Title: Paginas Archeologicas III - Situação conjectural de Talabriga
Author: Félix Alves Pereira
Release date: September 23, 2009 [eBook #30071]
Most recently updated: January 5, 2021
Language: Portuguese
Credits: Produced by Pedro Saborano (produced from scanned images
of public domain material from BibRia)
FELIX ALVES PEREIRA
PAGINAS ARCHEOLOGICAS
III
SITUAÇÃO CONJECTURAL DE TALABRIGA
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1907
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SITUAÇÃO CONJECTURAL DE TALABRIGA
Obra composta e impressa na Imprensa Nacional
Edição e propriedade do Museu Ethnologico Português
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FELIX ALVES PEREIRA
PAGINAS ARCHEOLOGICAS
III
SITUAÇÃO CONJECTURAL DE TALABRIGA
LISBOA
IMPRENSA NACIONAL
1907
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Ao
Illustrissimo e Excellentissimo Senhor Conselheiro
Luis Cypriano Coelho de Magalhães
O. e D.
O autor.
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Separata d'«O Archeologo Português», XII, n.os 5 a 8 de 1907
1. Estado da questão.—2. Autores antigos—3. Itinerario—4. Exame do mappa—5. Topographia e onomastico da região—6. Os castros do trajecto da Via—7. Região mineira—8. Localização de Talabriga—9. Opinião de Gaspar Barreiros—10. Geographia arabica—11. Strata maurisca—12. Ria de Aveiro e o Vouga—13. Historia de Talabriga.
Algum tanto sem o presentir, ao fazer o estudo da ara de Estorãos, (Arch. Port., XII, 36) encontrei-me no limiar de um problema que, de modo definitivo, não se resolverá senão com a verificação in loco de vestigios archeologicos incontrastaveis.
É o problema da trajectoria exacta da via romana entre Aeminium e Calem, da qual não se conhecem milliarios decisivos e sufficientes, especialmente da sua passagem por Talabriga.
O assunto, parcialmente considerado, tem sido alvo das principaes referencias na pugna litteraria em que os paladinos de Agueda, de Aveiro e de Coimbra patrioticamente articulavam preeminencias genealogicas, que é da praxe mencionarem-se em monographias locaes, mas que hoje, quanto a Coimbra (e Condeixa-a-Velha) estão sentenciadas, em prejuizo até heraldico de Agueda[1].{8}
Propositadamente, porém, o problema não foi ainda estudado debaixo do seu aspecto geral; apenas por incidente tem sido versada a localização de Talabriga. Não venho com o proposito de o dar como resolvido, é certo; mas desejo englobar neste estudo um certo numero de considerações, que podem preparar o desenlace d'este ponto controvertido da geographia protohistorica da Lusitania, no campo adequado, e quiçá orientar pesquisas.
Onde foi Talabriga? Até hoje nenhum d'estes indices peremptorios que marcam inilludivelmente a situação das antigas cidades, como para Conimbriga (Condeixa-a-Velha), Aeminium (Coimbra), Bracara Augusta (Braga), Olisippo (Lisboa), Pax Julia (Beja), etc., se nos antolha para dar resposta nitida áquella pergunta.
Guiados pelas indicações geographicas do Itinerario e de Plinio, os nossos escritores teem querido alternadamente que Aveiro, Cacia, Esgueira occupem hoje o logar que outrora se chamou Talabriga. De facto, o Itinerario, ao contar as milhas que de Aeminium vão a Calem (Gaia ou Porto?) pela via militar, devia ter especial valor para este problema; mas a comprehensão da necessidade de verificar rigorosamente as indicações d'aquelle documento, a consulta de edições criticas, tomando-se por base a decisão do problema de Aeminium, e talvez o desaffecto de uma ou outra solução é que teem, no meu humilde entender, faltado a todos os autores que mais modernamente do assunto se teem abeirado[2].
A geographia classica não é de todo omissa a respeito d'esta antiga povoação. O testimunho de Plinio, que é o A. mais expresso, vem a ser o seguinte: A Durio Lusitania incipit. Turduli veteres, Paesuri, flumen Vagia[3], Oppidum Talabrica, Oppidum et flumen Aeminium, Oppida Coniumbrica,{9} Collippo, Eburobritium. (C. Plinii Secundi, Nat. Hist., ed. de Detlefsen, IIII, 113). Isto tem o ar de uma sêca enumeração chorographica, que se desdoba do norte para o sul, a contar do Douro, e que, restringida ao nosso caso, nos dá esta sequencia:
a) rio Vouga;
b) cidade de Talabrica;
c) cidade e rio de Aeminio (Coimbra);
d) e as cidades de Conimbrica (Condeixa),
e) Collippo (Leiria) e
f) Eburobricio (Obidos, Vejam-se Relig. da Lusit., II, 31).
Se não fôr certo, como não me parece, que Vouga é ao norte de Talabriga e este oppido ao sul do mesmo rio, pelo menos conclue-se que Talabriga vizinha de um lado ou outro aquelle estuario.
Não trago nenhum outro autor antigo, porque elles não adeantam o problema chorographico. Na Cosmografia de Ravennate (ed. de Pinder & Parthey, p. 307) Talabrica apparece transformada em Terebrica e fica na seguinte localização relativa: Olisipona—Terebrica—Langobrica—Cenoopido—Calo...
Vamos pois ao Itinerario[4] e á discussão das suas indicações. Encontra-se nelle, que nos sirva:
Eminio | mp. X | |
Talabriga | mp. XL | (= 59:240 metros) |
Langobriga | mp. XVIII | (= 26:658 » ) |
Calem | mp. XIII | (= 19:253 » ) |
105:151 » |
A equivalencia que sigo é a de 1 milha = 1:481 metros (Saglio & Daremberg, s. v. Milliarium).
A trajectoria d'esta via desde Coimbra (Aeminium) a Gaia (Calem) deixaria de ser ponto controverso se, como succede noutras estradas romanas, alguns milliarios sobreviventes escalonassem os seus vestigios.{10}
Não ha porém, neste particular, mais que isto:
1.º Um fragmento de milliario com 2m,04 de alto X 1m,40 de circuito, que appareceu na Mealhada ao norte de Coimbra e só tem M.XII.
2.º Outro que foi encontrado mesmo em Coimbra e aponta M.IIII.
Nem aquelle nem muito menos este servem ao meu intento; o traçado litigioso no nosso caso é para norte da Mealhada e Anadia, e não entre Mealhada e Coimbra. (Vid. Borges de Figueiredo, Oppida restituta, p. 82; Hübner, Notas archeologicas sobre Portugal, p. 67, trad. cit.: Catalogo dos objectos existentes no Museu de Archeologia do Instituto de Coimbra, p. 6; A. Filipe Simões, Escritos diversos, 1883).
3.º Um pretenso milliario descrito por Fr. Bernardo de Brito na Monarchia Lusitana, II, V, p. 3. Este vicio de origem obriga-me a pôr ainda de parte este monumento como comprobativo da directriz; Hübner fulmina-o com a sua desconfiança (Corpus, II, 55 a *) dizendo que Brito queria demonstrar com elle a existencia de Vacua. Não lhe darei porém eu maior valor que o proprio monge, que, como por prevenção, confessa que as letras da pedra eram «mal distinctas e muy quebradas». Assim a sua interpretação deve desinteressar-nos, visto que não ha meio de contraprovar a leitura de Fr. Bernardo de Brito, duvidosa para elle proprio. Para este, a lapide era porém um padrão de estrada, o que pouco vale por entretanto para nós; mas provinha do Castello de S. Gião, ao que parece, castro rico em ruinas de muros, etc. Isto, cuja importancia só modernamente se aprecia, é que não se inventa e dá visos de que com effeito alguma cousa lá pudera ter apparecido. Mas Brito, com o dizer que a lapide era padrão de estrada, contrariava sem o advertir a propria crença de que a via romana seguia pela beiramar e Talabriga era em Aveiro. (Mon. Lusit., id., p. 130).
Não obstante, ponha-se de parte a exactidão da epigraphe do supposto, mas rehabilitavel, milliario do castro de S. Gião, e fique, provisoriamente, apenas um facto—o achado de um padrão de via romana num castro das margens do Caima.
A opinião de que Aveiro fôra o assento da antiga estação do Itinerario tinha ainda por si, alem do mappa de Abr.ão Ortelius (Theatrum orbis terrarum, Antuerpia, CIC.IC.CIII) o pensar de Florez (España Sagrada, tomo XIV, p. 73), que lêra Plinio e uma edição antiga do Itinerario romano. E póde dizer-se que foi essa a corrente que dominou até hoje, se com Aveiro abrangermos o aro circunjacente. (Vejam-se Adolfo Loureiro. Os portos maritimos de Portugal, II, p. 3; Marques Gomes, Districto de Aveiro, onde restringe[5] a Cacia o ubi de Talabriga;{11} Borges de Figueiredo, Oppida restituta, 1885; Pinho Leal, Portugal Antigo e Moderno, s. v. Aveiro; Gaspar Barreiros, Chorographia de alguns lugares; D. Nunes de Leão, Descripção do reino de Portugal; Francisco do Nascimento Silveira, Mappa breve da Lusitania antiga, etc.)[6].
Regressemos porém ao Itinerario, e vejamos se será possivel concluir algo que um dia a pesquisa e exploração persistente do archeologo possa contraprovar. É o meu sonho.
Que a medição total do Itinerario relativa á via ab Aeminio Calem está notavelmente exacta, demonstra-o esta verificação facil: a somma das milhas que se contaram de Eminio a Gaia, reduzida a kilometros, (unidade mais pratica e mais exacta que a de leguas, até agora adoptada) era de 105:151 metros, como vimos; a distancia computada actualmente na Carta do Estado Maior d'esta região pela directriz da estrada real é de 105:100 metros[7]. Não podendo ser mais breve a distancia d'esta estrada, como se verifica olhando os traçados rectificados ao lado do mappa junto, em que a distancia em linha recta e a rectificação exacta da extensão effectiva da estrada fazem pequena differença, o que mostra que os desniveis ou as inflexões do traçado são assaz reduzidos, conclue-se que a via romana, desde que marca igual extensão kilometrica, não poderia seguir caminho mais longo que ella, nem portanto muito distanciado d'ella.
