Nota de editor:
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Rita
Farinha (Agosto 2008)
Maria Amalia
Vaz de Carvalho
Alguns homens
do meu tempo
Maria Amalia Vaz de Carvalho
Alguns homens
do
meu tempo
A ILL.ma E EX.ma
SR.a
D. MARIA MANOELA DE BRITO
(Marqueza de Pomares)
Minha querida Manoela.
Para que um livro merecesse o teu
nome inscripto na sua primeira pagina,
seria indispensavel que esse
livro fosse bello na fórma e sincero na
intenção.
O modesto volume, que venho offerecer-te,
só o segundo requisito póde ter a
aspiração
de realisar.
Na nossa estreita e leal amisade de alguns
annos, amizade em que tens posto os
carinhos de uma adorada irmã, eu aprendi
[VIII]
a respeitar-te e a amar-te como a um d'esses
raros typos femininos de sincera virtude
despretenciosa, de alto pensar e de sensibilidade
vibrante, que alliam n'uma harmonia
felicissima as qualidades d'um grande coração
com as faculdades d'um levantado espirito.
Pensas e sentes; comprehendes com singular
subtileza e com ampla e ineffavel bondade,
tens a curiosidade intelligente, e a
sympathia larga e fecunda, que é de todos
os predicados d'um entendimento o mais
precioso e o mais raro...
Nunca estive perto de ti que me não sentisse
melhor; nunca ouvi a tua voz, que
não
conhecesse de que fundo de sinceridade e
de força moral ella provinha...
Perdoa-me se, pensando a teu respeito
isto e mais do que isto, te faço uma offerta
de tão pouca valia.
Muitos dos
estudos incompletissimos,
que
compõem este livro, foram escriptos á sombra
[IX]
chilreada e fresca das arvores da tua
senhorial Portella―na companhia grata, carinhosa,
dos dois hospitaleiros donos d'essa
vivenda pittoresca e lindissima.
Quantas vezes ahi tenho chegado empallidecida,
extenuada, doente e triste, e quantas
vezes de lá tenho voltado mais vigorosa
na alma e no corpo, trazendo no coração,
como um balsamo e como um viatico, a
imagem d'essa nobre vida de caridade e de
abnegação, que partilhas com o companheiro
do teu destino, e em que ambos são
um suggestivo exemplo e uma excepção
inspiradora...
Se outro valor não tivesse para ti este
pobre livro, que tu amas porque é meu,
bem o sei,―teria o valor de ter sido quasi
todo escripto ao pé das grandes arvores
que deram sombra aos jogos da tua infancia,
e que tu decerto desejarias que emballassem,
com a musica harmoniosa e calmante
das suas ramagens murmuras, com
[X]
o gorgeio alegre dos seus ninhos primaverís,
o supremo somno que dormirás mais
tarde, na serena beatitude das consciencias
boas!...
Lisboa. Dezembro 1888.
Maria Amalia Vaz de Carvalho.
GONÇALVES
CRESPO
As
Miniaturas e os
Nocturnos são
incontestavelmente,
e no dizer de auctorisados
criticos, dois livros, que
pódem classificar-se entre as perolas mais
doces, mais preciosas, mais irisadas, da moderna
litteratura portugueza. Leva-me hoje
um pendor irresistivel a fallar d'esses dois
livros, conhecendo que o assumpto, para
mim, é a um tempo muito attrahente e muito
difficil.
Dir-se-ha, que não póde fallar com
justiça
do poeta, aquella, que á sua memoria
[2]
querida está ligada por tão estreitos
laços;
mas por que elle foi o companheiro da minha
vida, o mestre e educador do meu espirito,
o amigo inolvidavel cuja morte deixou orphãos
os meus filhos, não terei eu direito
de ajuntar a minha voz humilde ás vozes,
que no paiz em que eu nasci, e no imperio
em que elle nasceu, o proclamam um dos
mais delicados poetas modernos, um dos
cinzeladores mais primorosos da poesia portugueza,
um
parnasiano no bom sentido da
palavra, quer dizer, juntando como Coppée,
mas em muito mais alto gráu do que este,
a suavidade, a melodia, a correcção do metro,
ao sentimento profundo, á comprehensão
clara, nitida e perfeita de todos os
segredos complexos da alma contemporanea?
Parece-me que seriam
rigorosos de
mais
os que tentassem coarctar-me esse direito,
e que seria demasiada docilidade da minha
parte o sujeitar-me a censores tão intransigentes
e tão duros.
[3]
De mais, não escrevo eu exclusivamente
para ser lida por mulheres? E onde está a
mulher que me condemne n'este ponto? Não
ha nenhuma, tenho a certeza d'isso.
Gonçalves Crespo não escreveu senão as
Miniaturas e os
Nocturnos. Foram os versos
da sua mocidade, colligidos debaixo d'aquelle
titulo, que m'o fizeram conhecer e admirar;
os
Nocturnos póde bem
dizer-se que foram
escriptos ao meu lado.
A obra do poeta tem pois para mim duas
faces distinctas, mas para julgar as
Miniaturas
sinto-me por assim dizer mais independente
e mais livre.
Esse livro foi a revellação primeira, a
revellação
subita que eu tive d'aquelle, que
treze annos depois, quasi que dia por dia,
me expirava nos braços, pronunciando o
meu nome, que a sua alma angelica, tão depurada
pelo soffrimento, tão sanctificada
pela resignação, enchia de
bençãos.
Foi em 1870 que as
Miniaturas viram
a
luz pela primeira vez, revellando a Portugal
[4]
todo e a todo Brazil, que um poeta
original, delicadissimo, correcto até á
perfeição,
que um artista de primeira plana, um
verdadeiro artista de raça, acabava de nascer
para a litteratura portugueza.
Foi esse um bello periodo da curta vida do
poeta, hontem desconhecido ainda, hoje acclamado
por todos os que tinham no espirito
uma scentelha de gosto, e no coração
um vislumbre de sensibilidade.
Sobre a banca de trabalho de todas as
mulheres distinctas, entre o cestinho de bordado
e a jarra de violetas ou de rosas,
achava-se então o gracioso volume das
Miniaturas,
e muita voz feminina tremula de
commoção, e muita voz de artista, ebrio da
belleza da fórma, repetia com enlevo essa
doce elegia adoravelmente sentida, que se
chama
Alguem, esse poema de
inconsavel e
vaga tristeza, que se intitula:
Arrependida,
e a
Noiva, e o ramo de saudades e de
lyrios
entretecido sobre o tumulo de
Modesta
e a esplendida
Nera, e a esculptural
e voluptuosa
[5]
Sara, e a ineffavel e
consoladora
Transfiguração.
Quantos aspectos do mesmo talento!
quantas fórmas da mesma phantasia seductora!
quantas expansões da mesma sensibilidade
fina, subtil, quasi doentia, de requintada
que era!
Muito longe do poeta, em um palacio
meio arruinado, affastada de todo o convivio
social, entre as verduras, as sombras,
as caricias inspiradoras da Natureza inculta,
vivia então uma creança de alma ardente,
de sonhadora phantasia, de indomito imaginar,
vizionaria juvenil, de que hoje―taes
são as modificações que o tempo
faz!―existe
apenas, alterado ainda assim pelos annos e
pelas agonias, o corpo envelhecido cuja mão
escreve estas linhas.
Muitos teem contado essa historia a que
a Morte veiu dar o seu tragico remate. Para
que alludir a ella aqui? E que importam ao
mundo as alegrias e as lagrimas que elle
não sentiu nem chorou?
[6]
A verdade é que hei de lembrar-me
sempre, tão viva se me conserva no espirito
essa impressão dominadora, do que eu senti
ao folhear pela primeira vez as
Miniaturas,
livro de um poeta para mim inteiramente
desconhecido havia algumas horas apenas.
Pareceu-me que era um poeta como
aquelle, que eu positivamente tinha esperado
havia muito, e que elle chegára; que
a minha aspiração indefenida e vaga se
tinha realisado. Mais contentamento do que
surpreza. A doçura dos que alcançam a praia
que tinham desejado em longos dias de navegação
monotona.
Porque tardaste tanto,
ó poeta? Eu te
esperava
Na minha solidão!
faz elle dizer mais tarde á creança, que eu
já fui, exprimindo assim, na sua simplicidade
tão artistica, o sentimento de confiante alegria
que a minha alma experimentára ao
conhecel-o.
[7]
Pois bem; esse agudo prazer da intelligencia,
completamente, absolutamente satisfeita
no goso d'uma determinada obra
d'arte, sinto-o eu hoje como no primeiro
dia, ao ler as
Miniaturas.
O talento de Gonçalves Crespo soffreu
com a idade, com as mudanças que se deram
no seu destino, com a acção tão
complexa
e tão profunda que a Vida exerce em todos
nós, transformações importantes e
progressivas;
no emtanto para mim, e para muitos
dos amigos dilectos do poeta, a mais encantadora,
a mais perfumada efflorescencia
do seu espirito raro, será sempre aquelle
livro juvenil.
Muito mais pessoal que os
Nocturnos,
o
volume das
Miniaturas
lança uma luz mysteriosa
e dulcissima sobre a figura singular,
um pouco extranha, que foi Gonçalves
Crespo.
Muito ao contrario do que geralmente
succede, este artista, tão nervoso e vibratil,
teve a primavera da vida nublada por todas
[8]
as sombras, e o estio, de que a morte desfolhou
as ultimas rosas, illuminado por todas
as suaves e tranquillas alegrias, que a vida
póde conceder áquelles que mais ama e a
quem mais cedo tenciona abandonar.
É por isso que os
Nocturnos de uma belleza
de fórma incomparavel, tocados ás
vezes por um largo sôpro de epopeia, não
teem senão a espaços, a musica dolente,
tão enternecida e languida, tão acariciadora
das almas tristes, que se prolonga e vibra
em longos echos melancolicos nas paginas
das
Miniaturas.
Veja-se por exemplo
Alguem, uma das
peças que mais sympathias conquistaram ao
nome do poeta:
Para alguem sou o lyrio entre os abrolhos,
E tenho as formas ideaes do Christo;
Para alguem sou a vida e a luz dos olhos,
E se na terra existe é porque existo!
Esse alguem que prefere ao namorado
Cantar das aves minha rude voz,
Não és tu anjo meu, idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!
[9]
Quando alta noite me reclino e deito
Melancolico triste e fatigado,
Esse alguem abre as azas no meu leito,
E o meu somno deslisa perfumado.
Chovam bençãos de Deus, sobre a que chora
Por mim, além dos mares! Esse alguem
É de meus dias a esplendente aurora,
És tu, dôce velhinha, ó minha
mãe!...
N'estas quatro estrophes está retratada
uma alma, estão contadas as tristezas d'um
destino, que mercê de Deus se desannuviou
mais tarde, mas no qual então se condensavam
todas as melancolias intimas, todas
as duvidas sombrias, todas as amargas e silenciosas
agonias da isolação.
Nem a mulher que elle ama, nos passageiros
caprichos da mocidade, nem os
amigos que o cercam, lhe matam a sêde de
afféctos que o devora e tortura; a mãe, a
dôce velhinha, essa
está longe, essa chora
além dos mares, essa nem o vê, nem o acaricia,
nem dissolve ao fogo dos seus beijos
os gêlos da duvida, que tão cêdo
crestaram
[10]
todas as flôres da mocidade na alma de
Gonçalves Crespo.
Nunca houve ninguem mais modesto,
mais inconsciente do proprio valor, mais
desconfiado de si mesmo, mais dolorosamente
torturado pela ideia das suas imperfeições
reaes ou imaginarias.
Os requintados suplicios de que esta desconfiança
foi origem, manifestam-se bem
mais nas
Miniaturas do que no ultimo
volume
do poeta; por isso n'ellas a nota pessoal
é mais vibrante, a commoção, por ser
mais sincera, é mais directa e mais contagiosa.
Como documento psychologico para auxiliar
a critica do poeta e do artista, as
Miniaturas
são de um valor incomparavel.
[11]
II
A poesia de Gonçalves Crespo tinha origens
complexas que é mister analysar, para
comprehender completamente a belleza e a
sinceridade palpitante da sua obra.
Nascido no Brazil, n'esse clima ardente e
languido, no seio d'essa natureza exhuberante,
que muito mais forte do que o
homem, se lhe impõe e o subjuga fatal
e irresistivelmente, Gonçalves Crespo foi
transplantado,―pobre e delicada planta
friorenta e morbida,―para uma região em
que nunca se poude acclimar bem.
D'aqui, a doçura nostalgica, a saudade
soluçante, que parece evolar-se como um
aroma capitoso das suas poesias
brazileiras,
taes como a
Sésta,
Na
Roça,
a
Canção,
[12]Ao
meio
dia, e mais tarde nos
Nocturnos,
as
Velhas Negras, etc., etc.
Nem Gonçalves Dias, nem Alvares de
Azevedo, nem Casimiro de Abreu, se deixaram
assim inspirar, tão sincera e vivamente,
pelas scenas familiares da vida brazileira,
cuja graça pittoresca e especial dá
um cunho inteiramente novo aos versos de
Gonçalves Crespo.
E que o poeta tinha saudade―uma
saudade que lhe estava no sangue, que era
parte do seu temperamento, saudade que
era um instincto contra o qual elle luctava
em vão―de todos os esplendidos aspectos
com que os seus olhos, ao abrirem-se á
luz, se tinham inconscientemente embriagado.
Um dia de agosto, tropicalmente calmoso,
passado no campo, á sombra das arvores,
dava-lhe uma excitação penetrante,
envolvia-o n'um banho de sensações voluptuosas.
Sem mesmo dar por isso, era a
lembrança tão viva e tão
dominadôra da
[13]
patria longinqua, que produzia em todo o
seu sêr este effeito anormal.
É isto ainda que se traduz na melancolia
sonhadora e vaga, d'esse pequeno poema,
em que eu já fallei, intitulado as
Velhas
Negras.
Conheceram tanto dono!...
Embalaram tanto somno
De tanta sinhá gentil!...
Pódem as tristezas mudas d'uma raça escrava
ser notadas com uma subtileza maior,
com uma doçura mais ideal!...
A simplicidade que dá estes effeitos é
que é a grande arte.
Ao longe, evocados magicamente pela
voz do poeta, surgem os brutaes senhores,
para quem as tristes filhas da raça negra
foram o joguete d'um instante, a distracção
d'uma hora de tedio ou de preguiça, e ellas,
inconscientes, vagamente assombradas,
tendo o pasmo silencioso d'um destino extranho,
a angustia sem expressão e sem
formula d'uma esmagadora injustiça, passaram
[14]
de mão em mão, cumprindo o seu
cruel fadario, e embalando de vez em quando
nos braços emmagrecidos ou vergastados
pelo azorrague do feitor, uma creança loura,
rosada e
branca que lhes sorria,
dando-lhes
n'esse sorriso a indefinida revellação de alguma
cousa de superior, de caricioso, de
celeste!...
Só n'um coração de filho, e de filho
saudoso,
de filho amantissimo, pódem retratar-se,
tão vivamente illuminadas, pódem
destacar-se com tão magistral relevo, scenas
entrevistas um dia, nas horas da imprevidente
e distrahida infancia.
E a
Sésta? Qual
é a leitora que não ficou
sabendo a
Sésta de cor!
Na rêde, que um negro
moroso balança,
Qual berço de espumas,
Formosa creoula repousa e dormita,
Emquanto a mucamba nos ares agita
Um leque de plumas.
Na rêde perpassam as
tremulas sombras
Dos altos bambús;
[15]
E dorme a creoula de manso embalada,
Pendidos os braços da rêde nevada
Mimosos, e nús.
..........................................................
..........................................................
O vento que passe tranquillo, de leve,
Nas folhas do engá;
As aves que abafem seu canto sentido;
As rodas do engenho não façam ruido,
Que dorme a Sinhá.
Como se vê bem que este languido rythmo,
a vaga suavidade d'estes versos, parecem
feitos para acompanhar o movimento
cadenciado e lento da rêde, e embalar o
sonho de alguma filha gentil d'esse paiz,
em que o clima dá ao corpo as preguiças
infinitas, e a natureza luxuosa e desbordante
dá ao espirito a mollesa, o cançasso fatal
d'uma permanente lucta, na qual o homem
é sempre vencido pela força inconsciente
das cousas!...
Em Gonçalves Crespo havia pois a indolencia
atavica, que elle só por extraordinario
e doloroso esforço era capaz de vencer
temporariamente. Por isso, emquanto as
[16]
circumstancias excepcionalmente favoraveis
lhe não amenizaram a existencia, elle viveu
sempre em absoluto desaccordo com o seu
meio.
A
lucta pela vida, essa lei brutal
das sociedades
modernas, esmagava-o a elle, filho
preguiçoso dos tropicos, artista quasi
feminino, pela graça delicada e fragil do
engenho, pela caprichosa subtileza da inspiração.
E digo muito de proposito
inspiração,
apesar da palavra andar proscripta dos modernos
codigos artisticos.
Gonçalves Crespo trabalhava minuciosamente,
como o mais esmerado operario, a
factura dos seus versos, mas necessitava
d'essa influencia qualquer, superior e extranha,
que póde vir ao artista do seu mundo
intimo, ou do mundo que o rodeia, que
póde ser determinada pelo estado especial
dos seus nervos, ou que póde provir de mil
causas externas e independentes da sua
vontade.
[17]
III
Quando elle escreveu as
Miniaturas,
dando-nos nas confidencias talvez involuntarias
da sua alma, a revellação d'um artista
adoravel, duas grandes tristezas o opprimiam,
tristezas que elle, seguindo talvez
sem dar por isso, o fecundo conselho de
Goethe, transformou em poesia, que será
lida emquanto se fallar e se escrever portuguez.
Eram-lhe hostis o meio physico e a
atmosphera moral em que vivia.
Para ser grande na Arte, creio eu, que é
preciso antes de tudo, ser sincero. Nunca
ninguem logrou traduzir bem as dôres que
não sentiu.
Brutalidades inconscientes do Destino
[18]
tinham feito d'este moço,―de uma
organisação
nervosa como a d'uma mulher, accessivel,
como os organismos mais sensiveis
á influencia de todas as sympathias, gostando
de agradar aos que viviam perto
d'elle, impressionavel, desconfiado, sempre
prompto a julgar-se com severidade injusta,―um
estudante pessimo, um filho familia,
quasi rebelde.
Queriam que elle, a livre phantasia graciosa
e borboleteadora, caprichosa, e facil
aos cançassos rapidos e aos tedios anulladores,
se cingisse ao estudo arido e disciplinador
da mathematica; que elle, exigente,
doido por tudo quanto era bello,
elegante, fino e distincto, tivesse a economia
calculista e minuciosa d'um mediocre
ou d'um grosseiro.
D'aqui, as luctas de familia, os descontentamentos
do homem intelligente, que se
vê injustamente julgado porque lhe prevertem
as faculdades em vez de as aproveitarem.
[19]
Triste, isolado, sem affectos, descontente
de si que não sabia sujeitar-se ao destino,
e descontente com o destino que tão hostil
lhe estava sendo, Gonçalves Crespo surprehendeu-se
um dia a vazar no molde
perfeito dos seus versos, as melancolias intraduziveis
até ali, do seu pobre coração
triturado e desconhecido.
Teixeira de Queiroz, o consciencioso
analysta dos
Noivos, o ironico
observador
de
Salustio Nogueira, o pintor
pittoresco e
impressionista da
Comedia do Campo,
escreveu
na terceira edição das
Miniaturas
um prologo admiravel, um prologo por assim
dizer
vivido, que desenha com
singular
vigor e com exactidão minuciosa a physionomia
litteraria e moral de Gonçalves
Crespo.
Elle que foi um amigo da mocidade e
um amigo da ultima hora, que recebeu as
primeiras expansões do poeta e quasi que
o ultimo suspiro do moribundo, comprehendeu
bem e soube bem traduzir, a estranha
[20]
dualidade moral que fazia de Gonçalves
Crespo o mais alegre e o mais triste dos
homens.
Porque muitos dos amigos d'elle, hão de
morrer na falsa persuasão de que o lado
menos verdadeiro do auctor das
Miniaturas
era a tristeza funda, a magoa docemente
resignada, que nas suas poesias
transluzem. Tinham-n'o por um alegre, um
doidivanas de phantasia picaresca e de imprevistas
aventuras; formavam-lhe em volta
do nome, sympathico a toda a mocidade do
seu tempo de Coimbra, como depois se
tornou sympathico a todas as classes sociaes
de Lisbôa, uma lenda de bohemia
extravagante, de ruidosa e turbulenta alegria.
Poucos o conheceram; poucos viram
atravez da ironia bondosa e sympathica do
seu sorriso, da bonhomia um tanto sceptica
da sua palavra, vivamente e pittorescamente
original, o verdadeiro homem que elle era.
A mocidade corrêra-lhe tão desflorida e
[21]
tão triste, que nem os dez annos de tranquilla
felicidade, de paz serena e dôce, toda
illuminada de affectos intimos, lograram cicatrisar
feridas que se lhe tinham rasgado
no coração. E que ha mais triste, mais desolador
para as almas grandes, do que
passarem n'este deserto de homens chamado
o mundo, mal julgadas, mal comprehendidas,
mal interpretadas, tendo a consciencia
de que ninguem cura das suas dôres,
ou se preoccupa com os seus intimos e irremediaveis
desconsolos?...
