram
ha dias, logo que se lhes declarou que
as côrtes estavam acabadas com a morte d'el-rei;
e não havendo quem os entretivesse se foram
os mais d'elles; ficando os parciaes de D. Antonio
e do duque de Bragança, que por certo
buscavam meios de os reter.»
«Demonstra como este inconveniente se deu
na realidade, porque já se experimentou com os
outros dois Braços que têem estado em Almeirim,
os quaes se mostram mais partidarios de
S. M. por os seus ministros os haverem tractado;
[176]
e os procuradores, por não os haverem conversado,
se têem portado mal causando alvorotos.»
«Que os procuradores que estavam de bom
animo lhe diziam que não ousavam falar, porque
em falando iam á noite a suas casas queixar-se
(os outros?) que não os deixavam em liberdade.»
Á margem dos paragraphos antecedentes acham-se
tres notas, duas pela letra de Philippe II, e
uma pela de D. João da Silva.
Primeira, de Philippe II:―«Veja o conde tambem
esta, que ha ahi cousas de
consideração.»
Segunda, de D. João da Silva:―«Esta é
mui
boa carta. O bispo de Portalegre que torne logo
depois de Paschoa em todo o caso, e seja um
dos que fiquem, se fôr possivel. Aquelle Melchior
do Amaral de que fala é homem de muito
juizo e honra; e entendo que entre a gente de
letras e nos tribunaes tem S. M. grande parcialidade.
Depois vi e sube com gosto que o bairro
de Portalegre não se movia.»
[40]
Terceira, de Philippe II:―«Diz mui bem o
conde, e assim escrevi em conformidade d'isso,
[177]
e notai se ha alguns pontos de importancia a que
convenha responder em particular, e um d'elles
é este.»
Segue o extracto:
«Diz que falando-se individualmente aos portuguezes
entendem a razão, e quanto lhes importa
serem de S. M. Dilata-se em representar
isto.»
«Que não sabem dar outra resposta senão
que
se julgue a causa.»
«Que Rodrigo Vasquez tem desempenhado bem
a sua obrigação no particular e nas
junctas.»
«Que o bispo de Portalegre quer ir na semana
sancta á sua egreja, que está d'alli 18 leguas;
que lhe disse não fosse, e que lhe respondeu
voltaria; e que elle tambem vai para Valencia,
que fica a 4 leguas de Portalegre; que se lhe póde
escrever para lá, se S. M. fôr servido que
faça
tornar o bispo depois de Paschoa para onde estiver
a côrte. Assegura a boa vontade do bispo,
e estar ligado com elle. Que o licenciado Rodrigo
Vasquez foi de parecer que se fosse por emquanto,
e que elle partia para Lisboa.»
«Que não deixa de aperceber-se aquella gente
enviando armas aos povos.»
«Adverte de parecer commum que qualquer
[178]
dilação que S. M. faça será
muito damnosa, e
que o ter já antes entrado fôra de grande
importancia.»
Á margem, e acompanhando todos estes paragraphos,
lê-se a seguinte nota de Philippe II:
«E assim dae noticia ao conde para que o resolva
na juncta; e que convirá escrever aos fronteiros
de lá que negocêem com os logares visinhos
que têem voto em côrtes, e procurem
têl-os
de sua parte, a elles e aos procuradores. Se o
bispo se foi, convem que torne logo, e o Medellin
tambem, e assim se lhes escreva, e que nos
avise sempre do que houver, e que eu me approximarei
de lá com brevidade e forças (?).»
Continuam os extractos:
«A este proposito diz que Melchior do Amaral,
membro do conselho d'estado n'aquelle reino,
que veio agora resgatado e que é um dos de
maior qualidade, lhe disse que não sabia porque
S. M. não entrava no reino.»
«Que o dicto Melchior do Amaral é de parecer
que Portugal ganha muito n'isso, e que, se porventura
S. M. não remedeia a pobreza d'elle, não
sabe quem ha de remedial-a.»
«Que diz tambem que o reino deve tres milhões,
e que faltam trezentos mil cruzados para
[179]
chegar a receita á despeza, o que elle sabe pelos
livros da fazenda real.»
Aqui pôz Philippe II esta nota:
«Mau é isso, visto como estamos por
cá.»
Prosegue o extracto:
«Que as côrtes se reduzem a menor numero:
os procuradores do povo a 30, os prelados a 3,
e os fidalgos a 9.»
«Que o bispo de Portalegre lhe disse que seria
um d'elles, e que os mais da côrte se governam
por elle.»
Extracto da carta que vem inclusa:
«Que o bispo lhe disse, depois de estar escripta
a carta antecedente, que não escrevia a v.
m.
cê por não saber da
partida do correio; que o
faria no outro, e que breve esperava vêr-se com
v. m.
cê»
«Que ainda não era certa a sua ida a Portalegre,
porque os governadores o não deixavam,
e que o tinham emprazado para no dia seguinte
se vêr com elles ás duas horas.»
«Que na segunda-feira da juncta que se fez
de todos os tres braços em Almeirim, quando
D. Christovão de Moura entrou para dar a carta
de S. M. houve algum alvoroto, e o bispo de Portalegre
se travou com Phebo Moniz, procurador
[180]
por Lisboa, dizendo-lhe muitas palavras asperas,
de modo que o Phebo se poz de joelhos diante
d'elle, e chegaram muitos procuradores ao bispo
dizendo-lhe se queria alguma cousa, e que o
mesmo lhe foram depois dizer a sua casa.»
«Que lhe disse que désse parte d'isto, e que
lhe parecia que se ajunctariam, como de novo,
a côrtes os que faltavam de todos os tres braços.
Que em todos os tres se propôz que se désse
dinheiro para a defeza do reino, e que no dos
bispos e nobreza se votou que tal se não fizesse,
e que no do povo ha agora differenças sobre
isto.»
«Que tambem lhe disse que avisasse para que
S. M. désse ordem a escrever-se de cá para se
diligenciar que
Martim Gonçalves da Camara
não assistisse com os governadores, visto
não ter
cargo que exercer;
porque era
prejudicial.»
«Que tudo isto advertiu a Rodrigo Vasquez.»
Segue-se a copia de uma carta dirigida a Philippe
II e datada d'Almeirim a 25 de março de
1580, a qual, pela resposta d'el-rei, que se acha
algumas folhas mais adiante, no seu original, se
vê ser do duque de Ossuna. Transcrevel-a-hemos
com a dicta resposta.
«Sacra Catholica Real Majestade.―Ainda que
[181]
os tres despachos de V. M. com que de presente
me acho, de 13, 14, e 20 do corrente, são em
resposta de outros meus, contêem alguns particulares
a que responderei no primeiro correio
que fôr apoz este, o qual leva só a
relação, que
V. M. ordenou se lhe enviasse, do que nos pareceu
se devia responder aos mensageiros que lá
estão, se bem que é necessario pôl-o em
melhor
fórma, porque a occupação das
diligencias feitas
esta semana não deram logar a emendar-se cá;
e parecendo-me que esse inconveniente é pequeno,
ao mesmo passo que seria mui grande o
não chegar a tempo, tenho por melhor que vá
como fica dicto, para que V. M. despache brevemente
os mensageiros, os quaes bom será despedir
na incerteza de tudo o que lhes foi incumbido,
para acabarem de crer que não póde
haver n'este negocio meio termo entre o caminho
das graças (que V. M. lhes tem aberto) e o
da força, que de necessidade se deve seguir
faltando est'outro.»
«As cartas de V. M. para os Governadores e
para os Braços d'este reino se entregaram com
os memoriaes das graças e mercês que se lhes
farão se jurarem a V. M.. Tudo foi bem recebido,
e do mesmo modo as dirigidas aos pretensores.
[182]
Espero em Deus que havemos de tirar bom resultado,
ainda que não bastam as demonstrações
presentes para o ter por certo; nem posso dar
a V. M. conta miuda de tudo o que ácerca d'isto
se passou pela razão que já disse.»
«Grande contentamento mostram os bem intencionados
da vinda da rainha N. Sr.
a a essa
sancta casa, porque d'isso deduzem que V. M.
melhor se poderá deter onde for preciso, do que
se V. M. houvera ficado em Madrid. Guarde N. S.,
etc.»
Philippe II respondeu:
«Duque primo.―A rainha e eu chegámos
aqui vespera de N. Sr.
a bons, graças
a Deus.
E porque desejava cartas vossas mais recentes
que as de 12 do passado, folguei muito com as
de 25, por saber o que teria resultado dos despachos
que lá estavam, e saber o vosso voto e
dos outros meus ministros pelo que toca ao acolhimento
que se devia fazer aos mensageiros
que d'ahi vem, e a resposta que se lhes poderia
dar; e chegou a bom tempo, porque se achavam
já a quatro leguas d'aqui. Resolvi tractal-os do
modo que vereis pelo memorial que vai incluso,
parecendo-me que devia tomar aquelle caminho
para que não nos fique por experimentar nenhuma
[183]
das cousas que podem servir para chamar á razão
os d'esse reino, e obrigal-os a que por sua parte
façam o que devem, tirando-lhes todo o genero
de achaque ou escusa, como parece teriam se
não se lhes désse n'isso
satisfação. E quando a
sua dureza fosse tanta que nada bastasse, servirá
ao menos para inteira justificação do damno
que lhes vier da guerra; cujos meios se vão
apromptando sem perda de tempo, antes se aproveita
por tal modo que, se for mister, em poucos
dias se poderá pôr na fronteira o numero de
gente que vereis da relação que vos ha de mostrar
D. Christovão de Moura. Tenho tenção
de ir
mui breve para Merida ou Badajoz, motivo porque
já mandei arranjar aposentos n'aquellas duas
cidades. Praza a Deus que as diligencias que lá
se fizeram com os Braços, Governadores, e cidades
do primeiro banco, tenham aproveitado
tanto que de lá possa passar logo a esse reino,
facil e pacificamente, o que muito desejaria assim
acontecesse pelo que a elles proprios lhes
convem. Do successo e da resolução que tomarem
espero já desejoso a noticia.»
«Tendo visto a carta do marquez de Villa Real,
e a satisfação que mostraes ter d'elle e dos de
sua casa, lhe mandei escrever a que vai com
[184]
esta para que lh'a deis ou envieis, assegurando-lhes
que os hei de honrar e favorecer a todos;
e n'esta substancia podereis dar o recado que
vos parecer a D. Jorge de Noronha seu primo,
porque, ainda que recebi a sua carta, pareceu
que não era preciso responder-lhe eu, mas que
fizesseis vós este officio, por ter elle o genio que
descreveis, e cá se ficou entendendo.»
«O mesmo, ou o que vos parecer, fareis com
o bispo capellão-mór
[41]
pelo que diz no bilhete
que vos escreveu; que justo é agradecer-lhe a
sua boa inclinação.»
«Conformando-me com o que advertis, tenho
por mui necessario que com grande brevidade
se ordene uma boa, breve, e substancial relação
de como me pertence justamente a successão, e
assim mandei que se pozesse no memorial; e
a vós encarrego muito que tenhaes particular
cuidado em que se faça e se me envie sem
perda de tempo. De mais proveito fôra ter sahido
antes, porém mais vale tarde que nunca.»
«Se (o que Deus nunca permitta) se houver
[185]
de usar de força, tambem então se
publicará
outro escripto que justifique a guerra; e já cá
mandei que se vá considerando o que deve conter,
e bom será que lá se faça o mesmo para
aproveitar o tempo, conferindo-se depois um
com outro para se tomar a resolução que parecer
mais a proposito.»
Esta resposta é datada de Guadalupe no 1.º
de abril, assignada por Philippe II e referendada
pelo secretario Çayas. Vem apoz ella por copia
uma outra carta datada de Almeirim a 6 de abril,
que pelo ironico e violento attribuiriamos de boa
vontade a D. Christovão de Moura, cuja ancia
pelo dominio extrangeiro excedeu a de todos os
homens corrompidos d'aquella triste epocha. O
que parece evidente é não ser do duque d'Ossuna,
porque n'ella se allude á carta que na
mesma occasião
escrevia ao
embaixador.
«S. C. R. M.―Ainda que os embaixadores
d'este reino parecem pessoas humildes
[42],
devem
estar tão longe de sel-o, como todos os mais
portuguezes! Digo isto pela diligencia que mostraram
[186]
em avisar os governadores do tractamento
que julgaram V. M. lhes havia de dar,
parecendo-lhes falta de cortezia não lhes tirar o
barrete como é costume. Toma-se tão mal
cá
tudo o que é de Castella que, apenas chegou o
aviso de tamanha sem-razão, ajunctaram-se em
conselho para responderem, e depois de Martim
Gonçalves ter esbravejado, e de se haver aproveitado
da occasião para encarecer quanto lhes
importa dilatar o negocio, e outras cousas a seu
proposito
[43],
resolveram escrever aos embaixadores
que não se apresentassem a V. M. segunda
vez, se da primeira os não tractasse conforme o
estylo. Pareceu-nos conveniente, a troco de um
correio, advertir d'isto a V. M.; e, ainda que eu
tenho por bom que V. M. executasse o que d'antes
estava assentado, pois a embaixada era tal,
[187]
que não importava nada ouvil-a, ou que elles
voltassem sem a dar, visto V. M. ter feito o mais,
segundo me escreve que lá resolveram, e esses
homens lhe beijaram a mão, parece-me que,
havendo passado por tanta cousa, não se deveria
tropeçar em dois dedos mais ou menos de barrete,
muito mais havendo de dar isso occasião
ao que de cá lhes escrevem, posto que esses
offereçam em tudo motivos para tractal-os de
outra maneira. Bastante custará já a V. M. o que
tarda em começar a fazel-o assim, e a encurtar
o fio da brandura de que esta gente se aproveita
para o mal; e assim têem por chança quanto se
lhes diz fóra d'isto, parecendo-lhes impossivel
que chegue o tempo do rigor de véras, que cada
dia merecem por novas culpas e desconcertos,
parecendo-lhes que tudo está nas mãos d'elles;
e até que vejam signaes para sahir d'este engano
sempre ficarão n'elle, se nosso Senhor não faz
algum milagre, de que bem precisa a obstinação
d'este paiz. E porque o embaixador deve escrever
mais extensamente, e ámanhan parte outro
correio, não tenho mais que dizer senão que
nosso Senhor guarde, etc.»
Entre esta carta, digna de um intrigante feroz,
e as antecedentes estão os extractos de duas
[188]
cartas de um agente portuguez que de novo vem
entrar em scena. Este, que escreve ambas ellas
de Almeirim no mesmo dia 24 de março, é
D. Jorge de Noronha, neto do segundo marquez
de Villa-Real e primo do primeiro duque d'este
titulo. O caracter de vileza, que reina na linguagem
d'estes dois documentos, é verdadeiramente
curioso.
Eis oqui o primeiro:
«Recebeu a que S. M. lhe mandou escrever
a 17 do corrente, da Aceca:»
«Approva a vinda da rainha n.s. com S. M.
pelo especial prazer e honra que com isso se faz
áquelles reinos:»
«Louva tambem a vinda de S. M. pelo amor
e tenções christans com que procede em
tudo:»
«Mostra grande sentimento das cartas que dizem
escreveu Manuel de Mello para aquelle
reino:»
«Que o bispo de Portalegre diz que o arcebispo
d'Evora, tio de Manuel de Mello, lhe contou
que seu sobrinho lhe escrevera que não havia
a gente nem os apercebimentos de guerra que lá
soavam; que acham o duque d'Alva só; e que
estivesse seguro de que
se houvesse união
no
reino não havia cá poderio bastante contra
elle.»
[189]
«Julga que não se deve fazer caso do que diz
Manuel de Mello, porque está cego; que o reino
de Portugal é de S. M.; e que póde ir quando
quizer, porque até as creanças cantam que todo
o seu remedio está em S. M.»
«Que, afóra isso, não ha lá
forças para se defenderem
só do duque d'Alva, ainda que viesse
mais só do que affirma Manuel de Mello; nem se
fala em defeza, nem ha nenhuns fronteiros; e
que elle logo que alli chegou dissera que largava
o direito que tinha á frontaria que estava a seu
cargo, para mais claramente mostrar sua
intenção.»
«Que muitas outras cousas que passou as deixa
por serem largas, remettendo-se ao duque de
Ossuna e mais embaixadores a quem as contou.»
«Que se deram as cartas e recados de S. M.
aos governadores e Braços, e que se fizeram mui
boas diligencias com todos, cujo proveito vai
apparecendo,
porque já os mais d'elles
estão rendidos,
convertidos, e feitos christãos, e que se
baptizaram na agua das listas de mercês que
S. M. fez a todos, as quaes são mal
merecidas,
porque ainda não estão os caminhos de Portugal
e Guadalupe cobertos de portuguezes. Pede licença
[190]
para ser elle o primeiro que o faça, pois
talvez muitos o sigam, sendo tão natural nos portuguezes
a enveja.»
«Que o marquez não escreve por se não
achar
alli; mas que virá passada a paschoa, o que será
conveniente para a boa conclusão dos negocios.»
A linguagem d'este reptil parece ter suscitado,
talvez pelo excesso da baixeza, as desconfianças
do suspeitoso Philippe, porque ao lado do extracto
pôz a seguinte nota, que o indica:
«Fica-me cá a carta, porque creio que
será
mister envial-a ao duque ou a D. Christovão pela
razão que vos disse, e pelo que ha a respeito
de quem a escreve.»
O segundo extracto contem o seguinte:
«Representa quanto elle e toda a casa do marquez
de Villa-Real tem desejado e procurado,
desde a morte d'el-rei D. Sebastião, que se entregassem
aquelles reinos a S. M., a quem de
justiça e razão e por pura necessidade entenderam
desde logo pertenciam, e quanto isso era
conveniente, o que esperam se fará com brevidade.»
«Encarece o que tem trabalhado, e quasi brigado
para reduzir a gente d'aquelle reino, que
[191]
estava mui tenaz, e que procederam com este
afferro por verem o zêlo christianissimo de S. M.»
«Pede que se lembre isto a S. M. e o animo
e desejo com que fica o marquez e toda a sua
familia, e quanto hão de ser sempre addictos ao
seu real serviço.»
Este preambulo é destinado a captar a benevolencia
do secretario d'estado castelhano, a fim
de se obter por sua intervenção um bom casamento
em Castella para uma filha do marquez
de Villa Real. Omittimos esses paragraphos, que
só accidentalmente e em cousas de pouca valia
respeitam aos negocios publicos. Prosegue depois
ácerca d'estes:
«Envia tambem um papel e uma carta dos
procuradores dos povos, em que se vê que desejam
e querem paz, e que já percebem a mercê
que lhes faz nosso Senhor em lhes dar por seu
rei a S. M.
«Que mostrou estes papeis a D. João Mascarenhas,
com quem communica tudo o que se
offerece, por ser um dos governadores e dos homens
que mais desejam o serviço de S. M.»
«Que D. João o mostrou aos outros governadores,
e lhe affirmou que importaria muito que
elles o vissem, e que diligenciasse obter lista dos
[192]
nomes dos mais que podesse achar do mesmo
parecer em Santarem. Que esperava fazer alistar
a maior parte d'elles.»
«Que muitos dos procuradores de bom e muito
bom animo no negocio se foram; porque os melhores,
já enfadados de não estarem todos d'accordo,
e de verem os de Lisboa, que era a cabeça,
mal inclinados, começaram a partir.»
«Que Manuel de Souza Pacheco, um dos procuradores
de Lisboa, já não é companheiro de
Phebo-Moniz, porque se fez christão, e deu palavra
ao bispo e ao arcebispo d'Evora de sel-o
sempre, e
que todos se vão
baptizando.»
«No papel que envia com a carta (a qual é
datada de Santarem a 15 de março, e escripta
por um dos procuradores que se chama Rodrigo
d'Abreu) o nome que está riscado é o d'elle
D. Jorge, e diz que assim se deu a ler aos governadores.»
«N'elle representam aos dictos governadores
o desejo que tem a maior parte dos procuradores
da paz e quietação em conformidade do que o
governo deseja, tudo pelo bem da christandade.»
«Ahi dizem que é um engano pensar que para
tractar dos concertos convem que sejam menos,
quando todos querem paz e concordia, porque
[193]
já cahiram na razão e vêem que
é necessário.»
«O meio que apontam para isto se poder alcançar
é chamal-os dois a dois, pois chamando-os
junctos dizem que não, por não haver quem
queira começar em publico.»
«D. Jorge diz que testifica isto, porque fallou
com os mais d'elles. Recommenda o segredo e
a brevidade da execução. Que depois de se
conseguir
o resultado dirá quem fez a proposta para
ser agraciado. Adverte que
até das terras
escrevem
cartas avulsas em que lhes significam o
mesmo, mas que não ousam falar, tanto pelas
agitações que andam, como pelo que diz o vulgo.
Pede que se lhe restitua este papel porque é de
letra conhecida.»
Neste interessante documento pôz Philippe II
uma pequena nota:―«Veja esta o conde de
Portalegre, e a resposta que será conveniente
lhe deis.»―D. João da Silva escreveu por
baixo―«São
mui bons estes de Villa-Real: Responda-se
a D. Jorge com muita approvação do que vai
fazendo, pedindo-lhe continue, e restituam-se
estes papeis como é de razão.»―O resto
da
nota do conde de Portalegre é relativo ao casamento
do marquez, por isso o omittimos aqui.
APONTAMENTOS
PARA A
HISTORIA DOS BENS DA COROA E DOS FORAES
1843―1844
APONTAMENTOS
PARA A HISTORIA DOS BENS DA COROA E DOS FORAES
Ha dois annos
[44]
que no V volume do
Panorama
appareceram tres artigos sobre a historia
dos foraes em Portugal: parecerá, pois, escusada
a associação que, segundo a epigraphe que
acima escrevemos, vamos fazer no presente trabalho
d'estas duas especies historicas, com o fim
de darmos aos leitores algumas idéas mais averiguadas
sobre materia, que as circumstancias
actuaes tornam do maior interesse para uma
grandissima parte dos nossos concidadãos. Por
duas razões, todavia, ligámos essas entidades:
primeira, porque o intento com que redigimos
[198]
os presentes artigos não nos consente o separal-as:
segunda, porque o que n'este jornal se
escreveu ha dois annos é até certo ponto
inexacto;
inexacto não tanto na veracidade dos
factos, como na sua apreciação ou valor
historico.