Esta coincidencia de medições é suggestiva e não permittiria, só por si, que a trajectoria da via romana e da actual estrada real divergissem{12} muito. Se esta desenhasse uma inflexão pronunciada no seu trajecto de Coimbra a Gaia, claro é que era possivel, sem exceder a mesma extensão, encontrar outra curva symetrica que tocasse em pontos intermedios diversos e afastados, e coincidisse apenas nos respectivos extremos, o que nada util me seria; mas nas circunstancias que se dão e já salientei, e que me permittiram estudar sobre uma carta este problema, a coincidencia effectiva das duas vias de communicação deve em grande parte quasi corresponder á coincidencia theorica, agora expendida.
Isto oppõe-se a que a via romana passasse em Aveiro, ponto muito afastado e divergente do trajecto theorico[8].
Vou porém demonstrar por partes como isto assim deve ser. É preciso partir do principio já demonstrado, embora para o total da distancia, que as medições do Itinerario não contém erro. Qualquer inexactidão nas milhas marcadas para cada uma das secções da via militar alteraria a somma, desde que, por um acaso unico, não fosse compensada por outra inexactidão.
Ora a via romana de Eminio contém tres troços ou secções; o 1.º de Eminio a Talabriga; o 2.º de Talabriga a Langobriga; o 3.º de Langobriga a Cale. Se uma sequer das distancias correspondentes do Itinerario contivesse erro, a somma total accusá-lo-hia; mas nós já vimos que a distancia de 105 kilometros corresponde a uma realidade. Comecemos pelo extremo norte da via. Isto conduz mais claramente ao meu fim; e descobre mais prontamente o erro em que até agora me parece que tem laborado os escritores. Tomemos o mappa[9].
Se traçarmos um arco de circulo, cujo centro seja Gaia e o raio igual á distancia de Cale a Langobriga, isto é, a 19 kilometros (veja-se{13} a escala), teremos obtido uma curva theorica (LL no mappa) que no terreno representa uma faixa de tolerancia, mais ou menos larga, dentro da qual e numa zona d'ella que seja compativel com um trajecto ininterrupto da via, cuja extensão já definida se não póde exceder, o archeologo deverá procurar os vestigios de Lancobriga.
Esta zona, ou este segmento, não poderá pois, em principio, afastar-se consideravelmente da directriz da estrada real.
Consultemos de novo o Itinerario. Entre Langobriga e Talabriga medeiam 26:600 metros. Ignorando ainda qual o ponto preciso que na curva LL marca o primeiro d'aquelles oppidos, deveremos traçar um arco de circulo parallelo ao antecedente e á distancia que a escala indica. Como o terreno não é propriamente uma carta celeste[10] em que os pontos podem ser rigorosamente indicados, a nova curva deixada pelo compasso é representativa de uma segunda faixa de tolerancia, susceptivel de maior ou menor elasticidade, mas confinada, quanto á sua extensão, pela continuidade do trajecto viario em direcção a Aeminium, trajecto cujo comprimento tem limite determinado de milhas.
E assim temos o arco TT.
Nesta curva, que não é mais que uma zona media, deverão surgir ao appellido do archeologo as ruinas do que outrora foi Talabriga. Esta conclusão emerge logicamente das bases que tomei: o acerto evidente do Itinerario no total e muito provavel nas secções; a coincidencia das extensões da via antiga e da estrada moderna.
Se agora, por contraprova, apontarmos o compasso a Eminio e girarmos com um raio de 59 kilometros, verificado segundo a escala, obteremos outra curva, a terceira, tangente á segunda e que tem a missão de indicar a zona util, o segmento dos arcos, correspondente á area provavel da situação de Talabriga. Porque o que não póde haver, é um hiato, uma interrupção de trajecto de Cale a Aeminium[11].
Esta primeira phase da minha demonstração, porém, já torna incompativel a actual situação de Aveiro com vestigios de Talabriga. E mais do que isto; vem levantar um equivoco de Plinio, que parece{14} suppôr aquelle oppido ao sul do Vouga; se assim fosse, não seria possivel encontrar o ponto de reunião do caminho que descia de Cale a encontrar Lancobriga aos 19 kilometros e se prolongava na direcção do sul até mais 20 kilometros, onde devia beijar a Talabriga do Itinerario sem encontrar a de Plinio[12]. O hiato resultante fica, parece-me, fechado e annullado, desviando Talabriga de Aveiro e aproximando-a de Albergaria, ao norte do Vouga; isto é, a hipothese que proponho é a que se concilia em todos os pontos com o Itinerario.
Mas não se concilia só com esta fonte documental: é a mais plausivel em face das condições topographicas e historicas da região de Entre-Vouga-e-Douro.
A actual directriz da estrada real é a que mais ou menos devia ter seguido a via romana que procurasse unir Eminio a Cale, dado o traçado que ella já trazia desde Lisboa.
Em primeiro logar: as condições topographicas d'aquelle grande delta do Vouga não eram senão de molde para difficultar a abertura de uma estrada na epoca romana, em concorrencia com traçado mais firme e duradouro, mais economico, mais util e mais commercial. Aquellas planuras deviam existir já então, como um presente do Vouga, segundo se tem dito, creio, do Nilo.
Se eram naquelle tempo pantanos, ou bosques intransitaveis[13] ou veigas retalhadas, como hoje, por um dedalo de canaes e esteiros, não me cabe a mim defini-lo. De qualquer d'estas fórmas, uma via romana não iria atravessar uma região em que a falta de pedra é quasi absoluta, e a multiplicidade de trabalhos de architectura civil ou de obras{15} de arte uma consequencia inevitavel. Era preciso combater por um lado a pouca firmeza do terreno, por outro contar com o custo da empresa[14], ou os impecilhos da viagem.
Por isso os mesmos motivos que na idade media afastaram a construcção, ou melhor, a conservação de uma estrada velha para longe da costa, obrigando-a a passar nas pontes que ainda existem, devem ter sido os mesmos que desviaram os engenheiros romanos de lançarem a via militar através de campinas encharcadas, só para irem buscar a embocadura do Vouga, antes de attingir Calem.
Depois preciso é notar que havia outra directriz ao alcance da administração do Imperio, directriz que não podia admittir confrontos com a traçada através do delta do Vouga. Essa directriz levava a estrada romana pela orla fóra do terreno firme e accidentado e da região povoada de castros e abundosa de minerios, região que ainda hoje podemos ver acompanha-la pelo trajecto da estrada real. As vias de communicação teem muitas vezes uma directriz fatal e tradicional através de longos tempos e povoadores successivos[15].
Póde soffrer destruição o caminho, sem estancar a arteria de communicação.
A actual estrada real ou de macadam foi ainda, por assim dizer, decalcada pela anterior, a medieval, cujos restos subsistem nas pontes antigas de que os chorographos fallam. Esta orientou-se pela comprehensão das conveniencias, e afastou-se da embocadura do Vouga, seguindo a directriz mais economica e mais util; não direi ainda a directriz romana porque é o que pretendo demonstrar, mas a que era directriz tradicional, como vou explicar.{16}
Os castros ou montes habitados encontram-se precisamente no seguimento da via romana; os oppidos referidos pelos AA. antigos, as brigae, e as cidades romanizadas não são mais que uma evolução d'aquellas estancias, consoante as denominações que lhes applicaram[16]; era por essa corda alem, que o terreno baixo e plano da zona maritima começava de elevar-se. A estrada romana desenrolava-se por entre esses centros da habitação, abandonando ao lado um país chato, pouco firme e talvez quasi invio.
Do sul para o norte Anadia está situada nas abas de um monte de Crasto (Pinho Leal e M. Gomes).
Agueda está tambem perto de um Crasto (Pinho Leal).{17}
Nas margens do Vouga, naquelle logar onde subsiste ainda a ponte medieval (Pinho Leal), encontra-se na aldeia de Vouga um morro que foi castro (Brito e P.e Carvalho, II, 161); explica Francisco do Nascimento Silveira (Mappa breve da Lusitania, p. 239) que Vacca existia em sitio forte por natureza, entre as pontes de Vouga e Marnel, porque alli se vêem vestigios de muros antigos e sinaes de uma majestosa grandeza; existem ainda tijolos, cantarias, muralhas em Lamas de Vouga (Arch. Port., V, 50 e VII, 191)[17], e havia ahi a civitas Marnele (Port. Mon. Hist., «Diplom. de Chart.», n.º 819)[18], cuja origem deve ter sido outro castro.{18}
Na carta geodesica vê-se, junto ao rio, um Castello (111). Isto é ainda do concelho de Agueda[19].
Na freguesia de Serem, tambem concelho de Agueda, outra civitas (Viterbo, s. v. Cidade); ha lá sitios elevados a norte e a sul (Cfr. M. Gomes).
Na freguesia da Branca ha um logar de Cristellos (M. Gomes e Arch. Port., II, 313).
Na serra de S. Julião, mesma freguesia, onde passa a estrada real, diz o Sr. M. Gomes que ha ruinas de muralhas e fossos: acreditava-se (Arch. Port., loc. cit.) que ahi era a antiga Langobria (sic). Não sei se é precisamente o mesmo local a que Brito (Mon. Lusit., II, V, p. 3) chama castello de S. Gião, onde havia ruinas de muros e elle encontrou o tal padrão suspeito e onde presume Lancobriga, não na Feira, diz, mas entre Albergaria e Bemposta, defronte de Pinheiro. Significativa confusão! Aquelle logar de Cristello vem na carta geodesica entre Estarreja e a estrada real[20].
Na freguesia de Ul ha outro castro (aldeia do crasto), de que porém não conheço o ubi. Tem uma cintura de muralha de pedra solta ou cousa que o valha. (Pinho Leal, s. v. Ul).
Nas proximidades de Azemeis parece que não são escassos estes monumentos (Quatro Dias na Serra da Estrella, por E. Navarro, Porto 1884, p. 174).
Em Ossella ha um castro com ruinas de muralhas (Brito, loc. cit.).
Entre S. Martinho e S. Tiago vê-se na carta geodesica um crasto, a O. da estrada real; isto é no parallelo de Ovar. Será aquelle a que Pinho Leal chama Castro Troncal ou Francal (s. v. C. de Cucujães)?