As cartas do auctor das
Miniaturas,
as
suas cartas inimitaveis e incomparaveis,
porque não conheci nunca quem escrevesse
cartas mais perfeitas―perfeitas de graça,
de simplicidade, de desleixo artistico―revelam-n'o,
preza de melancolias incuraveis
e extranhas.
Tinha preoccupações e infantilidades de
artista. Nunca chegou a perceber a seducção
irresistivel que exercia nos que o approximavam;
nunca comprehendeu que tinha,
[22]
como poucos, o dom da sympathia subita
que se impõe, que domina e que vence. Se
lh'o diziam sorria-se, com o seu sorriso peculiar
de que todos os amigos se lembram
com uma saudade enorme, feito de malicia
e de duvida, de bondade e de ironia, sorriso
que era o encanto caracteristico e mysterioso
d'aquelle rosto revolto, expressivo e
extranho, que tantos affectos inspirou na
terra, que ficou gravado em tantos corações
que não esquecem.
Esta duvida de si mesmo fazia-o soffrer.
Nunca se consolou de pensar de si proprio
o que ninguem mais pensava.
Encantadora fraqueza que o torna ainda
mais nosso, que faz com que nós as mulheres
todas o amêmos, porque se não envergonhou
de partilhar as nossas pequenas vaidades,
as nossas imperfeiçõesinhas organicas para
as quaes o homem tem tamanho e tão altivo
desdem!
[23]
IV
Tristezas quasi inconscientes do exilio,
nostalgias de ave friorenta, visões vagas,
indistinctas, radiosas da patria ausente; desgostos
de ordem muito particular,―e a pairar
sobre tudo isto, uma impressão dolorosa,
indefenivel, que nem aos mais queridos elle
confessava, mas que ungia de tristeza ineffavel
os seus versos, que punha aqui e ali
uma nota abafada e dilacerante na harmonia
magistral da sua obra,―eis a triplice
inspiração,
que deu uma vida intensa ao seu
primeiro livro, ao livro da sua mocidade, que
tão querido lhe tornou logo o nome aos delicados
de ambos os sexos.
As
Miniaturas teem já
dezesete annos, o
que é muito para um livro de versos d'este
[24]
seculo, que fez da rapidez o seu programma
e o seu mote, que não estaciona em cousa
alguma e muito menos no modo de exprimir
o que sente.
Pois apezar de muitos poetas contemporaneos
de Gonçalves Crespo terem passado
litterariamente, a geração que principia
agora, lê as
Miniaturas
com o mesmo enlêvo
com que as leu a geração que vae envelhecendo
já.
É que a verdadeira poesia, a que não se
filia servilmente em uma qualquer escola
transitoria e ephemera, mas a que exprime do
modo mais bello e perfeito que é dado á
sua epocha conhecer, os sentimentos que
formam o fundo inalteravel da alma humana,
não perde nunca o imperio que um dia exerceu,
atravessa os tempos immaculada e eterna;
é hoje o que será sempre, a fascinadora
que nos enfeitiça, a amiga cariciosa que nos
embala, a confidente que nos ouve, e que
chora comnosco...
Muitos teem comparado Gonçalves Crespo
[25]
a Theophile Gauthier, eu por mim declaro
que acho injusta a comparação.
Theophile Gauthier é um perfeito joalheiro,
um impeccavel burilador; cada verso
d'elle é uma pedra preciosa, facetada, brilhante,
admiravelmente engastada em ouro
dos mais finos quilates.
Para dar uma forma peregrina aos metaes
preciosos, para esmaltar deliciosamente
as joias mais lindamente modeladas, ninguem
excede o auctor dos
Emaux et
Camèes. Elle
proprio o sabia e nunca desejou mais nada.
Em Gonçalves Crespo porém, havia mais
do que isto. Havia uma alma transbordante
de vida, capaz de comprehender e de traduzir
os mais delicados cambiantes, as mais
rapidas modalidades das outras almas.
Que intuição que elle tinha de todas as
dôres, mesmo das mais extranhas ao espirito
e ao coração d'um homem!...
Lembram-se d'aquella perola de tristeza
chamada
Arrependida?
Ella deixára tudo para
correr atraz da
[26]
sua chimera e um dia desperta perdida, irremissivelmente
perdida no abysmo de infamia
a que uma mão de homem a arrastou:
Ella scisma ao luar! Todo o passado
A seus olhos avulta, illuminado
Pelos dubios reflexos da tristeza...
Por uma noite assim, limpida e clara,
Sua modesta alcôva ella deixára
Por esse que ali dorme, e que a... despreza!
Que sobriedade de mestre! que melancolia
femenina! que profunda comprehensão
d'uma dôr, que toda a emphase, toda a
phrase diminuiriam forçosamente!
Tentar conhecer o céu do amor completo,
do amor heroico, do amor feito de
sacrificios superiores e de abnegações infinitas
e cahir no lodo... Só um poeta sincero
como Gonçalves Crespo saberia notar
em dois traços esta agonia silenciosa e sem
termo...
O que distingue particularmente o auctor
[27]
dos
Nocturnos dos outros poetas da
sua
indole, é a ligeireza do traço, é o
vago que
parece envolver n'uma luz cerulea e dubia,
n'um vapor transparente―e comparavel ao
que á tarde envolve e esbate suavemente as
montanhas,―as suas concepções mais perfeitas.
Não é possivel que ao lêl-o a
imaginação
se detenha apenas na pagina do livro e o
não siga ás regiões de que elle tinha
como
ninguem a iniciação e o segredo.
Previlegiados entre todos, os poetas que
fazem sonhar; os que teem na mão a chave
de oiro, do paiz azul habitado pela Chymera!
[28]
V
Os
Nocturnos pertencem a uma phase
inteiramente diversa, mais pacificada, mais
tranquilla, mais perfeita, da vida do homem
e da vida do escriptor.
Sem ter perdido nenhuma das suas qualidades
de graça delicada e mimosa, nenhuma
das subtilezas finissimas do sentimento
e da expressão, nenhuma d'aquellas
notas dolentes da alma creoula, que tão
singular e tão fascinador o tornam para nós,
Gonçalves Crespo attinge por vezes a amplidão
magestosa e grave, tem o largo folego
heroico, que nas
Minaturas ainda se
não pressente.
Na evolução progressiva do seu genio
poetico, elle subiu mais um gráu.
[29]
Nenhum segredo da forma lhe é defezo.
Conquistou, venceu, domou inteiramente a
caprichosa, que já não ousa, como a Galatheia
do poeta latino, sumir-se entre os salgueiros
acenando-lhe de longe.
A
Morte de D. Quixote, a
Resposta do
Inquisidor, as
Primeiras lagrimas
d'El-Rei,
a
Ceia de Tiberio, prenunciam um
poeta
feito para os largos commettimentos, um
poeta que marcaria o seu logar n'este seculo,
com algumas d'essas obras que são a
gloria d'uma raça, se a traiçoeira morte
não
viesse em plena virilidade de annos, em
plena alegria de trabalho, arrancar-lhe das
mãos a penna prodigiosa.
As traducções de Henrique Heine são no
volume dos
Nocturnos das joias mais
deliciosamente
trabalhadas.
A inspiração meridional entrelaça-se
de
tal modo com a melancolia fugitiva e doce,
com a ironica tristeza da musa germanica,
que no dizer de alguem, o
Intermezzo
apparece ali como a obra d'um Heine, mais
[30]
completo, d'um Heine a quem não faltasse
uma só nota na sua vasta alma de homem!
Poucos espiritos tambem, seriam talhados
mais de molde para entenderem Heine e
dar-lhe por assim dizer uma feição nossa.
É que a ironia que ressalta naturalmente
das cousas, a ironia que não é nem uma
blasphemia nem um soluço, mas sim o reconhecimento
pacifico, tranquillo e triste das
desconsoladoras verdades humanas, existe
em Gonçalves Crespo na sua forma mais exquisitamente
delicada, mais requintadamente
artistica.
Como não havia elle pois de entender
aquillo que é a propria essencia do genio
do poeta allemão!
[31]
VI
Já no leito, onde agonisou com divina
resignação dois longos mezes, e onde parece
que o seu espirito de poeta assumiu
uma forma ainda mais idealmente melancolica,
Gonçalves Crespo escreveu com a mão
tremula de doente um soneto consagrado
aos annos d'uma gentil senhora, nossa querida
amiga, por quem elle tinha o mais respeitoso
dos affectos, em cuja casa hospitaleira
elle encontrou sempre um acolhimento
fraternal.
Essa senhora é a Condessa de Sabugosa,
mulher do amigo, talvez mais ternamente
amado por Gonçalves Crespo.
Seria lastima conservar para sempre inedito
este soneto que tem para mim um triplo
[32]
encanto. O perfume
camoeano que o
impregna
deliciosamente, a tristeza dulcissima,
que elle respira, e a melancolica circumstancia
de ser o ultimo que cahio, como
uma perola solta, da lyra quasi partida do
poeta moribundo.
Eis o soneto:
Na quadra azul da mocidade, a gente
Parte rindo e cantando, estrada fóra,
Gorgeia a cotovia em cada aurora,
Suspira á noite o rouxinol dolente.
Ai! Ditoso o que parte alegremente,
O que não vio aproximar-se a hora
Em que é força volver atraz... embora
Nos arfe o seio de illusões fremente.
Para ti ainda existe o sonho alado,
A fé robusta, e a candida alegria
Que nos chovem do céu claro e estrellado.
Nunca sejas forçada, flôr, um dia
A erguer, chorando, o braço fatigado
Em busca da ventura fugidia...
...........................................................
...........................................................
[33]
A morte não consentiu que elle subisse
aonde podia subir, que elle se affirmasse
como se poderia ter affirmado. No emtanto,
todos os que teem este sexto sentido divino,
pelo qual, mesmo apezar dos desenganos
que a vida encerra, vale a pena em todo o
caso ter vivido, hão-de ler com intimo prazer
os dois volumes do encantador poeta de
Alguem.
É verdade que elle não respondeu a
todas as interrogações que o nosso espirito
se achou no direito de fazer-lhe, mas não
respondeu porque o tempo lhe não deixou
cumprir as mil promessas que a sua mocidade
nos fizera.
E hoje que elle partiu para o paiz mysterioso
d'onde ninguem voltou, e para onde,
na tristeza ou na alegria, convergem os
nossos olhares anciosamente prescrutadores,
voam as nossas saudades n'um impeto
de lagrimas, eu releio aquella soberba e
indecifravel
Sara, e pergunto a mim
mesma
se debaixo da forma esculpturalmente pagã
[34]
dos versos, se não abriga um sentido occulto,
um mysterioso symbolo...
Que ardente espiritualismo, tenaz e apaixonado,
na carnalidade apparente d'esse
poema!
Quanta dôr n'aquella aspiração, sempre
trahida, de encontrar uma alma, no bello
corpo insensivel que elle, como Pygmalião,
quereria animar d'um divino sopro!
Na sua violenta sêde de perfeição,
dolorosa
e alanceadôra como poucas, nunca o
poeta das
Miniaturas e dos
Nocturnos teve
o contentamento da sua obra! Nunca achou
que a Musa, que elle beijava, tivesse a vida,
o fogo sagrado, que n'esse beijo fecundador
a sua alma anceava communicar-lhe!
Era um insaciavel!
Nunca a Arte nem a vida o contentaram,
a elle que teve todas as caricias luminosas
da Arte, e todos os affectos sãos que a Vida
póde dar e que a Vida só dá a
rarissimos
dos seus escolhidos...
Mas não estará n'esse eterno descontentamento,
[35]
n'essa aspiração incansavel ao
desconhecido,
o signal mais caracteristico da
sua grandeza?... Eu creio que sim.
RAMALHO E EÇA
I
O MYSTERIO DA ESTRADA DE CINTRA
Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz
acabam de apresentar ao publico
portuguez e brazileiro, ou, antes,
de
consentir que lhe seja
apresentado por
um editor intelligente, o livro da mocidade
de ambos, que ha quatorze annos teve em
Lisboa um successo de curiosidade e depois
de enthusiasmo, quando foi publicado dia a
dia nos folhetins do
Diario de
Noticias.
[38]
Foi n'essa occasião, e não no livro que
depois saiu a lume, que eu li o romance, e
lembrava-me, como toda a gente, da impressão
immensamente grata, que essa obra
improvisada, escripta
à la
diable, tinha produzido
em mim.
Fui, portanto, como é natural, uma das
primeiras compradoras do volume, e, decerto,
não fui, de todas as que o teem lido
n'estes dias, a menos interessada e curiosa.
Queria saber, antes de tudo, se estava
muito mudado o meu gosto litterario, se o
romance experimental, o
romance naturalista,
o
documento humano, e o estudo frio,
analytico, impessoal, das miserias d'este
mundo, me tinham de todo roubado a sensibilidade
e a paixão, que a mulher tem no
espirito, ainda que as não tenha em mais
nada.
Felizmente não succedeu assim!
Eu que devoro os romances dos Goncourts,
eu que admiro a força
rembrandnesca
[39]
de Zola, eu que me sinto fascinada deante
da obra de Flaubert, e que espero muito de
Guy Maupassant, o dilecto discipulo, o continuador
convicto do grande romancista
morto, que escreveu a
Bovary―eu
posso
ainda gosar intensamente um improviso
qualquer da mocidade, em que a sensibilidade
e a imaginação predominem.
Como eu gostei ainda hoje do
Mysterio
da Estrada de Cintra!
Infelizmente, conheço-lhe os defeitos innumeros,
cousa que não conhecia ha quatorze
annos; percebo bem onde os dois auctores
foram beber a inspiração de muitas
d'aquellas paginas mais brilhantes; estou
vendo claramente as inverosimilhanças flagrantes,
as falsidades, os
pastiches, e, ante
a critica da minha envelhecida rasão, educada
por Taine, entendo, como entendem
os auctores do romance, que o romance é
execravel!
Tão indesculpaveis seriam os dois valentes
athletas da moderna litteratura portugueza
[40]
se fizessem hoje um livro assim, como
seria lamentavel e triste que elles o não
tivessem feito, quando ambos eram moços!
A par das imperfeições, quantas bellezas!
que perolas de sentimento, de imaginação,
de fina graça, de sonhadora melancolia!...
São falsos os personagens?!
De accordo; são falsissimos! mas são
muito sympathicos!
Não ha nenhum de quem eu hontem, depois
de ler o livro de um só folego, me não
despedisse com uma certa saudade!
A
condessa W. é uma
condessa perfeitamente
talhada n'um velho molde romantico.
Já não ha em parte alguma
condessas assim!
No mundo real nunca ninguem as viu;
no romance moderno encontra-se de tudo,
menos d'aquellas doces mulheres encantadoras
e apaixonadas, arrebatadas e elegantes.
Paciencia.
[41]
Eu não a queria, decerto, para minha
irmã, nem para minha amiga, mas gosto de
a vêr assim de longe, na perspectiva que
lhe faz o pincel prestigioso dos dois escriptores.
É verdade que ella não passa de uma
ociosa e de uma hysterica; não tem rasão,
não tem vontade, não tem principios,
não
tem heroismos de luctadora; moralmente,
não vale nada aos meus olhos; artisticamente,
encanta-me!
É uma creatura que ama, que soffre, que
se mata nas duras penitençias de um
claustro
mais apertado e mais duro que uma cadeia,
e que nas suas agonias impetuosas, nas suas
dôres, nas suas ardentes aspirações
á felicidade
impossivel, se não parece nada com
as detestaveis heroinas, inconscientes ou perversas,
da moderna litteratura latina, tão
desconsoladora, tão dura, tão cruel!
Mas valerá ella mais, por ventura, do que
essas valem? perguntas-me tu, leitora!
Vale, sim!
[42]
Valem mais as que amam que as que vivem
na inercia indifferente do coração! valem
mais as que padecem que as que se deixam
viver tranquillas na baixesa ignobil do
peccado! valem mais as que se arrependem
que as que nunca perceberam que erraram!
Decerto, que em face das leis immutaveis
do Dever, nenhuma pode ter a absolvição
social; no emtanto, ao menos esta,
coitada! tem a sinceridade da sua paixão,
tem o encanto vivo, penetrante e communicativo
do seu fatal amor!
Não discutamos, porém, a moralidade do
romance; essa lá lh'a pozeram os auctores
na morte e na clausura voluntaria das duas
desatinadas heroinas.
Discutamos simplesmente a sua belleza
artistica.
O
Mysterio da Estrada de Cintra tem
paginas, como nunca mais os dois homens,
que as escreveram, tornaram ou tornarão a
escrever.
Penetra-as o insubstituivel, o capitoso
[43]
aroma da mocidade; são sentidas, são quentes,
são tremulas de ternuras, são flammejantes
de paixão!
O conjuncto da obra, é claro que é inferior
a tudo que elles tem feito depois: ao
humour, á fina e aguda
observação, á critica
mordente, á analyse incisiva, ao estylo
poderoso e vivo das
Farpas, do
Primo Bazilio
e do
Crime do Padre Amaro, e dos
folhetins ultimamente escriptos para um
jornal do Brazil;―mas, apesar de tudo, ha
graças e desleixos que o artista só tem na
flor inexperiente e virginal do seu talento, e
que mais tarde são compensados por meritos
mais distinctos, por qualidades superiores,
pela firmeza magistral da penna, do
buril, ou do pincel, mas que nunca mais podem
ser substituidos!
Como as distinctas individualidades dos
dois escriptores se destacam bem nas paginas
do romance!
A phantasia, o magico poder do estylo
de Eça de Queiroz, resaltam ao lado da critica
[44]
mais philosophica, da observação mais
penetrante de Ramalho Ortigão.
A morte de Carmen, a caçada na India,
escreveu-as Eça com a penna que mais
tarde, convertida ao realismo, contará a
agonia de Luiza, a burgueza peccadora, e
as
soirées de Leiria,
entre padres e devotas;
a carta de Rytmel á condessa, a
descripção
do claustro no Minho, as reflexões
da pobre amante desvairada, antes da fuga
que ia roubal-a para sempre á sociedade em
que ella tinha vivido, á casta a que pertencia,
revelam já todas as qualidades do espirito
observador e amante do pittoresco,
que fez de Ramalho Ortigão um dos melhores
criticos de costumes da litteratura
contemporanea.
A publicação d'este formoso romance arrancou,
por uns dias a somnolenta Lisboa
ao seu indifferentismo systematico por tudo
que seja questão de lettras ou questão de
arte.
Nas salas discute-se com immenso interesse
[45]
o enredo do romance, o seu estylo, o
contraste que elle faz com as publicações
posteriores dos dois grandes artistas que o
firmam.
Marcam-se as diversas
étapes que percorreu
o espirito de ambos; e faz-se d'este
modo uma critica litteraria, bem mais facil
do que a que podia ter sido feita ha quatorze
annos, quando o livro appareceu pela
primeira vez, revelando, a quem sabe conhecer
estas coisas, dois e scriptores de raça.
Os homens, como é natural, interrogam
insidiosamente as senhoras a respeito do
que ellas pensam das duas heroinas do
livro.
Elles, já se vê, gostam todos muito da
Carmen, um typo estranho, muito menos
real que o da Condessa, mas que, ainda
assim, n'este momento em que tanto estão
attrahindo as attenções do publico as
mulheres
que matam, tem uma certa opportunidade
e uma certa verosimilhança.
A Condessa, porém, tem a sympathia
[46]
occulta das austeras e a sympathia declarada
das temerarias...
Ninguem quereria imital-a, todas a comprehendem
mais ou menos.
É uma desequilibrada, uma doente.
A paixão entrou na vida d'ella, como
entra um pé de vento n'uma casa mal abrigada.
D'ahi a revolução, d'ahi o desmoronamento.
Não nascêra para o peccado, não.
Era fina, era delicada; tinha o amor e o
desejo de todas as harmonias moraes e sociaes;
tinham-n'a educado correctamente,
convencionalmente; houve quem presumisse
na vida da pobre creatura todas as hypotheses,
menos a de um sentimento real e
sincero.
Foi esse que appareceu; que surgiu fatalmente,
chamado por uma serie de circumstancias
imprevistas; e como não poude
ser na alma d'ella o bom pão que alimenta,
foi a cicuta que empeçonha e mata!
[47]
É uma peccadora, bem sabemos, mas
emfim é uma mulher!
Cumpre-nos a nós fazer com que as
nossas filhas sejam mulheres, sem serem
peccadoras; amem, sem que o amor as diminua
e amesquinhe, antes auxilie o desenvolvimento,
são e natural, de todas as
suas forças e de todas as suas faculdades!
Se nós nos mettessemos de boa fé n'esta
empreza tão grande de pôr na vida o romance,
sem lhe pormos ao mesmo tempo o
peccado?!...
Realmente a litteratura, que é sempre o
exacto reflexo das tendencias moraes e sentimentaes
de uma dada época, está accentuando
cruelmente e demasiadamente o
principio de reacção, que em começo
foi
justo e foi racional, contra os desmandos
nebulosos do romantismo, contra a sensibilidade,
exaggerada,
lamartineana, da nossa
mocidade.
Não seria tão bom que, depois d'estas
tristes tentativas experimentaes, que os proprios
[48]
mestres vão realmente abysmando
nos lodaçaes mais torpes da palavra, do
estylo e da idéa, apparecesse emfim a litteratura
que retractasse o homem―o homem
complexo, o homem
ondoyant e
divers, tal
como o viu Montaigne, o homem bom e
mau no mesmo dia e ás vezes na mesma
hora, o homem capaz de baixezas e de heroismos,
de vicios e de abnegações insolitas,
o
homem n'uma palavra―estranho
mixto do que ha de mais bello e do que ha
de mais ignobil?!