Vê-se que o illustrado redactor d'aquelle
escripto seguiu principalmente as doutrinas do
allemão Schéffer, auctor da recentissima
Historia
de Portugal. Era o guia mais seguro que podia
escolher; mas Schéffer applicou o seu grande
engenho historico aos materiaes que lhe offereciam
os nossos melhores livros, e sobre este
objecto, força é dizel-o, o melhor que possuimos
ainda não é bom. Assim o extrangeiro errou
porque os naturaes, a quem o achar a verdade
era mais facil, erraram primeiro; e elle não podia
recorrer á principal e quasi unica fonte legitima
da historia―os archivos do paiz. Ainda, portanto,
que não nos fosse necessario para o objecto
que levamos em mira o tocar de novo na
materia dos foraes, o fazel-o não fôra inutil, ao
menos como rectificação ao que n'aquelle escripto
nos parece menos bem avaliado.
Dissemos
o objecto que levamos em
mira: de
feito, ha no presente trabalho uma intenção
grave. Os acontecimentos politicos de Portugal
[199]
trouxeram a celebre lei chamada, impropriamente
talvez, dos foraes. Esta lei alevantou interesses
contra interesses: citamos um facto,
não o avaliamos, porque nos queremos e havemos
de conservar dentro dos limites d'este jornal―a
stricta abnegação de politica. A lucta de
interesses
produziu as disputas; mas, versando
estas sobre materia imperfeitamente conhecida,
as opiniões ácerca d'ella têem sido
exaggeradas
e muitas vezes falsissimas em todos os sentidos:
em conversações e, o que mais é, na
imprensa
temos ouvido e lido as cousas mais absurdas a
este respeito; e havemo'-nos convencido de que
bem poucos vêem a questão á sua
verdadeira
luz. É por isso que entendemos seria um bom
serviço ao paiz recordar-lhe essa parte da nossa
historia economica, deixando aos outros tirar
as illações do passado para o presente e futuro;
mas tiral-as de premissas verdadeiras, e não deduzil-as
de supposições gratuitas que nunca existiram,
ou existiram de um modo mui diverso
d'aquelle que geralmente se crê.
Se as paixões politicas ou mal entendidos interesses
fizerem com que saiam baldadas as nossas
diligencias para generalisar alguma luz sobre
uma questão que importa á justiça,
á moral, e
[200]
ainda á utilidade do paiz, fique o que vamos
escrever ao menos como incentivo para a curiosidade
d'aquelles a quem resta o amor das
velhas cousas da patria, amor cuja falta é indicio
certo da morte da nacionalidade, e por consequencia
do estado decadente e da ultima ruina
de qualquer povo.
[201]
I
A monarchia portugueza nasceu, como todas as
outras do sul da Europa, no meio das luctas da
edade-media, posto que em epocha mais recente
que o commum d'ellas. Tronco separado da sociedade
hespanhola, os factos que influiram na
organisação dos differentes estados, que no
correr
dos seculos vieram a constituir esta, influiram
tambem mais ou menos na sua organisação.
Assim, os phenomenos peculiares, que distinguem
a indole dos demais estados da Peninsula
na sua infancia, distinguem egualmente o nosso
Portugal. Cumpre examinar d'estes os que actuaram
na questão de que nos occupamos, para
podermos entrar n'ella com clareza assentando
os seus fundamentos solidos. O estado da propriedade
é o mais importante, ou, antes, o que
resume todos.
Bem curto periodo tinha decorrido desde que
o territorio portuguez se libertára do dominio
arabe, quando nasceu a nossa monarchia. Os
[202]
reis christãos, successores de Pelaio, tinham gradualmente
reconquistado para a Europa e para
o evangelho uma parte d'elle: o conde Henrique
havia proseguido na mesma empreza com feliz
successo, ao passo que lançava os alicerces de
um estado independente: seu filho continuou a
obra dos reis de Leão e do valoroso conde, e
conjunctamente estabelecen essa independencia,
que no governo de Henrique fôra apenas uma
tentativa: passado um seculo Portugal tinha alcançado
quasi sem differença alguma os limites
actuaes. O meio por que se chegou a este resultado
foi unicamente um―a conquista―ou,
por outra, a substituição do dominio
christão ao
dominio mussulmano.
Mas isto aconteceu n'uma epocha em que a
conquista não importava a mesma idéa que
significara
sete ou oito seculos antes, quando as
raças do norte, invadindo o imperio romano,
repartiam entre si nos campos de batalha os
membros despedaçados d'aquelle desmesurado
colosso. Então a tribu selvagem da Germania ou
da Scandinavia vinha apossar-se dos campos das
provincias romanas: o caracter da conquista feita
pelos homens do norte era a occupação da
propriedade
individual dos vencidos pelos vencedores,
[203]
ou ao menos a divisão d'ella. Os barbaros
não se contentavam de direitos fiscaes na terra:
queriam a posse d'ella. Foi d'este modo que os
burgundios nas Gallias, e os visigodos na Septimania
e na Hespanha tomaram para si dois terços
de cada propriedade, os herulos na Italia um
terço, e assim por deante. Os arabes, porém,
vê-se claramente haverem seguido um systema
diverso; porque eram gentes mais ou menos civilisadas,
e comprehendiam como uma nação
póde subjugar e encorporar em si outra sem
expropriar o dominio individual da terra. Aos
godo-romanos que sujeitavam á ponta da lança
impunham o tributo de um quinto sobre o rendimento
da terra; aos que se lhes submettiam
voluntariamente impunham um decimo: a isto
se ajunctavam alguns outros tributos, como certas
porções de fructos, medidas de vinagre, de
azeite, etc.; mas aquellas eram as contribuições
caracteristicas do facto da conquista. De resto,
os vencedores, deixando os vencidos na mesma
situação em que os tinham encontrado, respeitaram
a um tempo a sua crença, a sua propriedade,
e, o que é mais, a essencia e a fórma das suas
instituições civis.
Os arabes traziam, tambem, como as nações
[204]
septentrionaes, novos povoadores para as provincias
conquistadas; mas as familias africanas
não vinham tomar para si uma parte do campo
ou da granja cultivada pelo godo-romano: n'isto
estava a differença da conquista arabe. Repartiam-se-lhes
as terras cujos donos tinham perecido
n'uma lucta longa e sanguinolenta, ou se
haviam acolhido ás serranias das Asturias; povoavam-se
logares ermos; fundavam-se novas
povoações, e o agricultor arabe brevemente
convertia
os maninhos dos arredores em prados,
ferregiaes, e vergeis: assim, o lavrador e proprietario
christão, em vez de ser espoliado,
recebia ensino do seu visinho agareno mais instruido
e industrioso que elle. As rapinas, oppressões,
e violencias practicadas pelas auctoridades
ou pelos particulares eram o resultado
das continuas guerras e dissensões entre os proprios
conquistadores, não da falta das garantias
legaes da propriedade.
Por grosseiros e rudes que fossem os restauradores
do predominio christão na Peninsula; por
atrozes que fossem as represalias exercitadas
por elles contra os mouros; uma grande multidão
de documentos d'essa epocha nos prova que,
em geral, a propriedade dos colonos africanos,
[205]
arabes, palestinos, egypcios, que tinham vindo
estabelecer-se na Peninsula, foi no essencial respeitada,
posto que opprimida pela variedade
dos impostos feudaes, que não eram tambem
muito suaves para os proprietarios christãos.
Como succedera no tempo da entrada dos arabes,
na restauração os combates, as revoltas, e
todos os actos de resistencia á nova ordem de
cousas, ou os crimes politicos (os crimes politicos
são mui velhos), restituiram por meio do fisco
uma grande porção do solo aos netos d'aquelles
que o haviam perdido. É este o facto que importa
muito para a historia do patrimonio publico,
ou bens da corôa, e até certo ponto para
a historia da origem de grande parte dos municipios
e das suas cartas de communa ou foraes.
Portugal constituiu-se em um territorio onde
esses factos de successivas conquistas se haviam
consummado: apenas uma parte do sul do reino
foi subtrahida ao imperio dos mussulmanos depois
do nosso primeiro rei: nos fins do seculo XIII
a restauração christan estava completa, sem que
jámais houvesse perdido inteiramente o seu espirito
de respeito á propriedade individual. Os
que disseram que todo o dominio da terra nascera
entre nós da conquista parece terem ignorado
[206]
ou esquecido os successos que precederam
e acompanharam esse facto, e o modo por que,
atravez de todas as invasões desde as dos barbaros,
uma notavel porção do territorio pertenceu
sempre ao dominio pleno de particulares,
ou, para nos servirmos d'uma expressão tomada
dos paizes de feudalismo, foi sempre allodial.
De feito, n'esses primeiros tempos da monarchia
havia em Portugal tres especies de proprietarios
de terras anteriores a ella: os musarabes,
ou descendentes dos antigos godos, que
se haviam sujeitado aos arabes; os netos dos
colonos africanos e asiaticos; e os filhos e successores
dos vassallos dos reis de Oviedo e Leão,
que, por compras, escambos, doações,
arroteamentos,
cartas de povoação, ou outro qualquer
titulo, e principalmente como conquistadores, as
tinham obtido, com dominio pleno, sem caracter
nenhum de
beneficio nem de
feudo. Os nossos
primeiros reis deviam respeitar a existencia d'estas
diversas propriedades; e innumeraveis exemplos
de contractos celebrados sobre tal genero
de bens provam evidentemente que assim o practicaram,
sendo o que se possa citar em contrario
apenas excepções e violencias nascidas da
barbaridade e incerteza dos tempos.
[207]
Que restava, pois, para constituir a propriedade
da corôa, ou, com mais rigorosa expressão,
os bens do estado? Exactamente as terras que
se achavam n'uma situação analoga á
d'aquellas
que os arabes aproveitavam para estabelecer
colonias dos seus correligionarios, isto é, as dos
mouros, agora vencidos, que os combates continuos,
e a despovoação, resultado das guerras
d'exterminio, deviam deixar sem donos: além
d'estas, as terras fiscaes dos sarracenos onde
existissem; as que por crimes ou por outro qualquer
motivo analogo podiam perder para o fisco
os particulares; e ultimamente as que fazia cahir
no dominio do Estado o direito de maninhadego
ou maneria.
O maninhadego ou maneria era o direito pelo
qual a corôa, nas terras que não pertenciam a
senhorio particular, herdava os bens dos villões
(
vilani) que morriam sem filhos.
Este direito,
que bem tarde se extinguiu inteiramente, foi
confundido pelos nossos escriptores, como de menos
monta, com outros vexames que opprimiam
n'essa epocha o terceiro estado ou o povo. Todavia
elle teve forçosamente consequencias sociaes
muito mais graves que outros, que mereceram
a especial attenção dos antiquarios, pouco
felizes
[208]
geralmente em assignalar a verdadeira relação
e influencia de cada instituição, costume, ou
lei,
no modo d'existir do corpo politico. N'uma epocha
em que o exercicio da guerra era a primeira
occupação dos homens, as batalhas, as
invasões,
as correrias diarias, os recontros, mais mortiferos
que hoje pela maior frequencia dos combates
corpo a corpo, a vida dos captivos menos respeitada,
as escaladas das povoações, mais sanguinolentas
pela ferocidade dos costumes augmentada
pelos odios religiosos; todas essas cousas
deviam trazer a morte de grande numero de
mancebos antes de terem successores, ou deixando
sem elles seus paes, e além d'isso causar
a anniquilação completa de familias inteiras. A
isto accrescentem-se as epidemias e contagios,
e imagine-se quantas propriedades territoriaes
deviam vir ao dominio da corôa pela maneria;
por esse direito que ia, não tomar em parte o producto
do trabalho, pelos impostos, mas absorver
os bens de raiz no momento da transmissão. A
exempção do maninhadego não
é um dos privilegios
mais triviaes nas cartas de povoação ou
foraes, e, sendo tal direito extincto de todo só
no reinado de D. João I, necessariamente serviu
muito para augmentar o patrimonio da nação.
[209]
O cumulo formado por todos estes elementos
diversos constituia, por assim dizer, a parte fixa
dos haveres do Estado: os tributos dos municipios
constituiam o seu rendimento incerto quasi
com os mesmos caracteres das contribuições
modernas,
salvo o serem, não geraes, mas locaes.
As terras da corôa produziam para a fazenda
publica como outra qualquer propriedade particular
para seu dono, ao passo que a renda dos
tributos impostos por foral, consistindo, não só
nas penas dos crimes, quasi sempre pecuniarias
ainda nos mais graves, mas tambem nos direitos
tirados principalmente do commercio interno e
da industria, na mais lata significação d'esta
palavra,
dependia da maior ou menor extensão da
criminalidade, em que deviam influir poderosamente
mil causas moraes; do movimento commercial;
e, finalmente, das variações das diversas
industrias, a mais fixa das quaes era a agricola.
Assim, nos primeiros tempos da monarchia o
Estado subsistia como um proprietario, ou como
uma familia particular, pelas rendas dos seus
bens, e ao mesmo tempo como uma associação,
pelas contribuições dos seus membros, sendo
para este fim considerados só como taes os
cidadãos
ou visinhos dos municipios ou concelhos.
[210]
Uma das circumstancias que nunca deve esquecer-nos,
se quizermos desapaixonadamente
avaliar a questão que nos occupa, é este caracter
exclusivo das contribuições. No estado actual
dos conhecimentos historicos, é incontestavel
que a classe nobre e o alto clero
[45]
estavam exemptos
d'ellas: os territorios coutados e honrados,
cujo principal caracter era não
fazer foro
algum
a el-rei, não existiam só por
diplomas de privilegio,
existiam tambem por outros titulos, e até
por
linhagem, isto é,
por pertencerem a uma
[211]
familia nobre, direito que chegou a produzir o
amadigo, expressão que
indicava o privilegio
de se estender a qualidade de honradas ás propriedades
onde se creavam os filhos de fidalgos,
e ainda, segundo parece de alguns documentos,
os seus cães de caça. Os bens das cathedraes e
mosteiros eram egualmente coutados, e por consequencia
exemptos dos tributos para o rei, que
todos, como dissemos, recahiam sobre os concelhos,
e que se achavam consignados nos foraes.
É das feições caracteristicas d'estes
que nos
cumpre agora fallar.
[212]
II
Quem correr os livros dos nossos escriptores
que tractaram dos começos da monarchia achará
em quasi todos uma definição ou antes
descripção
da cousa que, segundo elles, se ha-de entender
pela palavra
Foral. Estas
definições, bem que
ás vezes se approximem um pouco da verdade,
são sempre mais ou menos incompletas, demasiadas,
ou falsas; porque realmente nunca se
attendeu bem aos caracteres distinctivos d'esta
importantissima especie de diplomas, de que felizmente
nos restam muitos centenares, e que
são a fonte mais rica, ou antes quasi a unica,
da historia municipal e por consequencia da historia
da classe a que, no simulacro de representação
nacional dos tempos do absolutismo, se
chamou
braço do povo, e
a que os francezes
chamavam
terceiro estado.
O primeiro erro que tem havido, quanto a nós,
no definir os foraes, é o pretender incluil-os
todos em uma unica formula. D'aqui nasceu
[213]
confundirem-se as diversas especies de cartas
ou diplomas a que antes dos fins do seculo XIII
se chamou
forum,
foros, e depois
foral. Escrevendo
em epochas em que o valor das palavras
estava já fixado, os que tractaram de similhante
objecto esqueceram-se de que no seculo XII
ou XIII, em que as idéas eram limitadas e confusas,
e muito mais as linguas, que então passavam
por um periodo de transformação; esqueceram-se,
dizemos, de que o mais difficultoso
mister de quem estuda as instituições e os factos
d'esses seculos é o não se deixar enganar
por expressões variaveis de dois modos: ou porque
uma denominação se applicava a differentes
objectos, ou porque um objecto tinha differentes
denominações. As palavras
forum,
foros,
bonos
foros,
karta firmitudinis et
stabilitatis,
foral,
estavam justamente no caso da primeira hypothese.
Outro erro, em nosso entender, tem havido
no apreciar os foraes, e é o imaginar que os redactores
e promulgadores d'esses diplomas tinham
idéas precisas e completas sobre a natureza
da sociedade, e que distinguiam rigorosamente
o direito publico do civil, o systema de
administração e fazenda do exercicio do poder
[214]
judicial, o ecclesiastico do militar, os diversos
modos de possuir, etc. Nada d'isso, porém, acontecia:
as instituições, como as idéas,
fluctuavam
indecisas, luctavam, compenetravam-se. Quem
intentasse dizer―«tal facto social era d'este
modo em todos os logares, em todas as circumstancias»―nunca
poderia estabelecer um só
ponto da historia da sociedade; porque nem um
só deixaria de lhe offerecer um certo numero de
excepções, e se pretendesse concilial-as,
forçosamente
apresentaria a questão a uma luz falsa e
contradictoria. Atrever-se a desprezar é talvez
a primeira qualidade de quem estuda o passado:
tanto o excesso como a falta d'ella podem produzir
consequencias graves na apreciação das
cousas d'esses tempos. A difficuldade de fugir a
erros de similhante especie tem-os tornado demasiadamente
communs.
Para conhecer, pois, o que eram os foraes
deve-se attender não só ás suas
circumstancias
predominantes ou caracteristicas, mas tambem
ás variedades que n'estas apparecem: é isto o
que procuraremos fazer.
A principal especie de foraes são as cartas de
povoação em que se estabeleceram a existencia
e as relações d'essas sociedades elementares
[215]
chamadas
concelhos com a sociedade
complexa
e geral chamada nação ou com os seus agentes,
incluindo debaixo d'esta denominação o mesmo
rei. A tal especie pertence o maximo numero
d'aquelles diplomas; e é esta a idéa que, em
regra, devemos ligar á palavra foral.
A segunda especie é a d'aquelles que eram
verdadeiras leis civis ou criminaes dadas a um
concelho que já existia ou se formava de novo,
e a que faltavam
costumes ou leis
consuetudinarias
que regulassem os direitos e obrigações
reciprocas dos individuos, ou esses costumes
fossem taes que se tornasse necessario reformal-os
para se estabelecer a ordem e a paz
dentro do municipio. Esta especie de foraes é a
menos vulgar.
A terceira especie é a d'aquelles que eram
simples
aforamentos feitos
collectivamente, ou
por titulo generico, a um numero de individuos,
determinado ou não, em que se estipulava o
foro ou pensão que cada
morador devia pagar
ao senhor do terreno, quer este fôsse do estado
(terras da corôa), quer do rei (reguengos), quer
particular (herdamentos). Esta especie, que se
afasta quasi inteiramente da formula ordinaria
dos foraes, é mais commum que a antecedente.
[216]
Em geral os foraes das povoações reguengas
pertencem a esta divisão.
Uma quarta especie de foraes temos encontrado
que, não pertencendo propriamente a nenhuma
das antecedentes, póde dizer-se que pertencem
a todas, porque todas, e principalmente
a primeira e segunda, predominam n'elles com
egual força. Esses foraes parecem ter sido destinados,
não a constituir ou restaurar um municipio,
nem a supprir a falta de costumes tradicionaes
que servissem de direito civil local, nem,
finalmente, a fixar a propriedade individual por
via de uma carta d'emphyteuse, mas a remover
a desordem nascida da má organisação
anterior
d'isso tudo, ou da tyrannia e violencia do senhor
da terra (donatario), ou da barbaria e desenfreamento
dos habitantes, ou de tudo isto juncto.
Similhantes foraes não são raros.
Estas são as especies em que nos parece dever
dividir-se a grande collecção de diplomas que
existem nos archivos do reino sob a denominação
de foraes. Sujeitando-as a uma classificação
moderna poder-se-hiam considerar os primeiros
como o pacto social, a constituição politica,
digamos
assim, dos municipios, mas com a circumstancia
de ligar estes ao corpo moral, em cujo
[217]
gremio se continham; os segundos como leis
civis locaes; os terceiros como um genero d'emphyteuse
ou emprazamento, em que os emphyteutas
adquiriam o dominio util por um titulo
collectivo, ficando ao
povoador,
ou encarregado
de tornar effectivo o emprazamento, o distribuir
e demarcar a propriedade de cada um dos moradores,
cujo numero ora se indica ora não no
foral; os quartos, emfim, como um composto de
tudo isso, mas monstruoso e incompleto.
Não esqueça, porém, o que dissemos:
estas
caracteristicas de cada uma das especies não
são exclusivas: ás vezes
disposições civis ou criminaes
apparecem incluidas na constituição municipal
sem que ahi viessem para estabelecer
alguma relação entre o concelho e o estado; assim
como nos foraes de legislação civil se
vêem
disposições verdadeiramente reguladoras d'algumas
d'aquellas relações, e o mesmo nos
foraes-emprazamentos.
O habito de estudar similhantes
documentos e certo tacto historico é que póde
habilitar qualquer a discriminar o caracter proprio
de cada um d'elles.
Sendo o nosso intuito considerar os foraes
principalmente em relação á economia
geral do
estado, tractaremos com preferencia dos da primeira
[218]
especie, e por isso todas as vezes que
repetirmos a palavra
foral
entenda-se que alludimos
a ella.
Tem-se dicto que os foraes eram a
legislação
dos concelhos; e, até, que houve uma epocha
em que foram as unicas leis do paiz. Similhantes
opiniões são ainda hoje triviaes; e todavia basta
considerarmos as condições necessarias para a
existencia de uma nação, attendermos
ás disposições
que se acham no commum d'estes diplomas,
e, finalmente, lembrarmo'-nos da situação
hierarchica, do modo de ser especial e exclusivo
de cada classe da sociedade, principalmente
nos dois primeiros seculos da monarchia,
para conhecermos o infundado e até o impossivel
de taes opiniões. A verdade do que dizemos
breve teremos occasião de proval-a.