No Arch. Port., VI, 68, diz-se que ha em Oliveira de Azemeis um logar de Lações, onde foi a antiga Lancobriga (sic), porque ahi se ajustam as medidas do Itinerario e não na Feira ou Bemposta. Este sitio é elevado e estrategico; a sua cota é de 287 metros e fica na fronte de um promontorio fechado por duas ribeiras e no extremo de uma chapada em cujo prolongamento se conta ainda a altitude de 274 metros. É, pelo que se vê, um castro. Lancobriga e que não.{19}
Em Macieira de Cambra ha um castro (Arch. Port., VII, 54)[21].
Em Romariz informa o Sr. M. Gomes que ha um Crasto, onde appareceram antiqualhas da epoca romana; o que é presumivel e prova ter recebido a influencia dos seus conquistadores.
Os antigos chorographos portugueses não teem dado valor aos cabeços elevados, onde se encontram os vestigios do que póde ter sido um castro, uma citania, emfim uma estacão archeologica pre-romana, e isso não admira; mas o facto é esse e constitue uma deficiencia na descrição dos logares, que actualmente seria imperdoavel, e que, num caso como o que estou versando, sonega lamentavelmente elementos aproveitaveis de estudo.
Junto ao mar, e bastante para o norte, em Esmoriz, encontro menção de um castro, especializado hoje pelo erudito estudo que d'elle fez documentalmente o meu erudito amigo Sr. Pedro de Azevedo (Arch. Port., III, 137). Era o castro de Aville, Ouvil, Ubile e Obil, denominações que se applicavam á lagoa que ainda existe, e que elle dominava. Crê o distincto publicista que aquelle castro é o mesmo outeiro a que o parocho depoente de 1758 chamou Monte do Murado, pertencente á freguesia de S. Martinho de Mozellos. Fico porém em duvida, pois que estando o castro prope litore maris (Docs. de 1055, 1076) bem como a lagoa (Docs. de 1057 e 1090), Mozellos parece um pouco afastado para o interior. Confessando que, sem a inspecção dos logares, a base é instavel, em todo o caso affiguram-se-me aqui dois castros distinctos.
Em S.ta Maria de Fiães apparece outro castro ou «povoação de Mouros» (Arch. Port., IV, 250).
E d'ahi para o norte, são frequentes na faixa atravessada pelo caminho romano. Será algum d'estes castros o jazigo de Langobriga?
Este inventario, tendo origem, como tem, exclusivamente bibliographica, não póde deixar de ser omisso. A averiguação local e a informação competente accrescentá-lo-hiam, se eu d'estes dois factores me tivesse soccorrido. Para o meu intento, o pouco que joeirei, era colheita bastante.
Alem d'estas averiguadas condições de habitabilidade que se encontravam no trajecto da via romana e que, em meu entender, conjugadas com as da elevação e relevos de terreno, que para as populações{20} ante-historicas constituiam uma necessidade vital, concorreria tambem, não sem ligação com ellas, a existencia de jazigos metalliferos.
Nem todas as minas que enumero seriam conhecidas na antiguidade, mas em algumas ha vestigios da remota laboração e o que tudo attesta é que a região era mineira e portanto centripeta de populações.
Os locaes explorados são Telhadella, Albergaria, Palhal, Milheirós, Cucujães, Nogueira, Ossella, Palmás, Carvalhal, Pindello, Silva Escura, Ul, Talhadas, Braçal, Coval da Mó, Malhada.
Os minerios são cobre, tão procurado na antiguidade, chumbo, prata, etc.
D'estes jazigos, aquelle em que são mais importantes os vestigios de antiga lavra, é o da Malhada, uma das concessões das chamadas Minas do Braçal. As madeiras de entivação, que foram encontradas dentro da mina, denotam tal antiguidade que parecem fossilizadas, em consequencia da côr negra que adquiriram. Os trabalhos antigos attingem a profundidade de 45 metros (Catalogo Descriptivo da Secção de Minas, pelos Srs. Severiano Monteiro e J. Augusto Barata, p. 188).
A respeito dos outros, a noticia de antiga exploração é muito vaga para que me seja licito insistir. Nas minas de Palhal tambem ha vestigios antigos. (Cfr. Marques Gomes, Districto de Aveiro).
Que se póde concluir das considerações que até aqui tenho encadeado?
Por um lado, o estudo do Itinerario levou-me a aventurar na carta geographica, largamente circunscritas, as zonas em que o calculo faz presumir que se devem encontrar as ruinas de Talabriga; por outro lado, a inquirição topographica e onomastica da região, tanto quanto era possivel com a escassez de elementos, indicou-me alguns logares de archaicas estações archeologicas do genero da que deve ter sido Talabriga, como castro ou oppido submettido ao poder de Roma.
Quero lembrar que briga só póde corresponder a uma posição elevada, a um outeiro ou cabeço fortificado; por onde Talabriga nunca pudera ser Aveiro ou arredores (Vid. Arch. Port., XII, 42).
Relançando novamente o olhar ao mappa, poder-se-há notar que a zona attribuivel á situação de Talabriga[22] não está erma de castros,{21} antes nella se dão varias circunstancias que não posso deixar de aproveitar para a minha these conjectural.
Branca é uma freguesia cuja séde fica na margem direita de Caima e que é cortada pela estrada real; ha nella um logar de Cristellos, que só pelo toponimo demonstra a existencia de um castro ou oppido. Mas alem d'este, infere-se do Sr. Marques Gomes, de Fr. Bernardo de Brito (loc. cit.) e d-O Arch. Port. (II, 313, «Mem. Parochiaes») que ha um local sito na serra de S. Julião, atravessado pela estrada real e que Brito mais claramente chama castello de S. Gião (castello por castro), no qual, segundo aquelles tres testimunhos, ha ruinas de muralhas e fossos, que o Sr. M. Gomes presume serem ruinas de uma atalaia e que o parocho das Memorias tambem capitula de vestigios romanos, acrescentando muito singularmente (note-se bem o que isto póde significar) que ahi esteve... Langobria (sic). Foi aqui que Brito diz ter encontrado a tal pedra de letras mal distinctas de que não affiança a leitura, mas que lhe pareceu padrão de estrada.
E aqui tem cabimento o que já atrás deixo dito, para absolver de fraude consciente a noticia archivada em Fr. Bernardo de Brito.
Parece-me pois ser neste aro, se não neste mesmo ponto, que se deverá procurar o jazigo, não de Langobriga, mas da nossa Talabriga, e é precisamente a estas immediações que o compasso me levou ao medir sobre a carta a primeira secção da via romana de Coimbra a Gaia[23].{22}
Não desconheço quanto de problematico isto tem antes de serem perguntados pelo archeologo os logares, as ruinas, os vestigios e os montes e as vozes da região, mas nem por isso o meu espirito deixa de ficar demonstrado, até o possivel, que as cinzas de Talabriga nunca podem estar guardadas em Aveiro. As coincidencias que acabo de notar, não são bases frivolas.
Só pois a inspecção directa do terreno, nas immediações da Branca, poderá concorrer para confirmar ou destruir a minha conjectura.
D'esta região para o norte, a via romana seguiria até Cale, mais ou menos proxima do actual leito da estrada real; só alguns vestigios ou referencias de documentos, como os de Grijó, e a inquirição dos logares e tradições poderão concorrer para precisar a trajectoria d'aquella antiga via de communicação; o caso em si, porém, é indifferente para a questão primacial que motivou este estudo. O que é certo, é que a estrada romana sulcava a faixa comprehendida entre a estrada real e a linha ferrea até o vertice de Gaia.
Ao sul de Branca e Albergaria, a directriz da via militar sente-se escalonada nos vestigios medievaes que deixei explanados nas paginas anteriores. Albergaria denota bem que o sitio era de assiduo e antigo transito (Viterbo, Elucidario de palavras, etc. s. v. Albergaria) ponto necessario de passagem para quem do sul buscava o norte do país. As mansiones tinham o caracter de pousadas.
Em tempos de lazer para obras de piedade, é que a instituição caritativa se fundou, como implemento de uma necessidade que já existia.
As pontes de Vouga e Marnel são indicios bem importantes da frequencia das viagens através d'esta parte da região, afastada da costa baixa e paludosa. São decerto obras da idade media, dos mouros, diz Pinho Leal (s. v. Marnel e Vouga). Mas os indicios pre-romanos e romanos soletram-se nessas ruinas de muralhas, pedras lavradas, vestigios de edifícios e toponymia, que os cabeços de Vouga e Marnel nos conservam, segundo descrevem Brito, Pinho Leal e os parochos do sec. XVIII nos extractos publicados pelo Archeologo Português.
O sentimento de Gaspar Barreiros (Chorographia de alguns logares, MDLXI, p. 48 sgs.) era que a situação de Talabriga devia ser a actual Cacia, especialmente na igreja de S. Julião, onde apparecem vestigios antigos. Varios autores o seguem.
As razões d'este illustre escritor do sec. XVI merecem alguma discussão.{23}
Barreiros funda-se no Itinerario e conta, no sentido d'este roteiro, as milhas de Conimbriga para o norte. E por confirmação d'este argumento, traz o passo de Plinio que eu já transportei a este estudo, mas com uma differença que elle tomou de um archetypo Toletano (p. 51), declarando porém que alguns exemplares de Plinio não são accordes com aquelle. A lição citada é pois esta: A Durio Lusitania incipit, Turduli veteres, Pesuri, flummen Vacca, oppidum Vacca, oppidum Talabrica, oppidum et flumen Minium, etc. Esta variante demonstra a existencia de uma cidade Vouga, que G. Barreiros colloca na Ponte de Vouga (p. 50 v). Algumas cartas antigas reflectem esta indicação. Isto posto, G. Barreiros leva a contagem de Conimbriga para Talabriga por espaço de 50 milhas, o que é exacto, espaço que elle computa equivalente a 12,5 leguas e enumera:
De Condeixa a Coimbra | 2,5 leguas |
De Coimbra á Mealhada | 3,5 » |
Da Mealhada a Avellãs | 2 » |
De Avellãs a Agueda | 2 » |
De Agueda á Ponte de Vouga | 1,5[24] » |
De Ponte de Vouga a Cacia | 1 » |
12,5 |
«Na qual villa & igreja de sanct. Juliã nas ribeiras do Vouga situadas, se acham vestigios antigos, s. os fundamẽtos de h#7869;a torre que na memoria dos homẽs inda staua quasi inteira, onde era outro tipo segundo ficou fama de h#7869;s em outros chegauam nauios da foz do mar, porque inda ali se acharam pedaços d'elles & anchoras iuncto da dicta torre em h#7869;a lagoa Afora muitos vestigios & ruinas d'argamassa que dentro em seu ambito cõprehende h#7869;a milha pouco mais ou menos» (p. 50).