Não teriam então os detractores da
escola
naturalista razão para dizer que ella,
sendo em principio tudo quanto os seus sacerdotes
maximos apregoam e proclamam
de scientifico, de grande e de verdadeiro,
não passa, na pratica, da escola das feias
palávras e das acções ainda mais
feias.
O verdadeiro naturalismo seria então
creado pela primeira vez, tal como Shakespeare
o presentiu no seu espirito barbaro
e sublime, tal como Balzac o realisaria se
[49]
não houvesse morrido no extazi mal definido
ainda do seu descobrimento genial!
A litteratura do nosso tempo dar-nos-hia
o homem e a mulher que nenhum outro seculo
conheceu, e sobre os quaes tem reagido,
de um modo estranho e tão difficil de analysar
completamente, a influencia da nossa
collossal e desequilibrada civilisação, feita de
tantas duvidas, de tantas affirmações, de
tantos problemas insoluveis...
Evitar o estudo das exaggerações morbidas,
dos casos
pathologicos, das
aberrações
mentaes, das enfermidades que pertencem
ao dominio da sciencia, não seria
no fim de contas o unico meio de
rehabilitar a
Arte da dependencia,
em que
ella parece querer estar, do amphitheatro
dos hospitaes, ou da enfermaria dirigida por
Charcot?
O organismo do homem moderno, na
sua complexidade maravilhosa, na enorme
e labyrinthada complicação que lhe dá
hoje o desenvolvimento do seu cerebro e
[50]
dos seus nervos, é realmente um estudo
difficilimo, um estudo que abrange todos os
outros e que exige a analyse penetrante,
fina e subtil do physiologista, a observação
larga, profunda e sympathica do philosopho,
a flexibilidade ondeante, o sopro creador
do artista de genio.
Realisar o programma imaginado pelos
mestres da arte contemporanea, é bem
menos praticavel de certo do que passar
ao lado d'elle, como elles até aqui teem feito.
É porque lhes falleceu a coragem para
essa empreza de gigantes que elles teem
convertido, a pouco e pouco, o seu
naturalismo
n'uma especie de romantismo ás
vessas.
Salvo excepções esplendidas, que são
os
milagres da moderna arte, os que d'antes
faziam anjos, fazem agora monstros! Os
que se davam ao trabalho de modelarem
as suas estatuas no gello immaculado das
alturas, amassam-n'as hoje no barro viscozo
dos lodaçaes.
[51]
E a verdade onde fica?!...
A mim parecem-me tão pouco humanas
as sylphides de Lamartine, como as femeas
inconscientes de Zola.
Entre ellas está a mulher. Porque a não
procuram? porque é que a não retratam, ou
antes, porque é que a não criam?
Esperemos que a litteratura deixe de ser
uma escola d'isto ou d'aquillo, uma reacção
contra isto ou contra aquillo. Que ella seja
serena como a verdade, e será emfim humana;
que elle nos pinte quaes nós somos,
e poderá então chamar-se natural.
É muito bom estudar as
miserias da nossa
rua, na phrase pittoresca de Eça e de
Ramalho;
mas, por Deus! parece-me demasiado
restricto esse ponto de vista!
Imagine-se que os escriptores escolheram
uma rua infeliz, uma rua povoada de remendões
e de vendedoras de peixe!...
Parece-me isso um pouco o caso de
alguns dos grandes romancistas contemporaneos!
[52]
Nunca me poderei chegar a convencer
que abrir as paginas de um livro corresponda
a ir visitar um hospital; que folhear
um romance me dará conhecimentos eguaes
aos que me daria a estatistica do
alcoolismo,
ou a de outro qualquer dos grandes vicios
modernos.
A ignorancia é, de certo, minha, que sei
pouquissimo, e que vou aprendendo cada
vez menos.
Em todo o caso, obrigada ao
Mysterio
da Estrada de Cintra, que me repousou
um pouco da
má companhia
a que os mestres
me teem habituado ultimamente.
RAMALHO
ORTIGÃO
II
A HOLLANDA
Desde que eu li a
Hollanda, e devo
ao auctor a immerecida e lisonjeira
distincção de ter podido ler um dos
primeiros volumes publicados―desde que
li d'um folego este livro, verdadeiramente
encantador, sinto em mim o desejo, quasi
que a necessidade de fallar a respeito d'elle.
Será que eu julgue auctorisada e util a
minha apreciação?
[54]
Não, decerto.
O que eu tenho é o irresistivel desejo de
conversar com esse numero mais ou menos
restricto de amigos desconhecidos, que todo
o escriptor, por modesto e humilde que seja,
tem a certeza, de possuir, ácerca d'essa obra
superiormente bella, e que, apezar d'um tanto
phantasista me parece consoladora e sã, fortificante
e boa.
Mas, se eu sentia em mim essa vontade
persistente e tenaz, porque é que a não
tenho realisado ha mais tempo?
Simplesmente pelo motivo, porque hoje
mesmo hesito em o fazer.
Ha receios, que se não vencem senão
a muito custo, tanto mais teimosos, quanto
mais prolongado foi o tempo em que os
deixamos actuar sobre o nosso espirito.
Depois ha livros
suggestivos, que
fazem
pensar; que despertam em nós um turbilhão
de idéas, de pensamentos difficeis de definir
e de fixar bem, mas que tambem nos acordam
contradicções que talvez pareçam
ousadias,
[55]
criticas que talvez o publico julgue
pouco auctorisadas e, por isso mesmo, imperfeitissimas.
Estes livros seduzem-nos, captivam-nos,
mas assustam-nos um pouco, como alguma
coisa de poeticamente concebido e realizado,
que fica para álem dos dominios reaes
em que nos sentimos á vontade. A
Hollanda
pertence a este numero de trabalhos, felizes
e perigosos, encantadores e um pouco falsos.
Parece um bom companheiro de jornada
que nos arrasta, abrindo-nos a cada instante
horizontes intellectuaes só intrevistos de
muito longe, rasgando-nos amplas janellas
para o claro espaço, despertando-nos, com
as suas observações quotidianas, um mundo
inteiro de sensações adormecidas, mas ao
pé dos quaes uma pessoa se sente desconfiada,
temendo o demasiado prestigio, de
imaginação, o optimismo excessivo do viajante...
E no emtanto não é como muitos
julgarão,
[56]
uma simples narrativa de viagem; é uma obra
de arte e de moralidade.
E n'este momento dubio e
atormentado
da nossa nacionalidade, momento que uns
julgam de irremediavel decadencia, outros
de vigoroso renascimento mental, este livro
que nos conta com a magia incomparavel,
estranha e captivante do seu estylo, a historia
d'esse pequeno povo, muito mais pequeno
do que o nosso, que á sua poderosa
força de resistencia, que á sua intemerata
energia deveu o grande papel que representa
na historia da Civilisação, este livro
d'uma factura tão magistral, affigura-se-me,
apezar dos seus pontos de vista, nem
sempre rigorosamente justos, uma obra
eminentemente e grandiosamente patriotica,
uma fecunda lição indirecta, um appello ao
que ha de mais nobre e de mais reconditamente
sagrado na alma de uma collectividade
nacional.
É sob estes diversos aspectos que elle
tem de ser julgado pela critica.
[57]
Eu, porém, não venho julgal-o, o que
seria pretenção; venho simplesmente, como
já disse, conversar a respeito da impressão
luminosa e profunda que elle deixou em
mim.
Ha muito que Ramalho Ortigão é considerado
um dos melhores criticos de costumes,
um dos melhores coloristas da moderna
arte; sabia-se que a sua faculdade
predominante, essa faculdade da qual, no
artista, todas as outras derivam, e na qual
todas as outras se filiam, era a de
ver o
aspecto exterior das coisas com uma nitidez,
uma precisão, uma minudencia e ao mesmo
tempo uma largueza de observação, que podem
chamar-se verdadeiramente geniaes.
Ora
ver em todas as suas formas
multiplas,
sob todos os seus aspectos variados,
na complexidade das suas linhas, no
relevo dos seus contornos, na harmonia
da sua côr, uma porção de arte ou uma
porção de natureza; e saber transmittir
vigorosamente,
originalmente as infinitas impressões
[58]
recebidas pelos olhos ao espirito
de quem o lê,―esta faculdade tão rara e
tão estranhamente difficil, que constitue talvez
um dom de temperamento impossivel de
adquirir-se pelo estudo ou pela vontade,
basta só por si para singularisar e caracterisar
um artista, e é esta, sem duvida, a
grande faculdade de Ramalho.
Nunca, porém, as suas qualidades de
estylo se revellaram tão largamente, a uma
luz mais ampla, mais bella, mais intensa,
do que n'este livro que em todas as litteraturas
seria justamente considerado uma obra
bella, e que hoje, na nossa, é um verdadeiro
milagre.
Na
Hollanda o paysagista, o pintor
que
fixa na tela, com realidade triumphante, as
suas impressões ainda as mais rapidas,
o coração honesto e enthusiasta, que vibra,
apaixonado, ao contacto de todos os bellos,
grandes e puros ideaes humanos; o artista
que se embriaga com os espetaculos sempre
novos da Natureza, revellam-se egualmente
[59]
com a mesma felicidade e com a mesma pujança
dominadora.
O humorismo tão singular, d'uma tão
contagiosa e communicatica influencia, que
transparece habitualmente em todos os trabalhos
de Ramalho Ortigão, esse não faz
mais do que polvilhar finamente, aqui e acolá,
com uma poeira diamantina e translucida,
as paginas d'este livro, que marca uma hora
de enternecimento dôce e de viril enthusiasmo
na vida do escriptor.
Como faz bem ao espirito desconsolado
pelo espectaculo do cynismo universal, da
indifferença dissolvente, ironica e desdenhosa,
esta nobre explosão de fecunda sympathia,
esta nota de commoção penetrante,
que se levanta, n'uma especie de impulso
heroico, convidando á lucta, convidando
ao trabalho, convidando aos gosos austeros
que dá o accordar da consciencia, e tendo
apenas a
felix culpa de exaggerar um
pouco
o bem que viu, e talvez de carregar em demasia
o mal que se presenceia diariamente
[60]
na nossa pobre patria, bem digna de melhor
sorte...
A ironia de Ramalho Ortigão, d'um relevo
poderoso, d'uma subjugadora e victoriosa
alegria, todos nós a conhecemos
desde muito.
D'essa ironia, de que chispam relampagos
multicores, fez elle a sua melhor arma
de combate, contra a tolice, contra o erro,
contra a vulgaridade, contra o ridiculo.
O que nós não sabiamos porém,
é que
elle, que pode rir assim, podia egualmente
arrancar, pela commoção communicativa da
sua palavra, em que o enternecimento põe
modulações deliciosas, lagrimas aos nossos
olhos, flores de poesia ao nosso coração.
Antes de mais nada, eu devo confessar
que o meu temperamento, a minha indole,
o feitio especial da minha imaginação, me
[61]
tornariam absolutamente inapta para comprehender
e admirar a nação hollandeza,
senão vista e descripta pelos olhos peninsulares
e pela phantasia tão eminentemente
latina, tão colorida e illuminada, de Ramalho
Ortigão.
Se eu fosse á Hollanda, voltava de lá, estou
certissima, sem ter visto coisa nenhuma
do que o illustre escriptor lá viu, a não serem,
talvez, alguns d'aquelles
primeiros
aspectos,
tão adoravelmente descriptos por
elle, e em que, mais d'uma vez, a sua ironia
deliciosa espreita sorrateiramente o leitor,
como a avisal-o de que é necessario, apesar
de tudo, contar sempre um bocadinho
com ella, de que pode estar um pouco
adormecida, levemente anesthesiada... mas
que, emfim, está muito viva, graças a Deus,
e não espera morrer tão cedo.
Cada vez me convenço mais de que ha
antagonismos de raça ineluctaveis, visto que
eu, depois de ter lido, verdadeiramente vibrante
da feliz sensação de
admirar, n'esse
[62]
prazer de intelligencia que uma bella obra
de arte nos produz, o livro de Ramalho
Ortigão, me não decidi a fazer a minha
malla, a pegar nos meus dois filhos pela
mão, e a ir viver para todo o sempre na
Haya ou em Amsterdam...
Não me decidi, não; não me decido, e
era capaz de apostar que Ramalho Ortigão,
apesar de ter voltado da Hollanda,
como incontestavelmente voltou, moralmente
fortalecido e engrandecido intellectualmente,
rico de preciosissimas acquisições
novas, que definem e accentuam
largamente o seu progresso mental, ainda
assim não deixaria, por ella, o nosso céo
azul d'uma luz tão suave, o nosso clima
amollecido e doce, a preguiçosa facilidade
com que a vida nos emballa n'este cantinho
de terra abençoado pela natureza, que
o Oceano beija, lambe e acaricia, em cujas
praias de areia dourada elle canta o seu
grandioso canto de liberdade, mas contra o
qual elle não investe em furia, obrigando
[63]
o homem á eterna resistencia, á eterna lucta,
á eterna e fatigante heroicidade...
O Oceano não foi para nós o mestre rigoroso,
severo, exigente, implacavel, que
disciplinasse a nossa alma e o nosso corpo
no exercicio permanente de uma força e de
uma tenacidade mais que humanas!
Elle imprimiu á nossa imaginação,
ondulante
e scismadora, a mysteriosa saudade
que das suas profundezas desconhecidas se
evola, com um effluvio de sonho!
Elle fez-nos os poetas de uma epopeia
rapida, os aventureiros inconstantes de uma
phantasiosa conquista.
Tambem a
griffe d'esse
leão indomado
pousou na nossa alma nacional, mas que
diverso o modo porque elle influiu em
nós!
Bem sei que moralmente valem mais,
incomparavelmente mais, as nações e os
individuos que fazem o seu destino, que o
subjugam, que o transformam, que o modificam,
que o dominam, do que aquelles
[64]
que o acceitam passivamente, n'uma inercia
inutilmente contemplativa.
Mas, sob o meu ponto de vista feminino,
que de certo não é o mais intrepido, que
melhor não é deitar-se a gente ao sol, na
areia luminosa, emquanto a vaga azul, coroada
de espumas brancas, vem espreguiçar-se
humilde aos nossos pés, vem lamber,
vencida e cariciosa, a orla dos nossos vestidos,
do que ter dia a dia, hora a hora, momento
a momento, de disputar ao
grande
inimigo torvo, mysterioso, sombrio, que uiva,
eternamente agonisante, a sua lamentação
tragica, o sólo movediço e traidor sobre o
qual construimos o nosso lar sagrado!...
É enorme, porém, bem o sei, a
lição dada
ao mundo por essa raça athletica e fleugmatica
que a natureza educou, fortificou
moralmente, e que ao mesmo tempo livrou
do erro sympathico de ser imaginativa e cogitadora
como nós.
Se ella, em vez de luctar com as temerosas
ondas, se pozesse a contemplal-as de
[65]
braços cruzados; se ella, em vez de indagar
scientificamente os meios mais proficuos
de vencer a permanente invasão das
aguas, e de as aproveitar na cultura especial
dos seus campos, se lembrasse apenas
de fazer ao mar as odes mais soberbas e
inspiradas, não existia já decerto, ou, se
existisse, não tinha nem uma só das fortes
qualidades que distinguem essa honesta,
essa trabalhadora, essa robusta, séria e pezada
Hollanda!
As nações são aquillo que as fazem as
condições do seu sólo, os phenomenos
do
seu clima, a sua structura geographica, o
temperamento e a origem da sua raça.
A Natureza, hostil, ensinou a esta o calculo,
a previdencia, a tenacidade inquebrantavel,
e tambem, deixem-me accrescentar, o
frio e arido egoismo nacional; a humida
vaporação eterna dos seus canaes e dos seus
rios deu-lhe o amor intelligente dos
interiores
confortaveis, commodos e aquecidos,
em que a Arte põe a sua nota soberba e
[66]
luminosa, ou a bonhomia intima e doce dos
seus aspectos; a lucta continua e ininterrupta
para salvar do perigo a familia perpetuamente
ameaçada, levou-a a sentir por
esta um amor mais vivo, mais profundo,
mais recatado e penetrante, ungido de protecção
enternecida e de casto embevecimento,
mas tambem um d'estes amores
absorventes que não deixam logar para a
sympathia universal, de que outras raças
são superiormente inspiradas!
Todas as virtudes e energias, todas as
bellas qualidades
humanas e
sympathicas,
de que Ramalho Ortigão nos faz no seu
livro a attrahente pintura, todos os defeitos
tão graves que não quiz vêr, mas que
existem n'ella, deve-os a raça neerlandeza
justamente a essa tensão de vontade que
ella exerce incansavelmente desde seculos,
e que tanto lhe modificou a indole primitiva.
E apesar de eu sentir que ella nos é superior
em tanta maneira, porque é que me
[67]
não resolvi ainda a ter-lhe um bocadinho
de affecto?
Não sei! É talvez um capricho de mulher,
indigno de manifestar-se á luz do dia,
irracional, como tanta cousa
feminina; mas
que eu teria escrupulo de não confessar
aqui, com intrepidez heroica.
Não é na verdadeira Hollanda―não
direi
na Hollanda em
carne e osso, mas em
agua e lodo!―que eu gostaria nunca de
viajar.
Na outra, sim. Na
Hollanda de
Ramalho
Ortigão, n'essa fulgurante e magnifica
Hollanda,
tão deliciosamente phantasista, perco-me
eu a cada instante n'um enlevo de
admiração sentida, e é das suas
paginas, coloridas
como um quadro de Rembrandt,
que eu tento dar, aos que as não leram
ainda, uma idéa, posto que imperfeita, remota,
incompletissima.
[68]
O estylo d'este livro é uma verdadeira
festa para o ouvido, e direi mesmo para os
olhos; tanto as palavras teem n'elle uma
côr, um relevo, um encanto, estranhos e indiziveis.
Ha periodos que são quadros.
Parece que o escriptor poz na sua palêta
todas as côres, na sua pintura todos
os tons, toda a luz do sol no objecto que
contemplou.
Nunca a lingua portugueza adquiriu flexibilidade
mais ondeante, energias mais dominadoras,
graça mais sinuosa e mobil, ondulações
mais serpentinas, rythmo mais
harmonioso, poder mais intenso, vitalidade
mais estranha.
Esta lingua, que modernamente poucos
operarios teem affeiçoado para as exigencias
multiplas e caprichosissimas da Arte
contemporanea, tem nas mãos de Ramalho
Ortigão umas docilidades de mulher do
Oriente, uns langores submissos de escrava
creoula, uma energia mascula, uma
limpidez matinal, uma intrepidez heroica,
[69]
um sabor vivo e são das coisas, que penetra
o leitor do mais requintado goso intellectual.
Ha todas as notas n'esta orchestração soberba.
Dir-se-hia que esta prosa tem a cadencia
melodiosa, o movimento rythmico do
verso mais cinzelado e mais perfeito, do
verso de Heine ou de Victor Hugo.
Como apropriadamente e obedientemente
ella se cinge aos milhares de assumptos
que trata e revolve! Philosophia, historia,
politica, religião, costumes domesticos, costumes
publicos, a Arte em todas as suas
manifestações, a Natureza em todos os seus
aspectos―tudo ella toca, tudo descreve e
pinta, abraça, penetra e faz comprehender.
É simples e é pittoresca; é grave,
comica
e enternecida; é apaixonada e austera;
tem a poesia meiga das coisas intimas; tem
a adjectivação opulenta das
descripções
pomposas; tem a riqueza decorativa e a
suavidade recolhida e casta; é transparente
[70]
como uma renda de Malines ou de Alençon;
é translucida como um diamante ou
como uma saphyra; é fresca e diaphana
como a neblina da madrugada; é perfumada
como um cacho de lilazes; é rendilhada
como uma joia da Renascença.
Ri, canta, chora, pinta, descreve, raciocina,
fustiga; e sempre faz pensar, acordando
dentro de nós o bando das idéas mal
definidas e informes, que dormem, como
pombas cançadas, no espirito de todo o ser
que pensa e que soffre.
Eu tenho pena de não poder arrancar
das paginas do volume alguns periodos,
alguns trechos de prosa que me ficaram
vibrando cá dentro como a melhor das musicas.
O livro abre com um capitulo de historia,
intitulado―
As origens.
Destaca-se d'elle, com uma nitidez viva
de contornos, a figura poderosa e sympathica
do grande revolucionario hollandez
Marnix de Sainte Aldegonde, a quem, juntamente
[71]
com Guilherme de Orange, o
Taciturno,
se deveu a definitiva formação e
a independencia da patria, o homem que á
frente da
Liga dos Maltrapilhos
resistiu a
Filippe II, e impelliu a Hollanda no caminho
da sua libertação nacional e religiosa, fazendo
d'este pequeno paiz, d'uma heroicidade
séria e reflectida, uma especie de vanguarda
dos exercitos revolucionarios que
conquistaram mais tarde, com tanto sangue
e tanto martyrio, a liberdade do seu governo
interno e a liberdade da sua consciencia.
Veem depois
Os primeiros aspectos, a
que eu já me referi. A
verve encantadora
de Ramalho esmalta adoravelmente algumas
d'estas paginas.
Estes
primeiros aspectos tem coisas
engraçadissimas
e que não esquecem mais.
Lembro-me de um verdadeiro drama que
podia intitular-se a
Venda de um
repolho,
passado entre uma creada de Amsterdam e
um vendedor ambulante de hortaliças, em
[72]
que a phrase, o movimento e a acção comica
são incomparaveis.