Qual seria o pensamento que presidiu á
promulgação
dos foraes? A resposta a esta pergunta
deve esclarecer-nos sobre a sua verdadeira natureza.
N'um paiz assolado por guerras de religião e
de raça, muitas povoações antigas
estavam reduzidas,
ao constituir-se a monarchia, a um montão
de ruinas; e se nem as maiores e melhores
escapavam (como nos consta de Braga e de outras
[219]
cidades em tempo do conde Henrique), muito
mais devia ser essa a sorte dos logares abertos
e mal defendidos. Tractava-se, pois, de fazer
renascer das suas cinzas as antigas povoações,
e de crear outras novas, attrahindo para aquelles
centros familias que edificassem os burgos e
aldeias e cultivassem os campos. Mas para que
se fazia isto? Porque se não iam buscar á hoste,
ou exercito, todos os homens de guerra, e não se
lhes distribuia o territorio como honras, coutos,
ou préstamos, para os cultivarem com os solarengos,
com os captivos mouros, e com os servos de
creação (
homines de
creatione), mais vulgarmente
conhecidos pela denominação de malados
(
homines de maladia), ou, emfim,
para evitar
os inconvenientes economicos que, segundo ao
deante veremos, resultavam no distribuir as terras
pelos
milites (cavalleiros),
porque não se preferia
o systema da terceira especie de foraes,
que não passavam de aforamentos collectivos, e
por isso não tinham o mesmo caracter? Porque
se restaurava até certo ponto a
organisação das
provincias romanas, essencialmente municipal?
O que se casava mais naturalmente com o espirito
da epocha era o methodo contrario: as influencias
do feudalismo eram energicas entre
[220]
nós no berço da monarchia; os delegados do
poder real e os possuidores de terras da corôa
procuravam dar aos seus cargos e
préstamos,
que não passavam, aquelles de
delegações,
estes
de verdadeiros
beneficios, o
caracter de feudos.
E todavia o progresso do systema opposto foi
rapido e espantoso: no fim do reinado de D. Affonso
III Portugal estava coberto de concelhos.
Ao passo que nos paizes essencialmente feudaes
estas pequenas republicas quasi sempre se formavam
pela revolta e no meio de grandes luctas,
entre nós realmente aconteceu o que Mr. Thierry
nega e mostra ser uma opinião falsa relativamente
á França: isto é, foram principalmente
instituidas por espontanea vontade do rei, ainda
que não faltem fundamentos para crer que algumas
das mais antigas cartas de communa ou
foraes, e entre estes o de Coimbra em tempo
do conde D. Henrique, se obtiveram por violencia,
e depois de uma lucta em que a auctoridade
soberana não levou a melhoria. E, quando outras
provas não houvesse de que n'estas partes
da Peninsula tambem as
conjurações
ou ligas
de burguezes, chamadas entre nós
irmandades
(
germanitates), arrancaram
á força, como em
França, privilegios e franquezas aos senhores,
[221]
bastará lembrarmo'-nos da historia de Compostella,
no tempo de Diogo Gelmirez, para conhecermos
perfeitamente a identidade d'esses movimentos
populares em um e outro paiz.
Mas os vestigios d'esses factos, que por uma
coincidencia singular apparecem quasi exclusivamente
practicados nas cidades episcopaes, ou,
por outra, dirigidos contra o alto-clero, classe a
mais poderosa, entre a qual e o rei tambem
havia guerra mortal; similhantes vestigios, dizemos,
faltam de todo no tempo de D. Affonso III,
e é justamente do reinado d'aquelle principe que
nós temos mais foraes, talvez, do que de todos
os outros reinados junctos.
Para estas tendencias, apparentemente mais
populares que feudaes da parte do poder central,
houve por certo motivos. Se podermos
attingir quaes fossem, teremos meios de achar
o pensamento geral dos foraes, e de por elle
avaliar os caracteres d'estes que deviam dirigir-se
a preencher as indicações d'aquellas mesmas
causas por que se promulgavam. Nós cremos
que diversos motivos se deram effectivamente
para este incremento rapido dos municipios.
Que houve uma razão politica da parte do
elemento monarchico, do poder real, para formar
[222]
aquellas agglomerações de
população plebea,
parece-nos incontestavel. O alto-clero, o mais
terrivel adversario da monarchia no primeiro
periodo da nossa historia, estava por muitos modos
ligado com a nobreza, ligado sobre tudo porque,
em relação aos privilegios e á
propriedade,
estas duas classes eram identicas: ambas possuiam
castellos e senhorios, coutados e honrados;
ambas tinham préstamos da corôa; ambas
se compunham de homens de guerra ou os capitaneavam,
porque, em geral, os bispos eram
mais expertos em provar armaduras e menear
armas que em entender o evangelho: a sciencia
nas cathedraes era cousa mui secundaria; tinha
o que quer que era de monastica e rasteira, e
os bispos e os seus cabidos occupavam-se mais
dos negocios terrenos que das cousas do céu.
A esta identidade de situação, que
forçosamente
havia de approximar as duas classes e por
isso fortalecer uma pela outra, accrescia que por
ignorante que fosse o clero, comparado com a
nobreza mergulhada na mais crassa barbaria,
ainda se podia chamar illustrado. Além d'isso,
a fidalguia, no seu estado natural de hostilidade
com o rei, tinha de soccorrer-se unicamente ás
proprias forças, tirar da propria intelligencia e
[223]
vontade as doutrinas e meios de se conservar
forte e unida: o clero, porém, encostava-se a
uma columna inabalavel―as doutrinas, a energia,
e a illustração da curia romana, immensa
para aquelles seculos; porque nunca na cadeira
primaz de Roma se assentou uma serie de homens
tão grandes como os que, não presidiram,
mas governaram o orbe catholico, no primeiro
periodo da nossa historia. Assim, o rei tinha de
sustentar um duro combate com a cleresia, sem
que podesse contar com a nobreza, salvo com
um ou outro individuo que se inclinava para
elle por interesses especiaes, que ás vezes não
eram dos mais licitos e honrosos.
Restava o povo. Apesar da crença viva, da
superstição, e até do fanatismo das
turbas
n'aquellas eras, o povo não respeitava o clero.
Um phenomeno, ou que se não tem observado,
ou a que se não deu a devida importancia, é a
distincção que o povo fazia entre as
crenças religiosas
e os ministros do culto, distincção clara
e precisa, que resulta de mil factos. Do seu odio
contra os dignitarios da egreja ha provas irrecusaveis,
mais evidentes do que do odio contra a
nobreza. E porque? Porque a má vontade que
tinha aos nobres não podia resfolegar: contra
[224]
elles achava-se em campo só. A guerra do rei
á fidalguia era uma necessidade de
situação; o
elemento aristocratico embaraçava o progresso
da unidade monarchica; mas o combate dos dois
elementos era vagaroso e surdo: pelejava-se nas
trevas; as multidões não o viam nem sentiam;
e quando algum dos factos em que elle se revelava
era de tal natureza que ellas o comprehendessem,
attribuiam-no a dissenções individuaes
e não alcançavam que pertencesse a uma
lucta complexa de classe. A guerra, porém, da
cleresia era estrepitosa: as batalhas succediam
ás batalhas; o povo palpava, por assim dizer, as
armas dos contendores, ouvia o som dos recontros,
e batia as palmas ao rei que o vingava
da metade, não peior, mas mais poderosa, dos
seus oppressores.
Entre diversos acontecimentos d'aquella epocha,
analogos ao que vamos apontar, nenhum
melhor do que elle prova que tal era o estado
das cousas. Fallamos das dissensões do violento
D. Sancho I com o bispo do Porto, D. Martinho II,
dissensões de que D. Rodrigo da Cunha fala
como passadas entre os burguezes e o prelado,
mas que foram verdadeiramente com o rei. O
papa Innocencio III nos refere miudamente a
[225]
historia d'essa lucta atroz e tenaz, suscitada pelas
eternas questões de jurisdicções e
tributos entre
a monarchia e o clero, e renovada pela
desapprovação
do bispo ao casamento do infante
D. Affonso (Affonso II). Da bulla relativa a este
negocio se vê que el-rei lançou o povo,
perdoe-se-nos
a expressão, como um mastim raivoso
contra o bispo e o cabido, e que o povo cumpriu,
além do que se poderia desejar, as
intenções
d'el-rei
[46].
A excommunhão vibrou-se do
alto do solio papal sobre a cabeça de D. Sancho
e sobre as cabeças de alguns burguezes obscuros―o
rei nivelou-se com a plebe―, circumstancia
singular que mostra que nos combates
com o bispo o povo não fôra apenas um instrumento
cego e debil. Innocencio III não costumava
fazer vergar as cervizes senão dos fortes e altivos:
desprezava os instrumentos das violencias
[226]
e tyrannias, e não nos consta excommungasse
os saiões ou algozes que por mandado do mesmo
D. Sancho arrancaram os olhos ao clero de Coimbra.
Entre os populares fulminados na bulla lá
se descobre um nome que, por si só, revela a
existencia d'um d'esses homens energicos que
costumam surgir no meio das turbas agitadas e
as dirigem, e são durante algum tempo os seus
idolos, até que, por via de regra, ellas proprias
ou os annullam ou os esmagam. Chamava-se o
burguez criminoso Pedro
Feudo-tirou,
denominação
estranha e insolita, se a tomarmos como
appellido, mas de grande significação, se a
quizermos
olhar como uma d'estas alcunhas em que
o povo usa resumir pela circumstancia mais
proeminente da vida dos individuos a biographia
e o caracter d'elles. Pedro, a quem o vulgacho
denominara
Feudo-tirou (tirou o
feudo, o senhorio,
a oppressão), era porventura um O'Connel
municipal do seculo XIII, um grande agitador,
sobre cuja memoria as chronicas escriptas nos
paços e nos mosteiros chumbaram a lagem do
esquecimento, e que a historia moderna tem
quasi de adivinhar nas palavras e nas allusões
obscuras dos velhos diplomas.
Havia, portanto, uma razão politica para o
[227]
estabelecimento dos concelhos: o rei achava
n'elles seus naturaes alliados. Que esta razão
fosse um calculo, uma idéa clara e precisa, um
systema fixo dos primeiros reis, não o diremos;
e até duvidamos muito d'isso. Mas era ao menos
um instincto, instincto que as luctas com o alto-clero
e as resistencias da fidalguia deviam todos
os dias despertar. Assim, a promulgação dos
foraes,
isto é, a instituição dos concelhos,
torna-se
cada vez mais frequente, ao passo que os reis
se habilitam para terminar por uma composição
vantajosa a guerra ecclesiastica, e para começar
a grande empreza da sujeição da aristocracia
secular.
O reinado de D. Afonso III é o que mais corrobora
o nosso pensamento, e o põe a uma
grande luz: D. Affonso obtivera a corôa das mãos
do alto-clero, e n'esta classe devia buscar seu
arrimo. Todavia o conde de Bolonha não ignorava
por que preço se lhe pretendia vender a
posse do throno, e desde a concordata de Paris
mostrara que a intenção de o pagar não
era muito
vehemente. De feito, logo que se viu pacifico
senhor do paiz continuou a guerra ecclesiastica
sem diminuir ponto da energia de seus antecessores.
Com menos relações entre os membros
[228]
da fidalguia, vivos ainda os odios dos parciaes
do D. Sancho II, elle devia forçosamente recorrer
ás mesmas allianças populares dos seus
antecessores, e recorrer com muito mais actividade
do que elles. Foi o que succedeu, quanto
a nós; e a multiplicidade espantosa de foraes
concedidos por este principe parece-nos nascer
mais d'essa causa que da necessidade de povoar,
porque, como já dissemos não menos possivel,
e mais natural segundo as idéas do tempo,
era o systema dos préstamos e o das
pobras, ou
concessão de porções do territorio por
emprazamentos,
do que o estabelecimento dos concelhos.
E, depois, não vinha o conde de Bolonha de
um paiz, a França, onde restrugiam ainda as
revoltas populares, sobre tudo no norte, e a
formação
das communas? Teria sido para elle inteiramente
inutil o espectaculo d'essas contendas,
que, como observa Mr. Thierry, eram quasi
exclusivamente entre o clero feudal e os burguezes,
cuja força ellas provavam? Preparando-se
para resgatar pela força o throno que obtivera
com manha, devia acaso esquecer-se de
arma tão forte e experimentada? E não apparece
n'isto tudo uma explicação plausivel das
tendencias
[229]
municipaes do seu reinado, tendencias para
as quaes não será facil encontrar outra
razão
politica assaz satisfatoria?
Temos assim achado uma causa para a instituição
dos concelhos: veremos depois se ella
apparece actuando nas disposições dos foraes, o
que servirá para a demonstrar
a
posteriori. Chegaremos
por este modo a uma conclusão inteiramente
opposta ao principio de que parece partir-se
no artigo publicado no V volume do
Panorama
relativamente aos foraes, isto é, que foi
o clero quem promoveu o estabelecimento dos
concelhos. Além de desconhecermos a existencia
de monumentos historicos que nos auctorisem
a assim pensar, as considerações que fizemos
indicam inteiramente o contrario.
Se não nos enganamos, o motivo d'estas
differenças
capitaes é facil de reconhecer. Desde que
se publicaram as
Memorias de A. C.
do Amaral
hão sido estas quasi a unica fonte de quanto se
tem escripto, tanto no paiz como fóra d'elle,
ácerca da sociedade portugueza primitiva. Sem
desprezar os uteis trabalhos d'aquelle sabio academico,
é incontestavel que elle nem sempre
tirou as verdadeiras conclusões historicas dos
documentos que consultou, e que sobre tudo
[230]
desconheceu o modo de ser da edade-media, ou,
para nos servirmos d'um neologismo, a sua côr
local
[47].
No que diz quando tracta dos foraes parece
considerar como primeira especie os dados
por particulares, e entre estes figuram principalmente
os das ordens de monges-cavalleiros, os
de bispos e os de abbades, fazendo só depois
menção dos promulgados pelos reis; e talvez
d'aqui nascesse o não se ver o facto á sua
verdadeira
luz.
Todavia aquelles foraes particulares, ou não
passam de emprazamentos collectivos, ou são
concedidos pelos donatarios da corôa como representantes
do rei; pelos governadores dos districtos,
castellos, e logares (
tenentes); e
pelos
povoadores delegados
ad hoc para
instituirem o
municipio cuja carta redigiram. O verdadeiro
foral, a carta de communa que fazia existir o
concelho como entidade politica, partia do rei:
[231]
só d'elle podia partir. Fosse quem quer que
fosse o promulgador do foral, chame elle até no
preambulo do diploma ao territorio do concelho
instituido propriedade sua (
meam
hereditatem),
esse homem não era mais que um representante
do principe, exercitava apenas uma delegação.
Ainda que a natureza dos foraes em Leão e Castella
seja diversa em muitas cousas da dos nossos,
esta condição era em ambos os paizes a
mesma, e os escriptores portuguezes deviam ter
presente a opinião fundamentada de Martinez Marina
a similhante respeito.
Mas ao que sobre tudo lhes cumpria attender
era aos proprios foraes. N'estes se achavam as
provas de que ainda os que mais parecem ser
espontaneamente concedidos por particulares em
territorio particular dimanam do poder central;
são actos cujo auctor se ha-de subentender que
é o rei. Citaremos um foral impresso
[48] e conhecido,
em que se demonstra evidentemente a
nossa proposição como nos outros analogos.
É o
foral dado por Gil Martins e sua mulher á que
elles chamam sua propriedade (
nostra
hereditate)
[232]
de Terena. Concedera-lhe fôro e costumes d'Evora,
e ahi regulam os direitos reaes, como o fossado,
ou serviço das correrias militares, e as
calumnias, ou coimas dos crimes, pertencentes
ao fisco; egualam no fôro judicial os cavalleiros
villões de Terena aos ricos-homens e
infanções
de
Portugal, e os peões
aos cavalleiros villões
d'
outras terras; ordenam que,
tendo os de Terena
demanda com alguem de
outra terra,
a
causa se decidia por inquerito ou combate judicial
(
reto), e que se alguem
vier de fóra á
villa
tirar vinho ou mantimentos, e ahi assassinarem
ou ferirem,
aos parentes do morto não
fique o
homizio, isto é,
acção de revindicta, ou o direito
de matarem o assassino, direito commum
n'esse tempo; reteem, finalmente, para si os
reguengos
(a propriedade patrimonial do rei), as
matas, etc. Como é possivel deixar de vêr um
simples donatario ou préstameiro n'esse Gil Martins
que dispõe dos serviços militares e das coimas,
tira direitos a extranhos, dá privilegios aos
seus subditos nos tribunaes, e reserva para si
bens patrimoniaes do rei? Quem póde admittir
o irrisorio absurdo de que os nobres de Portugal
acceitariam por seus eguaes em juizo os villões
de Terena porque assim o mandava Gil Martins,
[233]
ou de que os parentes de um extranho assassinado
por esses mesmos villões poriam de parte
o seu direito de revindicta porque elle o ordenava?
Sem o sacrificio do senso commum tal
supposição é impossivel.
A verdade é que só uma auctoridade que se
extendesse por todo o paiz podia ordenar as
relações
de um municipio com os municipios ou
individuos extranhos. Quando em alguns d'estes
foraes se exemptam os habitantes de um concelho
de pagar portagem por todo o reino, esse
privilegio vai affectar não só a fazenda publica
mas direitos particulares
[49];
e supponha-se qual
se quizer a extensão do poder dos senhorios de
terras, e da nobreza e alto-clero nas suas honras,
será sempre ridiculo pensar que o rei ou
os outros nobres e prelados deixassem sahir a
acção d'esse poder dos limites do respectivo
territorio.
Voltemos, porém, ao nosso assumpto, de que
um pouco nos alongámos, posto que não
inutilmente.
[234]
A segunda causa que devia obrigar o poder
central a promover a creação dos municipios era
a fazenda publica, as necessidades pecuniarias
do estado: para avaliar a acção d'esta causa
é
preciso tornar a dizer alguma cousa sobre a propriedade
publica ou bens da corôa, cujos proventos
eram poucos, ao passo que as contribuições
de foral os vinham amplamente supprir. A
questão da fazenda prende-se com toda a machina
da organisação social, e por ella chegaremos
talvez a descobrir as outras caracteristicas
essenciaes das instituições do municipio.
[235]
III
Dissemos antes quaes eram os elementos que
faziam subsistir e engrossar o cumulo dos bens
de raiz de que se compunha o patrimonio fixo do
estado. Esse cumulo, que já existia na occasião
em que se estabeleceu a independencia de Portugal,
porque os que possuia a corôa leonesa no
territorio d'esta provincia passaram com esse
territorio para os seus novos senhores, cresceu
forçosamente com rapidez pelas conquistas dos
nossos primeiros reis e pelos modos de acquisição
que anteriormente indicámos. Mas se essas
causas tendiam activamente para o augmento
da propriedade fiscal, outras havia não menos
poderosas para reduzir, não o seu valor como
capital, porque estes bens não podiam ser alheados
perpetuamente, mas o seu valor como fonte
de rendimento publico; porque o rei tinha o direito
de os converter em préstamos
(
prestimonium,
aprestamo, e d'ahi
emprestimo) e fazer
d'elles mercê por um praso indeterminado. Este
[236]
direito facilitava o caminho á cobiça dos
ecclesiasticos
e dos nobres. A necessidade que os
reis tinham de simular piedosa liberalidade para
com a egreja, quando eram os mais fracos e não
podiam conter pela força o alto-clero, ou quando,
visinhos da morte, os terrores do inferno, e talvez
antes os receios de deixar vacillante o throno
ao seu successor, os moviam a desbaratar com
mão larga em beneficio da egreja o patrimonio
publico, para remirem passadas violencias; esta
necessidade, dizemos, era o principal sorvedouro
dos bens da corôa. O estado continuo de guerra
era o segundo. Não contentes das
optimas
solidatas,
dos excellentes soldos que venciam para
servirem com homens d'armas na hoste real, os
fidalgos obtinham por todos os modos os préstamos
que escapavam ao clero. Assim, diminuidas
ou antes anniquiladas as rendas publicas provenientes
immediatamente da terra, a unica maneira
de as supprir, de poder pagar essas mesmas
optimas solidatas aos nobres,
pouco resolvidos
a morrerem gratuitamente pela cruz e pela
patria, era ir buscar os tributos do municipio.
D'aqui devia provir por força maior o rapido
augmento da promulgação dos foraes, e o serem
as disposições n'elles contidas exaradas por tal
[237]
arte, que o concelho pagasse serviços pessoaes,
em generos, e em dinheiro (especies de tributo
diversas no accidental, mas na essencia identicas)
as maiores contribuições possiveis. Do exame
das cartas de foral, das doações, e dos mais
documentos
do primeiro periodo da sociedade portugueza
resulta evidentemente a acção capital
d'esta causa na instituição dos concelhos; mas
nenhum talvez melhor dá idéa do empobrecimento
do
Recábedo Regni―dos
haveres patrimoniaes
da nação, logo no berço da
monarchia―do
que uma das varias bullas relativas a Portugal
no reinado de D. Sancho I
[50].
N'este diploma
o papa refere-se a uma carta que D. Sancho
lhe dirigira, energica e até brutal, a ponto
que o audaz e violento Innocencio III parece
querer na sua resposta suavisar as expressões
altivas e ameaçadoras de que usa, segundo o
estylo da chancellaria romana n'aquelle seculo.
Entre outras cousas d'essa carta, que não vêm
para o nosso intento, é notavel um periodo
transcripto pelo papa, que, como era natural, o
[238]
taxa de
exhalar heretica perfidia.
Ahi lhe dizia
D. Sancho que não havia modo melhor de quebrantar
ou diminuir as mostras de luxo e suberba
dos hypocritas (
ii qui religionem
simulant),
principalmente dos prelados e clerigos, do
que tirar-lhes os motivos d'isso, a
demasiada
superabundancia de bens temporaes, que tinham
d'elle e de seu pae, com grave damno do reino
e dos successores da corôa, e
distribuir
esses
bens por seus filhos e pelos defensores do estado,
faltos muitas vezes do necessario.