A não ser que tenhamos de recorrer a uma mudança da primitiva situação, nós temos de procurar em Talabriga a cidade preromana, que no sec. II a. C. Decimo Junio Bruto reduzia á miseria e á impotencia, segundo narra Appiano. E esse oppidum teria que possuir condições estrategicas identicas ás dos outros castros preromanos, taes como elles nos acenam que foram escolhidos pelas populações proto-historicas;{24} teria que justificar o proprio designativo de caracter celtico briga—altura fortificada.
Creio poder affirmar que nada d'isto se encontra em Cacia. Alem d'isto o proprio G. Barreiros, no dizer que, entre os vestigios antigos, sobresaía uma torre, que ainda andava lembrada, e se topavam «ruinas de argamassa», quasi estabelece uma chronologia, porque taes vestigios não podem ser anteriores aos romanos; poderão attribuir-se menos á sua epoca que ás posteriores. Para a contemporaneidade, teriamos que admittir e demonstrar uma deslocação do primitivo assento de oppidum, como vimos; se esses vestigios se affectam ás epocas successoras dos romanos, o facto sae para fóra do problema e d'elle me não posso occupar.
O principal estorvo, porém, que a opinião de Barreiros encontra, é aquelle que eu quis descobrir e evitar, quando ajustei a medição do itinerario a contar de Cale para o Sul e não de Aeminium para o Norte. Evitei assim o erro de cair em Aveiro, em Esgueira e agora em Cacia, onde muito bem podia ir passar com o roteiro romano nas mãos.
Isto illumina-se á luz da carta. Barreiros vem seguindo, com os ouvidos na tradição do seu tempo, o leito do caminho romano (dito mourisco) pela Mealhada, Agueda, até á ponte de Vouga, e até aqui bem elle vem; chegado porém a esta altura, desnorteia-se e inflecte para Oeste para fazer a primeira estação de Itinerario em Cacia, imaginando-se em Talabriga. Kilometricamente, creio não haver que lhe objectar. A distancia da ponte de Vouga a Cacia é proximamente igual á que entre o mesmo ponto se nota e a linha-zona TT, que eu determinei. Portanto não falseava o illustre chorographo quinhentista a tabella do Itinerario, isto é, as 50 milhas desde Condeixa (Conimbriga).
Mas a precaução de começar a contagem de Cale para Talabriga, obsta ou impede aquella inflexão e obriga a trazer o caminho numa directriz mais desempenada para a ponte de Vouga. Volvendo os olhos á curva TT do mappa, ver-se-ha que Cacia lhe fica a distancia grande porque, com este desvio da trajectoria normal, a medição romana perdeu espaço, atrasando-se.
Se não fosse este meio de verificar o erro, era possivel a desorientação.
Creio, pois, ter demonstrado pela ethnographia e pela geometria topographica que Talabriga não póde ser collocada em Cacia, quer se olhe á Talabriga preromana ou protohistorica, quer á romana ou historica; á Talabriga de Appiano e D. J. Bruto ou á da epoca imperial e do Itinerario.{25}
Como, segundo se infere de Appiano (vid. adeante), o oppidum de Talabriga continuou a ser habitado depois da sua rendição no sec. IV a. C. e emfim ainda existia no sec. IV d. C., poderia succeder que elle conseguisse resistir á vinda dos barbaros, e chegar ao dominio dos arabes. Convinha pois consultar a geographia arabica, e o nome de Edrisi, geographo do sec. XII, impunha-se-me logo.
O que das suas differentes traducções se conclue, não é nada claro para mim que ignoro o arabe, mas poderá auxiliar o estudo da questão por parte dos arabistas.
Ha uma edição de 1619 (Paris) com o titulo de Geographia Nubiensis, que quero pôr em confronto com a traducção de Amédée Jaubert (Géographie d'Edrisi, Paris 1840).
Edrisi descreve dois caminhos de Coimbra a Santiago de Compostella: um por terra, outro por mar.
Caminho por terra
Ed de 1619 (trad. lat)
«Iter autem terrestre a Colimria ad S. Jacobum est hujusmodi: a Colimbria ad oppidum Aba stationis habetur intervallum. Ab Aba ad oppidum Vatira statio. Ab hoc ad primos terminos regionum Portugalliae, statio, pergit que iter secans terram Portugalliae spatio diei, ibique conspicitur oppidum Bonacar ad ripam fluminis Durii, quod est flumen Samorae, atque illic trajiciendum cymbis ad hoc paratis. Ab oppido ad amnem Minio, indeque ad castellum Abraca LX M. P. duae videlicet stationes. A castello Abraca ad castellum Tui stationes duae».
——
O editor de 1619 diz que não ha medida certa para as stationes, expressão que se referia a pousada dos viandantes. As stationes justas eram de 25 milhas, mas algumas tinham mais, outras menos. Parece que seria o espaço que se poderia percorrer em um dia.
Ed. de 1840 (trad. fr.)
«O itinerario por terra de Colomria (Coimbra) a S. Tiago é como segue: de Coimbra a Abah (Ribadavia) (!) aldeia, uma jornada. De Abah a Uetaria (Huctaria) (?) aldeia, uma jornada. D'ahi á fronteira de Portugal, uma jornada. O caminho vae através das terras de Portugal durante uma jornada, ao fim da qual se chega a Buna-Car, aldeiasinha nas margens do Douro, que é o rio de Zamora. Passa-se o rio em barcos proprios para isto. D'este logar ao rio Minho ou antes ao forte Abraça (insua de Caminha) (?) 60 milhas ou duas jornadas. Depois Tuia (Tuy) cidade pouco notavel, mas bella e numa região fertil, duas jornadas» (II, p. 232)
——
No texto francês, ao vocabulo statio corresponde journée, que eu traduzi por jornada (de um dia).
Temos aqui duas traducções do texto arabe, uma em frente da outra, e a verdade é que sufficientemente se correspondem. O principal para{26} o meu fim seria a localização das estações de Edrisi; neste ponto o traductor francês apenas conserva intemeratamente as tradições dos estrangeiros quando, fallando ou escrevendo, debicam na nossa geographia.
Nem ao diabo lembra que a Coimbra se siga... Ribadavia!
A primeira estação ao deixar Coimbra é Aba (ed. 1619) ou Abah (ed. 1840). Poderá corresponder a Agueda? Jaubert desejaria falar em Riba-d'Agueda! É provavel.
A segunda estação foi interpretada por Vatira (ed. 1610) e Uetaria (ed. 1840). Não sei identificar esta localidade, assim desfigurada.
Em seguida a isto, se na versão latina parece haver uma incongruencia, ella desapparece na traducção francesa. Através das terras de Portugal, chega-se com um dia de viagem ás margens do Douro. Isto parece ser bem o tradicional caminho que entesta na foz do Douro.
Não diz o geographo arabe em que ponto da margem do Douro ficava Bona ou Buna-car, expressão que não sei reconhecer, mas parece-me que deve ser a embocadura d'este rio, e é a seguinte a razão. Diz Edrisi que de Bona-car ao rio Minho são 60 milhas; ora, numa pagina anterior (p. 227) elle conta da foz do Douro á do Minho as mesmas 60 milhas. Portanto creio que Buna-car era aproximadamente em Gaia, onde depois o rio se atravessava em barcos[25].
Descrevendo o mesmo caminho por mar, isto é, a viagem de Coimbra a Santiago, o primeiro ponto onde diz que se abica, é a foz de nahr-Budhu (rio Vadeo, traduz A. Jaubert!) que corresponde ao Vouga, rio, acrescenta, consideravel, onde entram embarcações grandes e pequenas (II, 227). Esta aclaração parece indicar que naquelle tempo a foz do Vouga e o lago interno serviam a uma navegação bastante activa. Quanto ao relacionamento da antiga Talabriga com alguma das estações do caminho medieval descrito por Edrisi, nenhuma conclusão posso tirar com segurança.
Com muita probalidade porém se infere d'isto que o caminho frequentado então devia ser o que hoje corresponde á estrada real com a passagem nas pontes medievaes de Vouga, mas emquanto não se fixarem{27} estes dois ponto; duvidosos, localização muito verosimil de Aba ou Abah em Agueda e incerta de Vatira ou Ueturia, o testemunho do geographo arabe apenas serve seguramente para localizar as testas d'este caminho, estabelecer com grande plausibilidade a tradição do caminho historico pela orla das montanhas e revelar-nos o movimento commercial da foz do Vouga.
Tratando-se pesquisa dos vestigios da via romana ab Aeminio ad Calem, o testemunho de Viterbo (Elucidario, s. v. Estrada mourisca) devia ser ponderado. Diz este illustre antiquario que, nos documentos de Grijó, se fazia larga menção de propriedades que ficavam umas da parte de cima, outras da parte de baixo da estrada mourisca. No anno de 1148, Trutesindo doa ao celebre mosteiro o que possuia em Brantães e em S. Felix subter illam Stratam Mauriscam, discurrente riuulo Cerzedo.
Acrescenta o sabio antiquario que a estrada era mourisca por ter sido aberta pelos Mouros, que abandonaram a romana que vinha ali a passar entre Lancobriga e o mar, pois que com o rodar dos annos a costa se entupira e alteara por causa das areias e os rios estagnados não só esterilizaram os campos, mas fecharam a passagem dos caminhos. E mais depõe Viterbo que a estrada mourisca ia do Porto a Agueda por Azemeis, Albergaria, Vouga, etc.
Antes de mais: notemos esta opinião corrente, esta tradição, tão concordante com o que eu já procurei accentuar, de que a tal estrada mourisca descia do Porto a Agueda precisamente por Azemeis, por Albergaria e por Vouga.
Que Viterbo lhe chamasse mourisca não é de espantar; era a voz popular que ainda hoje nos falla de Mouros sempre que tem de referir-se a povos muito antigos, preromanos, romanos, barbaros, etc[26].