Todo o feitio de observação especial de
Ramalho se revela n'este capitulo caracteristico
e
vivido, para fallar á
moda.
Os espantos do viajante recem-chegado
são tão legitimos, nós partilhamol-os
tão do
intimo d'alma, que nos movem tambem, que
nos agitam, que nos fazem morrer a rir. É
toda uma Hollanda
ratona, que surge,
á flor
da nossa imaginação.
O escriptor estava-a então vendo com os
olhos do seu corpo. O sentimento, o raciocinio,
a admiração despertada por uma longa
serie de virtudes,―de virtudes moraes,
de virtudes civicas, de virtudes patrioticas,
de virtudes de toda a especie,―não tinha
ainda irrompido violentamente de dentro do
moralista que ha em Ramalho, tornando-o
cego para todos os ridiculos, surdo para
todas as notas discordantes. E os quadros
succedem-se com uma vivacidade triumphadora,
e a gente segue-os espantada do poder
[73]
de realidade palpavel, que uma penna,
correndo sobre uma folha de papel, pode
ás vezes attingir.
Pouco a pouco, os olhos namoram-se da
estranhesa imprevista de todos aquelles aspectos.
O artista entrega-se inteiramente á
novidade, á graça especial e desusada de
que elles lhe apparecem impregnados; a curiosidade
do espirito, eminentemente observador,
acorda, atrahida por tantas revelações
subitas d'um modo de vêr, de viver, de
sentir, tão diverso do que elle conhece
desde a infancia; e então o pintor, abstrahindo
de comparações, de philosophias, de
ideas complexas, que lhe transtornariam a
limpidez perfeita do seu apparelho optico,
pega da palêta, põe n'ella as côres mais
finas,
mais ideaes, mais delicadas, d'um esbatido
mais doce, d'uma suavidade mais penetrante,
d'uma fulguração mais radiosa e
mais deslumbradora, e começa a pintar, á luz
do céo da Hollanda, aquosa e esmaecida,
as raças, as physionomias, os trajos, as figuras
[74]
que destacam n'um meio pittoresco e caracteristico,
os grupos que passam enlaçados,
essa festiva, essa apparatosa procissão
d'um povo em festa!
Vejam, por exemplo, este fragmento
d'uma pagina consagrada ás mulheres da
Frisa, que fica cantando no ouvido, como a
estranha musica em que se fundem todas
as graças melodicas de uma lingua opulentissima.
«As mulheres da Friza são de um encanto
estranho. Muito altas, direitas, serias, caminham
todas―as mais humildes, as mais
obscuras―com uma magestade simples de
princezas, e teem nas maneiras uma graça
altiva, casta, ondulante e fria, que lembra a
origem aquatica que se lhes attribue, como
filhas de antigas sereias do Mar do Norte.
Os pés estreitos, as mãos longas e afiladas,
o pescoço alto, o busto vigoroso, o vestido
preto, que todas usam, liso, cingido ao
corpo, comprido, de mangas justas e curtas,
completam a expressão eminentemente aristocratica
[75]
d'estas figuras sacerdotaes de uma
belleza quasi sagrada, como a dos marmores
classicos da esculptura antiga.
«O toucado frisão de uma retrospectividade
bysantina, envolvendo-lhes a cabeça
em rendas e em placas d'oiro polido, imprime-lhes
uma feição cultual, uma vaga analogia
de sacrario e de altar. O tradiccional
capacete, casco d'oiro em duas peças, semelhantes
na forma a uma dupla cobertura
destinada aos dois hemispherios do cerebro,
cobre-lhes inteiramente o craneo; escondendo
o cabello com uma austeridade
guerreira, deixando apenas desvestido o espaço
da fronte e o alto da cabeça envolto
em renda branca. Algumas d'estas physionomias
de donzellas são inteiramente insexuaes,
de grandes olhos suaves, o rosto do
mais correcto oval, o nariz longo e fino, a
boca cortada n'um traço recto, innocente e
calmo, sem vestigio algum do movimento
e qualquer musculo em que vibrasse a malicia,
o apetite ou o desdem, bellezas de uma
[76]
serenidade gothica, não contaminadas pela
nevrose dos seculos da analyse, errantes
n'uma especie de somnambulismo nostalgico
e anachronico, entre as paixões modernas,
taes como os poetas contemporaneos
poderiam apenas imaginal-as, brancas
e frias, coroadas de boninas, com um livro
na mão, esculpidas em alabastro e deitadas
sobre um tumulo feudal, ou de escapulario
de monjas, com a cabeça aureolada por um
disco de luz, n'uma vidraçaria de cathedral
entre as companheiras de Santa Ursula.»
Momentos antes―vejam o contraste!―Ramalho
referindo-se á extravagante meticulosidade
do aceio hollandez, tinha-nos
feito, com a riqueza de vocabulario mais
atroadora, uma descripção de todas as vassouras,
espanadores, utensilios de limpeza
que são indispensaveis ao mais humilde dos
ménages,
descripção que deve ficar positivamente
como um modelo do genero!
É assombroso todo este capitulo, d'uma
[77]
variedade de kaleidoscopo, ao mesmo
tempo comico e pathetico, enternecido e
alegre, pittoresco e philosophico, fazendo
desfilar deante do nosso deslumbrado olhar,
n'um delicioso capricho de magica, todas as
scenas, todos os quadros, todas as visões e
todas as idéas!
Nos
Campos e Aldeias está
na sua verdadeira
especialidade o paysagista, o pintor,
o homem que sabe vêr melhor tudo o que
vê.
Eu, por exemplo, ia aos campos da Hollanda,
e sahia de lá com a impressão indefinida,
confusa e tristonha, de ter visto uma
enorme planicie chata e verde,―um gigantesco
prato de espinafres―sem accidentes
de terreno, sem caprichos imprevistos
de scenario, com muitos moinhos a cercarem-n'a
e muitos rêgos de agua mais ou
menos largos, mais ou menos profundos a
desenharem por toda ella os seus xadrezes,
d'onde se levantam, de madrugada e ao
pôr do sol, humidas vaporações
insalubres.
[78]
Ramalho Ortigão vê e faz-nos vêr, pelo
encanto magico da sua penna que é um
pincel, tudo que alli viram de vago e simples,
de indefinido e penetrante, de terno
e de melancolico, os grandes artistas hollandezes,
os mestres incontestados e inexcediveis
de toda a moderna escola de paisagem.
E o seu estylo opulento pinta as metamorphoses,
as variações infinitas d'essa luz,
as colorações prysmaticas d'esse ceu cheio
de neblinas transparentes, as decomposições
phantasticas das nuvens, a admiravel riqueza
sintillante e tremelusente que os espelhamentos
do sol põem nos lagos tranquillos
e nos lympidos canaes, as harmonias
do tom, as gradações infinitas do eterno
verde, a calma doçura tranquilla,―tudo emfim
que aos seus grandes amigos sinceros
e eloquentes a velha natureza inspira, em
todas as suas apparencias multiplas, em
todas as suas transfigurações multiformes.
Ha n'este capitulo uma comparação entre
[79]
a velha barca hollandeza, que elle chama
o
phantasma benigno da patria, a
aquatica
alma
errante do paiz,―essa barca
onde o
hollandez navega paxorrentamente, levando
comsigo a mulher, a pequenada, o gato, o
cão e os passaros―e a nossa pittoresca e
extincta falua do Tejo e do Douro, que me
pareceu verdadeiramente encantadora.
E ainda aqui―que a Hollanda me perdoe!―eu
prefiro a nossa falua, a nossa
alegre falua, que a civilisação afugentou e
inutilisou, essa falua onde tudo era pittorescamente
meridional, e onde o arraes
contava historias picarescas que faziam rir
os passageiros, e lhes aligeiravam as horas
de longa jornada, feita sem commodos de
especie alguma, mas com luz, mas com sol,
mas com a farta alegria da natureza a envolver
e a illuminar por dentro a alma de
uma pessoa.
A mim, valha a verdade, não me seduz
muito nem a barca nem a falua, a não ser
como ornato decorativo da paisagem. Mal
[80]
por mal, em todo o caso, antes a falua, por
que essa ao menos é animada e palreira,
jocosamente expansiva!
Nas
Cidades hollandezas, de um luxo
tão
intelligente, de uma riqueza tão racionalmente
distribuida, em que a arte accumula
os seus thesouros, a beneficencia as suas
admiraveis instituições, a solida e bem entendida
civilisação as suas escolas, as suas
universidades, os seus institutos, os seus
lyceus, as suas bibliothecas e museus, os
seus jardins botanicos e de acclimação, os
seus estabelecimentos de instrucção, de
sciencia, de caridade, de commercio, de industria
e de recreio, n'essas
Cidades em
que se condensa toda a vida intellectual da
livre e laboriosa Hollanda, a alma do escriptor,
tão moderno nas suas aspirações e
nos seus ideaes, dilatou-se n'um impulso de
robusta e fecundante alegria! Vê-se que
elle admira aqui, sem esforço, sem idéa reservada
ou preconcebida, a enorme expansão
moral, mental, economica e artistica,
[81]
d'este povo que merece um logar de honra
incontestavel entre os povos modernos da
Europa, d'este povo que, depois de crear
pelo trabalho incessante, a sua riqueza
enorme, fez d'ella um elemento de civilisação,
de moralisação, de desenvolvimento
nacional, de felicidade e de paz interior.
A pintura feita pelo brilhante escriptor
de todas as instituições, pela existencia das
quaes a Hollanda affirma a sua extraordinaria
superioridade, como nação educada,
como nação caridosa, como
nação artistica,―é
de fazer chorar de tristeza, de desalento
e de inveja todo o portuguez que tenha um
bocadinho de coração.
Comparar o que nós fazemos com o que
esse povo tem feito, horrorisa!
Mas por doer, a lição nem por isso deixa
de ser proficua.
Agradeçamos a quem nos aponta implacavelmente,
serenamente, o pouco que nós
somos ante a Civilisação, ante o moderno
Ideal, e o muito que precizamos caminhar,
[82]
para merecermos o nome a que ouzada e
immerecidamente aspiramos.
Não é quem nos emballa e adormece
com lisonjas banaes, tão mentirosas quanto
inuteis, que é nosso amigo, e nos presta
um leal serviço.
Ramalho Ortigão com este livro, que é
um exemplo e um castigo, que é um incentivo,
que é um grito de alarme lançado
em meio da nossa preguiça, da nossa indolencia,
da nossa empavezada e burgueza
vaidade, fez, como eu já disse, mais do que
uma obra bella, fez uma obra boa, de que
nos cumpre aproveitar a utilidade immensa.
No meio das paginas inteiramente consagradas
pelo auctor á descripção e
á enumeração
de todas as coisas feitas pela raça
neerlandeza em favor do seu proprio engrandecimento,
e da sua propria illustração,
paginas que parecem escriptas por um Taine
com entranhas e com alma, Ramalho interrompe-se
por momentos, e n'uma lingua
idylica e harmoniosa, n'uma lingua em que
[83]
ha eccos de Shakespeare e visões de Ariosto,
n'uma lingua que parece feita de gotas de
luar e de raios do sol, de aromas indefinidos,
de vagas scintillações fatuas, de
vibrações
de harpa eolia occulta entre os salgueiros,
faz-nos a pintura palpitante, luminosa, musical,
colorida, da
Floresta da Haya,
d'esse
bosque sagrado que elle julga proprio para
abrigar, na sombra estranha e dôce da sua
densa ramaria mysteriosa, os amores profundos
e tragicos, as sublimes paixões heroicas
da lenda e da historia, o somno esquecido
e calmo dos grandes deuses mortos,
os divinos dialogos ardentes que os poetas
puzeram na bocca dos seus amantes immortaes.
As
casas e os
individuos revellam-nos a
delicada e fina efflorescencia que brota naturalmente
do ideal religioso, moral, politico
e artistico da raça hollandeza. Tal é o
paiz, tal a familia.
Esta é sempre o reflexo do modo de
sentir e pensar collectivo; e nunca á
nação
[84]
moralisada e instruida, livre, conscia e sabedora
dos seus direitos e dos seus deveres,
correspondeu outra coisa que não fosse a
familia fortemente constituida, vivendo na
ordem e no equilibrio dos sentimentos e
das faculdades.
N'este ponto são bem mais felizes as
nações
protestantes, as raças saxonia e germanica,
do que a nossa raça latina tão profundamente
eivada da mais esterilisadora
decadencia.
É que n'essas raças não existe
tão profundamente
accentuado o divorcio religioso
entre o homem e a mulher; ahi, como
frisantemente o faz notar o escriptor da
Hollanda, embora, mais tarde, no seu
livro
de
John Bull se contradiga n'este
ponto,
a religião é o
facto culminante
da familia.
A sagrada communhão do espirito existe
entre todos os membros da mesma familia,
entre todos os que se reunem, penetrados
de affecto, ternamente aconchegados em
torno do mesmo lar.
[85]
O chefe de familia tem, por assim dizer, a
direcção espiritual de todos os seus; e elles
acceitam livremente essa lei religiosa que
lhes foi ensinada, d'um modo tendente a
desenvolvel-os, não a amesquinhal-os e a
a entenebrecel-os para sempre.
D'aqui provém a logica simples e sympathica
de todos os seus actos e sentimentos.
O drama deixa de existir como elemento
natural da nossa alma e da nossa imaginação.
O peccado não tem as mesmas excitações
sensuaes, o cumprimento do dever é
alguma coisa de mais serio, de mais sagrado
e de menos complicado e contradictorio
do que nos paizes catholicos, onde o
padre, orgão da lei divina, ordena em geral
o contrario do que o marido, orgão da lei
social, exige e faz cumprir; onde a alma feminina
vive entre a satisfação do desejo e
os ardores do arrependimento, sempre oscillante,
sempre inquieta, no eterno desiquilibrio,
e na eterna vacillação enfraquecedora
entre o bem e o mal, entre a culpa
[86]
e a penitencia, entre o pequenino goso irritante
de desobedecer, e o extase soluçante
do confissionario, onde tudo se lava e se
perdoa...
Ramalho Ortigão deixa entrever tudo isto
sem o accentuar demasiadamente, limitando-se
a fazer-nos entrar com elle em dois
ou tres
interiores que se lhe
franquearam,
e que elle pôde observar com a sua poderosa
faculdade critica.
São adoraveis de bondade simples, de
feliz contentamento, de paz serena e doce,
estes interiores hollandezes, e ainda aqui,
perante a superioridade da nação que estamos
estudando, a nossa consciencia se curva
humilhada, e a nossa alma se penetra de
salutar inveja.
Todavia não nos deixemos ir completamente
atraz do enthusiasmo, que tenta avassallar-nos
diante d'estes quadros d'uma felicidade
sem sombras, d'uma perfeição sem
macula.
As paginas do humorista hollandez Dowes
[87]
Slekker, que Ramalho cita,―talvez movido
pelo remorso, que no fim de contas o punge
de admirar sempre, de admirar incondicionalmente,―as
paginas em que aquelle escriptor,
mais na intimidade do seu paiz,
da sua raça e do seu meio, do que o viajante
que passa impressionado simplesmente pela
seducção dos aspectos exteriores, escalpelliza
duramente, e ferozmente os ridiculos
e os vicios dos seus concidadãos, essas dão-nos
a certesa consoladora ou cruel, consoante
o ponto de vista em que nos collocarmos,
de que a absoluta perfeição humana
não é mais que um sonho radioso em que
se entretem por momentos a nossa ambiciosa
phantasia.
Em toda a parte a burguesia enriquecida
e triumphante―e onde é ella mais triumphante
e mais enriquecida que na Hollanda?!―hade
ter os mesmos vicios, o mesmo
egoismo desolador, a mesma ultrajante prerogativa
de gosar, esquecida de todos os
que soffrem!
[88]
Nas
colonias, a fóra a
parte technica,
util pelas informações, pelos factos e pelos
documentos de comparação que fornece
aos competentes, o que a mim me
agradou como artista foi a pintura da Batavia,
foi essa invasão luxuosa e violenta da
vida dos tropicos, da sua paisagem, da sua
flora e da sua fauna; do ar feito de chammas,
da vegetação monstruosa, da implacavel,
soberba, subjugadora e invencivel natureza
d'esses climas de mortifero encanto!
O ultimo capitulo da Hollanda intitula-se
A Arte, e assim devia ser.
E pela arte que esse paiz tem principalmente
direito a viver, venerado e querido,
no espirito dos que pensam, e na alma dos
que sentem. A arte é o disco luminoso que
o cerca, é o nimbo em que elle nos apparece
idealisado e engrandecido. A arte é a
coroa suprema da sua realesa.
E depois a patria de Rembrandt e de
Franz Halz justifica e faz comprehender a
apotheose, o hymno de admiração enternecida
[89]
que é este livro, elle proprio uma obra
de arte, muito mais do que uma obra de
critica.
Ninguem estava no caso de apreciar e de
sentir melhor a arte hollandeza,―essa arte
que teve, como nenhuma, a perfeição do detalhe
na harmonia do conjuncto, a nota
exacta na comprehensão larga,―do que Ramalho
Ortigão, o escriptor que, no seu processo,
realisa tão adoravelmente a formula
naturalista d'essa inspirativa e grande escola,
ante a qual os modernos se sentem
ultrapassados e excedidos.
Pontos de vista notaveis, observações
finas, analyse penetrante do assumpto, intuição
maravilhosa de todos os segredos da
arte―eis o capitulo que remata soberbamente
este bello livro, d'um largo folego,
d'uma ampla e serena inspiração.
O assumpto arrastou-me. Fui mais extensa
do que tencionava, e ha n'esta critica
um
não sei quê
audacioso na contradicção
que a mim propria me espanta.
[90]
Julgarão os leitores menos benevolos que
eu me arrogo os direitos de critica em assumptos
de viagem e de arte que me são
quasi extranhos.
E, no emtanto, no silencio do paiz, em
face dos que tentam levantal-o trabalhando,
ha uma desconsolação tão intima
para a alma do escriptor, que a minha
voz, por obscura que seja, tem, n'esta mudez
geral, uma nota de sinceridade, uma
aspiração de justiça, uma
intenção de applauso,
merecedôra d'uma certa indulgencia.
Não me arrependo de fallar, visto que se
callam tantos que tinham direito de applaudir
em alto e bom som.
Concluindo, repito o que já disse no principio
do meu defeituosissimo esboço critico.
Porque será que, apezar de tanta virtude
sympathica e de tão nobre e levantado
ideal, a Hollanda me impõe admiração
sem
me inspirar ternura absolutamente nenhuma?!
É porque sou meridional de mais para
[91]
comprehender essa raça persistente, fria,
fleugmatica e pesada, incapaz de expansão,
incapaz de altruismo generoso, incapaz do
dilettantismo intelligente, que eu tanto
aprecio nos individuos e nas nações!
O que a elles, os bons hollandezes, lhes
falta para me seduzirem, é a
pontinha de
febre, o grão de loucura, a chamma iriada
e multicor que nós, a velha raça gasta nas
exaltações e nos sobresaltos convulsos da
nevrose que nos exhauriu a seiva, conservamos
ainda na velhice que nos prostra...
á sombra dos loureiros de outr'ora!
Elles teem a virtude e a força que dão a
serena placidez, nós temos a agitação
eterna
e dilaceradora, á custa da qual se compram
os requintados supplicios e as delicias de
uma volupia morbida.
Nós conhecemos todos os martyrios, mas
tambem todos os inebriantes gosos que dá
a Imaginação. Nós buscamos na
Dôr a suprema
voluptuosidade sagrada, com que
ella exalta e unge os seus dilectos, e não a
[92]
trocamos pelas calmas e tranquillas alegrias
d'essa boa gente pacata, pachorrenta, reflectida,
egoista e séria, para quem a vida
é um grato dever, para quem as scismas,
as contemplações, as duvidas, os terrores
phantasticos, são um accessorio inteiramente
inutil, para quem o mysterioso
alem-tumulo,
que nos irrita e nos perturba, e nos
chama, e nos allucina, e nos enche os labios
de ironias blasphemas, e a alma de anciosas
e ardentes interrogações, é uma
certeza
firme, accentuada, perfeitamente em regra,
como um ramo de escripturação commercial?.....
O incognoscivel, que é a enorme região
sombria, onde a nossa mente divaga attonita
e deslumbrada, a elles nem os afflige,
nem os preoccupa!
São felizes, no positivismo chato das suas
ideias e das suas occupações! Nós
somos
os eternos mergulhadores do sonho, os
eternos amantes da Visão! São felizes,
nós
somos loucos! mas eu amo a loucura com
[93]
intermittencias geniaes, esta loucura com
fecundos arrojos rapidos e apaixonadas ancias
de um bem desconhecido, que escala
o céu como o Prometheo do mytho hellenico,
ou que se atira ao inferno, como o
poeta que resume em si toda a sombria
Edade Média!...
RAMALHO ORTIGÃO
III
AS FARPAS
Tenho aqui, na meza em que escrevo,
deliciosamente cartonado, o
primeiro
volume da nova e augmentadissima
edição das
Farpas.
Não entram n'este volume, que é todo
de paysagens, aspectos maritimos ou campestres,
scenas ruraes, costumes de aldeia
ou de borda d'agua, de estações thermaes
ou de pequenas villas provincianas―nenhum
[96]
dos assumptos das
antigas
Farpas.
Este volume é portanto inteiramente novo
para nós, e não é tardia nem
inopportuna
a opinião da Critica a respeito d'elle.