Estas
expressões de D. Sancho, ou antes do seu chanceller,
pintam com vivas côres o estado dos
bens da corôa n'aquella epocha, e mostram como,
ao passo que o clero devorava a maior e melhor
porção d'elles, a fidalguia, que achava um
quinhão
diminuto no que lhe restava, não deixaria
de approvar que el-rei fizesse mais egual divisão
da preza.
Esta cubiça dos poderosos era tal, e tal a
precisão
em que os reis se viam de a satisfazer,
que os proprios tributos dos municipios se converteram
logo, até certo ponto, em préstamos.
Nos foraes suppõe-se, por via de regra, a existencia
de um
senhor da terra: as
instituições
municipaes, porém, nem creavam, nem tornavam
[239]
necessaria essa entidade como elemento organico.
O rei que constituia o concelho, muitas vezes
n'um ermo ou n'uma antiga povoação destruida
até os fundamentos, que os novos moradores deviam
reedificar, e cultivar-lhe o alfoz, era o senhor
natural d'essa povoação. E, todavia, na
carta, que vai, por assim dizer, tirar do nada um
municipio, apparecem logo previstos os deveres
e direitos dos villões para com um donatario;
para com um representante do principe; para
com o
senior terrae. Esta
circumstancia que prova?
Que esse facto era trivialissimo, e quasi
constante. Mas quando ainda isso fosse duvidoso,
os mesmos foraes nol-o provariam do modo mais
incontestavel: n'alguns d'elles (não é grande
o seu numero) apparece a condição de nunca a
terra ter por senhor senão o proprio rei ou um
filho seu, ou outrem que os villões approvem
[51],
[240]
o que mostra que só por excepção parte
das
contribuições municipaes deixavam de correr
para o sorvedouro das classes aristocraticas.
Se, porém, pela natureza da
organização municipal
não podemos achar a razão d'esta existencia
de um senhor ao lado de cada concelho que
nasce, achamol-a, todavia, em grande parte na
indole militar do paiz. O systema predominante
[241]
da guerra entre arabes e christãos, e principalmente
entre os ultimos, era d'assaltos e correrias
repentinas, conhecidos pelos nomes de
arrancada,
algara, etc.: d'aqui nascia a
necessidade
de construir um castello, uma fortificação,
onde quer que se estabelecia um logar ou villa,
principalmente d'aquelles districtos limitrophes
com provincias d'inimigos. Esse castello dava-se
a governar e defender a um cavalleiro com o
titulo de alcaide, titulo que recebemos do cargo
analogo entre os arabes, abandonando a
denominação
romana e mais antiga de
municeps[52],
que na edade-media tomára a
significação de
castellanus ou capitão
de fortaleza, se não é que
o
municeps indicava antes uma
especie―o castelleiro
da povoação acastellada de um
municipio.
N'aquelles concelhos em que por foral só
o rei ou seu filho podia ser senhor, as regalias d'este
municeps ou alcaide deviam ser mui
limitadas,
e reduzir-se talvez, pouco mais ou menos,
ás do moderno governador de uma fortaleza;
[242]
mas nos demais nada era mais facil, mais
natural, do que o rei dar em préstamo uma parte
dos direitos e rendas, que d'ahi lhe provinham
pela carta de foro ou pacto municipal, ao nobre
cavalleiro que se encarregava com os seus homens
d'armas de vigiar pela segurança da
povoação
nascente. Este alcaide vinha por similhante
modo a ser um verdadeiro donatario, um
senior, que, porventura,
não recebia soldo, o
que ainda ignoramos, por um serviço militar não
menos arriscado e trabalhoso que o do donatario
de terras da corôa, que o recebia para seguir
nas batalhas a hoste real.
Temos dicto
parte das
contribuições,
parte dos
tributos e rendas, porque os serviços pessoaes
impostos nas cartas de foro eram por via de
regra de natureza tal que não podiam aproveitar
ao donatario, ou
senior. Assim, a
adua, ou
obrigação
de trabalhar nas obras dos castellos e muralhas,
a
hoste, o
fossado, o
appellido, as
atalaias,
as
guardas, que constituiam as
differentes
variedades do serviço militar, e além d'isto
algumas
penas pecuniarias, que ás vezes no proprio
foral ficavam expressamente reservadas para
o fisco; estes impostos e outros analogos esquivavam-se
pela sua natureza á insaciabilidade dos
[243]
fidalgos; mas como elles podiam converter o
resto em utilidade particular, por esse motivo
talvez não apparecem entre nós resistencias
aristocraticas
á creação das communas, nem essas
luctas de morte de que a França nos offerece
tão repetidos exemplos.
Alludimos ao serviço militar dos concelhos.
Neste serviço está, quanto a nós, a
terceira
causa capital da efficacia sempre progressiva dos
reis na organisação de um vasto systema
municipal.
Para se entender a importancia d'aquelle
serviço, importancia não menos politica do que
militar, é necessario ter uma idéa clara do modo
de ser da sociedade geral, e da sociedade particular
chamada concelho.
Muitas vezes, falando da edade-media portugueza,
costumamos servir-nos da expressão
tempos
feudaes: estas palavras lêem-se em
escriptos
graves, retumbam dentro do parlamento, e quantas
vezes nós mesmos as teremos escripto e repetido!
Todavia, em relação ao velho Portugal
não ha phrase mais inexacta. Não é um
desar,
um nome deshonroso que nós queiramos aqui
apagar na fronte do passado―o feudalismo foi
um meio de progresso, um elemento de ordem,
e por consequencia um bem, em quanto a
civilisação
[244]
precisou d'elle―: o nosso intento é rectificar
um grande erro historico enraizado até em
bons espiritos. Embora muitos costumes dos paizes
da feudalidade se introduzissem entre nós,
a essencia da organisação feudal nunca vingou
na sociedade portugueza
[53]:
oppunha-se-lhe a indole
d'ella. A demonstração é facil.
Os dois caracteres principaes dos feudos eram
a perpetuidade do dominio d'elles no feudatario
e nos seus successores, e a obrigação do
serviço
militar para com o suzerano. O feudalismo apresentava
as jerarchias de suzeranos, feudatarios,
e subfeudatarios; e todas as propriedades de
certa importancia, ainda as que eram d'antes
livres ou allodiaes, se converteram geralmente
em feudos. A feudalidade devorou tudo nos paizes
onde existiu, e foi a propria essencia da sociedade.
Ahi, quasi que o ser homem livre era
ser nobre, e a nobreza, amoldando-se, por assim
dizer, a este pensamento e ás varias
situações
[245]
dos individuos, subdividia-se em grande numero
de gráus. Mas estes não se prendiam uns aos
outros senão pelo serviço militar: satisfeita
essa
condição, o feudatario era senhor absoluto dentro
das suas possessões, e ninguem o podia privar
d'ellas, nem aos seus herdeiros, ao menos
nos limites da estricta legalidade.
Estes caracteres, porém, do serviço militar e
da perpetuidade de successão faltavam entre nós
nas terras dos nobres, muitas das quaes eram
verdadeiramente patrimoniaes, ao passo que outras
pertenciam á corôa; mas nem estas podiam
ser dadas como feudos, nem aquellas, por consequencia,
virem tomar um caracter que faltava
nas proprias terras dos donatarios da corôa.
Á perpetuidade das doações, ao menos
no
primeiro periodo da nossa historia, oppunha-se
o direito constitucional do paiz―a inalienabilidade
do patrimonio do estado; porque esse direito
era o mesmo que receberamos de Leão.
J. P. Ribeiro, n'um escripto em que fôra conveniente
ao seu proposito a doutrina contraria, o
reconheceu, nem podia negal-o
[54].
Desde o reinado
[246]
de D. Affonso II appareceu a necessidade
das confirmações de rei a rei, as quaes
não são
mais do que o resultado da jurisprudencia constitucional,
e assim achamos não interrompido o
direito de reversão dos bens da corôa, quer estes
fossem de raiz, quer rendas, censos, ou quaesquer
direitos reaes. E posto que similhantes reversões
se não realisassem vulgarmente, ainda
nos resta o diploma pelo qual D. Diniz revogou
as mercês inofficiosas que fizera na sua primeira
mocidade.
A outra condição caracteristica, sem a qual se
não concebe a existencia do feudalismo, é a das
obrigações de serviço militar do
feudatario para
com o suzerano em virtude do seu dominio da
terra; quer esta fosse originariamente allodial
ou livre, e o possuidor a infeudasse a algum
nobre poderoso, ou ao rei, para que o amparasse;
ou fosse realmente havida d'estes por titulo
de feudo. Essa condição falta, porém,
no
modo de possuir das classes nobres de Portugal.
A propriedade aristocratica no primeiro periodo
da nossa historia podia ser de dois modos:
ou patrimonial, ou regalenga, isto é, da corôa.
Em um e outro caso essas propriedades eram
privilegiadas, e este privilegio consistia em serem
[247]
honradas ou coutadas. E quaes vinham a
ser os caracteres dos
coutos e
honras? O estarem
exemptos do serviço militar e dos tributos reaes.
Innumeraveis documentos coevos o fazem conhecer;
mas um sobre todos o leva á evidencia:
o proprio rei (D. Diniz) define esses privilegios.
«Coutar uma terra, diz elle, é escusar os seus
moradores de
hoste, e de
fossado, e de
foro, e
toda a
peita.»
[55]
Quatro expressões que abrangem
todos os tributos: serviço militar
(
hoste e
fossado),
contribuições em dinheiro ou generos
(
foro), penas pecuniarias ou
calumpnias (
peita).
Esta definição de
couto é extensiva
á
honra,
que A. C. do Amaral provou ser a mesma cousa
que o couto, quanto á identidade dos privilegios.
Dizemos quanto á identidade dos privilegios, porque
a nossa opinião é que as suas origens eram
diversas, e que além d'isso a
denominação de
honra era mais vaga, extendendo-se
ás propriedades
dos cavalleiros villões, do que se encontram
provas a cada passo nos foraes, vindo assim
muitas vezes a ser synonymo da palavra
cavallaria,
que em um dos seus varios significados
[248]
representava em geral as propriedades privilegiadas
por qualquer especie de nobreza militar.
Pelo que toca á differenca d'origem, se não
nos enganamos, o couto procedia de um acto
especial do rei, que privilegiava um territorio
ou herdamento, e a honra adquiria esta qualidade
mais pelo simples facto de pertencer a um
nobre do que por mercê do rei. Os abusos intoleraveis,
a que este systema desordenado de
privilegiar a terra deu azo, suscitaram as severas
providencias de D. Diniz, que remediaram
esses abusos quanto ao futuro, mas deixaram
subsistir os resultados que haviam produzido na
primeira epocha historica, isto é, até os fins do
seculo XIII. O complexo d'aquellas providencias
é talvez a collecção mais importante
de monumentos
para o estudo do modo de ser da propriedade
entre as altas classes nos tempos primordiaes
da monarchia
[56].
Vemos, pois, que quaesquer terras possuidas
pela aristocracia secular e ecclesiastica eram de
uma natureza opposta ás condições
capitaes dos
feudos. A exempção do serviço militar
deduzida
[249]
d'essa natureza tinha graves consequencias. Era
a primeira que os bens da corôa distribuidos com
mão-larga pela nobreza e pelo clero não serviam
para augmentar a força publica do paiz; era a
segunda que para obter o serviço militar dos
fidalgos e dos seus acostados ou homens d'armas,
serviço importante pela pericia e valor d'esta
casta illustre, cumpria estabelecer-lhes estipendios
que haviam de sahir, como já vimos, d'esse
mesmo tão defecado patrimonio publico; era a
terceira a necessidade de crear uma milicia gratuita,
que podesse supprir a falta dos homens
d'armas estipendiarios, quando os meios da fazenda
não chegassem para lhes pagar largamente,
e que ao mesmo tempo servissem de
elemento de equilibrio contra a força da aristocracia;
porque n'aquelles tempos barbaros, como
em todos os governos pessimos e nas sociedades
mal constituidas, os elementos d'equilibrio e de
ordem vão-se procurar sempre na força bruta
da soldadesca, com preferencia aos principios da
força moral.
Eis porque dissemos ha pouco que em nosso
entender a terceira causa capital da efficacia
com que os reis trabalharam por multiplicar as
existencias municipaes foi a importancia de organisar
[250]
o serviço militar. Esta organisação,
feita
em proveito do poder central, tinha tambem,
como dissemos, uma importancia politica, que
não é possivel desconhecer.
As causas, pois, que desenvolvemos com mais
alguma extensão e a que attribuimos o rapido
incremento dos concelhos, são tres principalmente:
o instincto de fortalecer o povo como
alliado da corôa contra as classes aristocraticas,
e em especial contra o clero; a necessidade de
crear uma fonte de rendimentos que permittisse
o desbarato dos bens da corôa; e, emfim, a conveniencia
de instituir uma milicia que supprisse
a falta da milicia feudal. Quanto ás causas moraes,
ás considerações piedosas e de amor da
prosperidade da nação, que se lêem nos
bondosos
escriptores de cousas historicas, com mágoa confessamos
que a nossa consciencia, involuntariamente
incredula, não tem inergia bastante para
as ir buscar ás paginas innocentes d'esses escriptores,
e aos preambulos pomposos dos foraes,
onde, na verdade, tão sanctos motivos e
considerações
se encontram ás vezes. Felizes aquelles
que podem ver as cousas da edade-media por
esse prisma de sete côres! A imagem que se
lhes representa aos olhos, se não é verdadeira,
[251]
é ao menos aprazivel. Os sonhos deleitosos são
bons; bons até quando são sonhos de homem
acordado.
Examinemos agora os municipios no seu modo
d'existir interno, e vejamos como elles correspondiam
ás causas que os fizeram nascer.
[252]
IV
Quando se tracta da classe popular no nosso
paiz, nenhuns documentos por certo offerecem
interesse egual ao d'essas cartas de communas,
que organisando-a lhe davam uma existencia
politica; que na realidade a convertiam n'um
elemento social. Lá está a origem da energia
sempre crescente do terceiro estado: lá foi
lançada
á terra a sementinha impalpavel, que nascendo
e vegetando no meio das procellas humanas,
das transformações da
nação, produziu no
fim de seis seculos a arvore robusta da liberdade.
Os pergaminhos, tostados pelo tempo, nos
quaes foram escriptos n'uma linguagem sempre
barbara, e ás vezes inintelligivel, os foros do
homem de trabalho, são um dos mais sanctos
monumentos da patria; são os nossos brazões,
de nós, os filhos do povo; são os nossos livros
de linhagens. Poderosos e nobres hoje, porque
hoje o trabalho é―deve-o ser pelo menos―a
[253]
primeira nobreza, cumpre-nos estudal-os com sincera
vontade. Mais de um titulo de direitos perdidos,
mais de uma prova da justiça com que
revindicámos outros, ahi os havemos de encontrar;
e sobre tudo achar as dividas politicas que
nossos avós contrahiram, e as injurias que receberam:
as primeiras―para as pagarmos pontualmente,
porque as gerações populares formam
um individuo só, solidario comsigo mesmo na
successão dos tempos; as segundas―para as
vingarmos? Não, porque o povo é forte, e o forte
deve ser generoso; mas para justificarmos as
nossas obras, mal interpretadas ás vezes pela
cegueira de honesta ignorancia, outras vezes pelas
preoccupações voluntarias de um egoismo,
interessado.
O estudo da indole dos concelhos na sua infancia
e juventude, util e moral á luz que apontámos,
é afóra isso innocente. As suas resistencias,
as suas luctas, a acção politica exercitada,
por elles, tudo isso é cousa morta; é historia.
Como os mosteiros―que foram por muito tempo
(permitia-se-nos a expressão) os municipios da
sociedade intellectual, o grande instrumento do progresso
e da ordem no mundo das idéas―assim
o antigo
concilium de nossos
avós passou;
[254]
porque, bem como os mosteiros, deixou de ter
um valor social. Entre a natureza do concelho
moderno, limitado na sua curta acção
administrativa,
e a dos municipios fundados nos primeiros
tempos da monarchia, as relações que
existem pouco além passam da identidade do
nome. Chrysálida da liberdade, ella os despedaçou
ao voar, cheia de vida e rica de esperanças,
pela face da terra. Os foros de homem livre,
que outr'ora tinham uma existencia de privilegio―a
existencia municipal―cujo caracter era a
exclusão, o ciume, e a guerra, não só
contra as
altas classes que podiam quebrar aquelles foros
e annullar esta existencia, mas contra as outras
aggressões politicas analogas, tudo isso se converteu
de privilegio em direito, de vida politica
local em liberdade geral, de conflicto de interesses
municipaes em unidade e harmonia de
interesses communs. Depois d'essa transformação,
o concelho, como a edade-media o concebera
e creara, seria uma monstruosidade impossivel,
e aquelles que imaginassem restituir-lhe
as attribuições, ou ainda uma pequena parte
da importancia que outr'ora teve, deveriam,
para serem logicos e darem-lhe uma significação,
restabelecer as formulas feudaes ou barbaras
[255]
que pela sua justa-posição lhe traziam
côr, vida,
relevo, e valor social.
Vimos a sociedade portugueza desenvolvendo-se,
logo na sua origem, fóra das condições
communs das outras sociedades nos seculos XII
e XIII: vimol-a fugir nas relações mutuas das
diversas classes, e principalmente nas d'estas
com o rei, das normas feudaes. Qual foi a causa
d'este phenomeno? A mesma que produziu uma
situação analoga em Leão e Castella.
Desenvolvel-a
e demonstral-a não cabe aqui: pertence a
um trabalho mais vasto. Basta que digamos que
essa causa foi a tradição visigothica nunca
apagada
na Hespanha, e que esta tradição não
era
feudal; porque a invasão dos arabes no principio
do VIII seculo não deu tempo a que o systema
beneficiario se transformasse em feudalismo na
Peninsula, como se transformou no resto da Europa
romano-germanica. N'isto exclusivamente
está o motivo do excepcional que offerece a indole
da primitiva sociedade portugueza.
Mas ficou a Hespanha central e occidental, e
sobre tudo aquella porção do territorio que nos
respeita em particular, exempta das influencias
da feudalidade? Não por certo: não era possivel.
As relações com as
populações dos estados
[256]
d'além dos Pyrenéus tinham pouco a pouco crescido
na monarchia leoneza: no tempo de Affonso
VI os laços mutuos das duas sociedades
hespanhola e franceza apertaram-se muito mais.
Este celebre principe vivia rodeado de cavalleiros
ultramontanos: os bispados e cabidos de Hespanha
encheram-se d'homens de raça gallo-franca
ou educados n'aquellas partes. Ha até fundamentos
para crer que algum dos dialectos da
França meridional chegou a ser lingua falada
na côrte de Toledo. Cluni enviou-nos os seus
monges e introduziu entre nós as idéas de
independencia
absoluta do clero, e, o que é mais,
teve força para alterar as formulas do culto com
a mudança do rito godo. Os territorios dados a
governar ao conde D. Henrique não foram os
mais malquinhoadas n'esta especie d'invasão:
todos sabem que o proprio conde era d'aquellas
partes, e que muitos seus naturaes o seguiram
aqui. No reinado de seu filho a influencia gallo-franca
é quasi a mesma, e accrescentam-se-lhe
as influencias de outros povos do norte. Os cruzados,
que, tocando nos nossos portos ao seguirem
para a Palestina, o ajudaram e a D. Sancho I
a conquistar as grandes povoações dos arabes,
cá
nos deixavam por via de regra cavalleiros notaveis,
[257]
clerigos, e até colonias dos povos d'além
dos Pyrenéus. Todos estes elementos nos traziam
sementes de feudalismo, e o terreno estava preparado,
até certo ponto, para o receber; porque
das causas que o tinham feito nascer e consolidar-se
muitas existiam entre nós. Assim a feudalidade,
sem poder penetrar no cerne da arvore
social, derramou-se, todavia, pelo alburno. A
idéa dos feudos generalisou-se na Galiza e em
Portugal, como hoje vemos generalisarem-se entre
nós idéas peregrinas, em politica, em
administração,
em litteratura, de um modo nebuloso
e confuso. Não faltam provas de se dar o titulo
de feudo até a simples concessões vitalicias do
usofructo de certas propriedades: e se nos deixarmos
levar pelo soido de muitas fórmulas, phrases,
e palavras dos antigos monumentos, e ainda por
alguns costumes locaes e instituições
secundarias,
n'esses obscuros tempos a nação tomará
muitas vezes a nossos olhos o aspecto de uma
sociedade feudal.
Se o feudalismo não fosse, pezados os seus
bens e os seus males, uma conveniencia, ou antes
uma necessidade, ao menos para as classes
mais fortes e poderosas, os elementos de
destruição
que elle continha em si proprio não o
[258]
teriam deixado vingar, ou tel-o-hiam dissolvido
rapidamente. Assim, a nossa fidalguia, que lhe
palpava as vantagens, acceitou-o por um lado,
ao passo que se alinha por outro ás
tradições
nacionaes. Tudo o que no feudalismo lhe podia
ser util em relação ás classes
inferiores buscou
enxertal-o na arvore visigothica; tudo o que a
podia constranger, ou entre si ou em relação ao
poder supremo, regeitou-o abraçando-se aos foros
antigos. Sem idéas fixas e definidas a similhante
respeito, o tacto da propria utilidade a
guiava para acolher ou repellir as instituições
feudaes. Tal nos parece a luz a que devemos vêr
o primeiro periodo da nossa historia: com ella
achamos um fio no meio do labyrintho de direitos
e deveres reciprocos e de condições diversas
de propriedade, que se podem deduzir dos documentos:
esses direitos, deveres, e condições
nutam entre os costumes domesticos e os usos
peregrinos―a innovação triumpha quasi sempre
da tradição em tudo o que, por assim dizer,
não muda a essencia do corpo politico. Os elementos
que devem transformar essa essencia são
a jurisprudencia canonica e a jurisprudencia romana:
a primeira, postoque já energica, limita
quasi unicamente a sua acção a fortificar o
clero:
[259]
a segunda, que ha de vir a ser a panoplia da
monarchia, encobre-se ainda debaixo do manto
negro d'esses personagens gravemente sinistros,
que ousam assentar-se na curia do rei juncto dos
seus ricos-homens, e que ás vezes nos apparecem
nos monumentos d'aquella epocha com o
titulo de
mestres das leis.