Mas o documento de 1148 já tratava de mourisca uma obra que{28} não podia ser dos Sarracenos, a esse tempo ainda no sul de Portugal. Creio não se poder sustentar que a estrada que passava em Cerzedo era construida por arabes; aproveitada sim, porque sendo o caminho que elles ainda encontravam á sua disposição, devia ser aquelle que inundavam do terror das suas algaras.
Em que elementos se estribava Viterbo para dizer ainda que a mesma estrada mourisca tocava em Oliveira de Azemeis, Albergaria, Vouga e Agueda? Confesso que não os conheço, a não ser que a memoria e o uso d'este caminho tradicional se perpetuassem através de tantos seculos e tão profundas transformações sociaes.
Informa Pinho Leal que na freguesia da Trofa (concelho de Agueda) ha ainda o logar de Mourisca, á margem da estrada, e que o nome lhe veio d'esta. Traduzindo mourisco em romano, póde ser acertada a supposição. Isto transcreveu-o elle de Viterbo, s. v. Estrada.
Mais expressivo é o tópico de um sitio, perto de Lamas e junto da estrada real; chama-se elle Fundo da rua. Tal rua não é outra senão a via romana. Esta explicação affere pela que dá o Corpus (II. p. 363) com referencia a uma freguesia de Santo Estevam da Rua, onde passava uma estrada romana (oppido quod a via romana nomen duxit). A 3:500 para O. da Feira ha um sitio chamado Rua Nova. Aqui é que só a inspecção dos logares poderia indicar-me o significado d'este tópico.
Num escritor estrangeiro do sec. XVIII, lê-se uma descrição litteraria do caminho através do campo de Aveiro, que só se entende se o suppusermos encostado ás montanhas de leste, permittindo que se descortine para a banda do mar toda aquella immensidade de terras feracissimas que aquelle autor olhava como planicie encantadora (Annales de l'Espagne et du Portugal, Alvares de Colmenar, Amsterdam 1741, p. 253).
Isto demonstra que a estrada real de hoje é um caminho velho e tradicionalmente batido para ligar Coimbra ao Porto.{29}
Nos Port. Mon. Hist. não se encontram referencias mais claras do que esta de Viterbo e as que adduzi em nota, á antiga via romana. Compulsei bastantes documentos d'aquella publicação e nella encontrei variadas referencias a caminhos, mas em termos d'onde não se podia concluir cousa alguma que indicasse o conhecimento da existencia de uma estrada da epoca romana, considerada como tal[27].
Um esclarecimento dá Viterbo que é exacto e tem importancia para a historia d'esta região tributaria dos esteiros vacuenses.
Retiro-me ao «entupimento» da costa que com o rodar dos annos se foi alteando e ao «estagnamento» dos rios que esterilizava os campos e fechava os caminhos. Esta acção do mar na costa de Aveiro tem sido um problema technico e administrativo extremamente complicado para os governos portugueses, não só pelas condições commerciaes de Aveiro, mas pelo estado sanitario de toda esta região. O coração d'este problema é a barra do Vouga.
É difficultoso dizer o estado d'esta embocadura nos tempos que interessam ao presente estudo. Tenho lido que, na epoca romana, entravam{30} a foz do Vacua embarcações de grande arqueamento (Os portos maritimos de Portugal, pelo Sr. Adolfo Loureiro, II, 3). Não sei que fundamentos póde ter esta asserção, que em todo o caso é relativa á tonelagem dos antigos navios.
Os geographos antigos que se referem a este rio lusitanico, não dizem cousa d'onde se possa inferir a sua capacidade para grandes embarcações, como aliás se tem escrito.
O mais explicito é Estrabão (Geographia, liv. III, III), que vertido a latim, diz: Deinceps post Tagum nobilissima flumina sunt Muliadas, parvas habens navigationes. Itidem Vacua fluvius, post quos Durius longo fluens cursu, etc. O geographo grego iguala o Mondego (Muliadas) rio de navegação diminuta, ao Vouga, da mesma fórma (itidem) estuario de diminuta navegação. E tanto mais é esta a natural hermeneutica, que o contraste é frisante com a importancia do Douro, longo fluens cursu. Estrabão escreveu no sec. I a. e d. de C.; como póde affirmar-se que no tempo dos romanos entravam o Vouga embarcações de longo curso e a sua foz era um porto de grande commercio e muita prosperidade?
Ora isto vem ao intento de eu pretender que no surgidouro do Vouga não havia nos primeiros seculos, pelo menos da epoca romana, povoação de vulto que determinasse uma passagem forçada na via militar e um desvio da natural directriz ab Aeminio Calem. E para um porto de tamanho trafego, era pouco um simples vicus.
Temos pois a affirmação estraboniana[28]. E antes?
Menos ainda. Diz-se que em algumas minas da região metallifera de Entre-Vouga-e-Caima tem apparecido vestigios de antigas laborações. Apesar da falta de precisão chronologica nesta noticia, póde presumir-se o facto até para a epoca preromana. E neste caso, a via fluvial seria a mais pronta saida do mineiro para o commercio externo.
Mas um óbice encontro agora. Seria consequente que este trafico determinasse a formação de um povoado á beira-mar ou na enseada interior. A essa gente faltaria, porém, uma cousa, que se lhes tornára tão indispensavel, como o pão para a boca: era a segurança pessoal, era o ninho de aguia. Com as planuras não se queriam elles. A não ser que deroguemos os conhecimentos adquiridos no que até agora se tem encontrado.{31}
Alem disto, que motivos ha para tirar effeíto tambem retroactivo á noticia de Estrabão?
Um primorosissimo escritor[29], filho de Aveiro, evita, com exemplar abnegação patriotica, o problema archeologico da origem preromana da sua terra natal, mas propende á presumpção de que algum povoado assentaria antigamente na foz do Vouga os seus lares. E enfeixa o illustre homem de letras duas razoes: 1.ª, a geographica; 2.ª, a da exploração do sal. Aquella parece-me menos conciliavel com a ethnographia dos povos a que se deseja alludir, como notei. E esta? Para o commercio, quer interno quer externo, temos ainda o mesmo senão. Os marnôtos d'aquelle tempo onde se acoitariam[30]?
Que, posteriormente a Estrabão, as parvae navigationes crescessem em numero e tonelagem não é impossivel, porque a vida social começava já a fervilhar nas planicies.
E a industria do sal, cuja utilização aliás já data dos tempos neolithicos, poderia commercializar-se (perdão para o neologismo) d'essa epoca em deante, se tomarmos por base da hypothese o caracter latino da technologia[31] e o que sabemos por aquelle geographo da importancia das salgas (Geographie de Strabon, por Am. Tardieu, 1886; III-IV-2). Mas então já a via militar ab Aeminio ad Calem lá estaria antes de ser necessaria, se necessaria se pudesse considerar por motivo do commercio externo, num porto afastado da linha natural de communicação e posto em duvida pelo silencio dos textos, como vimos.
Do que o Vouga seria na idade media possuimos o testemunho do geographo arabico Edrisi (Géographie d'Edrisi, trad. de P. Amédée Jaubort. Paris 1840 II, 227).{32}
O nosso rio foi transposto para aquella lingoa por uma palavra que A. Jaubert representa na graphia francêsa por Boudhou (ou==u); e assim conforme o texto arabico vemos que o nahr-Budhu é um rio consideravel onde navegam embarcações grandes e pequenas, e a navegação se estende a 70 milhas da sua foz. Agora já começamos a entrever uma população occupada no trafego maritimo.
A diplomatica tambem proporciona alguns elementos de estudo relacionaveis com este, mas propriamente esta epoca já não interessa á questão posta.
Há porém, uma cousa que não posso omittir.
É o documento n.º LXXVI dos Port. Mon. Hist., «Dipl. et Chartae», onde se lê a fórma medievica de Aveiro, a qual é alauario, o que só por si desmorona as hypotheses etymologicas a que varios chorographos se tem apegado, mas revela pela primeira vez a existencia de uma povoação onde hoje é Aveiro (assim tambem Talabario e Táveiro. Doc. CXXVIII).
O trabalho do mar e das aguas na desintegração de um subsolo brando e a força do vento nos areaes movediços devem ter sido causa perenne e inflexivel dos açoreamentos e obstrucção da navigabilidade[32]. O factor é antigo, tão antigo quanto o póde ser, por maneira que aquella região nunca teve, fóra das epocas geologicas, outra face topographica muito diversa da dos nossos dias[33]. É presumivel que elevadas florestas forrassem com sombras impenetraveis toda essa immensa orla limitada{33} pelo mar a Oeste e pelas montanhas a E., na região e na epoca de que me occupo[34] como em outros pontos suppôe o Sr. Alberto Sampaio (Portugalia, II, 215, art. cit.); mas isso não importa acreditar a possibilidade da via romana por terrenos de tal especie.
Informou-me o distincto engenheiro Sr. Mello de Matos, que, ao proceder-se aos trabalhos de construcção de uma ponte nas proximidades de Vagos, se encontrou encastoado nas areias o cavername de um navio, que infelizmente não foi estudado. Na Esgueira, achara-se outro.
Narra Pinho Leal que ha annos em Vagos se descobriu uma ponte sobre um ribeiro que a areia das dunas entupiu completamente. Escusado é acrescentar que a ponte foi logo capitulada de romana, nada menos.
Estes factos não tem sido apenas recentemente verificados. Já vimos num trecho, que desatei do nosso Gaspar Barreiros (p. 50) que pelas alturas de Cacia se tem encontrado, submersos na terra, cascos de navios e ancoras, o que radicou a crença de que as embarcações chegavam ate ahi em tempos antigos. Esta apreciação já é do sec. XVI.
D'este millenario ha um mappa, publicado por Abrahão Ortelius, onde se reconhece nitidamente a bacia de Aveiro. (Vide Theatrum orbis terrarum, já citado a pag. 132).
Estes factos esclarecem o assunto e reatam a tradição de que os fundos da ria se vão alteando com a obstrucçâo nos esgotos das correntes fluviaes. Fr. Bernardo de Brito (Monarchia Lusitana, II. V. p. 130) diz que, do tempo d'elle, Aveiro, muito concorrida de gente de mar e pescarias, era cidade florescente[35].