Basta ter enumerado os capitulos que
o compõem para se comprehender que o
livro é delicioso. Não ha em Portugal quem,
como Ramalho Ortigão, saiba
vêr e saiba
transladar para a sua prosa o
aspecto
exterior
das cousas.
Para descrever uma paysagem, para pintar
uma
marinha, para nos dar a
impressão
nitida, precisa e firme, de um ou de muitos
objectos, para desenhar, a traços inimitaveis
de exactidão ou de pittoresco, a
sillouette
d'um monumento archeologico ou o
fouillis encantador d'um
salão moderno, é
verdadeiramente incomparavel este escriptor,
e não ha plasticidade egual á do seu
estylo, em que á riqueza do colorido e á
vida intensa se reune a technologia mais
variada em todas as especialidades, fixando
na encantador d'um
salão moderno, é
verdadeiramente incomparavel este escriptor,
e não ha plasticidade egual á do seu
estylo, em que á riqueza do colorido e á
vida intensa se reune a technologia mais
variada em todas as especialidades, fixando
na memoria e no olhar a physionomia viva
[97]
e real das cousas que elle pretende fazer-nos
vêr.
Não é um psychologo, não é
um devaneador.
É raro que elle se perca por um instante
n'essa «floresta de almas», em que só
vagueiam
os apaixonados prescrutadores do
invizivel, os sedentos de inacessivel Ideal,
os interrogadores sombrios do eterno abysmo
humano!
Elle, mais simples e mais são, prefere as
largas estradas batidas de sol, em que a
luz é intensa e fulgurante, em que as arvores
parecem uma renda phantastica polvilhada
de scentelhas d'oiro. Em quasi todas
as organisações artisticas d'este fim de seculo,
n'aquellas principalmente em que imperam
a sensibilidade e a imaginação, ha
um fundo de morbidez visionaria, uma tristeza
indefenivel e inquieta, uma ironia dolorosa
e triste, um desejo insaciavel de penetrar
o impenetravel enyma do n
Elle, mais simples e mais são, prefere as
largas estradas batidas de sol, em que a
luz é intensa e fulgurante, em que as arvores
parecem uma renda phantastica polvilhada
de scentelhas d'oiro. Em quasi todas
as organisações artisticas d'este fim de seculo,
n'aquellas principalmente em que imperam
a sensibilidade e a imaginação, ha
um fundo de morbidez visionaria, uma tristeza
indefenivel e inquieta, uma ironia dolorosa
e triste, um desejo insaciavel de penetrar
o impenetravel enyma do nosso
destino...
[98]
Ramalho Ortigão foge muito de preposito
d'essas regiões vaporosas em que a flor
azul do sonho desabroxa, a um luar doentio,
as suas petalas ideiaes.
Robusto, equilibrado e são, ha n'elle um
forte temperamento de artista, mas de artista
que no seculo XVI teria podido desenvolver
e exercer amplamente todas as suas
faculdades, satisfazer o seu gosto do pittoresco,
o seu amor do luxo, a sua preferencia
pelas bellas coisas decorativas e espectaculosas.
Na Vida o que o interessa mais que tudo,
é o colorido, a variedade, o brilhantismo, a
graça, a correcção, a harmonia dos
seus
multiplos aspectos e das suas diversas
formas.
A côr e a linha―eis os elementos que
lhe bastam para a felicidade dos seus olhos,
para as delicias da sua imaginação, para as
necessidades do seu temperamento de artista!
Viajar muito, vêr muito, e pintar tudo o
[99]
que vio, n'um estylo de colorista veneziano,
com uma penna que é, ao mesmo tempo,
escopro e pincel―eis a faculdade predominante
d'este escriptor que, só errando
a brilhante vocação que recebeu da Natureza,
póde perder-se de vez em quando
em abstracções philosophicas, sempre confusas,
e em sabbatinas pedagogicas, sempre
contrafeitas.
Elle não é um philosopho nem um educador
das sociedades; é um artista! Abençoado
quinhão o seu, incontestavelmente o melhor
de quantos na terra se podem escolher!
Para demonstrar n'elle a superioridade
do colorista, do pintor, sobre o philosopho
e o critico, bastaria este volume de viajante,
illuminado das mais bellas e radiantes paysagens,
em que os aspectos ruraes, as
marinhas,
as scenas campestres, os quadros
de aldeia se succedem, alegrando-nos a
vista como um kaleidoscopo deslumbrador.
E eu não quero com isto dizer que Ramalho
Ortigão, não seja um critico. Mas a
[100]
sua critica, quando é superior, quando é frisante
e verdadeira, é quando elle a executa
pelo mesmo processo magistral de que usa
nos seus livros descriptivos.
Então sim, porque a licção ressalta
naturalmente
do aspecto exterior das cousas.
A
toilette d'uma lisboeta
aperaltada; a
mobilia aprumada e symetrica d'uma casa
burgueza; a sessão d'uma assembléa
constitucional;
o interior d'uma botica sertaneja;
a apparencia d'uma egreja de cidade
em dia de festa, etc., etc., etc., dão-nos a
impressão directa e viva dos sentimentos,
que todas estas cousas traduzem ou com os
quaes todas estas cousas se relacionam.
Pelos
puffs exaggerados, pelos altos
tacões
dos sapatos esticadissimos, pelo chapeu
inesthetico, pelo espartilho ridiculamente
apertado, por todos estes deploraveis symptomas
d'uma imbecilidade que já vem de
muito longe, comprehende-se tudo que o
escriptor nos quer demonstrar: falta de
educação, falta de gosto, falta de modelos
[101]
artisticos, pressão secular de influencias deleterias
e funestas.
Pela regularidade fria e systematica d'um
interior de burguez, que nenhuma
scentelha
de arte espiritualisa ou illumina, percebe-se
naturalmente a comprehensão acanhada e
restricta que elle tem da vida e do encanto
profundo e moralisador da intimidade domestica;
vê-se a inaptidão artistica que o
afflige, a impossibilidade absoluta e fundamental
em que elle está de crear uma existencia,
praticamente agradavel e espiritualmente
feliz, em que se fundam, n'um
accordo sympathico, as exigencias requintadas
da civilisação e as
satisfações mais
puras da vida moral.
E por aqui diante, o mesmo processo
de arte dá para a intelligencia os mesmos
resultados.
É este o segredo que individualisa Ramalho
Ortigão e que faz com que sendo elle
um artista plastico, por assim me expressar,
seja igualmente um notavel moralista.
[102]
É indispensavel porém que o leitor tire
dos quadros a moralidade que d'elles deriva!
N'uma
advertencia muito bem feita
que
precede o livro, Ramalho Ortigão diz que
as
Farpas, são escriptas
n'um espirito de
dilettantismo emancipador e
desinteressado
e pelo que vi n'um artigo lido hoje mesmo,
a palavra dilettantismo não foi tomada pelo
critico na accepção que o escriptor lhe
dera; não é pois fora de proposito, que
eu aqui explique um pouco ao leitor, qual
o
dilettantismo de que Ramalho
Ortigão se diz
inspirado ao traçar os
capitulos
bellissimos das suas novas
Farpas.
No conflicto enorme, desordenado e confuso
de theorias, de systemas, de doutrinas
e de hypotheses, em que o seculo XIX tem
[103]
baralhado os seus desgraçados filhos, cada
questão tem tantas faces, cada phenomeno
é contemplado sob uma tal multiplicidade
de pontos de vista, cada verdade é tão ondeante,
elastica e malleavel, cada doutrina
tem tantos aspectos, cada theoria apresenta
tal somma de
nuances, que se vae
pouco a
pouco perdendo, nas altas regiões do pensamento,
aquella especie de homens de
uma peça só, systematicos até
á teima, fanaticos
até á heroicidade, obstinados até
ao pyrrhonismo, que de cada ideia só viam
um angulo, que julgavam que a verdade era
só uma, e não podia ser encarada por diversos
modos!
Esses homens, fanaticos, no sentido mais
amplo da palavra, tinham uma fé ardente
n'aquillo em que tinham fé! uma paixão
profunda pela ideia que serviam, e por isso,
arcando com obstaculos terriveis, que nós
já não conhecemos, obraram grandes feitos
de que nós já somos incapazes!
Em philosophia, em religião, em moral,
[104]
ou em politica, estes homens iam para
diante, altivos, intemeratos, um pouco obcecados
pela sua crença no absoluto, mas
por isto mesmo inacessiveis ás mil influencias
que neutralisam a vontade moderna, e
sem perigo de cederem ás correntes contrarias
que hoje sollicitam, de tão diversos
pontos, o pensamento que quer ser imparcial,
o desejo de verdade que quer ser sincero!
Em contraposição a estes homens capazes
d'um só amor e d'um só odio, surdos ás
vozes
todas que contradissessem o
á
priori
do seu sonho, existe hoje uma raça mais
doente e mais fraca talvez, mas sympathica
na sua indecisão, e perfeitamente moderna
no capricho ondeante da sua sensibilidade!
E é a esses que inspira e dirige o espirito
de dilettantismo de que falla Ramalho
Ortigão.
Diz pouco mais ou menos Bourget, o
systematisador moderno do dilettantismo,
fallando de Renan o mais genuino
dilletante
[105]
de quantos se conhecem modernamente, que
é mais facil perceber esta palavra do que
definil-a com precisão.
E accrescenta: «é menos uma doutrina
que uma disposição de espirito a um tempo
muito intelligente e muito voluptuosa, que
nos inclina simultaneamente para as diversas
formas da vida e nos leva a emprestarmo-nos,
ora a uma ora a outra d'estas fórmas,
sem nos darmos inteiramente a nenhuma
d'ellas.»
Dilettantismo e doutrinarismo―eis os
dois polos do pensamento do homem!
O espirito de systema tende a desapparecer
da elaboração mental d'este seculo, e
á proporção que elle affrouxa
desenvolve-se
e cresce essa extranha faculdade―que faz
uma especie de Proteo de cada entendimento,
e que tomando a vida como uma
illusão universal que ora se faz ora se desfaz,
ora se tece a oiro e perolas, ora se destrama,
phantasticamente, substituindo a
nudez
mais completa á opulencia mais asiatica,
[106]
acha a verdade d'um momento em
cada fórma passageira que encontra debaixo
dos olhos.
Comprehendendo d'esta fórma o
dilettantismo
acha-se uma faculdade superior, um
dom que póde multiplicar os gosos intellectuaes
pela multiplicidade de pontos de vista
que nos revella. Não encontro, porém, no
volume das Farpas que tenho presente, a
applicação d'essa faculdade, eminentemente
subjectiva.
O que eu encontro e saudo n'elle é a obra
d'um artista para quem a lingua portugueza
é o instrumento mais docil e o teclado
mais vasto e mais sonoro, e em
quem a
visão das cousas
é tão violenta e
tão intensa que possue o milagre de communicar
aos outros a sua privilegiada lucidez.
ANTHERO DE
QUENTAL
I
OS SONETOS
Não ha, talvez, em toda a litteratura
portugueza uma individualidade
mais distincta, mais original,
mais
á parte, que a
d'este homem.
Não é simplesmente como escriptor, como
litterato, como
auctor de livros,
que Anthero
de Quental tem de ser considerado.
Para bem estudar esta figura singular,
para a vêr á luz que lhe é propria,
para a
[108]
comprehender sob todos os seus aspectos
varios, é indispensavel alguma coisa mais
do que a faculdade critica, applicada á litteratura,
é necessaria a comprehensão profunda
e clara de todas as causas que determinam
esta phase,―de certo transitoria,
de certo temporaria―de
nihilismo
mental,
em que se debatem os artistas mais vibrateis
e delicados, as almas mais sensiveis
e morbidamente agitadas d'este fim de seculo,
a um tempo tragico e banal.
Como podia eu, pois, conseguir o que
imagino que só conseguiria um critico no
genero especial de Bourget, por exemplo,
um critico que recebe as influencias germanicas
e as transmitte, modificadas pela sua
imaginação e pela sua rasão latinas;
um critico
cosmopolita e capaz de comprehender
todos os estados d'alma e todas as faculdades
caracteristicas das mais diversas raças?
A critica tem acompanhado o movimento
progressivo das sciencias, e tem-se modificado
e transfigurado ao influxo d'ellas.
[109]
Sem fallarmos nos criticos da Allemanha,
muito menos accessiveis para nós e muito
menos comprehendidos por nós, sigamos
a evolução ascendente que a critica litteraria
tem tido em França, e veremos
como ella se tornou hoje uma sciencia
completa, para a qual forneceram dados,
elementos, observações e experiencias todos
os ramos do saber humano, cada dia
mais amplo.
Que longe nós estamos d'aquella boa critica,
modesta e facil, em que a obra de arte
era simplesmente julgada segundo as regras
formuladas por Aristoteles, em que o
livro, o drama, o poema se consideraram
perfeitos ou defeituosos, conforme se cingiam
aos preceitos da rhetorica e da poetica
consagradas, ou se afastavam indevidamente
d'elles!
Diderot teve no seculo XVIII, a maravilhosa
intuição do que poderia vir a ser a
critica; essa intuição, vaga ainda, illumina,
todavia, de luz inesperada as suas formosas
[110]
improvisações, os seus devaneios scintillantes
de
verve sobre a arte do seu tempo.
Villemain, mais tarde, afastando-se de
todos os que pretendiam arrogar-se em face
do escriptor os direitos de bons criticos, e
que não conseguiam ser mais do que rhetoricos
importunos, relaciona pela primeira
vez as litteraturas com os outros productos
sociaes d'uma dada epoca; faz perceber as
reciprocas influencias, que actuam em raças
diversas e transformam lentamente uma civilisação
determinada; mostra claramente,
no seu estylo de erudito ainda subjugado
pelos moldes classicos, o extraordinario poder
com que as lettras imperam na politica,
e a politica nas lettras, e o modo indirecto,
mas poderoso, pelo qual a arte se torna um
elemento de revolução, e da
revolução
surge e se levanta uma nova arte; revela,
emfim, a força que as idéas teem sobre a
acção, e a ineluctavel energia com que a
acção limita ou modifica o imperio das
idéas...
[111]
Sainte Beuve, adoptando muitos dos
pontos de vista de Villemain, accrescenta-lhes
tudo que póde tornar este methodo
mais vivo, mais luminoso, mais humano,
tudo o que póde dar movimento e graça ao
corpo um tanto inteiriçado e hirto do eloquente
professor do
Curso de litteratura.
A critica de Sainte Beuve é uma
creação!
Na obra d'arte vê a época em que ella
surge e o homem que a produziu. A anedocta
elucidativa, o commentario suggestivo,
o estudo minucioso do caracter do escriptor,
o meio em que elle se moveu, a influencia
directa, ou indirecta, que esse meio
exerceu em todas as circumstancias caracteristicas
da sua vida e no seu modo particular
de encarar as coisas e os homens,―tudo
concorre para esclarecer o critico eminente,
a tudo dá relevo e côr o seu estylo
fino, flexivel, todo em cambiantes, todo em
linhas flexuosas, que penetra o assumpto,
que o segue nos seus meandros mais caprichosos,
nos seus labyrinthos mais emmaranhados,
[112]
que se cinge a elle nas suas ondulações
mais particulares, que o illumina de
todos os lados e por todas as formas; malleavel,
sagaz, levemente sceptico, inimigo
sempre do absoluto de todas as doutrinas,
do dogmatismo de todas as formulas.
O grande critico da nossa raça n'este
seculo é com toda a certeza Sainte Beuve.
Os que vieram depois d'elle, deram a formula
mathematica, precisa, da doutrina que
elle praticára e descobrira com uma ligeireza,
uma elegancia, um gosto nunca mais
realisados.
Taine acceitando a herança de Sainte
Beuve, foi alem do que elle era, um naturalista
que levou para os estudos d'arte o
seu forte methodo scientifico, que verifica,
prova, experimenta e conclue depois. A
isso deve o ser considerado e com justiça
o mestre da nossa geração. Taine póde
ter
discipulos, Sainte Beuve
Taine acceitando a herança de Sainte
Beuve, foi alem do que elle era, um naturalista
que levou para os estudos d'arte o
seu forte methodo scientifico, que verifica,
prova, experimenta e conclue depois. A
isso deve o ser considerado e com justiça
o mestre da nossa geração. Taine póde
ter
discipulos, Sainte Beuve podia ter apenas
admiradores. A litteratura aos olhos de
Taine é, como tudo o mais, um producto
[113]
fatal da raça, do meio, do momento, modificado
n'este ou n'aquelle sentido, mas modificado
apenas, pelo temperamento particular
do artista.
A ordem, o equilibrio, a harmonia que
existe em toda a natureza, achou-as elle na
esphera do pensamento humano, n'esse
grande mundo da arte que falsamente nos
parecia caprichoso, cahotico, arbitrario, sem
leis que o dominassem, sem causas a que
estivesse fatalmente subordinado.
Comprehende-se bem como este ponto
de vista―que outros tinham achado, mas
que elle formulou scientificamente―revolucionasse
a noção da critica, e lhe desse, ao
mesmo tempo, harmonia, amplitude e grandeza.
D'este modo vê-se bem que em cada
livro que lêmos, em cada obra por meio da
qual um forte temperamento de artista, ou
um grande cerebro de pensador se nos manifesta,
está como que indicada a gradação
successiva de todas as civilisações que,
justapondo-se
[114]
umas ás outras e desdobrando-se
umas das outras, produziram o momento
historico, a phase sentimental ou intellectual
de que esse livro é involuntariamente
echo, repercussão e reflexo.
A lei que liga estreitamente entre si
todos os phenomenos da Vida, que explica
o encadeamento fatal de todas as manifesções
do pensamento, ninguem a formulou
com mais lucidez e mais clareza do que
Taine. Cada escriptor é o que não póde
deixar de ser, dada a hora em que a sua
obra se produziu, dados os elementos sociaes
que concorreram para a elaboração
d'ella, dadas as qualidades fundamentaes e
irreductiveis da raça a que elle pertence,
dada a organisação particular, que, em virtude
de todas estas leis e de outras leis
egualmente ineluctaveis, elle recebeu da
natureza.
Shakspeare, por exemplo, esse colosso
que nós julgámos por muito tempo a
creação
espontanea e maravilhosa, que um
decreto
[115]
nominativo do Eterno fizera surgir
n'uma idade semi-barbara, apparece, na
obra de Taine, naturalmente, no logar que
lhe é proprio e que lhe estava necessariamente
destinado, de um modo que nada
tem de surprehendente ou de imprevisto.
Todo o movimento politico, litterario, social
da Renascença ingleza vem rematar
harmoniosamente em Shakspeare, sem esforço,
sem salto inexplicado, sem arbitrariedade
do Destino, sem que no espirito do
leitor, que estuda o quadro complexo e extraordinariamente
poderoso da vida intellectual
da Inglaterra, este grande nome,
universalmente acclamado, produza o espanto,
a sensação do imprevisto, o abalo e
o sobresalto de uma apparição sobrehumana!
Vista a evolução do pensamento a esta
luz viva e fecundante, como tudo se explica
e harmonisa, como tudo se ordena magnificamente,
como os effeitos derivam naturalmente
das suas causas superiores, como
[116]
é bella essa admiravel ascensão das trevas
para a luz, do cahos para a suprema harmonia!
Entre todos os obreiros maravilhosos
que em França a critica moderna tem tido
ao seu serviço, nenhum, porém, existiu nunca
que melhor podesse explicar, illuminar,
tornar accessivel a todos a obra de Anthero
do Quental, como esse a que me referi ha
pouco: o auctor, aos meus olhos adoravel,
dos
Ensaios de Psychologia
Contemporanea.
Em Bourget sente-se, como em Anthero,
visivelmente e fortemente, a influencia da
Allemanha. Discipulo de Schopenhauer, foi
elle―talvez inconscientemente seduzido―quem
tornou Schopenhauer intelligivel á
França, e popular ou, pelo menos, conhecidissimo
em França. Mas o
pessimismo, que
no philosopho de Francfort é doutrina, foi
Bourget encontral-o como
sentimento
em
muitos dos artistas mais delicados e mais
queridos do nosso tempo, n'aquelles de
[117]
quem uma geração inteira bebe a
inspiração
e acceita o ideal.
Bourget desceu ao fundo da alma contemporanea
e achou lá, ora visivel como
um jazigo a descoberto, ora occulta como
um filão inexplorado, esta dolorosa
aspiração
ao
não ser em que
virão, talvez, cruelmente
e anti-naturalmente, a abortar todos
os sonhos radiosos e extranhamente grandes
que a humanidade concebeu, que a
sciencia tem tratado tenazmente de realisar,
e que a arte devia ter a gloriosa, sublime
e util missão de traduzir!...
Seria pois Bourget quem melhor do que
ninguem faria comprehender até aos mais
profanos, e aos menos dados ás sublimes
abstracções do espirito, o livro eminentemente
moderno, e extranhamente doloroso
e contradictorio de Anthero do Quental. A
lingua em que nós escrevemos e fallamos
não a conhecem porém lá fora, e este
livro
que em toda a parte seria criticado e discutido
como um symptoma mental, caractetistico
[118]
do nosso tempo, fica sem echo, a
não ser entre alguns delicados d'entre nós,
a quem estas questões interessam a titulo
de curiosidade litteraria.