Guiados por estas doutrinas é que nós vamos
considerar a existencia interna dos concelhos,
não tanto nas suas particularidades accidentaes,
ou na variedade dos seus tributos e privilegios
(que muitas vezes não passam de uma differença
de nomes dados á mesma cousa), como nos seus
elementos essenciaes e nos seus caracteres genericos.
A estreiteza do nosso quadro nos não
permitte entrar n'essas indagações de ordem
inferior,
as quaes, de passagem seja dicto, apesar
do que sobre ellas se tem dissertado, ainda offerecem
um vasto campo a novos e mais exactos
trabalhos.
Na instituição dos concelhos portuguezes da
primeira epocha da nossa historia ha dois factos
capitaes que caracterisam a individualidade municipal
e a distinguem da communa dos paizes
centraes da Europa. O primeiro facto é que o
concelho na sua organisação interior era de certo
[260]
modo o transumpto da sociedade, era que elle
representava uma unidade moral: o segundo facto
é que essa organisação era a alguns
respeitos
essencialmente feudal.
N'estes dois factos combinados se resume o
aspecto do antigo municipio portuguez: por elles
se explica a sua economia interna e as suas
relações
com o rei e com os outros corpos do
estado.
No commum dos foraes achamos consignada
a existencia de tres classes distinctas: os cavalleiros
(
milites,
cabalarii), os clerigos
(
clerici), e
os peões (
pedones): ahi
encontramos tambem os
privilegios e encargos de cada uma d'ellas estabelecidos
separadamente. Em relação d'umas ás
outras estas tres classes representam os mesmos
tres gráus em que se divide a sociedade geral.
Uma denominação commum as une, porém,
e
nivella: uma palavra recorda a essas tres jerarchias
que á face da nobreza e do alto-clero
ellas são uma
só.―
Villões
(
villani) é nome
escripto
indistinctamente nas frontes de toda essa
plebe. Debalde o poder real dá ao cavalleiro
villão o foro judicial dos infanções,
e o titulo
de honras ás suas propriedades: a nobreza de
sangue olha sempre com altivo sobrecenho para
[261]
aquelles que o rei póde fazer eguaes d'ella perante
os magistrados, e cujas herdades póde honrar
por cartas de foro, mas a quem não póde dar
um nome illustre nem verdadeira fidalguia. Vejamos
agora quaes eram os privilegios e encargos
que distinguiam dos outros villões estes cavalleiros
plebeus.
Os privilegios principaes de
miles
villanus,
além do que já lembrámos de gosar de
formulas
especiaes no processo, consistiam principalmente
nos seguintes: 1.º na exempção das
jugadas, tributo
que se póde considerar como o principal
do paiz e que, imposto immediatamente na terra,
era regulado pela extensão da lavoura de cada
proprietario, tomando-se por base para essa
contribuição
o numero de jugos de bois que cada
um possuia: 2.º em não serem obrigados a dar
hospedagem aos cavalleiros nobres, officiaes do
rei, etc., que passavam pelo concelho, o que era
um dos gravames mais duros n'esses tempos de
rapina e d'insolencia: 3.º o receberem parte das
mulctas criminaes nos casos em que os culpados
eram mancebos ou malados das suas aldeias,
granjas, ou quintãas; e sobre tudo o não poder o
processo contra estes progredir depois da
citação,
em quanto o cavalleiro villão, estando ausente,
[262]
não voltasse ao concelho: 4.º na liberdade de
irem servir como homens d'armas os senhores
e nobres, sem que perdessem por isso os seus
privilegios municipaes: 5.º o pertencerem-lhes
por via de regra os montados ou os direitos d'elles,
nos concelhos onde estes não eram livres:
6.º na exempção de alguns direitos de
portagem:
7.º em não serem tomados para o fisco os
bens d'aquelles que morriam sem filhos, pagando
apenas uma certa somma, a que se chamava
nucio ou
nuncio, e ficando exemptos do
maninhadego,
que só recahia sobre os bens dos peões.
Cumpre, todavia, advertir que tanto um como
outro direito são abolidos em bom numero de
foraes.
As prerogativas do clero inferior, isto é, dos
clerigos que visinhavam nos concelhos, e que
por isso ficavam virtualmente contidos no gremio
dos villões, commummente são apenas indicadas
nas cartas de foral pelas palavras
os
clerigos tenham o costume dos cavalleiros. Esta
simples determinação, que ainda assim parece
ter esquecido em muitos foraes, indica ser essa
classe pouco importante nos concelhos, provavelmente
porque a maior parte d'aquelles que por
mil modos se aggregavam ao corpo ecclesiastico,
[263]
bastando ás vezes para isso a tonsura ou outro
signal exterior, buscassem viver á sombra do
alto clero, e evitassem o aggregar-se aos concelhos
onde não podiam encontrar tão perfeita
segurança e protecção.
Em que consistiam, porém, as vantagens dos
peões? Quem olhar só para as cartas de foral
crerá que estas não eram numerosas nem
importantes:
mas quem se lembrar da prepotencia
e bruteza dos poderosos; quem comparar a sorte
dos moradores dos coutos, das honras, e de
quaesquer outros logares não constituidos em
municipios, com a dos membros d'estes; quem,
finalmente, ponderar que os fragmentos do feudalismo
que penetravam no paiz traziam os males
e oppressões d'aquelle systema sem trazerem os
seus beneficios; conhecerá que os peões dos
concelhos eram grandemente favorecidos por
estas cartas de communa, apesar de que ellas
não contivessem metade das garantias de que
hoje goza qualquer cidadão, ainda sob um governo
absoluto. N'uma epocha em que a punição
dos homicidios se deixava legalmente á vindicta
da familia do morto; em que contra as violencias
feitas ao fraco pelo forte a auctoridade publica
não punha outra barreira senão o muitas
[264]
vezes impossivel direito de resistencia
[57];
em que,
[265]
na distribuição das terras dos poderosos, aos que
as cultivavam se impunham quantos encargos a
ardente imaginação da cubica podia inventar
[58];
n'uma tal epocha, dizemos, as instituições dos
foraes relativas aos peões eram verdadeiros privilegios
em relação aos habitantes das terras
não-municipaes. Da união dos moradores nascia
a possibilidade da resistencia, e o foral consagrava
esta na sua maior extensão. Se um nobre,
por exemplo, sahindo da sua honra vinha
commetter a casa do villão para lh'a roubar ou
raptar-lhe violentamente a mulher ou a filha, o
aggredido podia matal-o, e apenas pagava para
isso ao fisco (
ad palacium) uma
coima assaz
modica, e ás vezes nenhuma, ficando até privada
do direito de homicidio a familia do morto
[59].
Por
outra parte, os direitos de jugada e as portagens
eram commummente os unicos impostos importantes,
os quaes substituiam esses centenares de
[266]
alcavallas que pesavam sobre os foreiros particulares
ou da corôa nos allodios, reguengos,
coutos ou honras; e ao passo que pelos contractos
especiaes com os grandes proprietarios ou
donatarios de terras não-municipaes os lavradores
se arriscavam por qualquer falta a perder a
herdade, pela transmissão do foral se assegurava
a perpetuidade da posse aos agricultores dos
concelhos, podendo-se considerar, para nos servirmos
de uma distincção dos juristas, os direitos
senhoriaes ou, antes, reaes, mais como um censo
do que como um foro. Ajuncte-se a isto o privilegio
de que gozavam os peões de serem julgados
em primeira instancia pelos alvazis ou juizes
electivos do concelho, ao mesmo tempo que nas
terras particulares estavam entregues ao juiz do
senhor, e conhecer-se-ha quão vantajosa era a
situação do povo nos logares que obtinham a
organisação
municipal.
Considerados os privilegios das tres classes
d'individuos de um concelho nos seus lineamentos
principaes, e despresadas as circumstancias
de menos monta, vemos claramente estabelecida
a analogia entre a sociedade geral e estas pequenas
sociedades embebidas, por assim dizer,
n'ella. No caracter de perpetuidade que toma
[267]
pela carta de foral a doação das terras aos
villões,
caracter contrario ao dos préstamos, muitas
vezes vitalicios, ou beneficiarios, e sempre revogaveis,
nos apparece já o elemento feudal
actuando na organisação dos municipios. As
obrigações
das tres classes de membros nos concelhos
nos revelará melhor a acção d'esse
mesmo
elemento.
Dissemos que as herdades dos cavalleiros villões
eram exemptas de jugada ou ração; privilegio
importante que os alliviava do tributo capital
do paiz. E isto era justo; porque em logar
d'elle se lhe pedia o tributo mais pezado que
uma nação póde pedir aos seus
membros―o
tributo de sangue. O
fossado ou
serviço militar
era um dever: a falta do seu cumprimento trazia
uma pena pecuniaria―
a fossadeira,
que alguns
entenderam ser uma substituição em dinheiro do
serviço pessoal, mas que era uma verdadeira
mulcta. Se o cavalleiro perdia o cavallo e não
comprava outro dentro de um certo prazo, descia
da classe de
miles para a de
peão; as suas herdades
ficavam reduzidas á condição de
jugadeiras,
e todos os seus privilegios desappareciam.
Em alguns concelhos o cavalleiro que perdia o
cavallo em batalha (
in lide),ou
ainda n'um pequeno
[268]
recontro (
in algara), recebia
outro do rei.
Finalmente, ao que envelhecia e não podia servir
por essa causa se guardavam os privilegios de
classe, que por morte se transmittiam á sua viuva
em quanto se conservava em viuvez.
A fossado ia uma parte dos cavalleiros e a
outra ficava no concelho: n'uns ia um terço
e ficavam os dois: n'outros iam estes e ficava
aquelle. Por alguns foraes a obrigação do fossado
só existia quando o
senior ou o rei iam
n'elle: regularmente, o cumprimento de similhante
dever era exigido uma só vez no anno,
e ficava-lhes a liberdade de irem ou não em outras
quaesquer expedições que occorressem.
Que era propriamente o fossado? Os antiquarios
e historiadores teem variado na intelligencia
d'esta palavra, e os principaes, como o auctor
do
Elucidario, suppõem
fosse um commettimento
para talar as terras dos inimigos e colher
as suas searas. Nós persuadimo'-nos de que a
palavra tinha uma significação mais extensa―a
que lhe deu nos foraes de Castella Martinez
Marina―a
obrigação de ir
á guerra. Os foraes
não fallam de dever militar mais importante
do que o fossado: o
appelido era o
chamamento
geral para a defesa do concelho ou da
[269]
povoação accommettida; a
azaria um salto ou
correria voluntaria que não é estabelecida nos
foraes, e que era porventura isso que se pretende
signifique a palavra fossado; a
atalaia e
a
guardia eram a
obrigação de vigiar os inimigos,
talvez a primeira em postos permanentes,
e a segunda correndo em roldas ou patrulhas.
Como, pois, deixar de incluir o dever de ir no
exercito debaixo da denominação de fossado?
A guerra n'aquelles tempos começava com a primavera
e o mais que durava era até o fim do
estio. Assim imposta a obrigação annual do
fossado
bastava ao rei este direito para ter sempre
os
milites villanos a seu mandar.
Se a hoste real
marchava, elles podiam pagar, seguindo-a, o seu
perigoso imposto: se não, pagal-o-hiam fazendo
entradas nas terras inimigas.
Ir em
hoste significava
a obrigação militar dos nobres que venciam
soldo; e para distinguir a mesma obrigação
imposta aos cavalleiros villões dava-se o nome
de fossado a esta? Suspeitamol-o; mas ainda não
achámos prova sufficiente para podermos affirmar
o uso exclusivo de cada um dos dois termos.
Abstendo-nos de falar dos privilegios e deveres
secundarios dos cavalleiros de municipio,
porque não escrevemos um livro, mas colligimos
[270]
apenas alguns apontamentos, procurámos fazer
sentir o pensamento feudal na posse plena da
propriedade concedida aos municipios, e na
obrigação
de serviço militar, limitado como nos feudos
a um certo periodo cada anno. N'esses concelhos,
que nasciam na epocha da feudalidade,
a influencia d'esta era profunda, em quanto a
indole da sociedade geral lhe resistia e só a
deixava penetrar nas suas formulas exteriores.
Os deveres do clero inferior ou villão, se tal
nome se lhe póde dar, são mais dificultosos de
definir. N'um avultado numero de foraes que
temos cuidadosamente estudado, não encontrámos
ainda senão a egualdade dos seus privilegios
aos dos cavalleiros do concelho, e algumas
exempções especiaes. Estava elle sujeito ao menos
a uma parte dos deveres impostos áquelles?
É questão que offerece algumas especies curiosas,
e que tem certa importancia para o objecto
principal que nos occupa―a historia da antiga
economia nacional, que outra cousa não é na
essencia a dos bens da corôa e dos foraes.
No principio da monarchia, ao menos até o
meiado do seculo XIII, a obrigação do
serviço
militar estendia-se ao clero dos concelhos, se não
inteiramente de direito, ao menos de facto: n'alguns
[271]
foraes elle apparece expressamente exempto
do fossado, mas esta particularidade
esquece
em muitos outros. Isso bastaria para nos fazer
suspeitar que ao menos nos concelhos, cujos foraes
são omissos a similhante respeito, lhe não
valia o caracter sacerdotal para o eximir dos
perigos da guerra. Outra prova negativa é uma
lei de D. Affonso II
[60]
que, exemptando todos os
clerigos em geral das atalaias, das colheitas (especie
de tributo em dinheiro ou generos), e da
adua (serviço pessoal imposto para a
edificação
e reparo dos castellos e muros), nada dispõe a
respeito do fossado, o qual, sendo o serviço
mais importante dos cavalleiros villãos, e estando
os clerigos equiparados a estes pelos foraes, parece
não devia esquecer na enumeração das
exempções geraes estabelecidas para aquella lei.
Este silencio tem, em nosso entender, uma
explicação na grande lucta do estado
ecclesiastico
e do rei, a qual versava sobre as celebres
immunidades da egreja, isto é, sobre a
pretenção
que o clero tinha de ser perfeitamente
livre de todos os encargos sociaes e de não estar,
[272]
nos seus processos criminaes ou civeis, sujeito a
tribunal ou auctoridade que não fossem os ecclesiasticos.
Assim, tanto a legislação como os
foraes são incompletos e obscuros a respeito
d'esta classe, variando segundo os aspectos que
tomava esse acceso e duradouro conflicto.
A algum dos nossos leitores affeito ás idéas
modernas parecerá extranho o imaginar que o
clero fosse levado aos combates, ou tal obrigação
se lhe podesse impôr. Todavia, nada ha mais
certo que a frequente associação do sacerdocio
com a milicia na edade-media: os proprios bispos
eram guerreiros, capitaneavam expedições
militares,
e venciam soldos como homens de guerra.
A historia offerece-nos innumeraveis exemplos
de similhante costume. Além d'isso a palavra
clerigo tinha uma
significação immensamente
mais ampla que hoje. Uma tenuissima relação
com a egreja e com o culto fazia incluir qualquer
individuo no gremio da clerezia. O auctor
do
Elucidario apontou muitas
especies de sujeitos
em quem recahia tal titulo, e ainda não
as distinguiu todas.
Ás provas negativas de que o clero não era
exempto do serviço militar, bem que a isso se
oppozessem as doutrinas canonicas, ajuncta-se o
[273]
testemunho positivo e irrefragavel que nos dá
um genero de monumentos, sem os quaes será
sempre incompleta a historia d'aquellas eras tenebrosas.
Falamos das bullas e rescriptos dos
papas: é d'estes diplomas que nós vemos que
similhante practica era constante na primeira
epocha da nossa historia, quando os foraes não
exemptavam o clero expressamente de tal dever.
Entre outros queixumes que Innocencio III dirigia
a D. Sancho I era um o
arrastar os clerigos
ao exercito, fazendo-lhes injurias e opprobrios.
Eguaes queixas se encontram n'uma bulla de
Honorio III aos bispos de Astorga e de Tuy contra
D. Affonso II, o qual,
não contente com
isto (o
quebrar varias outras immunidades),
obrigava-os
a ir contra sua vontade construir e reedificar
muralhas, e além d'isto ás
expedições, e a fazer
o serviço de vigias, o que, na lingua d'aquella
gente, se chamava anuduvas ou atalaias. Gregorio
IX encarregava o franciscano Fr. Jacob de
penitenciar e absolver D. Sancho II,
porque varias
vezes espancara clerigos com a mão ou
com um pau, tanto no exercito como n'outras
occasiões, não por
inspirações do diabo, mas
constrangido pela necessidade ou de ordenar as
fileiras, ou de sahir d'alguma revolta de gente[61].
[274]
Este mesmo papa, dirigindo a D. Sancho uma
especie de inventario de todas as culpas que
elle rei havia commettido contra a egreja, inventario
recheado de insolencias e ameaças conformes
com o caracter audaz e phrenetico de
Gregorio IX, lhe cita, entre outras cousas, o obrigar
os ecclesiasticos ao serviço militar, accusando-o
pouco depois de os constranger a respeitarem
as leis e estatutos (
banna et
statuta) d'elle
e
dos seus barões, no
que nos parece descobrir
uma allusão obscura aos foraes
[62].
Vê-se, pois,
ter-se por muito tempo entendido que, assim
como o clero gosava de exempções dos
milites
villani, cumpria desempenhar como elles os encargos
da sua situação politica.
Consideradas as obrigações capitaes das classes
privilegiadas dos municipios, resta o falar dos
encargos dos peões. Já dissemos que o tributo
da jugada lhes compensava a exempção do fossado.
A jugada era o tributo caracteristico; mas
[275]
estava longe de ser o unico: as portagens como
imposto indirecto iam recahir em geral sobre os
consumidores das mercadorias; mas na sua acção
directa gravavam os peões que especialmente se
occupavam no commercio interno: a obrigação
militar do appellido, commum a todos os membros
do concelho, quasi não se deve considerar
como um onus: o appellido, que consistia em
correrem todos a defender a povoação quando a
assaltavam inimigos, era um dever estabelecido
pelo sentimento da propria conservação antes
de o ser pelos foraes. As outras contribuições
variadas de que nos poderiamos lembrar não
cabem n'um trabalho necessariamente rapido, e
além d'isso não offerecem nas suas multiplicadas
e incertas especies caracter algum particular em
relação á fazenda publica
senão o de augmentarem
mais ou menos o
quantum dos
tributos
de cada municipio, e o de recahirem por via de
regra sobre a classe pean. N'uma historia, porém,
da nação portugueza o exame d'essas
contribuições
será de alta importancia, julgando-as
na sua influencia sobre o progresso ou decadencia
do commercio, da agricultura, e da industria.
Uma cousa se ha de ainda advertir comtudo:
n'um paiz devastado por continuas correrias os
[276]
gados não podiam ser numerosos, e além d'isso
os concelhos, por muitas razões que são obvias,
não deviam conter grande porção de
proprietarios
ruraes, cuja lavoura demandasse um ou
mais jugos de bois. Ficava, portanto, n'esse caso
a pequena cultura exempta da jugada? Não: os
foraes tinham previsto essa hypothese mui frequente:
lá está de ordinario designada a
contribuição
que tocava ao que para o lavor da terra
apenas possuia um boi, e do mesmo modo a que
se havia de receber d'aquelle que com os proprios
braços agricultava o seu campo, e a quem
se dava o nome de cavador (
cavom).
Resta-nos agora tractar das
calumnias, ou
tributos sobre os crimes, e depois indagar se a
indole das instituições municipaes correspondia
de feito aos pensamentos e instinctos do poder
central, aos quaes nós attribuimos a diligencia
com que elle trabalhava em organisar e fortalecer
o terceiro estado.
[277]
V
Tem-se crido e dicto geralmente desde que a
historia começou a ser cousa mais séria e grave
do que a narração exclusiva de dois casamentos,
quatro enterros, e seis batalhas; tem-se crido e
dicto que a edade-media no seu systema penal
vendia quasi absolutamente por ouro a impunidade
do crime. A letra dos foraes parece auctorisar
esta opinião, que por muito tempo foi a
nossa. Hoje estamos persuadidos de que ella
deve ser grandemente modificada. As penas pecuniarias
nem eram tão geraes como se crê, nem
eram um trafico feito pela força publica da
justiça
dos individuos. Guardamos para outra parte
o desenvolver esta idéa, que não cabe aqui,
tanto porque nos obrigaria a dilatarmo'-nos muito,
como por ser alheia á natureza do presente trabalho:
mas apontaremos o fio que nos guiou,
falando das
calumnias ou coimas,
que em nosso
entender se devem chamar antes
impostos
criminaes,
do que
penas dos crimes. Estes
impostos
[278]
formavam uma das partes mais productivas das
rendas dos concelhos, tanto para o rei ou para
o tenente ou donatario que o representava, como
para os proprios municipios.
A
calumnia estendia-se a todos os
actos criminosos,
que n'aquella epocha eram qualificados
de um modo diverso do de hoje. Para o homicidio,
para o rausso (rapto violento da mulher
casada ou filha familia), para os arrombamentos
ou destruição de
habitações, para o furto, para
as rixas em logares publicos, para as injurias
pessoaes, etc., o foral estabelecia especialmente
coimas, cuja taxa variava segundo a gravidade
da culpa. N'aquelles tempos de ferocidade e
bruteza, as paixões violentas transpunham com
furia a todo o momento os limites do justo e do
legal: assim as coimas, que ora pertenciam inteiramente
ao fisco (
ad palacium), ora em
parte
a este e o resto ao concelho (
septima ad
palacium),
deviam produzir um rendimento importante.
Tambem em alguns casos serviam como
emolumentos dos juizes.