O Sr. Cons.º Luis de Magalhães tambem entende que, tendo ahi embarcado para uma jornada de Africa os terços da Beira, é porque o porto consentia a arqueação das caravelas.{34}
D'esta epoca ha mais elementos concordantes no movimento commercial de Aveiro e portanto no estado da sua barra. (Vid. Os portos maritimos de Portugal, pelo Sr. A. Loureiro, II, 3).
O que Barreiros conta relativamente a Cacia, encontra-se repercutido num local situado muito mais acima sobre o Vouga. No sec. XVIII corria que em eras passadas ainda os navios subiam aquelle estuario até a antiga cidade de Vacua[36], onde depois foi a villa de Vouga e agora mero cabeço de Vouga (Arch. Port., VII, 191), que aliás tende a desapparecer, como desappareceu a de Marnel pelo impaludismo (Pinho Leal, Port, Ant. e Mod., s. v. Vouga).
Esta noticia, porém, deve interpretar-se com uma informação mais minuciosa que encontro em uma obra de 1741 (Annales de l'Espagne et du Portugal, por Alvares de Colmenar, Amsterdam). Diz este A. que Aveiro é uma cidade bastante consideravel, situada na testa de um pequeno golfo que a maré estabelece na embocadura do Vouga. Este rio fórma um porto de limitadas dimensões, onde os navios mediocres, que não demandam senão 8 ou 9 pés de agua, podem entrar na preamar, com a direcção de pilotos do sitio. Este A. já falla na grande producção de sal e nas fortificações constantes apenas de uma muralha flanqueada de algumas torres.
Na lagoa de Esmoriz, de que falla um doc. do sec. IX, (Port. Mon. Hist., «Dipl. et Chart.», n.º XII), havia uma barra por onde entravam as caravelas em antigos tempos e depois se entupiu (Arch. Port., IV, 144).
O caso do cavername encontrado perto de Vagos liga-se com a noticia do sec. XVIII, transmittida pelas Memorias Parochiaes, segundo as quaes o braço da ria que existe entre Aveiro e Ilhavo dava antigamente fundo para caravelas e agora é vadeavel (Arch. Port., IV, 329).
Em Mira, numa lagoa de agua doce, conta um informador que nella se encontram vestigios de casas, moedas e alicerces de uma parede ou caminho que a atravessou pelo meio. Alem disto, pelo norte e poente, tem-se açoreado (Arch. Port., V, 297).
Quanto se póde deduzir d'estas noticias, o extenso delta vacuense tem sido invadido com trabalho successivo pelas areias que causam a obstrucção dos esteiros e a diminuição da navegabilidade. De nenhuma noticia, porém, se póde concluir que na epoca romana o aspecto topographico e a constituição orographica da região fosse tão diverso{35} do que é actualmente, que a via romana lá pudesse passar preferentemente ao trajecto mais interno, na base da montanha, através dos castros e das minas.
De Talabriga temos uma das paginas da sua historia escrita por um autor do meio do sec. II d. C., Appiano de Alexandria.
É certamente este um caso particular, mas não deverá deixar de ser considerado como uma amostra de dramas analogos que succederam com os oppidos lusitanos, no embate das cohortes romanas.
Talabriga, escreve Appiano, era uma das cidades (da Lusitania) que mais frequentemente se revoltava. Esta falta de resignação, este, direi eu, germen de patriotismo ou melhor de municipalismo, não podia tranquillizar Decimo Junio Bruto, que julgou que o caso era de reclamar a sua presença no local da cidade. Partiu com numerosa gente, e ao seu apparecimento responderam os irrequietos Talabrigenses com supplicas e o seu incondicional abandono á discrição do conquistador. Então J. Bruto foi energico e insaciavel, mas ao mesmo tempo teve um lanço inesperado de generosidade. Quis fazer-lhes sentir primeiro a dureza cruel do seu braço de guerreiro, e para isso impôs-lhe a immediata entrega dos transfugas das hostes d'elle, certamente alliados dos romanos, a dos prisioneiros, a de todo o armamento e ainda por cima exigiu refens. Depois chegou a ordenar-lhes que abandonassem a cidade com suas mulheres e filhos. Parece que o prestigio militar de J. Bruto não valia menos que seu tino de politico e conquistador. Os Talabrigenses aprontaram-se para obedecer alli mesmo. Mas o capitão romano queria compor-lhes um quadro que lhes impressionasse perduravelmente a imaginação. E ia espreitar o effeito produzido.
Desdobrou em circulo as suas tropas e, agglomerando dentro a chusma dos habitantes humilhados, arengou-lhes. Fez-lhes perceber que não receava a sua turbulencia indomita, porque quantas vezes desertassem, outras tantas elle viria combatê-los e reduzi-los com a necessaria firmeza, incutido assim o receio e a convicção de que no momento adequado, J. Bruto cairia sobre elles com toda a energia, o general romano quebrantou a sua ira, satisfeito com estas objurgatorias. Mas não sem que lhes tomasse os cavallos, os mantimentos, os dinheiros da cidade com todo o outro material publico[37]. Isto era claramente{36} deixá-los na impotencia e até na penúria. E por fim J. Bruto, contra tudo quanto os Talabrigenses podiam já esperar (pratter spem), restituiu-lhes a cidade para nella continuarem a habitar. Isto passava-se já meado o sec. II, antes de Christo (138 a. C).
Feito isto, o conquistador regressou a Roma.
Esta pagina da conquista da Lusitania é tanto mais importante quanto é, com igual individuação, a unica que nos resta de historia escrita dos oppidos lusitanos, e, embora narre um só episodio da guerra da conquista, não deixa de ser elucidativa.
Quando li este trecho de Appiano (Appiani Alexandrini Rom. Historiarum quae supersunt. Parisiis. F. Didot. MDCCCXL), confesso que senti amargura por não podermos ainda ir conversar na região do Vouga com as ruinas da cidade onde estes successos crueis se desfiaram, e segredar ás cinzas d'aquelle abrasado patriotismo que o mesmo sentimento, que chammejou nesses lusitanos insoffridos, ainda se não arrefentára com o soprar sobre ellas de vinte vezes cem invernos, e em mais de um dia, já da nossa existencia nacional, elle se tem ateado em protestos bem tumidos de calor.
Talabriga continuou a existir e refazer-se, atravessando a epoca imperatoria, como nos attesta: 1.º, a data a que pertence a ara de Estorãos, sec. III-IV; 2.º, a sua inscripção no Itinerario (sec. IV).
Que seculos lhe trouxeram o ultimo acto das suas tragedias? Os do mal afamado frankisk barbaro ou os do pavor sarraceno mais verdadeiro e real que aquelle, sobretudo no territorio portugalense?
Entrevejo pois para a archeologia portuguesa este problema: sondar o jazigo de Talabriga, verdadeiro simbolo do nosso sentimento de independencia territorial e figura-se-me que mostrei onde com toda a probabilidade elle se deve encontrar. Espero ter eu mesmo ensejo de averiguar se o simples e frio raciocinio me guiou, sem desvio, até as trincheiras historicas, que occultam os miserandos restos de Talabriga.
Conservar-se-ha ainda evolucionado este toponimo? Responderá o onomastico, paternalmente assistido pela philologia, não se dando o caso mais provavel do verso susodito de Vergilio:
Haec tum nomina erunt, nunc sunt sine nomine terrae!
Março de 1907.
P. S. No mappa do Ortelius, de que me soccorri a pp. 132 e 155, vejo nova Lancobriga, pelo sul de Scalabis; teremos tres? (Ver O Arch. Port., XII, 42).
[1] O brasão de Agueda ostenta num lemnisco o mote Aeminium. Mas Coimbra tem hoje uma lapide, quo lhe dá irrecusavelmente o foro de civitas aeminiensis.
[2] Um dos autores que se destacam por tentar a determinação de Talabriga e Langobriga (e ainda outras estações da via ab Olisipone Bracaram Augustam) por um processo exacto é o Sr. J. Henriques Pinheiro, fallecido professor do Lyceu de Bragança. Mas talvez em consequencia de trabalhar sobre uma carta (a de Folque) muito reduzida e de se servir da reducção de milhas a leguas, localiza Talabriga em Aveiro e Langobriga na Feira. Em todo o caso, não podendo conciliar as distancias relativas a Langobriga, conclue que ha erro nos Codices (Estudo da Estrada Militar Romana de Braga a Astorga, por J. Henriques Pinheiro, Porto, 1896, p. 129).
[3] O Sr. A. Coelho diz que a fórma verdadeira é a de Estrabão, como o prova a moderna Vouga e Vauga dos documentos em baixo latim anteriores ao sec. XII (Mélanges Graux, 1882). Vid. Religiões de Lusitania, II, 28.
[4] Nas Noticias Archeologicas de Portugal, de Hübner, trad. do Visconde de Juromenha, vem um extracto do Itinerario segundo a ed. de Parthey & Pinder (1848). Prefiro a lição briga a brica de Wesseling, ed. dos Vetera romanorum Itineraria, MDCCXXXV.
[5] Não pude haver á mão as Memorias d'este mesmo senhor.
[6] Como preciosidade estrangeira, desejo referir que o aliás eminente celtista D'Arbois de Jubainville, num estudo erudito sobre «Les Celtes en Espagne» (Revue Celtique, XIV, § 8) diz, de passagem, ser Talabriga a actual povoação de Sousa, conc. de Alenquer! Presumo que esta incongruencia é proveniente do que escreveu C. Muller em uma nota da Cl. Ptolemaei Geographia (I, 137) a respeito de Talabriga: Oppidum haud longe a Vouga, fluvio circa, hod. Souza alicubi steterit. Accuratius locum definire non licet. Como ha mais Marias na terra, d'ahi proveio a confusão. Veja-se Sousa a O. de Vagos.