[119]
II
A mim, se me faltam, como já disse, muitos
dos predicados exigidos para analysar e
estudar a obra, tão profundamente pessoal,
do auctor dos
sonetos,
não me falta comtudo,
para lhe comprehender a alma agitada e
sacudida por tantas idéas que se combatem
entre si, produzindo uma tragica lucta interior,
o que n'este caso supre vantajosamente
a sciencia e a critica: refiro-me á
minha alma de mulher, contradictoria tambem,
tambem fluctuante, e que não foi corrigida
nem mutilada pela necessidade fatal
da acção, pela despotica lei social que impelle
o homem a pronunciar-se n'um sentido
definido, a caminhar para um fim determinado,
a
comprometter, por assim dizer, as
[120]
suas opiniões e as suas crenças, dando-lhes
uma forma precisa e limitada, encerrando-as
n'uma esphera positiva e restricta.
N'este ponto Anthero de Quental guardou,
a par das qualidades poderosas e creadoras
de um espirito viril, a plena independencia
mental que é talvez a maior felicidade da
mulher, quando a mulher―o que é raro―a
sabe aproveitar no enriquecimento, na
ampliação e na cultura do seu mundo interior.
Está portanto ahi o ponto delicado e
subtil em que nos encontramos.
O livro dos
Sonetos, que para mim
vale
muitissimo como obra de arte e de poesia,
vale principalmente como documento psychologico,
como
notação
sincera, espontanea,
feita dia a dia, de sensações requintadas,
como confissão d'uma alma que,―nas
suas dôres imaginarias ou reaes, nas suas
ardentes aspirações d'um espiritualismo doloroso,
nas suas duvidas desnorteadoras
diante de todos os problemas insoluveis da
[121]
Vida, no seu desejo dilacerante d'um absoluto
impossivel, nas suas anciosas interrogações
em face do incognoscivel eterno,
nos seus gritos melodiosos de apaixonada
tristeza e de amargura revoltada―condensa,
representa, synthetisa em si o estado sentimental
de todo um mundo, o mundo a que
nós pertencemos.
O vago mal-estar que fez chorar tão
docemente Lamartine, e que sacudiu violenta
e dolorosamente os nervos de Musset,
definiu-se nos seus symptomas, revelou-se
aspera e positivamente nos seus mais accentuados
caracteres.
Nós não ignoramos o mal de que soffremos
e porque soffremos.
Não foi impunemente, e sem que um medonho
e forte abalo se produzisse nos espiritos
e nas consciencias, que a sciencia,
implacavel e tranquilla, despovoou os ceus,
destruiu na nossa alma, ambiciosa e soffredora,
o sonho da triumphante immortalidade,
fez do mundo, que julgavamos centro e eixo
[122]
do Universo este humilde grão de areia que
hoje gravita subordinado e dependente nas
amplidões infinitas do espaço; não foi
sem
dilacerar as fibras mais intimas do nosso
orgulho que a biologia, arrancando aos
abysmos do tempo o segredo da primeira
scentelha da Vida que animou este planeta,
nos demonstrou o que nós eramos no fim
de contas, nós que nos julgavamos os filhos
dilectos do Creador!
Se a sciencia exulta, se os seus apostolos
continuam tranquillos e convencidos
a trabalhar para a completa libertação
d'esse escravo d'outras eras, que é o triumphador
maximo de hoje, se o progresso
caminha, se a civilisação se requinta, se a
materialidade do goso attingiu quasi os
limites do ideal, quantos corações, em
compensação
de tanta grandeza, não ficariam
esmagados e desfeitos em sangue sob as
rodas de fogo d'esse carro de triumpho,
que leva a humanidade, cega de orgulho, á
conquista da sua apotheose final!...
[123]
A extraordinaria revolução scientifica e
social, que faz do nosso seculo uma quadra
sem precedentes na historia, se trouxe a
tantos a felicidade, a libertação, a victoria,
se deu ás massas o goso de regalias ignoradas,
se nivelou as castas, se diminuiu a
miseria, se combateu muitos males visiveis,
muitas injustiças flagrantes, se teve, emfim,
nos seus aspectos geraes e nas suas linhas
grandiosas, resultados soberbos, que ninguem
contesta e que todos aproveitam, não
podia comtudo, deixar de repercutir-se de
um modo violento e profundo, dilacerante ás
vezes, outras vezes entontecedor, em certas
almas impressionaveis, em certos espiritos
delicados, em certas organisações doentiamente
accessiveis!...
Que importa, dirão, se a felicidade do
maior numero exige o sacrificio desses
poucos!
Sim, não importa que elles soffram; o
que não obsta a que, ainda mesmo aos
mais fortes, inspirem a mais irresistivel
[124]
sympathia esses corações ardentes, essas
almas visionarias, que a sêde invencivel da
sciencia leva a beberem do seu amargo
licôr, e que em vez de acharem n'elle a
robustez, a certeza fortificante, a saude
mental, cáem prostrados por uma dolorosa
ebriedade,―iniciados que dariam tudo para
ignorar, curiosos e complicados espiritos
que anceiam debalde por se salvarem pela
simplicidade e pela innocencia, a cujo seio
nunca mais,
nunca mais,
poderão retroceder...
[125]
III
É perfeitamente esta dôr terrivel, que
só é dada a alguns eleitos da sensibilidade,
esta dôr sem consolo que tem de os perseguir
implacavelmente até á morte, e que
póde achar calmantes e anesthezicos, mas
nunca uma cura decisiva, que Anthero de
Quental exprime dolorosa e magnificamente
n'estes
Sonetos que, para o
grosso
publico, hão de parecer apenas os
devaneios
de um phantasista, senão as mysteriosas
locubrações de um allucinado e de
um nevrotico.
Oh! felizes dos
simples, porque
elles não
conhecem esta dôr dilacerante de duvidar,
esta ancia amarga de saber, esta inquieta
curiosidade de prescrutar todos os mysterios,
[126]
de sondar todos os recessos sombrios
do pensamento! Felizes dos simples, porque
elles não voltam d'essas regiões terriveis,
d'esses circulos dantescos, empallidecidos,
cançados, mortalmente tristes, sem
coração
para amar, sem força para viver, sem incentivo
para a lucta, sem alimento para
as ambições banaes e limitadas d'este
mundo.
E, no entanto, maldizendo as dôres de
que a razão lhe foi origem, Anthero de
Quental não pode amaldiçoar essa faculdade
superior, comprada á custa de taes
agonias, mas que lhe tem dado―goso
contradictorio e extranho!―o austero orgulho
dos que sabem!...
Razão, velha de olhar agudo e frio
E de halito mortal, mais do que a peste!
Pelo beijo de gello que me deste,
Fada negra, bemdita sejas tu!
Bemdita sejas tu pela agonia
E o lucto funeral d'aquella hora
[127]
Em que eu vi baquear quanto se adora,
Vi de que noite é feita a luz do dia!
Pelo pranto e as torturas bemfazejas
Do desengano... pela paz austera
D'um morto coração que nada espera
Nem deseja tambem... bemdita sejas!...
Muitos perguntam,―e, no seu ponto
de vista racional e practico, perguntam
com razão―a que se deve a reclusão
quasi absoluta, o abandono de todos os
interesses positivos, a inacção voluntaria,
que tão estranhamente caracterisam esse
pensador, esse critico, esse poeta, chamado
Anthero de Quental.
Quando pela primeira vez os echos d'este
nome repercutiram na sociedade portugueza,
foi como um som bellicoso e guerreiro
que se ouviu, sobresaltando os possuidores
consagrados da realeza litteraria
d'esse tempo.
Anthero de Quental era, na somnolenta,
monotona e convencional
coterie
litteraria
[128]
de ha vinte annos, considerado um iconoclasta,
atrevido e sacrilego, que vinha sem
dó derrubar os velhos idolos, atirar por
terra as reputações consagradas, levantar
uma vermelha bandeira revoltosa em meio
da serena paz, que os bons e pachorrentos
mestres do classicismo academico faziam
reinar entre todos os portuguezes... que os
não liam!
Na politica Anthero tinha a ousadia, então
quasi criminosa, de se proclamar socialista;
em philosophia era um pantheista, em
cuja bella imaginação, colorida e meridional,
as sublimes hypotheses de Hegel exerciam
uma acção dominadora; em litteratura, elle
trazia todas as novas idéas hoje conhecidas
e generalisadas, então quasi inteiramente
ignoradas por nós, que la fóra tinham
desthronado o romantismo, e produzido a
grande evolução naturalista agora triumphante.
Anthero de Quental era pois um revolucionario,
um innovador; estava-lhe destinado
[129]
um d'estes papeis que n'uma litteratura
e n'um paiz são o maior titulo de gloria,
que ao pensamento e ao trabalho de um
homem é dado alcançar: o de iniciador, de
percursor, de
porta-estandarte de
uma Idéa
civilisadora e grande!
Porque não realisou elle estas promessas
de luctador e de artista infatigavel?
A esta pergunta, que se apresenta naturalmente
diante de todos os espiritos, responde
este livro. Vamos pois vêr de que
modo.
[130]
IV
Para mim―e talvez que eu n'este ponto
e em mais alguns me tenha afastado do espirito
com que Oliveira Martins, o notavel
escriptor e o amigo fiel e terno e quasi
fanatico de Anthero escreve as palavras
que servem de prefacio aos magnificos versos
do poeta―para mim o que prostrou
Anthero de Quental n'aquelle extase vago
e contemplativo, de que os seus ultimos
sonetos são a mais
completa expressão, foi
justamente o
excesso do pensamento,
o abuso
da analyse, a que elle se entregou, prematuramente,
no periodo mais activo e mais
arrojado da vida do homem, quando geralmente
este emprega todos os recursos da
sua energia para se fazer no mundo um
[131]
grande logar, onde tenha espaço que baste
á envergadura das suas ambições.
Pensou
de mais, quiz conhecer e
sondar
e penetrar
de mais as theorias
extravagantes
ou grandiosas, desconsoladoras ou sublimes,
phantasticas em todo o caso, com que a
Humanidade tenta, desde que existe, explicar
a si mesma o mysterio da sua existencia.
São raras as almas em que se trava sériamente,
tragicamente, este combate com a
Verdade! Procural-a e possuil-a foi o sublime
fim a que a alma d'este poeta, tão
moço ainda, se entregou completamente.
Mas a nós homens não é dado achar a
Verdade!
Por isso Anthero foi vencido na sua lucta
soberba, por isso foi contraproducente o
seu trabalho heroico, e, prostado, abalado
até ás mais fundas raizes do seu sêr,
por
tantas contradições, que o cingiam como as
lianas tenazes de uma floresta virgem, por
tantas duvidas que estendiam sobre elle a
[132]
sombra escura dos seus ramos venenosos,
por tantas hypotheses que se desmentiam
aos seus olhos penetrantes, por tantos sonhos
vertiginosos que o entonteciam e embriagavam,
pela inextricavel vegetação, gigantesca
e confusa, de tantas idéas, sob as
quaes o nosso seculo está litteralmente
esmagado,―elle, o pensador sincero, a
alma enamorada da Verdade e da Justiça
eterna, o idealista incorrigivel que o mysterioso
au delá captiva e chama,
apezar da
negação feroz dos racionalistas e da
indifferença
systematica do positivismo, elle achou
que o unico refugio, no meio d'este cahos,
que o unico descanso no meio d'este combate
em que a vida quasi se lhe esvaía,
seria o de uma inacção contemplativa, de
um renunciamento mystico, de uma especie
de
bhudismo mental que nos seus
versos se
reflecte ás vezes em harmonias ineffaveis,
em cantos resignados e immortaes!...
[133]
Mas, para chegar a esta estação ultima
de uma longa Via Dolorosa, de que tempestades
enormes, de que dramas convulsos
não foi theatro a alma d'este poeta, que
viveu a sua poesia antes de a ter
feito!...
Aspirou á felicidade como toda a gente,
mas a felicidade a que elle aspirava é que
não era a
de toda a
gente, e por isso a procurou
de balde! É provavel que partisse,
como todos os que são moços, com as suas
grandes
botas de sete leguas
á conquista
d'esse
Velo de ouro, que se chama
amor ou
que se chama gloria; mas que desalentos o
fizeram parar absorto e esquecido de tudo,
nos recantos melancolicos ou nos desfiladeiros
sombrios do seu caminho imaginario!...
E é a historia d'essa viagem terrivel que
estes
sonetos nos contam; por isso
elles hão
[134]
de interessar tanto os que pensam e sentem,
e n'uma esphera, embora menos ampla,
soffreram e luctaram tambem!
Foi n'uma das suas horas de tristeza sem
consolo que elle escreveu estes versos, cuja
vibração
sonora e longa se repercute para
além das paginas do livro, por esse espaço
fóra...
Porque a noite é a imagem da Verdade
Que está além das coisas transitorias,
Das paixões e das formas illusorias,
Onde sómente ha dôr e falsidade...
Mas tu, radiante luz, luz gloriosa,
De que és symbolo tu? do eterno engano,
Que envolve o mundo e o coração humano,
Em rede de mil malhas mysteriosa!
Symbolo, sim, da universal traição
D'uma promessa sempre renovada
E sempre e eternamente perjurada,
Tu, mãe da Vida, e mãe da Illusão...
..................................................
..................................................
De que são feitos os mais bellos dias?
De combates, de queixas, de terrores!
[135]
De que são feitos? De illusões, de
dôres,
De miserias, de magoas, e agonias!
O sol, inexoravel semeador.
Sem jamais se cançar, percorre o espaço,
E em borbotões lhe jorram do regaço
As sementes innumeras da Dôr!
Oh! como cresce sob a luz ardente
A seara maldita! Como freme
Sob os ventos da vida, e como geme
N'um sussurro monotono e plangente!
Não pode a revolta d'um coração ferido
pelas injustiças sangrentas da vida exprimir-se
com mais desesperada e mais apaixonada
eloquencia!...
Se a vida é isto―e é isto quasi sempre
aos olhos do poeta dos
Sonetos,―para
que luctar, para que trabalhar, para que
[136]
arrastar eternamenre ao alto da montanha,
aspera de tojos bravos, o enorme rochedo
que eternamente rolará pelos seus flancos
duros ao abysmo fundo onde de novo
o homem tem de ir buscal-o, para novamente
procurar com elle o pincaro escalvado
d'onde cahiu?! D'aqui ao profundo
nihilismo
em que Anthero tem de ir dar é,
longo o caminho, mas é logico e está claramente
indicado...
Sob o ponto de vista pratico e razoavel,
este livro, tão profundamente espiritualista,
é um livro, no fim de contas, desconsolador;
se a obra de Anthero fosse comprehendida
por todos, teria um alcance funesto para o
espirito humano! O sonho da perfeição que
o inspira, leva-o a uma comprehensão da
existencia erronea e perigosissima! Incompleta
como é, a vida exige de nós todos,
como um dever sagrado, que appliquemos
a resolver-lhe os problemas, a vencer-lhe
as luctas dolorosas, a cumprir-lhe os asperos
deveres, toda a energia das nossas faculdades,
[137]
toda a abnegação dos nossos sacrificios,
todo o vigor da nossa vontade, todo
o amor do nosso coração, todo o poder de
sympathia de que a nossa alma dispõe. Não
tem desculpa os que desdenhosos e inactivos,
cruzam os braços, indifferentes aos triumphos
do Mal desde que perderam a esperança
de fazer do Bem o rei absoluto da
creação.
Mas, feitas estas restricções que a consciencia
me está impondo, a verdade é que
não ha no bello livro de Anthero, tão pessoal
e tão
vivido nem um
estado de alma
que a minha alma não comprehenda e não
justifique.
E que diversidade de sentimentos, e que
mundo, complexo e vago, de emoções cambiantes!
É um devoto da Virgem, de um mysticismo
doce como o dos monges primitivos?
É um triste e incrédulo filho d'este seculo
sem Deus? É um metaphysico perdido no
seu sonho nebuloso e desconnexo? É um
[138]
espiritualista que protesta com todas as revoltas
da sua consciencia e todas as lagrimas
do seu coração contra o materialismo
que ameaça fazer retroceder este mundo a
um estado de brutal immoralidade e de
goso sensual nunca saciado? É um pensador
que, conhecendo todas as theorias philosophicas
que explicam o ser, a todas domina
e a todas dá a forma sentimental e poetica
de que ellas carecem para serem comprehendidas
pelos profanos da sciencia, e pelos
diletantti do pensamento?...
É tudo isto, sem ser nada d'isto; porque
é tudo isto em momentos que passam, e que,
ao passarem, fixam a fugitiva imagem n'uma
lamina argentea, emmoldurada em esmaltes
vivos, em cinzeladuras rendilhadas, em delicados
e artisticos florões.
Mas―e é este o supremo merecimento
d'este livro―é tudo isto sinceramente, espontaneamente,
sem
pose, sem artificio, sem
estudo previo!
[139]
Anthero não é um acrobata da rhetorica,
não é um prestidigitador de imagens faceis,
é um coração que soffre, é
uma alma que
se impressiona, é um cerebro que vibra, é
um
sincero que põe toda a
potencia das
faculdades em cada rapida modalidade do
seu complexo sêr!
Querem vêr como elle proclama, n'uma
dolorosa amargura a
inanidade final de
todo o esforço humano?
Em vão luctamos! Como nevoa baça
A incerteza das cousas nos envolve;
Nossa alma, emquanto cria, emquanto volve
Nas suas proprias rêdes se embaraça.
O pensamento que mil planos traça,
É vapor que se esvae, e se dissolve,
E a vontade ambiciosa que resolve
Como onda entre rochedos se espedaça.
[140]
Filhos do amor, nossa alma é como um hymno
Á luz, á liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor d'um pressentir divino...
Mas n'um deserto só, arido e fundo,
Echoam nossas vozes que o Destino
Paira mudo e impassivel sobre o mundo!
Contradictorio? sim; mas verdadeiro!
Para mim os que nunca se contradizem
são, em geral, os que mentem sempre.
Os sinceros são alcunhados de incoherentes
pelas pessoas
sérias e
graves que
fazem a
opinião publica,
quer dizer, que
criam esse absurdo enorme, feito de convenções
falsissimas, sempre aprumado na
sua immobilidade estupida e na sua monotonia
secular...
[141]
V
É-me absolutamente impossivel, e nem
com esse intento se compadece a indole
d'este rapido esboço critico, fixar aqui completamente
a physionomia litteraria, tão expressiva
e tão complexa de Anthero de
Quental.
De resto, eu escrevo apenas para os que
leram e apreciaram o poeta, para aquelles
que se sentiram mais impressionados diante
das suas contradicções, tão humanas,
tão
genialmente sinceras!
Pois qual é o homem verdadeiramente
digno d'este nome, que nunca sentiu dentro
da sua alma o terrivel embate de mil pensamentos
dolorosamente hostis?!
[142]
O mais sceptico dos filhos d'este seculo
sente palpitar ás vezes, no fundo intimo
do seu coração, o dôce
coração piedoso
e crente da mãe querida, da velha avó,
que outr'ora foi levar á sombra austera do
templo, ao altar onde o Homem-Deus sorri
resignado e triste, o holocausto de todas
as suas tentações e de todos os seus amores;
assim como o mais piedoso de entre
nós, nem sempre logra fugir á
acção dissolvente
do scepticismo universal, que vai
crescendo, crescendo, como uma maré de
perdição...
Entre estes dois pólos do pensamento
humano, quantas gradações, quantos cambiantes,
quantos modos complicados ou
morbidos de pensar e de sentir!...
Se só é completo e grande o que os
comprehender a todos,―que desgraçado
não será o que a todos experimente!
Por isso o nosso poeta exclama, n'um
impeto de dôr sincera e tragica:
[143]
Ouve tu, meu cançado
coração,
O que te diz a voz da Natureza
―«Mais te valera, nú e sem defeza,
Ter nascido em asperrima soidão!
Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel deveza,
Do que embalar-te a Fada da Belleza
Como embalou, no berço da Illusão!
Mais valera á tua alma visionaria,
Silenciosa e triste, ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba varia.
(Sem ver uma só flôr das mil que amaste)
Com odio, raiva e dôr... que ter sonhado
Os sonhos ideaes que tu sonhaste!...
Pouco a pouco, porém, por uma especie
de lenta gradação, com retrocessos fugitivos,
a alma de Anthero do Quental, cançada
de sonhar, de aspirar, de desejar em
[144]
vão, vae-se iniciando n'essa paz suprema a
que os sectarios do velho Bhuda indico
chamaram o
nirvana!
O
nirvana é uma especie
de renunciamento
da alma que nada espera, e que, fóra
da esperança, achou a tranquillidade beatifica
do
não-ser.
Schopenhauer não fez mais do que pôr
em moldes novos a palavra mil vezes secular
do antigo sabio:
«A virtude, diz Bhuda, consiste em nos
desinteressarmos de tudo que é sensivel.»
«Liberto de todo o cuidado da acção, o
verdadeiro crente queda-se tranquillamente
sentado na cidade das nove portas, sem de
nada cuidar, e sem aconselhar aos outros a
acção.»
«D'entre os meus servos, aquelle a quem
mais quero é o que tiver coração
benevolo
para toda a natureza, não temendo os homens,
nem sendo por elles temido.
Apraz-me
tambem o que houver renunciado inteiramente
[145]
á esperança, e o que
não se abalance
a nenhuma empreza humana,»
Toda a desgraça do homem, continua
ainda o philosopho da velha India, é attribuir
ás coisas d'este mundo duração,
permanencia,
e realidade.
«O mundo é uma illusão
immensa.»
Não desejemos, para não soffrermos.