Estas coimas, porém, constituiam a verdadeira
e unica penalidade? O exame attento dos foraes
nos revela o contrario. Duas expressões ha n'esses
diplomas que, se muitas vezes se confundem,
[279]
muitas mais guardam certa distincção, que
não
é possivel desattender:
pague
(
pectet) indica regularmente
o preceito da solução de calumnia;
componha
(
componat) parece representar o
principio
da reparação ao offendido. Provavelmente
na maior parte dos casos esta reparação era
pecuniaria;
mas isso mesmo basta para collocar o
systema penal da edade-media a mui differente
luz. O estado impunha ao criminoso uma pena
que era um verdadeiro tributo―a coima. O mordomo,
ou official de fazenda local, recebia-a, e
tinha por ella acção contra o culpado; mas ao
aggravado devia o alvazil ou juiz dar seu direito.
A execução do
pectet escripto no foral
pertencia ao primeiro, a do
componat incumbia
ao segundo o tornal-a effectiva.
Se partirmos d'esta idéa na apreciação
dos
foraes, vel-a-hemos confirmada pela doutrina das
suas disposições, que sem ella ficarão
muitas
vezes inintelligiveis. Quando em certos foraes
se impõe ao homicida uns tantos soldos
ad
palacium,
annulla-se o direito de revindicta, isto
é, de os parentes do morto vingarem este com
a morte do matador ou de algum dos seus parentes?
Quando em outros se estabelece a coima
do rausso, e depois se accrescenta que além
[280]
d'isso o raussador fique homicida, isto é, sujeito
á vingança sanguinolenta dos offendidos,
não é
aquella pena um tributo e a vingança uma
punição?
D'estas e d'outras hypotheses que constantemente
se encontram nos foraes resulta que
não póde a
calumnia representar rigorosamente
as leis penaes do municipio.
Nós entendemos que nos costumes (muitos dos
quaes, escriptos ou não escriptos, eram reminiscencias
do codigo visigothico, dos canones dos
concilios anteriores e posteriores á entrada dos
arabes, e emfim d'usanças cuja origem se ignora,
e porventura da jurisprudencia mahometana) estavam
estabelecidas as verdadeiras leis penaes,
e que nos foros ou cartas de concelho as coimas
ou penas pecuniarias representavam antes leis
de fazenda. Se muitas vezes, como no crime de
furto e outros, parece estabelecer-se uma
pena
pecuniaria que é verdadeira
reparação,
esta circumstancia
tornava-se necessaria, porque sendo
a coima frequentemente um
quantum
deduzido
d'essa pena, ou regulado por ella, cumpria para
evitar duvidas que no foral se declarasse qual
era; nem temos motivo algum para suppôr que
ahi se alterassem as penas que os costumes, onde
os havia, tinham estabelecido.
[281]
Por estas rapidas indicações os espiritos
attentos
poderão chegar ao resultado a que nós
chegámos de considerar as leis penaes das cartas
de municipio como simples leis de imposto, e de
as reduzir a uma das causas a que attribuimos
principalmente a propagação dos
concelhos―á
necessidade de trazer rendimentos aos cofres do
estado, que os privilegios das classes aristocraticas
tendiam a empobrecer.
Temos examinado a existencia dos concelhos
na parte das suas relações externas que respeitam
á economia publica. O estudo da vida municipal
é, porém, muito mais vasto, e o que havemos
apresentado ao leitor é apenas um dos
seus aspectos. Força é contentarmo'-nos com
isso, para não fugirmos da questão que nos
occupa.
Que havemos nós visto n'esse attento exame?
A creação de uma especie de milicia quasi feudal,
que possue as terras, privilegiadas por foro,
com a obrigação do serviço pessoal
militar feito
ao rei como suzerano commum: o estabelecimento
de uma certa somma de tributos recahindo
principalmente sobre os homens do povo
que não pagavam ess'outro tributo de sangue:
finalmente, a união dos villões, que dispersos ou
[282]
desunidos nada valeriam contra os nobres, mas
que ligados por direitos, privilegios, e
obrigações
communs, constituiam entidades moraes
fortes e activas, cujos interesses eram oppostos
aos das classes aristocraticas (o alto-clero e a
nobreza), e a que por isso a monarchia naturalmente
se alliava nas suas luctas com ellas.
E esta aggregação de homens do povo,
lançados
em grupos por toda a superficie do paiz,
realisa de feito o triplicado fim da sua existencia.
A grande acção dos concelhos no progresso
social da nação não foi prevista, ao
menos até
á sua derradeira consequencia―a victoria da
classe burgueza n'uma epocha remota que é a
nossa: mas sentiu-se desde logo que elles eram
um elemento de ordem e de força contra as violencias
dos poderosos. O principio monarchico
armava-se com elle para se emancipar das mãos
da aristocracia, fortalecer-se, e organisar a sociedade.
Afóra esta politica (se politica póde
chamar-se ao instincto da propria existencia e
ao desejo do predominio) nenhum outro pensamento
nos parece ter havido na promulgação
dos foraes. Estes não crearam
situações novas
para os individuos em particular; porque antes
e a par d'elles, desde o homem d'armas até o
[283]
malado ou servo, havia todas as gradações na
classe popular, e existiam os tributos que encontramos
nos concelhos: o que o poder central
fez n'estes foi dilatar isso tudo, constituil-o permanentemente,
garantil-o, dar-lhe um caracter
publico, e crear o serviço militar não pago. Nos
coutos, nas honras, nos préstamos da corôa,
encontram-se,
ora n'uns ora n'outros, vestigios das
diversas classes de villões, das diversas especies
de contribuições que apparecem nos concelhos,
e outras mais: ahi, porém, tudo depende do
Dominus do couto e da honra, ou do
préstameiro,
porque o poder supremo nenhuma acção
exercita dentro d'esses senhorios; nem ahi ha
pacto geral entre o senhor e os subditos: as
terras são dadas por titulo especial; segundo
este as contribuições, os direitos, e os deveres
variam de casal para casal, de courella para
courella; e quando sobre qualquer d'esses pontos
se alevantasse uma contestação, lá
estava o juiz,
posto pelo senhor ou donatario, para julgar a
seu prazer. A condição legal dos habitantes era
ahi pouco mais ou menos a mesma que a dos
membros dos municipios, mas a sua situação
real era inteiramente diversa―diversa quanto
o póde ser dependendo lá do arbitrio,
cá unicamente
[284]
das disposições de um pacto. O donatario
de uma terra municipal ficava adstricto aos
bons-foros:
se os quizesse quebrar encontraria ante
si um corpo moral para lhe resistir, em quanto
o préstameiro de um couto ou honra acharia
apenas individuos fracos para esmagar debaixo
dos seus sapatos de ferro.
Resta-nos falar d'uma especie de propriedade
tributaria, que occupando uma importante porção
do solo não augmentava senão indirectamente
a renda do estado. Alludimos aos reguengos.
Os reguengos eram os bens patrimoniaes
do rei. No principio da monarchia a distincção
d'estes bens dos da corôa não era mui clara;
mas é certo que no fim da primeira epocha (reinado
de D. Affonso III) a differença entre uns e
outros estava perfeitamente estabelecida. Estes
reguengos eram herdades mais ou menos vastas,
encravadas muitas vezes nos termos dos concelhos,
e os seus privilegios os maiores depois dos
de coutos e honras; mas taes privilegios ficavam
compensados pela exorbitancia dos tributos.
Ordinariamente os reguengos, inteiros ou divididos,
davam-se a foro; mas foro que, subindo
as mais das vezes ao quarto dos fructos, raramente
deixava de ser sobrecarregado de outras
[285]
exacções e serviços, a que se
accrescentavam
gravosos direitos de transmissão. D. Diniz distinguiu-se
por cubiça inexoravel nos seus aforamentos
de bens reguengueiros; mas essa cubiça
foi castigada, abandonando-lhe muitas vezes os
foreiros as terras, por se tornar impossivel para
elles a solução dos foros.
Os reguengos, pois, não eram rigorosamente
uma fonte do rendimento publico; mas sendo
destinados á manutenção da casa do
rei, e correspondendo
ás modernas dotações dos governos
constitucionaes, vinham indirectamente a augmentar
o patrimonio publico, desobrigado assim
de supprir as despezas pessoaes do principe.
Mas, porventura, esta distincção era mais real
quanto á natureza dos reguengos e á
condição
dos seus habitantes do que pelo que tocava aos
foros e tributos que d'elles se tiravam. Não é
muito provavel que se guardasse uma differença
exacta entre a applicação dos rendimentos da
corôa e a dos rendimentos do patrimonio real:
o rei tendia naturalmente em tudo a confundir-se
com o Estado, e os livros do
Recábedo
Regni (o
registo dos bens da corôa) não deviam tardar
em constituir um só todo com os do
Reposito ou
Repositorio (o registo dos bens
reguengos). De
[286]
feito, já nos diplomas da primeira epocha historica
vemos o rei chamar, tanto ás
contribuições
municipaes e rendas proprias da corôa como ás
das herdades reguengueiras,
meus
foros, e
meus
direitos (
meos foros,
meum directum). No segundo
periodo historico, isto é, do meado do
seculo XIII até o fim do XIV, veremos effectivamente
desvanecerem-se de todo, em relação á
economia da fazenda publica, os traços que dividiam
o patrimonio do rei do patrimonio da
sociedade.
Antes de entrar n'esse periodo, resumamos as
nossas idéas sobre o systema dos tributos deduzidos
d'esses factos que temos apresentado ao
leitor, insuficientes para a historia completa da
economia nacional nos primeiros tempos da monarchia,
mas bastantes para se conhecerem os
lineamentos principaes da nossa organisação
primitiva
dos impostos na mais larga significação
d'esta palavra.
Este resumo será breve, mas eloquente: eloquente
não pelas palavras, mas pelas idéas;
pelos grandes factos sociaes que representa.
As tradições visigothicas, incarnadas na nossa
sociedade nascente, embargaram que o feudalismo
penetrasse na essencia d'esta, e apenas o
[287]
deixaram passar incompleto no accidental das
instituições: assim, entre nós os
crimes, as tyrannias,
as luctas civis, foram mais tenues, e
antes filhas da barbaria que da feudalidade; mas
em compensação faltou-nos o que nesta havia
de boa organisação; faltou-nos essa vasta rede
de obrigações mutuas, moraes e materiaes, entre
os senhores e os vassallos por todos os gráus da
complicada jerarchia feudal, que era um poderoso
elemento de ordem no meio das trevas e
da incerteza d'instituições e costumes. Se entre
nós a classe popular não cahiu em tão
completa
servidão como nos paizes de feudalismo; se os
malados e homens de creação
(
homines de maladia,
homines de creatione), especie de
servos
de gleba formada provavelmente dos descendentes
dos antigos servos dos visigodos e dos criminosos
reduzidos á escravidão por pena
[63]; se
esta raça, dizemos, desapparece rapidamente e
se transforma em raça de homens livres
(
forarii),
aggregando-se ao grande vulto do povo, logo
[288]
na fronte d'este se escreve um nome que o distinga
das classes nobres.
Honrado
(
honoratus)
é a palavra que designa o homem do privilegio:
tributario
(
tributarius) a que indica o homem
que recebeu precipua a herança de Adão―o
trabalho. E estas duas designações revelam a
indole
intima da sociedade: o imposto é o marco
divisorio dos dois campos: a villania resume-se
no imposto; a nobreza na exempção.
Depois, este pensamento derrama-se por toda
a parte, transforma-se por mil modos, varia por
diversos aspectos; está no amago de todas as
distincções. Contribuir ou não
contribuir, eis o
que se reproduz universalmente no complexo
dos diversos direitos politicos. D'este modo a
sociedade inteira em relação às
pessoas explica-se
pela historia da fazenda publica, e por
assim dizer contém-se no gremio d'ella.
Dois generos de contribuições alimentavam a
vida social da monarchia, sustentando a sua individualidade
e crescendo até os seus limites
possiveis por meio da guerra, organisando-se
inteiramente por meio de instituições e leis
administrativas
e judiciaes, que para a sua execução
precisavam, ao menos em parte, de officiaes
e magistrados pagos, e fortificando-se interiormente
[289]
para salvar a integridade do territorio e
repellir as invasões. Estes dois generos de tributos
eram, pois: 1.º os de sangue: 2.º os de
productos, numerario, ou trabalho, que rigorosamente
são identicos. Todos elles recahiam exclusivamente
sobre a classe popular, e n'esta
sobre uma parte só―sobre aquelles que não
habitavam
dentro dos limites dos coutos e honras:
essas na verdade pagavam mil especies de foros,
pensões, e foragens
(
directurae), mas tudo revertia
em proveito do senhor da terra. Juncto
aos padrões que marcavam o ambito do territorio
honrado expirava a acção dos exactores e
officiaes do rei: passal-os era correr o risco da
mutilação ou da morte
[64].
Mas ao menos estes poderosos senhores ajunctavam-se,
ao brado da guerra, em volta dos
pendões reaes seguidos dos seus homens d'armas?
Vinham ao menos ahi aquelles cujas honras
e coutos eram préstamos da corôa ou verdadeiros
[290]
beneficios, e retribuiam em feitos militares
a cessão que em proveito d'elles fazia o Estado
de uma importante parte do seu patrimonio?
Não! Para o illustre rico-homem montar, cuberto
de todas as peças, no seu cavallo de batalha e
ir guerrear os inimigos da cruz ou da patria,
cumpria pagar-lhe, e o numero de seus cavalleiros
era regulado pela somma mais ou menos
avultada que percebia. As soldadas
(
solidatae)
dos primeiros tempos da monarchia foram a origem
das
quantias, que vamos encontrar
na epocha
seguinte, do mesmo modo que acharemos
já aquellas na epocha dos reis de Leão, se
retrogradarmos
além do berço da sociedade portugueza.
Estas soldadas ou quantias sahiam necessariamente
das contribuições em generos ou dinheiro
pagas pelos municipios, contribuições que, como
vimos, recahiam só principalmente sobre os
pedones,
tributarios ou jugadeiros, e até certo ponto
sobre os
caballarios, cavalleiros
villões, a quem
tocava não só o serviço militar
gratuito, mas por
via de regra o principal imposto em trabalho
(
anuduva), que até
certo ponto era serviço militar,
sendo destinado á edificação e
restauração
dos muros e castellos. Os membros das aggregações
[291]
populares chamadas concelhos agricultavam
pessoalmente a terra, serviam na guerra
sem paga, e contribuiam para as despezas do
Estado com aquella parte para que não bastavam
as rendas ordinarias dos bens da corôa, que
diariamente se desbaratavam em doações gratuitas
ao alto-clero e á nobreza, que faziam cultivar
esses bens por foros e pensões de mil especies,
em proveito seu particular: e depois o
nobre servia como o villão na guerra, mas por
um soldo tirado do que esse mesmo villão pagava
para supprir os rendimentos da corôa, já
devorados pelas classes aristocraticas.
Era a ida à caça do leão com o veado.
E foi
caçada que durou por alguns seculos.
[292]
VI
Procurámos fazer sentir antecedentemente
como logo no principio da monarchia o patrimonio
fixo do estado―a propriedade publica―começou
a ser desbaratado, e como os concelhos
o suppriram com as contribuições de sangue,
dinheiro, e trabalho, impostas pelos foraes. Já
alludimos ao excesso a que tinham chegado as
doações feitas á aristocracia nos
primeiros tempos
de D. Diniz, excesso que este rei se viu
depois constrangido a remediar, revogando o
que elle proprio fizera na sua mocidade. Mostrámos
que similhantes doações eram por via de
regra graciosas; porque o privilegio das
pessoas,
segundo as idéas triviaes na edade-media,
estendia-se ás
cousas,
ou antes ficava sendo representado
pelo privilegio d'estas. Assim, os
bens da corôa, passando para as mãos dos nobres,
recebiam d'elles caracteres similhantes aos
dos seus bens hereditarios, e, sendo estes absolutamente
exemptos de todo o genero de contribuição,
[293]
tornavam-se completamente nullos os
effeitos economicos da existencia de um patrimonio
publico. Ainda, porém, isto não era tudo.
O estado de guerra frequente, não só com os
mussulmanos,
nossos inimigos
irreconciliaveis,
mas tambem com os outros paizes christãos da
Hespanha, fizera com que todas as povoações
de certa importancia tivessem por nucleo e defensão
um castello, cujo governador, conhecido
depois geralmente pelo nome de alcaide-mór, e
n'esta primeira epocha pelo de
pretor[65],
era sempre
um nobre. Este homem cumulava a suprema
auctoridade militar e judicial; e um grande numero
de contribuições municipaes, sobre tudo das
que provinham das coimas ou calumnias, lhe
constituiam um avultado rendimento. Esta viciosa
organisação trouxe com o correr dos tempos
um resultado fatal. As doações foram gradualmente
confundindo o que os foraes distinguiam:
os direitos do
palacium ou fisco
real,
[294]
representado pelo magistrado
[66]
local de fazenda
(
maiordomus), misturaram-se com os
do alcaide-mór.
A transformação foi lenta; e ser-nos-hia por
certo difficultoso n'este rapido esboço seguir a
sua marcha. O
senhorio das terras
municipaes
foi pouco a pouco substituindo a
alcaidaria, sem
que por isso este titulo se esquecesse. O rei, empenhado,
por causas que não vem para este logar,
em diminuir a jurisdicção civil e criminal
da aristocracia, como que lh'o compensava abandonando-lhe
as rendas reaes dos concelhos. O
senhorio de uma terra municipal começou a equivaler
a uma doação de bens da corôa.
Entretanto
a monarchia habilitava-se, passando o poder judicial
para as mãos dos legistas, homens inteiramente
addictos ao throno, para uma victoria
certa na grande empresa de subjugar as resistencias
dos nobres.
A consequencia immediata das doações dos
direitos reaes pagos pelos municipios foi o apuro
da fazenda publica, e este apuro trouxe ou, pelo
menos, generalisou um costume que peiorou a
[295]
situação d'essa mesma fazenda. Como as rendas
escaceavam para pagar as soldadas ou
quantias
aos cavalleiros nobres, e elles não serviam de
graça, porque esse mister incumbia aos villões,
na falta de meios pecuniarios para as satisfazer
deram-se os bens que voltavam á corôa e os
senhorios
das terras em
pagamento das
quantias.
Era uma situação comparavel á de
qualquer paiz
dos tempos modernos, onde a má gerencia do
erario trouxesse como remedio os emprestimos,
que, deixando sempre intactas as causas do mal,
não fizessem senão multiplicar-se, e gerar a
agiotagem
e todas as terriveis consequencias d'ella.
É evidente que, sendo fluctuantes os rendimentos
reaes de cada concelho, e dando-se estes
como pagamento das quantias, os que recorriam
a similhante recurso ignoravam o que despendiam,
mas tinham a certeza de que era mais do
necessario; porque os fidalgos recusariam a
substituição
se ella fosse contraria aos proprios interesses.
Cumpre, todavia, confessar que as opiniões
feudaes sobre o serviço militar da nobreza tiveram
mais acção nos espiritos na segunda epocha
da nossa historia (de D. Diniz a D. Fernando) do
que a que tinham tido na primeira: phenomeno
[296]
singular nunca observado, mas que nos parece
incontestavel, sentindo não ser esta a occasião
de o mostrar e de indagar-lhe as causas. Pagar
as quantias ou soldos aos fidalgos com o senhorio
das terras era uma approximação da formula
feudal; porque realmente elles ficavam-n'as possuindo
como uma especie de feudo (
feu), palavra
que começa a apparecer n'uma
significação
mais verdadeira só depois de D. Diniz.
Mas o que, apesar d'esta circumstancia, se
nos afigura como indubitavel, é que foi principalmente
o mau estado da fazenda publica que
trouxe o systema ruinoso de substituir pelas
doações
os pagamentos dos soldos em dinheiro corrente
ou em generos. O progresso de tal systema,
á proporção que diminuiam os meios
pecuniarios
do governo, está patente nos diplomas
do seculo XIV, que podem dar-nos luz n'esta
obscura materia.
A pobreza do erario crescia progressivamente
com o correr dos tempos, porque o mal nascia
mais de um systema errado, e da influencia da
fidalguia, que da vontade dos reis. D. Diniz foi
um avaro, D. Affonso IV um homem de juizo,
D. Pedro I um doudo com frequentes intervallos
lucidos de justiça e d'economia: e, comtudo,
[297]
todos elles, mais ou menos, fizeram doações
importantes;
todos elles se acharam por vezes em
apuros pecuniarios, o que é facil de deduzir dos
documentos d'aquelle tempo; bastando notar que
no fragmento da chancellaria de D. Pedro, que
nos resta, não raro é apparecer já o
recurso
das doações das terras aos cavalleiros, em
pagamento
dos
seus maravedis (quantias).
A historia verdadeira, que sabe collocar os
homens nas circumstancias em que viveram para
os julgar, e que não acceita as opiniões do vulgo
como factos historicos, nem se contenta de ir
cegamente copiando o que outros disseram, ha
de um dia rehabilitar até certo ponto a memoria
de D. Fernando da nota de perdulario. Não queremos
com isto dizer que elle era um modelo de
principes (n'algumas cousas foi um dos melhores
que tivemos): queremos dizer que a accusação
de prodigo que se lhe faz é exaggerada. Como
adiante havemos de falar dos queixumes feitos
em côrtes no seu tempo, teremos occasião de
apreciar esses queixumes, fundamento talvez
unico da tradição, que uma historia superficial
e incompleta abraçou sem exame e perpetuou
irreflexivamente. Baste por emquanto observar
que uma grande parte das doações de terras,
[298]
feitas por D. Fernando, não são mais que
pagamentos
de quantias, o que prova menos as tendencias
d'aquelle principe para desbaratar a fazenda
publica, do que o estado de apuro a que
esta havia chegado.