[7] Por partes temos:
De Gaia á Feira | 21:900 metros |
Da Feira a Oliveira de Azemeis | 10:900 metros |
De Oliveira de Azemeis a Albergaria | 18:000 metros |
De Albergaria ao rio Vouga | 6:800 metros |
Do rio Vouga a Agueda | 9:000 metros |
De Agueda á Mealhada | 22:000 metros |
Da Mealhada a Coimbra | 16:500 metros |
105:100 metros |
[8] Escreveu o autor do Portugal Antigo e Moderno que a via romana seguiria pouco mais ou menos o trajecto da linha ferrea. Assim era preciso, se Talabriga fosse Aveiro, quer no troço ao norte, quer no troço para sul, em attenção ás condições topographicas. Neste caso, porém, a distancia de Coimbra a Gaia seria necessariamente pelo menos a que hoje é por aquelle caminho; nada menos de 115 kilometros, o que está bem longe dos 105 kilometros da via romana e da estrada real. Num diagramma da carta indico a differença das distancias entre Cale e Talabriga e Gaia e Aveiro pela via ferrea (45:800 metros e 59:000 metros).
[9] No mappa com que documento este estudo, lancei só os elementos que me eram uteis. Tudo o mais ficou no original, a que até accresci alguma cousa a mais por assim convir á minha demonstração.
[10] É força porém attentar na exigua differença que no caso presente existe entre a recta, que unisse os dois pontos extremos (Coimbra e Gaia), e o desenvolvimento da distancia effectiva pela estrada real, entre os mesmos pontos. Bem sei que differentes parcellas podem dar a mesma somma, mas difficultoso seria crer que, acertando o Itinerario na distancia total entre Aemiuium e Cale, delinquisse nas parcellas, que vem a ser as tres secções da via militar. Veja-se o diagramma.
[11] Pela linha ferrea de Coimbra a Aveiro são 56 kilometros: pelo caminho romano de Coimbra a Talabriga eram 59 kilometros.
[12] Nada mais possivel do que um erro de informação de Plinio. Mas poderia tambem haver aqui uma confusão entre a Talabriga do roteiro romano e a Vacua, de que parece existirem ruinas no Cabeço de Vouga (Cit. Oppida restituta, 1885). Mas o Itinerario omitte-a, o que é apenas argumento negativo. Ainda se poderia dar o caso de Vacua não ser mansio do caminho romano. Havia um codice de Plinio que nomeava Talabriga e Vacca e uma cosmographia antiga que refere Vacca (sic) e não Talabriga, que aliás deveria ter conhecido pelos AA.
Jorge Cardoso, no Agiologio, II, 65, quer que Vacua tenha sido em Viseu. Peor!
[13] Nos Port. Mon. Hist., «Diplom. & Chart.», vem um documento (n.º 815 do anno de 1095) cujo teor nos não prende, mas onde se lê:.... Ista igitur auctoritate confissus ingressus sum et ego densissimam silliam (silvam) que ab antiquis temporibus habitaculum erat bestiarum.... Trata-se de arredores de Ilhavo.
[14] Nos arredores de Aveiro ha pontos com as cotas de 15, 27, 46, 57, 48, 38, 23, 16, 24 e 10 que correspondem a relevos suaves. Todos estes pontos estão situados na margem esquerda do Vouga. Mas na hipothese de Talabriga, a estação do Itinerario, ser Aveiro ou proximidades, a estrada romana, chegada ahi, ver-se-hia forçada a atravessar o Vouga desde Eixo para baixo, em direcção ao Norte. E digam-me se todo esse trato de terreno, comprehendido entre a margem direita do Vouga, desde a ponte de S. João de Loure, como vertice meridional, e os sitios de Froços, Angeja, Formelã, Canellas e Salreu, não eram de fazer recuar o engenheiro romano que por ahi tentasse obter saida para o norte, em direcção a Cale, tendo outra incomparavelmente melhor?
[15] Tenho sempre especial satisfação quando vejo que conceitos meus foram já formulados por escritores de outro cunho. Assim na Revue des Études Anciennes (1905, p. 389), Cam. Jullian, referindo-se a caminhos de epocas prehistoricas, diz: Et il résulte bien.... que beaucoup des grandes lignes de circulation actuelle ne sont que les héritiers des pistes tracées il y a des milliers d'années.
[16] Para os leitores habituaes do Archeologo Português, seria ociosa esta nota; para os que porventura o assunto do presente estudo desperte de-novo, é uma prevenção necessaria. Quando se falla em castros com supposta referencia á epoca romana, não se trata dos castra, acampamentos ou abarracamentos (Saglio & Daremberg) fortificados que as forças militares de Roma construiam em campanha: nunca vi ruinas de nenhum d'estes castra, nem me consta que as haja verificadas no pais. E comtudo os castros, ou crastos no fallar do povo, são abundantissimos entre nós... porque são cousas muito differentes. Estes castros são apenas uns montes com vestigios de habitação ante-romana e quasi sempre de obras de fortificação de terra ou de muralha. Assim os castros são outeiros, cabeços habitados e fortificados, não pelos romanos, mas contra os romanos, pelo menos, e pertencentes aos antigos habitadores do país. Os castros devem pois aos romanos, não o seu principio, mas a sua decadencia e o seu fim, porque foi a conquista e foi a civilização romana que os tornou desnecessarios naquelle tempo. Como se lhes dá então este epitheto que não vem senão causar confusões? O epitheto encontramo-lo na toponimia local; foi o povo que conservou até hoje esta designação que nós vamos encontrar com frequente emprego nos documentos da idade media. É que no singular castrum significou secundariamente um castello, uma fortaleza; cita Rich o capitulo VI da Eneida, onde se lê (vv. 771 a 776):
Qui juvenes quantas ostentant, aspice, vires!
At qui umbrata gerunt civili tempora quercu,
Hi tibi Nomentum, et Gabios, urbemque Fidenam,
Hi Collatinas imponent montibus arces,
775 Pometios, Castrumque Inui, Bolamque, Coramque:
Haec tum nomina erunt, nunc sunt sine nomine terrae.
(Oevres de Virgile, par E. Benoist; vol. I, Hachette, 1882).
(Trad.) Contempla como são grandes as forças que aquelles mancebos ostentam! Pois d'entre os que trazem a fronte sombreada pelo carvalho civico, uns construir-te-hão Nomento, Gabios e a cidade de Fidena, outros assentarão em montanhas as fortalezas Collatinas, Pometios, o castello de Inuo, Bola e Cora (antigas povoações do Lacio): estes serão os nomes d'aquelles lugares, que estão agora na terra sem nome.
Foi certamente d'esta accepção que derivou para o latim corrente, e em seguida para o fallar medieval das nossas populações, a denominação de castro ou crasto.
Na Revue des Études Anciennes (IV, p. 43, 1902) vem uma serie de citações para demonstrar que no fim do Imperio pela palavra castrum se designavam frequentemente as cidades fortificadas; de entre todas extraio a seguinte de Isidoro (Origines, XV, 2, 13): Castrum antiqui dicebant oppidum loco altissimo situm. Com referencia a sitios nossos, temos, bibliographicamente, o conhecido Portumcale castrum, de Idacio.
Mas a par d'aquella, outras se formaram, como castello, cristêlo, crastêlo e castrêlo. Castellum (cfr. cit. Rev. des Ét. Anc.) na lingua latina, era um deminutivo de castrum e applicava-se tanto a um reducto transitorio, como a um forte permanente, quasi sempre situado em logar elevado (Saglio & Daremberg, s. v. Castellum). Depois, é explicavel que a linguagem popular prescindisse da origem não romana d'estes pontos estrategicos, e applicasse o termo a alguns castros, talvez aos mais deminutos. Aos mesmos montes se vêem tambem applicadas as designações de cividade, mais ou menos pura, cidadêlhe, coroa e outras ainda. Os autores antigos usam o termo oppidum applicado a alguns d'estes centros de população (oppidum Aeminium). E ainda se encontra junto ao nome originario da povoação, a modo de suffixo, o termo de origem celtica briga, que tambem quer dizer castello, altura fortificada (Talabriga).
Os romanos, no nosso caso, traçando a via militar através d'estes montes habitados, não fariam mais do que seguir um caminho historico e uma directriz frequentada.
[17] O parocho de Segadães (1758) informava que a antiga cidade de Vaca (sic) fôra assolada pelos mouros. Os Leitores conhecem estes mouros... (Arch. Port., VII, 191).
[18] Varios outros documentos d'esta região de Entre-Vouga-e-Douro compulsei eu nesta collecção, que se reportavam a castros, mas não pude localizar as referencias com a presteza que era necessaria. Até se me deparou a fórma rara crésto (cresto ualanes, doc. DXLIX do anno 1077), da qual conheço outra actual no concelho de Valdevêz.
[19] Na fé de Nascimento Silveira (Mappa breve da Lusitania, p. 226), em Mancinhata, nos cruzeiros ha inscripções que ainda ninguem entendeu.
[20] Nos Port. Mon. Hist., «Dipl. et Chart.», n.º CCCCLXXI, vem um documento que diz: Cesari... subtus monte castro calbo... Cf. o n.º CCCCLXX. Não pude averiguar se é um Monte Calvo que vejo perto de Romariz. Cesári (gen. de Cesarius, -ii) deu Cesár, como Severi (Port. Mon. Hist., «Dipl. et Ch.», passim, e Arch. Port., II, 252, art. do Sr. P. de Azevedo) deu Sever.
[21] Virá de Calambria? pergunta A. Herculano (Historia de Portugal, III, 423). Cfr. Arch. Port., art. do Sr. A. Cortesão, IX, 232. Teremos aqui alguma Calambriga? Um thesouro de 16 argolas de ouro é de lá. (Arch. Port., II, 87).
[22] Eu não me occupo especialmente da Langobriga do Itinerario, mas é facil ver que identicos raciocinios lhe são applicaveis e em consequencia, a situação d'este segundo oppido deveria ser na faixa de terreno vagamente indicada pela curva LL. um pouco ao norte da Feira. No meu estudo da ara de Estorãos, assentei que esta não é a actual Longroiva, cuja fórma medieval era Langobria, (Port. Mon. Hist., «Dipl. et Chart.» CCCCXX). Do que deponho a p. 141, parece que é a algum dos castros de Obil ou do Monte do Murado que deverá convir a localização de Langobriga. Este fica a 6:000 metros para leste da lagoa.
Para longo- e lango- como para brica e briga, não encontram difficuldade os celtistas. (Élém. celt. dans les noms de personnes des inscr. d'Esp., por A. Carnoy. Luvaina 1907).