Não
amemos, para nos não prendermos ao que
é illusorio e passageiro. Não
esperemos, e,
n'esse
renunciamento absoluto
(principio da
moral bhudica, e fim da philosophia Schopenhaureana),
encontraremos a paz, quer dizer,
a extincção de todo o desejo, a morte de
toda a sensação, o desprendimento de
nós
mesmos e da Vida universal.
N'esta doutrina tão velha, que o espirito
germanico remoçou e como que adaptou
ás complicações extraordinarias e
imprevistas
da vida moderna, acolhe-se adoravelmente
o poeta em muitas das suas horas
de desalento e de cançasso.
[146]
Envolve-te em ti mesma, oh alma triste!
Talvez sem esperança haja ventura!
E n'outro soneto:
Na floresta dos sonhos, dia a dia,
Se interna meu dorido pensamento,
Nas regiões do vago esquecimento
Me conduz, passo a passo, a phantasia.
Atravesso no escuro a nevoa fria
D'um mundo extranho, que povôa o vento,
E meu queixoso e incerto sentimento
Só das visões da noite se confia.
Que mysticos desejos me enlouquecem?
Do Nirvana os abysmos apparecem
A meus olhos, na muda immensidade.
N'esta viagem pelo ermo espaço
Só busco o teu encontro e o teu abraço,
Morte! irmã do Amor e da Verdade!
Ó poeta,―eu, uma pobre mulher condemnada,
pelas leis fataes da physiologia e
pelas leis logicas da sociedade, á
inacção
[147]
completa, não posso deixar de protestar
contra essa paz egoista, em que o teu coração
pretende affundar-se!
O
bhudismo comprehende-se n'essa
India,
corroida pelo odio das castas, e na qual o
homem se sentia esmagado e vencido pela
implacavel Natureza, devoradora e cruel,
de uma exuberancia que escorria venenos!
Comprehende-se o
bhudismo no tempo
em que a fatalidade das coisas subjugava o
homem, o ultimo que chegara ao banquete
da vida, e que chegára desarmado, predestinado
á sua lucta de seculos, á sua lucta
sublime, á lucta de titan, em que elle começa
apenas a ser vencedor!
Mas imagine-se por um momento o
bhudismo
triumphante, alastrando pelo mundo
inteiro a sua doutrina de inerte contemplação,
de extase inutil e vago!
O que seria hoje o mundo?!...
Não, o Homem não se deixou vencer;
em vão o convidaram á preguiça,
á covarde
resignação, ao renunciamento esteril as
religiões
[148]
fatalistas e a Natureza hostil e inviolada
ainda!
Elle resistiu!
E, desarmado, escorrendo sangue de
todos os póros da sua torturada carne,
perdido na escuridão profunda d'essa tenebrosa
noite, que é o passado, ora seduzido
pelas sereias enganosas que tentaram perdel-o,
ora asphyxiado sob o pezo de barbaras
e anti-naturaes doutrinas que o mutilavam,
soffrendo sempre, luctando sempre,
sacrificando-se sempre, trabalhando como
escravo, guerreando como heroe, pregando
como apostolo, immolando-se como martyr,
escalando o céu como Prometheu, encarando
intrepidamente, e face a face, os mysterios e
os dogmas, furando as entranhas da terra
cheia de pavores, ascendendo á região dos
astros cheia de deslumbramentos, sondando
os oceanos sem fim, resignado e tenaz, revoltoso,
indomito, terrivel, mas sempre com
olhos fitos no ideal, que pouco a pouco se ia
desvendando, que a pouco a pouco se ia tornando
[149]
definitivo e claro, elle chegou emfim
a fazer da Natureza, seu algoz, a Natureza,
sua escrava, e, das chymeras de hontem,
as verdades libertadoras de amanhã!
E caminha ainda, não descançou por ora
o heroico viajante, avido de mais dôres,
avido de mais sacrificios, avido de mais
combates!
Caminha não sabemos para onde, mas
decerto para onde haja mais luz, mas decerto
para onde a alma tenha mais liberdade
o espirito tenha mais amplo espaço e a consciencia,
a inviolavel consciencia, a garantia
sagrada de mais direitos!
E tudo isto sentiu, n'uma das suas horas
boas, Anthero do Quental quando escreve
este soneto suggestivo de heroicos impetos
e de ambições sublimes:
Conquista pois sósinho o teu futuro,
Já que os celestes guias te hão deixado
Sobre uma terra ignota abandonado,
Homem = proscripto rei = mendigo escuro!
[150]
Se não tens que esperar do ceu (tão
puro,
Mas tão cruel!), e o coração maguado
Sentes já de illusões desenganado,
Das illusões do antigo amor perjuro:
Ergue-te então na magestade estoica
D'uma vontade solitaria e altiva,
N'um esforço supremo de alma heroica
Faze um templo dos muros da cadeia
Prendendo a immensidade eterna e viva
No circulo de luz da tua Idea!
Oh! como isto é mais bello do que a derrota
confessada do pensador que se refugia
no pessimismo, achando no pessimismo uma
solução, quando elle não é
mais que um estado
transitorio da alma contemporanea,
um dos symptomas mais
caracteristicos
da
doença de vontade, de que mais ou menos
hoje estamos―ainda mal!―todos
contaminados!
[151]
VI
Chegando ao termo d'este trabalho percebo
que ha n'elle, além dos mil defeitos que
outros lhe notarão, uma lacuna enorme que
eu propria reconheço.
Tentando explicar o pensador, eu não
tenho dado ao poeta o merecido relevo que
elle tem; quero dizer, o pensamento d'estes
sonetos tem-me ás vezes
feito esquecer a belleza
singular da sua forma artistica! Parece
que o soneto, pelos moldes precisos e rigorosos
em que se vaza, seria o menos proprio
dos generos de poesia para fixar, em formosa
esculptura, as abstracções metaphysicas
em que o genio de Anthero
do Quental
se compraz principalmente.
[152]
Porque este poeta não é como H. Heine,
apezar de tantas similhanças que os aproximam,
apesar de serem a negação e a
duxida
as muzas principaes da sua inspiração,
e de ambos representarem, sob uma fórma
de grande arte, este periodo de transição
entre as velhas crenças e as novas
convicções do espirito, que a analyse paciente
e complicada está elaborando ainda.
O poeta allemão tem a impressão directa
das coisas, e é n'ellas, e não nas
idéas, que
elle distingue a linha comica, a contradicção
irreductivel, a impassibilidade perfeita diante
das velhas theorias que decahem e agonisam;
Anthero do Quental eleva essas dôres
á abstracção suprema do seu espirito,
a
uma especie de metaphysica imaginosa e
vaga, que pareceria impossivel a um temperamento
peninsular aquecido pelo nosso
sol, vivificado pelo nosso clima, cingido no
circulo, impressionador e ardente, dos seus
horisontes de ouro e de fogo. A sua poesia
é como o reflexo fluctuante, caprichoso e
[153]
indeciso, das contradicções, das amarguras,
das tristezas e dos sonhos do nosso tempo;
ella canta a dôr de toda uma geração
que
a si propria se estuda, sonda e interroga,
e sendo profundamente pessoal, como é,
repercute-se e vibra todavia em muitas almas
egualmente angustiadas e vacillantes.
Não tendo, pois, antecedentes da mesma
especie, foi-lhe necessario crear, dentro da
velha fórma consagrada, uma forma nova; e
d'esta difficuldade sahiu-se admiravelmente
Anthero de Quental. Os seus sonetos trazem
a marca do auctor; não se confundem com
nenhuns outros. Muitas vezes tem de sacrificar
a melodia do verso á extensão e ao vigor
do pensamento; n'esse caso não hesita, e o
pensador vence n'elle o poeta.
De todos os poetas que eu conheço ha
um que Anthero me lembra muitas vezes. É
Sully Prudhomme. Mas devo accrescentar
que a individualidade accentuada de Anthero
escapa incolume a toda a comparação
e a todo o confronto.
[154]
Já ouvi, não me recordo n'este momento
a quem, que o livro dos
Sonetos
lembra
tambem em muitos pontos o
Diario de
Amiel. É que realmente estas duas obras,
diversissimas entre si, filiam-se na mesma
necessidade inteiramente moderna que o
homem sente de auscultar-se, de conhecer-se,
e de fazer a si proprio innumeras
perguntas.
A antiguidade não tinha este prurido de
penetração psychologica; por isso a antiguidade
foi feliz, radiosa, activa e sã.
Comtudo, dado o nosso gosto pronunciado
para este genero de estudos, ainda
bem que Anthero escreve, e que Amiel escreveu.
Se o primeiro não tivesse cantado
muitos dos seus adoraveis e extranhos sonetos,
se o segundo não tivesse
notado, momento
a momento, os cambiantes de uma
alma tão extraordinariamente e tão morbidamente
complicada, perder-se-hiam documentos
inapreciaveis para o estudo completo
da alma contemporanea.
[155]
Amiel, que, emquanto viveu, foi obscuro
e desconhecido, e que, morto, inspirou a
muitos dos mais subtis moralistas modernos,
taes como Renan, Caro, Bourget, etc., estudos
minuciosos e delicados, soffria, como
Anthero, de um excesso de
vida
interior,
origem de desiquilibrios dolorosos. A solidão,
em que Anthero vive e em que viveu
Amiel, aggrava este estado, fazendo-o degenerar,
de riqueza fecunda e rara, que
pode ser, na perigosa doença que a
élite do
nosso tempo soffre com raras excepções: o
enfraquecimento progressivo nos orgãos que
determinam a acção e predispõem para o
combate.
Para este mal, o remedio efficaz e supremo
seria o contacto de outros espiritos,
o attricto com outras intelligencias hostis
ou apenas finamente e subtilmente criticas,
porque se a convivencia com os homens nos
faz perder a independencia absoluta do espirito,
ou a originalidade profunda dos que
não vão na corrente da opinião geral,
nem
[156]
tão pouco navegam contra ella―o que é
ainda um modo de a considerar―é claro
que, em compensação, ella nos torna mais
aguerridos para a lucta, mais tenazes nos
nossos propositos e mais vivos nas nossas
ambições.
Tanto Amiel como Anthero encarnam,
pois, com extranha intensidade essa doença
que se traduz pelas hesitações do querer, e
pelas fluctuações permanentes do pensar.
Para ambos a vida perdeu as linhas reaes,
fixas e positivas, com que ella apparece ao
espirito pratico das raças latinas, tornando-se
no que é para os espiritos, ethnologicamente
ou moralmente germanicos, para
Carlyle ou para Goethe, para Shopenhauer
ou para Shakspeare, um não sei
que de indeterminado
e de fluctuante, um sonho que
apparece
confuso, nebuloso e phantastico,
sempre prestes a decompôr-se em
transformações
successivas, sempre em via de desmanchar-se
e de refazer-se em condições
novas.
[157]
A Allemanha tem a palavra propria que
exprime esta concepção das coisas; nós
não
a temos, de tal modo ella repugna ao espirito
da nossa raça!
Mas Anthero de Quental longe de ter
adoptado a linguagem semi-barbara á força
de requintada, com que Amiel pretendeu
naturalisar latinas abstracções puramente e
genuinamente germanicas, é pelo contrario
um escriptor de raça, um escriptor de primeira
ordem, dando ao seu sonho, vago
como é, o molde nitido e magistral d'uma
linguagem riquissima, e sabendo em certas
horas ser um prosador de largo folego, um
critico sagacissimo e cheio de penetração
genial.
Bastariam para provar esta asserção, os
seus dois magnificos opusculos:
Considerações
sobre a historia da litteratura portugueza
e causas da decadencia dos povos peninsulares.
Pena é que um espirito tão extraordinariamente
dotado não enriqueça a litteratura
[158]
nacional com alguns livros de critica e de
historia, que, tão bem como os melhores,
elle poderia escrever.
Emquanto Anthero aspira infatigavelmente
a alguma coisa de muito superior ao
que a vida póde dar, Amiel escreve n'uma
das paginas do seu
Diario este
pensamento
caracteristico:
«
Il n'y a de repos pour l'esprit que dans
l'absolu, pour le sentiment que dans le divin;
Rien de fini n'est vrai, n'est interéssant,
n'est digne de me fixer!...»
Amiel n'uma hora de lucidez rara, n'uma
d'estas horas em que o visionario mais intransigente
vê em clarão rapido o
nada, das
chymeras a que immolou a sua vida, traça
estas palavras, que são uma revelação
e que
são um arrependimento:
Le resumé: Nada! Rien!... Et pour
dernière
misére, ce n'est pas une vie usée en faveur
de quelque être adoré ni sacrifié
à
une future espérance...
Do mesmo modo Anthero escreve este
[159]
soneto, que é como a
suprema condemnação
do seu funesto
credo, que
é como a lagrima
que se desprende da pupilla cançada
de contemplar inutilmente as profundezas
insondaveis do
eterno abysmo...
Empunhasse eu a espada dos valentes;
Impellisse-me a acção, embriagado,
Por esses campos onde a Morte e o Fado
Dão a lei aos reis tremulos e ás gentes!
Respirariam meus pulmões contentes
O ar de fogo do circo ensanguentado,
Ou caíra raivoso, amortalhado
Na fulva luz dos gladios reluzentes!
Já não viria dissipar-se a
aurora
De meus inuteis annos, sem uma hora
Viver mais do que sonhos e a anciedade!
Já não veria em minhas
mãos piedosas
Desfolhar-se uma a uma as tristes rosas
D'esta pallida e esteril mocidade!
[160]
Não foi esteril, não, a vida de quem produziu
este livro, que ficará na litteratura
portugueza occupando um logar
á
parte,
nosso pela lingua, bella, harmoniosa e rica,
em que está escripto, e d'outra raça bem
diversa da nossa, pelo perfume exotico de
que está impregnado.
N'este momento de cosmopolitismo litterario,
em que a arte é uma Babel onde as
raças e as linguas se confundem, este livro
marca um momento, e como tal é precioso
para os que pensam e para os que estudam.
Reflecte-se n'elle, além do que deixo dito,
uma alma angelica, uma d'estas almas raras,
que não podem deixar de soffrer muito
n'um mundo para que não são feitas.
Eu deixei de proposito, inviolado pela
minha critica, porventura audaciosa, o que
ha de mais profundamente subjectivo, de
[161]
mais intimo e de mais sagrado no volume
adoravel de Anthero de Quental.
Muitas vezes as lagrimas me romperam
irresistivelmente dos olhos, ao ver n'elle,
deliciosamente reflectida, a aspiração, sempre
incomprehendida, a um amor que o
consolasse e redimisse! Pensar é perigoso.
Melhor é sentir. Anthero pensou de mais.
Eis o motivo porque não encontra a
consolação
unica a que a sua alma aspira anciosamente
e inutilmente.
Sejamos bons e dôces para a Vida! Ella
tem horas sinistras, bem sei; ella tem a
Duvida; ella tem a Dôr e tem o Silencio
eterno a todas as interrogações anciosas da
nossa razão e da nossa consciencia; mas de
que doçura infinita ella nos não enche o
coração! mas com que lagrimas
abençoadas
ella não apaga as sêdes ideaes da nossa
alma cubiçosa! Como no mytho pagão, toquemos
a Terra, quer dizer, retemperemos
o nosso organismo cançado nas primitivas
alegrias da simplicidade, da innocencia,
[162]
e do amor! Não renunciemos a nenhuma
das ineffaveis riquezas de que a Vida é depositaria
fiel, e acharemos, n'este retrocesso
á Natureza amiga e boa, a paz que os artificiaes
nirvanas d'este seculo nos
não podem
dar!
Concluo este estudo, que eu fiz com o
maximo amor que o artista, por humilde
que seja, póde pôr no seu trabalho, e no
qual apenas a sinceridade suppre tantos
predicados que me faltam, pedindo a Oliveira
Martins desculpa da minha ousadia.
Melhor do que ninguem, elle fallou do seu
amigo; melhor do que ninguem, elle o explicou
aos que o não conheciam, tocando
com recolhimento e com fervor quasi religioso
n'esta alma, que é para tantos um
enygma indecifravel, e dando luz a tantos
[163]
pontos indecisos d'este temperamento artistico,
extranho e singular.
Depois de ter inspirado aquelle sentido
prefacio, com que o notavel historiador
enriqueceu
o seu livro, que necessidade
tinha o poeta dos
sonetos de que uma
alma, que o não conhece senão atravez
d'elles, viesse fallar ao publico da sua complexa
individualidade?
No prologo de O. Martins ha mais do
que o seu talento; ha tambem o seu coração
de amigo, e é isso o que, aos meus
olhos, lhe augmenta enormemente o valor.
Se houve audacia na minha apreciação,
que m'a perdoem, pois, o poeta e o seu critico.
Eu não quiz mais do que fazer ver o
livro extraordinario dos
Sonetos de
Anthero
á luz da minha impressão pessoal. Não
tive
outro intento, nem desejo outra recompensa
além do prazer intimo e profundo que senti
escrevendo estas palavras sinceras, depois
de ter lido o livro adoravel que tão espontaneamente
m'as inspirou.
ANTONIO CANDIDO
I
Uma vocação irresistivel, uma d'estas
vocações a que tem por força de
obedecer-se, sob pena da mais tremenda
mutilação intellectual, fez de Antonio
Candido
um orador.
Os escriptores fazem-se, os oradores nascem!
Antonio Candido nasceu orador.
N'este ponto é elle absolutamente irresponsavel
do seu destino.
Poucos haverá que em Portugal não saibam
as circumstancias singulares que o subjugaram
[166]
e venceram tragicamente, dando-lhe,
n'este nosso meio muito uniforme e
muito incolor, uma individualidade extranha,
um toque de romanesco, que ainda mesmo
nos oradores politicos destaca e assenta
bem.
A vontade respeitada e querida de alguem,
que elle muito amou, impoz-lhe um
genero de vida com o qual o seu espirito,
a sua educação, a sua comprehensão das
cousas, o iam brevemente tornar incompativel.
Moço, ingenuo, inexperiente, elle subordinou
n'uma hora de inconsciencia, de abatimento
mental, toda a felicidade do seu
destino futuro a essa vontade que respeitava
sobre todas. Mais tarde, comprehendeu
que as responsabilidades gravissimas que
tinha acceitado, na sua imprudencia de moço,
importavam nada mais e nada menos do
que a abdicação da propria consciencia.
Viu então que não Moço, ingenuo,
inexperiente, elle subordinou
n'uma hora de inconsciencia, de abatimento
mental, toda a felicidade do seu
destino futuro a essa vontade que respeitava
sobre todas. Mais tarde, comprehendeu
que as responsabilidades gravissimas que
tinha acceitado, na sua imprudencia de moço,
importavam nada mais e nada menos do
que a abdicação da propria consciencia.
Viu então que não podia occupar com
sinceridade―isto
é, com dignidade, porque
[167]
é indigno tudo que não é sincero―a
tribuna
a que o tinham feito subir, e desceu
d'ella sem hesitação e sem covardia.
Fez mal, diz o mundo; e não ha ninguem
que o não tenha ouvido dizer muitas vezes,
com aquella despreoccupada ousadia com
que dizem tudo os que não acreditam em
cousa alguma.
Fez mal.
Il est avec le ciel des
accommodements;
e a sociedade actual, como em
summa todas as sociedades extra-civilisadas,
não exige heroismos nem abnegações
sobre-humanas.
Ella só quer o respeito apparente das
convenções estabelecidas; no mais, acha
regular que se sophismem os preceitos, que
se illudam e transgridam hypocritamente
as leis. O que exige apenas e não se dirá
que exige muito―é que se acceitem as
posiçoes definidas, e que
se finja acatar
todas as tyrannias sociaes que a tradição
consagra.
Que fizesse mal ou bem não me pertence
[168]
a mim julgar aqui. O caso é que o fez, e
que o fez com tamanha dignidade, com uma
reserva tão silenciosa, com um desdem dos
bens positivos e das utilidades praticas tão
intellectualmente aristocrata, que ninguem
ousou atacar de frente este acto d'uma vontade,
esta determinação d'uma consciencia!
Os que privam de perto com Antonio
Candido sabem que elle amou muito essa
tribuna, onde a sua palavra deixou vestigios
de graça incomparavel e de soberbo vigor.
Amou-a muito, e nunca a ella se refere
sem o respeito enternecido e a vaga saudade
dos que viram dissipar-se um sonho
querido.
Mas ficar onde a Fé o não prendia teria
sido uma transigencia covarde com a hypocrisia
mundana.
Só espiritos amesquinhados pela comprehensão
d'uma falsa moral o poderiam
applaudir. Antonio Candido não teve essa
transigencia. Antepoz a todas as considerações
de facil e util egoismo o seu culto
[169]
sincero pela verdade, a sua noção grave e
austera do Dever.
Com a sua intelligencia malleavel, penetrante,
capaz de vêr justo e de vêr fundo,
percebeu, de certo, antes de tomar a resolução
definitiva de romper com o passado,
as difficuldades extremas que a vida ia ter
para elle. Não hesitou, porém, certo de que
na sinceridade ingenua do seu coração, na
pureza do seu caracter, n'aquella isenção
desdenhosa que é a melhor salvaguarda do
homem superior, n'este tempo sem crenças
absolutas, elle encontraria sempre um guia
seguro para as complicações de ordens diversas,
que tivessem de surgir diante dos
seus passos.
[170]
II
Outra tribuna, a tribuna politica, se lhe
abriu então ampla e rasgada!
Quem não advinha hoje as tristezas que
a consciencia austera d'este homem terá
sentido ao apalpar a inanidade vã das chymeras
que sonhou antes de entrar n'este
novo mundo!...