A estreiteza sempre crescente dos recursos
publicos tornava cada vez mais necessaria uma
nova fonte de rendimentos. Os bens da corôa,
esses bens que a antiga lei politica do paiz quizera
tornar uma tunica inconsutil, tinham sido,
permitta-se-nos a expressão, jogados aos dados
pela fidalguia, despedaçados e repartidos entre
ella: as contribuições municipaes seguiam
lentamente
o mesmo caminho; e as novas fundações
de concelhos e
pobras tornavam-se
cada
vez mais raras. Que restava pois? O que era
obvio ainda aos espiritos menos agudos―fazer
que os municipios existentes, para nos servirmos
d'uma phrase moderna, supprissem o
deficit. Foi
o que effectivamente se practicou.
Então nasceu o systema que, modificado, estendido,
aperfeiçoado, tem subsistido até hoje―o
das contribuições geraes, facto gravissimo
em si, e singular nos caracteres que apresenta
no seu apparecimento.
A economia da fazenda publica era nos primeiros
[299]
tempos o transumpto da economia domestica
de qualquer proprietario: a sociedade
copiava a familia. O que já apontámos a este
respeito parece-nos têl-o mostrado com clareza.
Cada concelho pagava em virtude de um contracto
especial―a sua carta de foro. Estes contractos
variavam segundo a maior ou menor fertilidade
do alfoz ou termo do concelho, segundo
o seu tracto commercial, a sua situação
chorographica,
e os riscos que, em consequencia
d'ella, corria de ser
espeitado
(assolado) pelos
inimigos, etc. O estado era similhante ao proprietario
que arrenda ou afóra os seus bens por
titulos especiaes, cujas condições variam segundo
a riqueza ou pobreza do solo, a proximidade ou
o remoto dos mercados, etc. É este o systema
natural das sociedades na infancia, em que o
pensamento de familia predomina e se reproduz
por algum modo em tudo. O systema dos impostos
geraes suppõe a virilidade de um povo:
antes d'isso elle nem sequer, talvez, se comprehenderia.
Os
pedidos ou
pedidas foram a primeira e
incerta formula das contribuições geraes. O
pedido
nasceu nos senhorios privilegiados; nem
nos recordamos, até, de o ter nunca visto mencionado
[300]
nos foraes mais antigos, não sendo raro
encontral-o já nas cartas d'emprazamento d'esse
tempo, nas terras dos nobres e dos mosteiros.
O pedido era na essencia o mesmo que a
talha―uma
contribuição indeterminada que o senhor
extorquia dos colonos quando lhe aprazia, e a
que elles d'antemão vinham submetter-se pelo
acto de aforamento. A
talha
(córte) distinguia-se
porventura do pedido em exigir o senhor d'um
couto ou honra uma certa somma total que os
habitantes deviam repartir ou
talhar entre si,
ao passo que o
pedido seria um
quantum imposto
individualmente a cada um, ou o mesmo
que a
finta. Isto não
passa de uma conjectura,
e talvez a unica distincção entre a talha e o
pedido
consista em ser aquella a expressão sincera
e brutal de uma violencia; esta a sua expressão
mais suavemente hypocrita.
Seja o que for; é certo que as necessidades
do fisco trouxeram para a economia do estado
este elemento de renda publica contrario á natureza
do nosso primitivo systema de fazenda.
Não temos certeza da data precisa do seu apparecimento;
mas achamos que D. Pedro I exemptou
o concelho de Castel-mendo de
fintas e
talhas,
e D. Fernando o de Coimbra, o que suppõe
[301]
a existencia d'ellas anterior a estes reinados. As
contribuições extraordinarias dos municipios,
conhecidas
geralmente com o nome de pedidos,
nasceram no meio dos apuros da fazenda publica.
Tal denominação dada a essas
contribuições
extraordinarias, exigidas geralmente em
côrtes, remonta á epocha de que nos occupamos,
visto que do reinado de D. João I data a
publicação
da lei que prohibia a outrem, que não
fosse o rei, o fazer ou
lançar pedidos.
Os pedidos deram origem ás sizas, ou, para
melhor dizer, converteram este tributo, que a
principio não fôra mais que um expediente para
acudir a despezas extraordinarias e internas de
alguns municipios, em imposto do estado. O pagamento
das sommas, requeridas aos povos em
côrtes pelos reis, repartia-se pelos concelhos, e
estes junctavam as suas quotas por meio de sizas,
meio que no pedido real lhes era indicado.
Nas côrtes de Coimbra de 1387 se estabeleceu
definitivamente a siza por lei geral, que devia
vigorar um anno, mas que ficou subsistindo posteriormente,
abatendo-se-lhe o terço por alguns
annos, allivio que cessou ainda no reinado de
D. João I.
Dissemos que este novo methodo de supprir
[302]
as despezas publicas era contrario ao nosso primitivo
systema de fazenda. De feito, o caracter
d'esse antigo systema era, como vimos, a desegualdade
na distribuição dos impostos: os maiores
ou menores privilegios de cada concelho regulavam
a sua quota de distribuição. Este modo
de contribuir, razoavel a principio, porque a desegualdade
entre municipio e municipio era proporcional
aos maiores ou menores inconvenientes
moraes ou materiaes com que tinham de luctar
os habitantes de cada concelho, havia-se tornado
injusto ao passo que o estado de guerra contínua
terminava; que as terras se arroteavam; que se
facilitavam as communicações e se abriam os
mercados; que, emfim, os commodos e incommodos
eram quasi por toda a parte os mesmos.
O systema d'impostos geraes substituidos aos
municipaes vinha a ser um verdadeiro progresso;
mas, em vez de uma substituição realmente
progressiva,
houve uma accumulação monstruosa.
Os direitos reaes pagos em virtude das
disposições
dos foraes; os foros, e rendas dos bens da
corôa; as gravosas direituras ou foragens das
terras reguengueiras; tudo continuou a subsistir
como d'antes; mas corria para as mãos dos particulares,
e o fisco exhausto mostrava ao povo
[303]
os seus cofres vazios, e exigia d'elle que os enchesse
novamente, sem que por isso cessasse
de alimentar o antigo manancial da riqueza publica
derivado do seu legitimo curso.
Foram estas causas que trouxeram o phenomeno
notavel referido por Fernão Lopes, de que,
sendo no reinado de D. João I a renda do estado
de quasi oitenta e dois milhões de libras, as
sizas, isto é, o tributo geral permanente, produziam
mais de sessenta milhões, ou tres quartos
dos rendimentos dotaes, sendo o outro quarto o
producto do que restava do outr'ora tão rico
patrimonio da corôa, dos immensos bens reguengos,
e sobre tudo das contribuições de foral.
Uma cousa unica houve, n'estas sizas do tempo
de D. João I, verdadeiramente progressiva: foi
o serem na realidade geraes. Todas as vendas e
compras ficaram sujeitas a ellas, fossem feitas
por quem fossem, não exceptuando o proprio rei
e sua mulher
[67].
Foi um dos grandes passos que
D. João I deu na epocha de transição
que elle
abria, e que tinha de ser cerrada pelo cutello
do algoz de D. João II. As côrtes de 1387 e as
[304]
de 1482 são duas datas dolorosas e terriveis na
historia das classes privilegiadas
[68].
Mas não antecipemos esta, já em demasia rapida,
narração dos factos sociaes relativos
á fazenda
publica. Limitemo'-nos por emquanto ao
seculo XIV. Vejamos qual o estado das
contribuições
de sangue e trabalho, e se, ao passo
que a propriedade villan era assim onerada por
dois systemas oppostos de tributos, o povo ficava
alliviado dos serviços pessoaes e dos perigos da
guerra. Então poderemos avaliar os fundamentos
dos seus queixumes, tão energicamente alevantados
no seio dos parlamentos nacionaes.
[305]
VII
Nos fins do seculo XIII, os concelhos, a principio
fracos e pobres, tinham chegado a certo
grau de prosperidade e importancia. A palavra
villão, que
anteriormente servia para designar
genericamente todos os membros d'um municipio,
começava a ser substituida, já no reinado
de D. Affonso III, pela palavra
cidadão. O commercio
interno ganhava rapido incremento; o
dinheiro generalisava-se entre o povo: muitos
documentos nol-o indicam, mas nada mais claramente
o prova do que um facto, em que ninguem,
que nós saibamos, ainda attentou, e que,
todavia, tem grande significação historica. Uma
parte das cartas relativas aos municipios no
tempo de D. Affonso III, conhecidas pelo nome
de foraes, são instrumentos de bem diversa natureza.
A essencia d'ellas é um contracto entre
o rei e o concelho, pelo qual o rei demitte de si
todos os direitos, foros, e obrigações, por uma
somma annual, paga de ordinario em tres parcellas.
[306]
Estes contractos frequentes, feitos espontaneamente
pelas municipalidades, são o signal
evidente de que a industria achava facil consumo
aos seus productos; que o trabalho subia
de preço; que, emfim, o meio circulante se multiplicava.
As povoações principaes achamol-as,
até, eximindo-se do serviço militar a troco de
uma quantia avultada
[69].
O povo, no meio de um
systema de profunda desegualdade civil e politica,
opprimido por impostos de mil especies, ia
conquistando rapidamente a independencia, á
força de economia e trabalho; e preparava-se
para adquirir a importancia que chegou a obter
na direcção dos negocios publicos dentro em
menos de um seculo.
Este desenvolvimento da riqueza popular
trouxe então o que traz sempre em todos os logares
e tempos. Os villões, que tinham, e com
razão, por mais privilegiado concelho aquelle
em que por seu foral não era permittida a entrada
aos nobres, ou aquelle que não podia ser
[307]
dado em préstamo a nenhum rico-homem; os
villões, já cidadãos, a quem por sua
mais avultada
fortuna era possivel cercar-se de certo apparato
e luxo, começaram a deshonrar-se de ser
caballarii, cavalleiros de
concelho; quizeram
ser
milites filii de algo,
cavalleiros nobres; e a
ordem de cavallaria desceu dos solares para as
villas: os fidalgos vendiam a nobreza aos villões,
que trocavam de bom grado o seu ouro por honrarias,
tanto mais que estas importavam tambem
vantagens materiaes, porque, como anteriormente
dissemos, pagar ou não pagar significava,
do modo mais resumido e ao mesmo tempo mais
completo, nobreza ou villania.
Mas alguem havia que interessava tanto como
o povo em que estas deserções do campo dos
plebeus para o dos privilegiados tivessem termo.
Era o rei. As razões d'isso são obvias. Cada
villão que um rico-homem armava cavalleiro era
um contribuinte de menos e mais um soldado
para a aristocracia.
D. Diniz viu as consequencias de similhante
estado de cousas, e procurou sustal-as. No seu
reinado se publicou uma lei, em que elle declarava
que os cidadãos que houvessem recebido
de ricos-homens o grau de cavalleiros ficariam
[308]
sujeitos inteiramente ás obrigações
dos concelhos,
como se o não fossem, «porque de direito
antigo e pelas leis dos imperadores nenhum homem
de concelho podia ser cavalleiro senão por
mercê do rei.» A declaração
foi dirigida ás auctoridades
dos municipios, os quaes egualmente
interessavam em que todos os seus membros
supportassem os encargos communs
[70].
Esta lei vem confirmar o que a conversão em
sommas certas de dinheiro das contribuições de
municipio, até ahi fluctuantes e recebidas pela
maior parte em generos, nos indicava claramente.
Os populares tendiam a fugir da sua orbita
para o mundo aristocratico; e o poder real
apressava-se a pôr-lhes uma barreira. É evidente
que a vida anterior dos concelhos havia
feito immensos progressos em pouco mais de
um seculo. O augmento de riquezas e o apparecimento
de villões abastados e poderosos patenteam-se
de um modo innegavel nos factos que
apontámos.
Já, porém, vimos, apezar d'isso, que os tributos
cada vez eram mais gravosos, e que sobre
[309]
o povo pesavam dois systemas de fazenda diversos:
um, cujo producto fôra distrahido em
beneficio das classes privilegiadas; outro, que o
substituira, e que em parte ainda se derivava
para as mãos dos fidalgos no pagamento das
quantias, as quaes chegaram a tal excesso que
D. Fernando se viu obrigado a limital-as unicamente
aos filhos mais velhos dos
acontiados,
que, todavia, principiavam a vencer o seu soldo
de guerra ainda no
berço.
Este abuso de
aquantiar os filhos
de qualquer
nobre era um terceiro meio de espoliação: os
bens da corôa e os direitos de foral lá lhe iam
cair nas mãos; os soldos pessoaes devoravam
boa parte do producto do novo systema de tributos;
e, para ajudar a desbaratar o resto, os
poderosos tinham obtido que a inutil infancia
de seus filhos fosse considerada como serviço
militar do paiz!
Alguem supporá que tudo isto fazia com que
as classes privilegiadas tomassem, emfim, sobre
si os trabalhos e perigos da defensão do solo
natal; que tantos sacrificios de dinheiro, tão flagrante
e quasi incrivel desegualdade d'impostos
deixaria ao menos os concelhos occuparem-se
tranquilamente do trabalho productivo―da industria
[310]
fabril, da agricultura, do commercio.
Quem tal pensasse enganar-se-ia redondamente.
Era o contrario. O serviço militar dos municipios
tomava novo incremento e reorganisava-se segundo
o progresso da arte da guerra; a infanteria
regular nascia, ao passo que, pelos pedidos
e sizas, sobre as ruinas do antigo se alevantava
o moderno systema d'impostos.
É geralmente sabido que D. Diniz mandou traduzir
as leis das Partidas d'Affonso o sabio, e
que d'ellas se fez em Portugal um uso a que hoje
chamariamos de direito subsidiario. A auctoridade
de que esta legislação gozou entre
nós, o
que ella suppriu ou alterou, não vem para aqui.
Baste dizer que a 2.ª Partida teve notavel influencia
na organisação militar portugueza do
seculo XIV. Os diversos titulos do Regimento
de guerra, contido no livro 1.º da
Ordenação
affonsina, remontam em grande parte ao tempo
de D. Diniz, e são imitações, mais ou
menos similhantes,
de varios titulos da 2.ª Partida; e,
de feito, tanta mais influencia devia ter esta
parte d'esse codigo, quanto é certo que era
aquella que menos em desharmonia estava com
os antigos habitos e instituições, não
só de Castella
e Leão, como de Portugal.
[311]
Em relação, porém, á
milicia municipal, D. Diniz
desenvolveu mais completamente o pensamento
de Affonso o sabio. As Partidas fallam dos
bésteiros como de um
genero de combatentes
que os concelhos deviam ter entre a sua gente
de guerra; mas as disposições d'aquelle codigo
a este respeito estão longe de serem precisas.
Em Portugal, porém, impoz se aos concelhos a
obrigação de terem sempre promptos um numero
certo de bésteiros, que por isso se chamaram
do
conto (do
numero), tirados da classe dos
peões e existindo a par dos
milites
villani, ou
aquantiados, nome que substituiu
pouco a pouco
o de
cavalleiros
villões[71].
[312]
Os
bésteiros como
corporação de milicia municipal
apparecem mencionados em rarissimos foraes
onde se lhes concedem os privilegios dos
milites villani. Vê-se
bem d'essa circumstancia
que a existencia d'elles n'um ou n'outro concelho
era um accidente, e que não entrava no
systema geral da organisação militar das
communas.
Nem realmente devia entrar, porque o
uso da bésta só se vulgarisou nos fins do seculo
XII. A bésta foi para a edade-media o que
a espingarda foi depois para a epocha do renascimento:
uma arma terrivel, e que necessariamente
devia influir na tactica, dando á infanteria
uma importancia incomparavelmente maior
do que até ahi tivera. No principio do seculo XIII
ella se considerava como uma especie de arma
traiçoeira, e o seu uso nas guerras entre
christãos
como um crime. O IV concilio de Latrão assim
o declarou; e alguns principes da Europa
chegaram a dissolver completamente os corpos
[313]
de bésteiros. Os nossos não tiveram essa
delicadeza
de consciencia: pelo contrario, tornaram
o uso das béstas mais mortifero, permittindo que
se envenenassem os virotes que ellas despediam;
e a
herva dos bésteiros
figurava nas pautas ou
foraes das alfandegas do tempo de D. Affonso IV
e de D. Fernando, com a verba dos direitos que
devia pagar pela sua admissão.
O mais antigo monumento (depois dos raros
foraes a que alludimos) em que se tracta dos
bésteiros como de
corporações privilegiadas é a
Taussaçom (tabella de
taxas) da chancellaria
de D. Affonso IV, que cremos ser dos primeiros
annos do seu reinado, posto que não tenha data.
Ahi se determina o que hão de pagar as cartas
pelas quaes el-rei fez mercê de
livridões
(exempções)
e bemfeitorias a alguns bésteiros, variando
a taxa, segundo forem feitas a
dez,
cinco, ou
menos
de cinco bésteiros. D'este regulamento se
conhece que elles eram privilegiados collectivamente;
que por consequencia formavam já
corporações
distinctas no seio dos municipios; e
que, finalmente, não pertenciam á classe dos
acontiados, porque esses
lá tinham os seus privilegios
pela carta de foral.
Temos, porém, um documento com data precisa,
[314]
em que os bésteiros de conto apparecem
como uma instituição, sobre o abuso da qual os
povos já requeriam emenda, o que a suppõe
existente um certo numero d'annos antes. É o
aggravento 34 das côrtes de Santarem de 1331,
onde se diz:
«Item. São aggravados porque mandaes
fazer em cada villa bésteiros de conto
muitos mais que os que cumprem, e
muitos
que não sabem ende (d'isso) nada, e
são exemptos das peitas e d'outros encargos,
e são por isso os do concelho mais
aggravados: e outrosim hão muitos privilegios
e muitas honras, que se tornam aos
outros em mui grão damno.»
D'aqui se vê que a origem dos bésteiros de
conto, quando se não faça remontar ao reinado
de D. Diniz, não se póde suppôr mais
moderna
que os primeiros annos do governo do seu successor.
Como bem observam os procuradores do
povo, o estabelecimento d'esta nova milicia vinha
augmentar os encargos dos contribuintes
nos impostos directos (como os pedidos, as sizas
encabeçadas, etc.) por causa dos seus privilegios,
[315]
e assim, quanto mais numerosa fosse, mais
grave de soffrer seria para os concelhos.
Vemos, pois, que ao passo que o desbarato
das rendas primitivas do paiz fazia nascerem e
multiplicarem-se os novos tributos, a
contribuição
de sangue, que só pagava uma classe de
cidadãos―a dos
milites
villani, arnezados, ou
aquantiados―, se estendia tambem á classe
dos peões. Assim, a cessão dos bens da
corôa e
direitos reaes á nobreza, bem longe de alliviar
os municipios das obrigações militares, tornava
estas mais vastas e mais duras; mais duras, dizemos,
porque, sendo costume desde o principio
da monarchia servirem regularmente as tropas
concelheiras no fossado ou hoste só seis semanas,
findo o qual praso, o rei, se as queria reter,
lhes dava soldo como aos cavalleiros nobres,
similhante costume era já violado no tempo de
D. Pedro I e de D. Fernando, em que os povos
se queixavam do dilatado serviço que faziam
sem que lhes respeitassem os privilegios das
suas cartas de foral, ou aquelle antigo costume
[72].
E, como se isto não bastasse, os alcaides dos
[316]
castellos mettiam entre as suas
vellas ou
guarnições,
para pagar ás quaes recebiam tenças e
soldos do rei, os burguezes, tanto cavalleiros
como peões, que assim se esquivavam ao serviço
do concelho em tempo de guerra, tornando
este tanto mais gravoso para os outros moradores
[73].
Não seguiremos as vicissitudes por que passou
a milicia popular desde o meado do seculo XIV
até o do XV. Levar-nos-hia isto a desenvolvimentos
mais largos do que poderia comportar
este pequeno esboço. Os Regimentos militares
relativos áquella milicia, que se acham na
Ordenação
affonsina
[74],
formam o complexo das providencias
que regularam a existencia d'ellas por
todo o seculo XV, no fim do qual el-rei D. Manuel
extinguiu as duas instituições dos aquantiados
e bésteiros
[75].
D. Duarte reduziu a legislação desvairada que
havia ácerca dos aquantiados a um Regimento
harmonico e uniforme, confirmado por seu filho
[317]
e successor, e lançado na compilação
affonsina.
As antigas distincções dos
milites villani e
pedones
do principio da monarchia tinham desapparecido:
o tempo fizera o seu officio, e as
classes municipaes achavam-se confundidas. O
novo Regimento, pois, tomou por base a propriedade;
porque era a unica precisa e possivel. Na
Extremadura, a quem possuisse bens que valessem
quarenta marcos de prata, ou d'ahi para
cima, cumpria ter cavallo e uma armadura completa:
quem possuisse o valor de trinta e dois
marcos devia ter cavallo e não armas: aos que
tivessem vinte e quatro cabia o serem bésteiros
do concelho, isto é, o terem um peito de ferro
(solhas) e elmo com defeza para o pescoço de
malha de ferro (bacinete de camal) ou de chapa
de ferro lisa (bacinete de baveira), uma bésta
de garrucha
[76]
e cem fréchas de bésta
(viratões):
[318]
os proprietarios de dezeseis marcos só deviam
ter béstas de polé com cincoenta
viratões, sem
armadura: todos os individuos d'ahi para baixo
eram obrigados a terem uma lança e um dardo.
Estes valores de propriedade regulavam não só
na Extremadura, mas no Minho e Traz os Montes.
No Alemtejo, Algarve, e Beira os acontiamentos
regulavam-se por metade d'aquelles valores.
Esta organisacão militar do paiz, successivamente
estabelecida em Portugal, explica as invenciveis
resistencias que durante a edade-media
uma nação pequenissima offereceu sempre
á dissolução
interior e á conquista extrangeira: era
um povo de soldados; o rei um general; mas
general que tinha o que quer que era de pae de
familia e ao mesmo tempo o caracter sacrosancto
de ungido de Deus. Esta vida intima da nação
não podia ser annullada nem pelas
ambições dos
poderosos, nem pelos commettimentos d'estranhos.