[23] A legitimidade do processo que segui, empregando o compasso e a escala para determinar a zona em que, segundo as indicações do roteiro romano, deve encontrar-se o jazigo de Talabriga, tem uma averiguação facil, apesar da estranheza que possa causar. Se eu, collocado em Eminio, quisesse determinar a situação de Cale, cujo anorteamento já conhecia previamente, e para isso adoptasse identico systema, o compasso levar-me-hia a uma zona de terreno, onde não me seria impossivel encontrar localizações compativeis com uma estação d'aquella natureza.
Creio todavia que nem com todos os terrenos assim se póde proceder.
Comprova tambem a plausibilidade do resultado a circunstancia de fazerem pequena differença a distancia em linha recta entre Coimbra e Gaia e a rectificação da estrada entre os mesmos pontos.
[24] ... por ser tam grande como todos sabẽ, de ~q á prouerbio no pouo. (Ibid. p. 50). Já não é só pois grande a legua da Povoa!
[25] O escritor espanhol Eduardo Saavedra, num artigo intitulado «La geografia árabe de Portugal» in Revista Archeologica e Historica, I, 49, suppõe que o trajecto descrito por Edrisi vae de Coimbra a Viseu e Braga «por um caminho muito frequentado», fazendo o primeiro descanso em Avô, 45 kil. a NE. de Coimbra; o segundo em S. Miguel do Outeiro, 10 kil. a O. de Viseu no caminho de S. Pedro do Sul; depois chega-se ao Douro, que se passa em embarcações defronte de uma aldeia, que é Villaboa de Quires, a E. de Penafiel. D'aqui duas jornadas a Braga e outras duas a Tuy.
Salvo o devido respeito, isto parece uma viagem... à vol d'oiseau!
[26] Nos Port. Mon. Hist., «Diplom. de Chart.», apparecem mais documentos em que se encontra esta mesma designação. Estes por exemplo:
N.º 67 do anno 953:... et inde per carraria mourisca... (Isto era nas vizinhanças de Villa do Conde).
N.º 614 do anno 1083:... et inde per via maurisca:... (territorio de Arouca).
Póde não se tratar nestes dois documentos de vias militares romanas, como não se trata; mas nem por isso a designação deixa de ser inexacta no seu sentido proprio. Eram antigos caminhos, anteriores aos arabes. Aliás teriamos que admittir que os filhos do Islam andaram por terras de Villa do Conde e de Arouca a abrir estradas em fórma, por serem invios os territorios.
Demonstra isto que os amanuenses do secs. X e XI já não sabiam estremar romanos (e visigodos) de serracenos. Era pois, como hoje, o fallar do povo.
É tambem este o sentimento do Sr. Pedro de Azevedo (Arch. Port., III, 137 sgs.). Este facto é bastante expressivo. Não passára um seculo ainda depois da expulsão dos arabes naquella região, e a interrupção de tradições locaes tinha sido tão intensa que a mera conjectura tomara o logar d'aquellas, attribuindo aos muçulmanos as obras de viação de que elles apenas tiveram a utilidade (Veja-se Hist. de Portugal, por A. Herculano, III, 421). Em França não se dava isto. Ruy de Pina na Chronica do sr. rey D. Affonso V (p. 569) diz: «E na cidade de Nimis leixou El-rey a estrada romam, que vay a Avinham».
[27] Seria longo transcrever os trechos respectivos d'esses documentos; e nem sempre é possivel acertar a que especie de caminhos se referem as expressões usadas nos documentos. É commum o termo strada, strata; algumas vezes adjectivada strata ueredaria (Dipl. et Chart., n.º 174) em opposição a alia carrale (id.); estrata de uereda (id. n.º 13); in estrada qui discurrit via de uereda (id. n.º 24) ou strata maiore (id. n.os 563, 378 e 549). Tambem se encontra a expressão carreira antiqua (id. n.os 620 e 639), karraria antiqua (id. n.os 888), carraria antiqua (n.os 639 e 287), carera antiqua (id. n.os 366). Via de strada e strada de uiminaria lêem-se no doc. n.º 817 (ob. cit.) Ainda hoje se póde dizer caminho de estrada. Carreira é termo agora quasi só locativo, mas ainda se ouve no norte applicado ás largas entradas de algumas casas antigas, precedidas de uma alameda plana; certamente carreira inclue a ideia de carro, como carrale. Outra denominação que encontrei foi a de via publica (ob. cit., n.º 676), que parece corresponder a caminho publico.
Karraria antiqua era certamente uma estrada carreteira antiga já naquella epoca e portanto tradicional, mas d'aqui não se póde concluir que essa estrada fosse via militar romana. Assim o doc. n.º 570 do anno 1079 refere-se á freguesia moderna de Paçô, no concelho do Valdevêz (uilla Palatiolo), onde nunca passou via militar e onde a carreira antiqua poderia bem attingir a epoca romana.
Alguns d'estes documentos foram indicados pelo erudito conservador do Archivo Nacional e meu amigo o Sr. Pedro de Azevedo; outros rebusquei-os propositamente com o auxilio do valioso trabalho do Sr. Gama Barros, A administração Publica em Portugal, entre os que pertencem á região de Entre-Vouga-e-Douro.
[28] No mesmo pensar encontro-me com o Sr. Alberto Sampaio na Portugalia, II, 216 (As povoas maritimas do norte de Portugal). Assim se exprime: «As unicas povoações, vizinhas do mar, existentes então (no tempo dos romanos), eram Calem e Portucale».
[29] É o Sr. Conselheiro Luis de Magalhães, em A arte e a natureza em Portugal, vol. IV. A descrição da ria immensa de Aveiro, com as salinas espelhadas que a cobrem, com os seus cones alvissimos de sal, que marchetam a planicie sem fim, é um d'estes primores de prosa gracil e diaphana, que mais ninguem poderia escrever com igual coração e com pulso comparavel. Parece que a seducção d'esse panorama não me será mais intensa, quando com os olhos o vir, do que quando o adivinhei naquellas tão poupadas paginas.
[30] A grandíssima maioria das povoações d'estas epocas era nos altos; ahi tem sido encontrados os seus vestigios. Para a alguma se attribuir situação aberta como a de Aveiro, necessario seria documentar a excepção.
Não repugna absolutamente admitti-la no nosso caso, mas é hypothese pura. E depois, lá temos o distinctivo briga. O nome da cidade comsigo traz a natureza do seu assento. No Algarve, Ossonoba e Balsa, não demoravam em outeiros. (Vide Religiões da Lusitana II, 85).
[31] Portugalia, II, 220, «As póvoas marítimas do norte de Portugal», pelo Sr. Alberto Sampaio.
[32] Explicação geologica d'estes phenomenos: «C'est après avoir traversé les marécages du Vouga, que l'on entre dans les terrains anciens; ce sont d'abord des schistes luisants, généralement cachés par des dêpots superficiels: sables des dunes, graviers pliocènes et graviers kaoliniques appartenant au Crétacique. Ces derniers ne montent pas plus haut qu'Estarreja et le Pliocène est rarement visible depuis la voie ferrée. Parfois ce soubassement de roches solides n'existe pas, ou du moins ne se trouve qu'à une certaine profondeur au-dessous du niveau de la mer; dans ce cas, la côte subit des alternances d'accroissement et de décroissement qui peuvent être funestes à l'homme trop empressé de s'approprier le terrain que les sables ont gagné sur la mer; tel est le cas à Espinho». Promenade au Gerez (Souvenirs d'un géologue), por Paul Choffat, 1895, p. 1.
[33] Poderia aqui investigar-se das alterações da costa que possam ter modificado o aspecto do surgidouro do Vouga. Um apello, publicado no Arch. Port., II, 301, teve em resposta o silencio. Não tratando dos factos de periodos geologicos ou indeterminados (Arch. Port., VII, 274 e X, 193) pouco é o que se tem recolhido e ás vezes antagonico. Açoreamentos em epocas historicas foram notados na Povoa de Varzim, Villa do Conde, Fão, Esposende, Vianna, em Setubal, no Algarve (Portugalia, I e II. passim), e eu mostro que na faixa de Esmoriz a Mira elles se deram tambem em epoca que não posso precisar. Num mappa que illustra o Hisp. & Port., Itinerarium de Martin Zeiler (1656) Aveiro é situada ao norte do Vouga. E não é o unico mesmo de datas mais recentes.
[34] Ha um documento do sec. XI que faz uma referencia aproveitavel debaixo d'este aspecto: é o n.º DCCCXV do anno 1095 (doação á sé de Coimbra da igreja de S. Christovam, junto a Ilhavo)... Ista igitur auctoritate confissus ingressus sum et ego densissimam silliamm (silvam) que ab antiquis temporibus habitaculum erat bestiarum...
[35] Entre as cartas antigas que folheei, desejo destacar uma do sec. XVII, assinada por N. Sanson. christ. Gall. regis geografo (Hispaniae antiquae tabulae, 1641). O mappa de Portugal antigo individúa, na região que andei estudando, Conimbrica em Condeixa, Aeminium na margem norte do Mondego; Talabriga ao N. do Vouga, um pouco afastada do estuario, a 20 ou 25 milliaria da foz do Vouga (isto é, na altura onde eu localizo esta povoação); e, seguindo no mesmo rumo, Langobriga. É na Bibliotheca Nacional, um grosso volume in-folio, recentemente encadernado com o dístico—Mappas—e sem frontispicio.
[36] Esta lenda porém reproduz-se em mais localidades, fóra d'esta região.
[37] ... pecuniis publicis, cum reliquo publico apparatu, ademtis. Isto dá bem a entender que havia uma perfeita organização politica, e n'ella se estribava a organização de uma defesa militar contra a invasão romana.
I—Epigraphia christiano-latina (uma inscripção inedita).
II—Um passeio archeologico no concelho dos Arcos de Valdevez (visita ás antas da serra do Soajo).
III—Machados de duplo anel.
IV—Ainda a inscripção christã de S. Pedro de Arcos.
V—Uma primicia de epigraphia funeraria romana.
VI—O portico da matriz de Monção.
VII—Um castro com muralhas.
VIII—Um erro de amanuense nas inquirições de D. Affonso III (C. Sancti Salvatoris Darcus).
IX—Um Grovio autentico (cippo de Villa-Mou).
X—Ara celtiberica da epoca romana (um novo «Genio»).
I—Estatueta ithyphallica.
II—Cemiterio da epoca romana em Vianna do Alemtejo.
III—Situação conjectural de Talabriga.