Á voz do seu principe, Portugal inteiro erguia-se
armado como um só homem e arrojava-se
ao combate, não para defender como mercenario
[319]
os interesses, para elle inintelligiveis, de um individuo;
mas para salvar collectiva e individualmente
o lar domestico, o campo herdado, sua
mulher e filhos. O renascimento, que matou
quanto havia generoso e forte na indole nacional,
matou egualmente isso. Em vez de alimento
sadio, deu-nos o veneno embriagante das remotas
conquistas, as convulsões da nevralgia em
vez do caminho pausado e firme de uma boa
organisação
physiologica. Perdoe a nação hoje, se
póde, aos
grandes
homens do tempo de D. Manuel.
Como a milicia municipal da edade-media assentava
na propriedade e se regulava pelos seus
accidentes, é claro que só os chefes de familia,
proprietarios territoriaes, eram a ella chamados.
Um grande numero de individuos―esses a que
geralmente hoje se chama proletarios, e os artifices
da pequena industria fabril, unica do paiz,
ficavam excluidos d'esta vasta rede de obrigações
militares, sendo aliás esses homens, habituados
a uma vida laboriosa e dura, os mais
convenientes para o serviço das armas. De similhantes
considerações parece ter nascido a
instituição
dos bésteiros de conto: tal é, pelo
menos, a idéa que apparece na
legislação de
[320]
D. João I, que os organisou definitivamente pela
maneira em que os vemos subsistir até á sua
extincção. Aquellas providencias estendiam-se
aos galiotes das vintenas, ou ás companhias para
o serviço militar maritimo, que entravam no
mesmo systema geral da força publica.
As condições principaes para qualquer individuo
se arrolar entre os bésteiros do conto eram
o ser
mesteiral, isto
é, official de officio fabril,
que não pagasse jugada ou oitavo, ou, por outra,
que não possuisse predios rusticos, e que
fosse casado, admittindo-se unicamente
mancebos
(homens solteiros) quando n'algum logar faltassem
absolutamente chefes de familia. A arma
do bésteiro de conto era a bésta de
polé,
que
não se podesse armar no cinto
[77]. Pelo
recenseamento
feito no tempo de D. João I, o numero de
bésteiros de conto devia ser em todo o reino de
4.898.
Assim achamos durante tres seculos que o
serviço militar dos concelhos cresceu com os
outros tributos. Na maior parte dos foraes faltam
as condições de propriedade que se deviam dar
[321]
em qualquer individuo para ser
caballarius ou
cavalleiro villão; e n'alguns em que se estabelecem
são taes que era facil esquivar-se a ellas
[78].
Além de que bastava estar por um ou dois annos
sem cavallo para cahir na classe dos tributarios,
sem que por isso se impozesse a ninguem outra
pena, o que prova a pouca importancia que se
ligava á existencia da milicia municipal. Os acontiamentos,
porém, que abrangiam ainda os mais
pobres, no principio do seculo XIV; as graves
mulctas que se impunham aos refractarios; e finalmente
a instituição dos bésteiros de conto
para que nem os proletarios escapassem ao serviço
da guerra, nos dão evidente testemunho de
que era nos concelhos que o governo real via
principalmente o nervo da defensão da patria.
D. João I, que mais que ninguem trabalhou por
completar o novo systema de defeza, sabia-o porque
o experimentara. Ao povo queria elle deixar
a guarda da corôa que herdava a seus filhos, porque
[322]
o povo lh'a pozera na cabeça, apezar de
Castella e de boa parte da fidalguia.
Os bens da corôa e os primitivos direitos de
foral subsistiam, os tributos geraes haviam nascido
e ganhado certa extensão, a defensão do
paiz estava a cargo dos municipios: como se despendiam,
pois, essas rendas de bens de corôa,
esses direitos, esses impostos?―Eram, como
dissemos, devorados pela aristocracia.
FIM DO VOLUME VI.
INDICE
|
|
|
Pag. |
Uma villa-nova
antiga |
|
3 |
Cogitações
soltas de um homem
obscuro[79] |
|
21 |
Archeologia
portugueza |
|
43 |
|
Viagem do cardeal
Alexandrino |
|
49 |
|
Aspecto de
Lisboa |
|
95 |
|
Viagem dos cavalleiros Tron e
Lippomani |
|
119 |
Pouca luz em
muitas
trevas |
|
137 |
Apontamentos para
a historia dos bens da corôa e dos
foraes |
|
195 |
Notas:
[1]
Evora
é chamada no seu foral
cidade; Lisboa no
seu
villa.
[2]
D. João I já se intitulára
senhor de Ceuta: mas
Ceuta era apenas uma povoação: era o elemento de
um
municipio. N'este caso a palavra
senhor era a versão
de
dominus, que nas cartas
municipaes da edade-media
tinha um valor bem diverso do vocabulo
senhor empregado
pelo absolutismo. O que jamais rei nosso se chamou,
antes de D. João II, foi
senhor de uma
provincia
dependente da coroa portugueza.
[3]
A segunda obra promettida pelo auctor é a
Viagem
de Tron e Lippomani: a sequencia das
narrações exige,
porém, que entre uma e outra intercalemos a que se
intitula
Aspecto de Lisboa, embora
publicada um pouco
mais tarde.
(Os edit.)
[4]
Sobre esta embaixada consulte-se a
Hist. Gen. da
Casa Real, no tomo VI.
[5]
Provavelmente alguma atalaia.
[6]
Follia em italiano quer dizer
loucura.
[7]
Tinha-as descripto por estas palavras: «Ao sahir
de Barasso se nos apresentaram oito raparigas com trajos
de ciganas, ricas e galantes, trazendo na cabeça
uma
irnalda (sic) (donde talvez
por corruptela chamamos
em Italia
ghirlanda) feita
á maneira de um grande
chapeu de sol chato, mas elevado algum tanto no meio
a modo de pyramide, com um aro de folha delgada de
prata, cheio de botões do mesmo metal postos em
fórma
de laços, de serpes, e de flores, dos quaes pendiam
pequeninos
espelhos ou laminas de prata de vario lavor.
Traziam cintos á antiga, de veludo e brocado, faxas de
fina tela mourisca, tomadas com laçarias d'ouro, vestidos
de panno encarnado, e sóccos de feltro de côres
variadas.»
[8]
Era a isto que antigamente se chamava
Pélla.
[9]
O A. da
Historia genealogica
não conseguiu apurar
a epocha do nascimento do duque: limita-se a citar a
Chronica da Piedade, que o
dá nascido antes do anno
de 1547.
(Os edit.)
[10]
Burrichy, diz o original. O
diccionario da Crusca
não explica que parte seja do trajo: diz só
especie de
vestido.
[11]
Le piegature rare ed
singulari, diz o original. Não
sabemos o que isto queira significar, salvo se as toalhas
se usavam crespas a ferro, ou
piegatura tinha alguma
significação hoje obsoleta e esquecida.
[12]
Rensadi.―
Rensa
chamam em Italia ao panno de
Rennes.
[13]
Vestito come burico sciotto?
[14]
La Raugina.
[15]
Na descripção de Palmella nada ha notavel,
salvo
o que diz respeito á ordem de Santiago, que melhor se
póde vêr nos seus estatutos, e em muitos livros
vulgares.
Por isso o omittimos.
[16]
A borigo?
[17]
Sé.
[18]
Setim.
[19]
O successo narrado n'este paragrapho acha-se em
todos os historiadores, mas vem aqui com diversas
circumstancias.
[20]
D'esta velha usança faz já
menção Damião de Goes
na
Descripção de
Lisboa, escripta em latim na primeira
metade no seculo XVI.
[21]
Salmestrate―dialecto
venezeano talvez.
[22]
Este sello é de chancella com papel por cima:
exactamente semelhante ao sello de D. Sebastião que
vem no tom. IV da
Hist.
genealogica com o num. 88, só
com a differença na legenda de
Henricus em logar de
Sebastianus.
[23]
Nenhum d'elles existe copiado na
Hist.
genealogica.
Assim servem com o antecedente para completar a sfragistica
d'este reinado.
[24]
Quasi todos os documentos de que vamos dando
noticia são escriptos n'esta lingua: damos os extractos
ou copias d'elles em portuguez para mais facil intelligencia,
mas sempre com a mais escrupulosa fidelidade.
[25]
Provavelmente o de Ossuna.
[26]
Isto é, segundo entendemos, se entrariam tropas
castelhanas em Portugal.
[27]
Auctor do
Flos-Sanctorum.
[28]
S. Francisco de Borja.
[29]
O desgraçado filho de Philippe II.
[30]
Os jesuitas.
[31]
Cremos ser o conde de Portalegre, um dos fautores
de Castella.
[32]
Allude evidentemente á sentença dada n'este
tempo
pelo cardeal-rei contra D. Antonio, declarando-o illegitimo
e inhabil para succeder na corôa.
[33]
Quem seria este creado do cardeal-rei, e membro
do seu conselho, agente de D. Antonio?―Veja-se a
nota ao documento seguinte.
[34]
Só pelo appellido seria difficultoso atinar com quem
era o agente do prior do Crato. Porventura seria aquelle
Pedro da Costa, cujo nome se encontra na lista dos que
tinham cedulas de D. Christovão de Moura, publicada
por Faria e Sousa.
[35]
Deve ser Valencia d'Alcantara, na fronteira de Portugal.
[36]
O cardeal-rei. O titulo de majestade foi introduzido
entre nós por Philippe II.
[37]
Isto é, os procuradores das terras principaes, que
se assentavam nos cinco primeiros bancos, a saber: de
Lisboa, Evora, Porto, Coimbra, e Santarem.
[38]
D. Duarte de Castello-branco, um dos fautores mais
descarados do dominio extrangeiro.
[39]
Apesar das facilidades para a conquista de Portugal
que o
corso imaginava, o manhoso
Philippe conhecia
melhor o estado das cousas. Já vimos como recommendava
a alliciação dos fronteiros do Alemtejo e Beira:
veremos brevemente como se tractava de corromper os
procuradores de côrtes.
[40]
Esta nota intercalada entre as duas de Philippe II
allude aos paragraphos subsequentes.
[41]
D. Jorge de Attaíde, bispo de Vizeu, que tinha sido
capellão-mór do cardeal rei.
[42]
Eram estes embaixadores o bispo de Coimbra
D. Gaspar e Manuel de Mello.
[43]
Este procedimento de Martim Gonçalves da Camara,
combinado com o que d'elle se diz na antepenultima
carta, e o que o proprio Philippe II testifica ácerca dos
jesuitas na nota da carta, já publicada, relativa
á rainha
D. Catharina, parece-nos offerecer um notavel desconto
ás accusações feitas contra aquella
celebre ordem
na
Deducção
chronologica, obra de odio profundo e por
isso má guia para a historia.
[44]
O auctor escrevia em outubro de 1843.
(Os edit.)
[45]
Um escriptor nosso, respeitavel por muitos titulos,
reprova as expressões de
baixo e
alto
clero como francezas.
Estas expressões são evidentemente metaphoricas,
e seja-nos licito pensar que as metaphoras não
têem nação. Suppondo, porém,
que haja metaphoras
portuguezas e metaphoras extrangeiras, parece-nos que
a distincção social completa, que havia entre
clero e
clero na edade-media, por nenhumas palavras se exprime
com mais clareza do que por aquellas, e em nossa
humilde opinião a clareza das idéas importa um
pouco
mais que os primores e pontualidades da lingua.
Clero
nobre e
clero
villão, ou
clero
privilegiado e
não
privilegiado,
seriam denominações porventura mais portuguezas,
mas teriam o leve defeito de serem, em muitas
relações,
falsissimas. Isto em linguistica talvez seja indifferente;
mas em historia é algum tanto mais grave.
[46]
A historia d'este drama popular, que não cabe aqui,
reservamol-a para um trabalho mais vasto, a que hoje
quasi exclusivamente consagramos as nossas vigilias―os
Estudos sobre a edade-media
portugueza. (Este
titulo foi depois mudado para o de
Historia de
Portugal,
e o leitor encontrará no tomo II, livro III
ad fin., a
narração
circumstanciada dos successos a que o A. allude.―
Os
edit.)
[47]
Para prova basta lembrarmo'-nos de quão gravemente
elle discutiu se a monarchia foi na sua origem
absoluta ou mixta, sem examinar primeiro se n'aquelles
tempos havia a minima possibilidade d'essas
distincções
de direito politico. Similhante questão equivaleria
a disputar se n'esse tempo havia censura ou imprensa
livre.
[48]
Na
Monarch. Lus., P.
6.ª, pag. 558, 1.ª ediç.
[49]
Por muitos foraes o terço do tributo de barreiras
que pagavam as pessoas pertencia ao
suus
hospes,
áquelles que lhes davam gasalhado na
povoação.
[50]
Bulla de Innocencio III―
Si
diligenter―de 23 de
fevereiro de 1211, em Baluz.,
Ep. Inn.
III, Lib. XIV,
ep. 8, e em Aguirre,
Collect.
Concil., Tom. 5, p. 156.
[51]
A. G. do Amaral e J. A. de Figueiredo confundiram
este privilegio especial dado a alguns concelhos com o
privilegio das behetrias. Qual fosse a origem das behetrias
não será facil dizer com certeza. Talvez a
opinião
de J. P. Ribeiro, de que foram povoações que por
si
proprias sacudiram o jugo dos mouros, seja a mais plausivel.
É notavel, porém, que elle mesmo acceitasse a
opinião de Figueiredo e Amaral. As behetrias tinham
direito de escolher senhor; mas n'estes concelhos devia
sel-o o rei ou seu filho, e a quererem pôr-lhe outro, era
necessario que o concelho
o
acceitasse. Evidentemente
o
qui vos quesieritis, ou
quem concilius voluerit significa
isto; aliás o artigo do foral seria absurdo por inexequivel.
O privilegio da eleição nas behetrias
suppõe-se
absoluto e sem restricções: pelo contrario
n'estes
concelhos o ser o rei, ou seu filho, o senhor, constitue
o privilegio, e a eleição ou
approvação de villões
para ser outrem donatario é uma
restricção do principio.
O que significaria o privilegio de behetria―a absoluta
liberdade eleitoral―se os reis quizessem ser
constantemente os
seniores? Os
escriptores já citados
admiram-se de que as terras, que ainda nos fins do seculo
XV ou principios do XVI gozavam o direito de behetrias,
não fossem nenhuns d'aquelles concelhos que
por foral haviam o privilegio de ter o rei por senhor:
era justamente isto que os devia allumiar para verem
que se enganavam confundindo essas duas especies.
[52]
Esta denominação ainda é
frequente na
Historia
Compostellana para significar o governador ou
alcaide-mór
de um castello ou povoação.
[53]
O leitor encontrará mais largamente tractada esta
materia no excellente estudo
Da existencia ou
não existencia
do feudalismo nos reinos de Leão, Castella, e
Portugal,
publicado no volume V d'estes
Opusculos.
(Os edit.)
[54]
Reflexões hist.,
P. I, pag. 97.―Quanto a Leão, vide
Marina,
Ensayo, § 71 e
seg.
[55]
Liv. 3 da Chanc. de D. Diniz, fol. 72―nas
Mem.
da
Acad., T. 6, P. 2.ª, pag. 120.
[56]
Acham-se publicadas nas
Memorias para a hist.
das
Inquirições.
[57]
Os nossos escriptores citam frequentemente as leis
das eras barbaras para provar a existencia das
instituições
ou costumes que n'ellas se estabelecem. Parece-nos
isto o meio mais seguro de transtornar a historia.
Quando uma lei prohibiu tal ou tal cousa, creou tal ou
tal direito, o que similhante lei póde provar é a
existencia
do facto ou do direito contrario, pelo menos até
á
sua promulgação; e, se d'ahi a pouco a vemos
repetir
com sancção de novas penas e ameaças,
que devemos
concluir d'isso, senão que essa lei foi letra morta, e que
os costumes ou factos prevaleceram contra as doutrinas
e as innovações? É por isso que a todo
o instante
encontramos citações trazidas para abonarem
exactamente
o contrario do que ellas em verdade nos revelam.
Por duas leis (5 e 6 do
Liv. das leis e post.
ant.)
D. Affonso II
prohibiu que por
odios ou vinganças se
arrombassem as casas de fidalgos ou villões, ou que
se derribassem, e que se cortassem ou queimassem vinhas
ou arvores alheias, e se destruissem
outras
possissões,
isto quando o offendido visse que o seu inimigo
estava prompto a dar-lhe satisfação
judicialmente. Estas
leis foram renovadas por D. Affonso III (Ibid. Leis 25
e 60). Que se deve d'aqui concluir senão que o paiz era
um vasto theatro de vinganças pessoaes, mortes e estragos?
As leis de D. Affonso II não tiveram effeito, nem
provavelmente as de D. Affonso III, como nol-o mostram
as guerras civis dos primeiros annos do reinado
de D. Diniz.
[58]
Veja-se o
Appendice diplomatico-hist. ao Tract.
prat.
do Dir. emphyt. por Almeida e Souza. Os documentos
ahi apontados foram colligidos por J. P. Ribeiro.
[59]
Esta exuberancia do direito de resistencia acha-se
principalmente no foral d'Evora e nos mais que tiveram
por modelo o de Avila.
[60]
Lei 13, no
Livro das leis e post.
antigas.
[61]
Bullas:
Si diligenler, VII
kal. mart., an. 14 Inn III―
Gravi
nobis, X kal. jan., an. 5 Hon.
III―
Ex parte
clarissimi, XVIII kal. jul., an. 7 Greg. IX.
[62]
Bulla
Si quam horribile,
XVIII kal. maii, an. 12
Greg. IX.
[63]
Na
Historia compostellana, e
n'outros monumentos
principalmente relativos ao tempo dos reis de Leão,
achamos infligido ainda este castigo tão commum entre
os visigodos.
[64]
Estevam Pires de Molny, cavalleiro do julgado de
Faria, entrando-lhe o mordomo d'el-rei na sua honra,
enforcou-o; e indo o alcaide fazer ahi uma penhora,
decepou-lhe as mãos e depois matou-o.
Mem.
da Acad.,
T. VI, P. 2.ª, pag. 130, N.
(
b).
[65]
A palavra
alcaide parece ter
sido sempre a palavra
vulgar. Em alguns documentos encontra-se na sua
fórma arabe
Al-kaid, o
que no commum dos diplomas
latino-barbaros se vertia por
praetor.
[66]
Chamamos-lhe
magistrado
porque as questões fiscaes
pleiteavam-se ante o mordomo, e por elle eram
julgadas.
[67]
Côrtes de Coimbra de 1425 (1387), Art. 7.º
[68]
Antes d'isto, no tempo de D. Affonso IV, D. Pedro I,
e D. Fernando, as sizas, se acreditarmos a
Ordenação
affonsina, tinham recahido tambem sobre as classes
privilegiadas; mas, sendo então transitorias, apenas se
podem considerar como pedidos eventuaes. Como tributo
permanente só datam da epocha de D. João I,
desde cujo reinado nunca mais foram abolidas. Em
ambos os casos, porém, ellas recahiam principalmente
sobre o povo, de cujo seio sahiam os regatoens ou mercadores
de retalho, os quaes (sendo prohibido pelas leis
aos nobres este mister) vinham a ser os principaes contribuintes,
attendendo á fórma por que eram
lançadas
as sizas.
[69]
Os
cidadãos do
Porto deram a D. Affonso III certa
somma a troco da qual ficaram exemptos de irem á
guerra do Algarve. Livro 1.º de Doaç. de D. Aff.
III,
fol. 3.
[70]
Lei de 1305 no
Liv. das Leis e Post.
ant.
[71]
J. P. Ribeiro reprehendeu o auctor do
Elucidario
de ter dado uma interpretação errada á
palavra
acontiado,
que Viterbo tinha dicto ser applicavel aos fidalgos
que recebiam uma quantia do rei para servirem na
guerra. Podia accusar a definição de incompleta;
porém
não d'errada. A que elle substitue, dizendo que
eram os
vassallos, cujos bens se
avaliavam para os
obrigar a ter armas e cavallo, é talvez menos exacta
(pelo uso improprio que se faz da palavra
vassallo), e
sem duvida tão incompleta como a de Viterbo.―A verdade
é que os fidalgos eram aquantiados, recebendo a
sua
quantia ou os seus
maravedis para fazerem a guerra,
conforme o que affirma o auctor do
Elucidario; e os
burguezes, avaliando-se os bens para terem armas com
que servissem no exercito em proporção d'esses
bens,
segundo quer Ribeiro. Por outra: para o cavalleiro nobre
o serviço militar era um officio rendoso; para o
cidadão
era um imposto de sangue.
[72]
Côrtes de Coimbra de 1361, art. 64 (aliás
65), e Côrtes
de Lisboa de 1371, art. 24.
[73]
Ibid., art. 38.
[74]
Liv. I, tit. 68.
[75]
Côrtes de Lisboa de 1498, cap. 33, 69, 71.
[76]
As béstas de garrucha (béstas mais pequenas
que
se armavam á mão retezando a corda com um gancho)
eram proprias para os soldados de cavallaria, emquanto
as béstas de polé (béstas grandes que
se armavam por
via de uma roldana e retezando a corda com os pés)
eram só convenientes para a infanteria. Sendo o descrever
cada uma d'ellas mui longo e talvez inintelligivel
sem uma estampa, bastará dizermos que a bésta de
garrucha era para a de polé o mesmo que na milicia
d'hoje a clavina para a espingarda.
[77]
Ord. aff., Liv. I, tit. 68, § 23.
[78]
Pelos foraes de Garvão, Montemór, Penamacor,
etc.,
era cavalleiro villão quem possuia uma
aldea (casal,
granja), um jugo de bois, quarenta ovelhas, um burro,
e dois leitos.
[79]
Este trabalho foi publicado na
Revista universal
lisbonense,
e todos os outros no
Panorama. As
epochas em que foram escriptos
vão nos titulos respectivos.
|
Original |
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Correcção |
#pág.
10 |
meiae ncosta |
... |
meia encosta |
#pág.
90 |
Achámola- |
... |
Achámol-a |
#pág.
293 |
nossas inimigos |
... |
nossos inimigos |