Porque, os que julgando amesquinhal-o
e diminuil-o, lhe chamam
poeta,
sómente
se enganam na intenção com que o fazem.
Se é ser poeta não poder viver sem um
ideal de justiça, de belleza, de bondade que
sobredoire ainda as concepções mais vulgares,
que espiritualise ainda as realidades mais
praticas; se é ser poeta ter sempre a impulsal-o,
[171]
a commovel-o, o sonho de
melhor,
a aspiração indefinida a alguma cousa que
ainda não foi realisada no mundo, mas por
amor da qual o mundo tem caminhado sem
parar; se é ser poeta ter a comprehensão,
perfeita e sympathica, de todos os sonhos
adoraveis com que se entretem eternamente
a phantasia d'esta velha creança incorrigivel
chamada, a Humanidade―Antonio Candido
é poeta como os que mais o são.
Lembro-me de o ter ouvido, ha bastantes
annos, fallar com enthusiasmo na vida nova
que encetára,―resignado já ao tragico
abortamento do seu destino de
homem;―lembro-me
de o ter applaudido quando,
diante de mim e d'alguns amigos sinceros,
dos quaes um já desappareceu da terra,
elle desenrolláva com a palavra flexivel e
deslumbradora, colorida e vibrante, em que
a eloquencia é tão natural que chega mesmo
a ser involuntaria, os planos sociaes que o
consolavam de tanta cousa perdida para
sempre, ou para sempre inacessivel...
[172]
É provavel que hoje Antonio Candido
já não sonhe; mas acredita ainda decerto
que a evolução necessaria das sociedades
tende constantemente a melhorar os seus
instinctos, a esclarecer a sua consciencia, a
diminuir n'ellas a somma do mal e da iniquidade,
a desenvolver mais e mais no seu
espirito a ambição d'um alto destino... E
a sua philosophia, a que elle ás vezes se refere
sorrindo, e ácerca da qual os seus amigos
gracejam benevolamente, não se perturba
nem se ensombra, porque o meio que
o cerca n'este momento parece comprazer-se
em contradizer todas as suas formulas, em
desmentir todas as suas conclusões...
De feito elle tem visto que, na lucta que
as ambições pessoaes travam na scena politica,
o vencedor paga o seu doloroso, o
seu humilhante triumpho, com os thesouros
insubstituiveis da integridade e da delicadeza
moral. Elle tem tido, hora a hora, a
prova irrefutavel e desconsoladora de que
a
habilidade vence o genio, de que a
astucia
[173]
vence a virtude, de que os meios tortuosos
vencem os impulsos dignos e as aspirações
sinceras.
A historia moderna em Portugal tem sido,
sem duvida, um ensinamento fecundo e triste
para esta intelligencia tão penetrante na
analyse das cousas, como intuitiva e superiormente
sagaz na sua concepção synthetica.
Porque é que n'esse caso não deserta elle
o exercito sem ideal, onde―errando mais
uma vez o caminho da vida―elle se alistou
na ingenua confiança do seu optimismo juvenil?
Por muitas razões, umas claras e simples,
outras mais complicadas, umas originadas,
simplesmente pelo seu proprio destino,
outras que derivam naturalmente da especie
de determinismo historico, que principalmente
o inspira ainda nas crises de mais
desolação interior, ainda nas luctas mais
dolorosas da sua sensibilidade um pouco
feminina, quasi morbida...
[174]
Como Renan, um dos seus amigos ideaes,
o mystico e bondoso coração com o qual o
seu tem tantos pontos de contacto―elle
acceita resignado, com o benevolo desdem
das almas fortes, a dura lei que, fazendo
tão grande e tão sublime a Humanidade,
fez ao mesmo tempo tão frageis e tão imperfeitos
os individuos, a complicação inextricavel,
apparente, que existe em tudo que
nos cerca, e que faz com que, muita vez,
as mais contrarias soluções do mesmo problema
moral sejam igualmente justas, igualmente
legitimas diante do olhar da Critica;
a certeza melancolica de que os males e as
miserias que nos circumdam e nos fazem
tanta vez perder de vista o ceu azul, o amplo
espaço luminoso e puro, não são feitas
pela
vontade dos homens, são simplesmente modificadas
por ella n'um ou n'outro ponto secundario.
Elle sabe que só a vagarosa evolução
dos tempos pode exercer a acção que antigamente
se attribuia ao capricho ou á influencia
immediata de homens providenciaes.
[175]
D'aqui a sua tolerancia, a sua resignação
austera e triste, e a expressão melancolica
da sua palavra, em que não ha revoltas
inuteis nem injustiças escusadas, mas sim
a tragica acceitação de leis ineluctaveis e
crudelissimas.
Cada epocha que passa não faz mais
do que servir, intelligentemente ou cegamente,
conscia da sua missão historica ou
ignorante d'ella, a corrente das
idéas,
dos
factos, dos phenomenos que o periodo anterior
tinha necessariamente preparado.
Caminhantes forçados d'uma estrada enorme,
cujo principio se perde em sombras incognosciveis,
cujo fim nenhum olhar descortina
ou sondará jamais, nós seguimol-a,
resistentes ou doceis, confiantes ou resignados,
scepticos ou cheios de fé, egoistas
ou desinteressados, parando nas
etapes marcadas,
perdendo-nos momentaneamente nas
charnecas aridas, ou nos atalhos floridos e
risonhos, mas voltando, apoz o retrocesso
rapido, ao longo caminho que necessariamente
[176]
temos de seguir, como o astro segue
a sua trajectoria, como a Vida segue a sua
evolução.
De resto, aos que perguntarem a Antonio
Candido o motivo porque elle, sem ambições
pessoaes de especie alguma e com poucas
illusões a respeito todas as cousas, ou antes
julgando todas as cousas uma illusão mais
ou menos radiosa, se conserva ainda assim
no seu posto de politico militante, elle responde
com um bello trecho d'um dos mais
bellos discursos que este orador tem pronunciado,
o discurso consagrado á memoria
de Braamcamp.
«O desfavor com que a
acção politica
é
considerada por muitos espiritos superiores,
no velho e no novo mundo, tem da sua
parte, é forçoso confessal-o, bastantes
apparencias
de razão.
Pela sua influencia immediata e complexa,
e pela enorme comprehensão dos interesses
que move, este genero de acção é o
mais
vasto, o mais attrahente de quantos podem
[177]
sollicitar um homem de intelligencia
e de vontade; mas como estadio de exhibição moral
e como processo de educação publica mostra-se a
esta hora, na America e na Europa Occidental, adverso a muitos
interesses da dignidade civica, da justiça distributiva, da
logica que deve haver nos factos, e do prestigio que as pessoas devem
conservar. Tem uma base intellectualmente falsa: a philosophia
naturalista do seculo XVIII! Tem um principio inane e contradictorio: a
soberania popular. Tem um processo que não qualifico... por
uma delicada circumstancia de logar e de tempo: o suffragio
universalisado! Tem um limite para as elevações
pessoaes, que difficilmente varia: a mediocridade. Tem uma litteratura
propria, quasi sempre sem ideal e sem verdade: o jornalismo e a
oratoria parlamentar. Tem uma liturgia sem pompa e sem pensamento: a
das ficções constitucionaes.
A grande revolução, de que promana e
deve dactar-se toda a moderna historia,
[178]
assumiu, como se sabe, as formas d'um drama
grandioso, enorme.
«Emquanto este drama desenrollou nos
Estados latinos as suas scenas formidaveis
foi sublime de paixão, de força e de movimento.
O theatro grego, em que intervinham
deuses, não é mais maravilhoso do que este
em que representaram povos!
«Mas a commoção publica, como estado
violento, não podia ser perduravel; a
ebullição
dos espiritos, consumidora quando é
prolongada, não poude deixar de diminuir;
recahiram nas condições normaes da vida
os homens e as nações que se tinham exaltado
até ao heroismo e até ao martyrio; e
viu-se então que a superficie moral do
mundo ficára com o aspecto devastado, arrefecido,
melancolico, d'uma floresta que o
incendio consumisse, e de que os velhos
troncos em cinza tivessem apenas servido
para fecundar rasteiras vegetações uniformes,
de pouco vigor e sem vulto definido
ainda...
[179]
«A França, onde a immensa combustão
principiara, ainda se reenflammou uma vez
contra a senil e caduca
Restauração e
teve,
durante alguns annos, uma prolongação artificial
de vida politica na tribuna illustre de
Guizot, Royer Collard e Thiers, e na imprensa
convicta e apaixonada de Armand
Carrel e de P. L. Courier; mas formado e
desfeito o sonho de 1848, caiu, sossobrou,
veio, pouco a pouco, a volver-se no que está,
no que é hoje... A Italia depois de Cavour
e de Garibaldi, a Hespanha depois de Espartero
e de Mendizábal, Portugal depois
de Mousinho da Silveira e de Saldanha,―grandes
nomes que marcam a estatura de
velhos povos,―voltaram fundamentalmente
ao que eram d'antes, porque ha, meus senhores,
uma tyrannia que as espadas não
cortam, e um despotismo que a penna do
legislador não fere de morte; a tyrannia das
raças, e o despotismo da historia!
«N'este estado de cousas,
superior aos
antecedentes porque sempre é um ponto
vencido
[180]
na serie do progresso humano,
mas repousado,
egoista, apenas assignalado por
um mais intenso fervilhar de vida vegetativa
e intellectual, sem accidentes revolucionarios,
salvo quando a questão politica trava
na questão nacional, como em Italia antes
da occupação de Roma, na França depois
de
1870 e na Inglaterra actualmente; n'este
estado de cousas, pouco propicio ás
germinações
do heroismo, e ás ostentações da
grande força, porque os
obstaculos sociaes
deslocaram-se do mundo para a consciencia
e o poder publico desvigorisou-se, enfraqueceu
nas multiplas divisões que o fraccionaram:
n'este estado de cousas, que em
compensação de tanta inferioridade é
pacifico,
é evolutivo, é felizmente desassombrado
de terrores divinos e humanos―
ha
um largo espaço para uma boa intelligencia
que queira applicar-se, para uma energica
vontade, que queira desenvolver-se, para um
caracter honesto e digno que a vida publica
tente com as suas glorias e os seus sacrificios,
[181]
com os seus ruidosos triumphos e as
suas tremendas ingratidões!»
Citei todo este largo trecho, em que vão
sublinhadas por mim algumas passagens
mais significativas, porque, formosissimo,
como forma, admiravel com synthese historica,
elle vem de molde para definir as idéas
que Antonio Candido tem ácerca da politica
moderna, e os motivos que actuaram n'elle
para continuar na vida publica que adoptou.
Como quer que seja e sem me alongar,
indiscretamente, em considerações que prendem
no que ha de mais delicado e mysterioso
n'uma consciencia de homem, o que
é verdade é que Antonio Candido é hoje
a
suprema representação da arte oratoria no
mundo politico e litterario d'este paiz.
Não é que no parlamento portuguez não
[182]
brilhem talentos
muito
notaveis,―nas
nossas assembléas meriodinaes
sabe-se que
não é o talento que falta―muitos fallam
bem, argumentam bem, discutem bem.
Ha tribunos enflammados, ha luctadores
politicos, a que nenhum segredo da estrategia
parlamentar é vedado, mas orador,
apezar de tudo é só elle.
Todos, em qualquer dos campos partidarios
em que militem, o reconhecem unanimemente.
Observação feita muito de passagem―o
partido opposto áquelle em que
Antonio Candido está, reconhece-o muito
mais ostentivamente do que o seu proprio
partido, injusto muitas vezes, ingrato quasi
sempre para este homem que tanto o illustra.
O orador, é o mais privilegiado e o mais
raro entre todos os artistas, e tambem―como
que para contrabalançar a influencia
directa e poderosa que só elle consegue
exercer, como que para amargar e diminuir
a sensação voluptuosa de força e de
imperio
[183]
absoluto, que só elle experimenta em certas
horas de triumpho moral, quando a sua palavra
fremente e indignada passa, curvando
os espiritos, como a ventania passa, curvando
as grandes arvores―o seu poder é de todos
o mais passageiro, a sua força é de todas a
mais ephemera, o brilho do seu nome é de
todos o que mais rapido se apaga...
Quem é que hoje póde reconstituir pelo
pensamento a commoção profunda que electrisou
as almas de 89, quando a palavra de
Mirabeau trovejava do alto da tribuna as
suas apostrophes sublimes?... Quem fixou
no papel os rugidos leoninos, os gritos titanicos
de Danton? Quem, lendo os discursos
de Savonarola, o inspirado dominicano florentino,
comprehende o movimento desordenado
e febril, com que elle agitou em
convulsões de arrependimento e de lagrimas
as almas italianas de seu tempo?...
Levaram o segredo de todas estas maravilhas
aquelles que as ouviram e que as não
poderam communicar a ninguem!
[184]
Na arte de orador, na
sublime arte potente
e deslumbradora, como lhe chama, no
discurso já citado, aquelle que tanto lhe deve
e tanto a ama synthetisam-se n'um relampago
fugitivo, todas as mais bellas irradiações
das outras artes!
A esculptura empresta-lhe a elegancia e
a magestade das suas attitudes, a flexibilidade
viril dos seus gestos, a graça malleavel
e movimentada dos seus aspectos; a
musica dá-lhe as notas graves ou dôces,
apaixonadas ou severas, vibrantes ou meigas,
sonoras, ou melancolicamente esmorecidas
da sua voz; a poezia dá-lhe o encanto alado
indefinivel, subjugador das suas imagens;
a litteratura o requinte subtil da sua fórma,
a belleza penetrante dos seus conceitos, a
seducção
ondeante e
diversa das suas expressões;
a philosophia, a amplidão dos seus
horisontes, uma comprehensão da vida soberanamente
inspiradora, uma envergadura
de azas potente e larga bastante para que
elle possa levantar-se ás amplidões sem fim
[185]
do Pensamento, ás deslumbrantes vizões do
Ideal...
Faz-se de todas estas cousas maravilhosas
e divinas a eloquencia dos grandes oradores,
mas faz-se de mais alguma cousa que sobredoira
tudo isto, e sem a qual tudo isto seria
artificial como a representação d'um actor
de genio! E essa outra cousa, insubstituivel e
sagrada, é a sinceridade ingenua do caracter,
é a bondade humana e communicativa do
coração!
E é isto, que além de tudo o mais Antonio
Candido tem como ninguem. É isto que,
acima de tudo, o torna sympathico e querido.
A nota de probidade virginal, de susceptivel
e melindrosa pureza de alma, que o
distingue, e acaso, no meio actual da nossa
politica o singularisa, punha-a Oliveira Martins
em evidencia, ha tempo, no formoso
perfil parlamentar que consagrou a
Antonio
Candido.
«Quando Antonio Candido falla, diz elle,
[186]
vê-se um caracter atravez de uma obra de
arte.»
E accrescenta lucidamente. «Pela sua
mente impressionavel passam as ideas do
seu tempo como os raios do sol pela placa
sensivel do photographo, e as imagens fixam-se
com a mesma nitidez e a mesma
fidelidade. Pela sua alma ingenua passam,
como por philtro, as ondas da corrente dos
factos e ahi se depuram para surgirem
depois transparentes e crystallinas. E factos
e idéas, animadas e allumiadas pela sua
imaginação
creadora, borbulham-lhe dos labios
no caudal de uma palavra incomparavel de
atticismo, de colorido, de propriedade, que
são as qualidades artisticas do orador, combinado
com um gesto e uma voz que não
mente, quando exprime a energia mascula,
a convicção ingenua, a
indignação fremente,
ou a caridade pura, que são as qualidades
moraes do homem!»
[187]
Para provar quanto é rara a reunião de
faculdades que constituem este aristocrata
do pensamento, esse maestro da palavra
que se chama
orador,―no sentido
amplo
e complexo, no sentido artistico que eu aqui
dou á palavra―basta vêr-se que Portugal
que tem tido sempre uma florescencia notavel
de bellos talentos... desaproveitados,
só teve no passado um orador chamado
José Estevão, como só tem no presente
um orador chamado Antonio Candido.
E a geração de José Estevão
foi: Garrett,
foi Castilho, foi Rebello da Silva, foi Herculano,
foi Rodrigo da Fonseca, foi Fontes,
foi Sampaio, assim como a geração de Antonio
Candido é composta de tantos nomes
illustres, que estão no pensamento e na memoria
[188]
de todos, e que tanto na politica
como em todas as outras manifestações da
actividade intellectual tem dado de si soberbas
provas.
Antonio Candido, porem, foi mais infeliz
que o seu glorioso antecessor, porque em
quanto esse achou o meio perfeitamente
adquado ás suas bellas qualidades de tribuno
impetuoso, enflammado, um tanto declamatorio
como o seu tempo; emquanto
esse podia vibrar ainda intensamente ao
nome, então virginal, poetico, mysterioso,
de
Liberdade,―este, na fria quadra
evolutiva
que atravessamos, n'este periodo,
que se chama positivo mas ao qual se deveria
chamar sceptico, não encontra, fóra de
si, nada que o estimule, nada que o anime,
nada que responda ao sonho altissimo que
a sua
imaginação
sonhára, antes de ter
penetrado
nos meandros complicados d'este moderno
constitucionalismo, tecido de ficções
transparentes, n'este mesquinho periodo politico,
que é o triumpho da mediocridade,
[189]
que é a tortura do genio, e a
condemnação
das fortes individualidades!...
Dessem a Antonio Candido os soberbos
assumptos, que Emilio Castellar tem tido na
sua brilhante e revolta existencia de agitador
e de tribuno; dessem-lhe a vizão radiosa
e juvenil da Democracia e da Liberdade,
que deslumbrou na aurora da sua vida publica,
esse bello Atheniense chamado José
Estevão; dessem-lhe o theatro collossal em
que representou esse titan de cabeça convulsionada
e febril que foi Mirabeau;―e veriam
se não era egual a qualquer d'esses,
sem comtudo se parecer com nenhum d'elles,
o homem que póde, ainda hoje, em Portugal,
n'este momento de victorioso mercantilismo
e de arranjos e combinações deprimentes,
fulminar de admiração um auditorio
de burocratas, fazer tremer de enthusiasmo
uma assembleia de homens de negocios!...
É que o orador, infeliz em tudo como eu
ha pouco dizia, alem de todas as singulares
[190]
faculdades individuaes que necessita de possuir,
para exercer e desenvolver o pleno vigor
do seu genio, precisa tambem de que
o tempo em que vive,―pela grandeza das
suas luctas, pelo contraste das suas agitações,
pela desordenada corrente dos seus
desejos, pelo combate tumultuoso das suas
paixões civicas, pelo interesse dramatico
dos seus acontecimentos,―corresponda aos
ideaes generosos que lhe illuminam a consciencia,
e á fibra guerreira que palpita e
freme na alma de todo o luctador, quer seja
da Ideia quer seja da Acção!
Sempre uma quadra epica da vida dos
povos antigos ou modernos, foi representada
e contida na palavra d'um orador. E
appareceria esse orador se as circumstancias
o não houvessem por assim dizer, determinado
e creado? Talvez que não!
Pois a superioridade extraordinaria de
Antonio Candido, e talvez a maior causa da
tristeza que transparece em tudo que elle
diz, a fatalidade mais insanavel do seu destino,
[191]
é ter apparecido n'uma epocha em que
segundo elle proprio disse
a hora das grandes
paixões politicas passou no mundo!
As circumstancias não o favorecem; a
transformação por que está passando a
politica
portugueza, e infelizmente toda a politica
europeia, não o inspira nem impulsiona;
e no emtanto, apezar de todas as más
influencias, que parecem tender em toda a
parte a paralysar o caracter e o talento, é
tal a pureza crystallina da sua consciencia,
é tal a illuminação fulgurante da sua
palavra,
que elle consegue crear para si, um
logar á parte, indisputavel, aristocraticamente
reservado, em que saboreia as delicias
requintadas da sua isolação e do seu
altivo desinteresse.
Sem ter transposto para sempre o circulo
acanhado da politica partidaria, sem
ter sahido definitivamente da jaula estreita
do nosso constitucionalismo nacional, Antonio
Candido, consegue em admiraveis
sortidas de que todos se lembram,
dizer
[192]
verdades profundas ao paiz que teima em
não querer ouvil-as. Na sessão de 87 a tantos
respeitos desoladora, n'essa sessão em
que passaram sem debate leis d'uma grande
importancia economica e d'um alcance politico
altissimo, e em que se consumiram
dias e dias discutindo os mais inuteis e
ociosos pequenos assumptos pessoaes, as
questiunculas de interesse mais restricto e
mais acanhado, a palavra de Antonio Candido
deixou, todavia, um rasto de inolvidavel
e luminosa critica.
Vio-se ali um parlamentar julgando o parlamento;
um filho da Revolução dizer á
Revolução
as verdades tristissimas que estão
na consciencia de todos! Criticando a moderna
comprehensão que temos da Liberdade,
o orador, não teve a irreverencia que
insulta, mas teve a razão austera e firme
que adverte, a lucida comprehensão que
vê longe e que vê justo, e que de leis
inluctaveis
sabe tirar as duras e ineluctaveis
conclusões!
[193]
Já estamos longe do tempo em que se
acreditava no empyrismo de receitas particulares,
e na vinda de Messias privilegiados
e salvadores.
É inutil accusar este ou aquelle individuo
de males, cujo segredo e cuja origem só
acha, quem investigue o espirito da nossa
raça, o modo porque n'ella actuaram as inesperadas
transformações que soffreu, a corrente
historica dos acontecimentos, as mil
influencias complexas, os mil factores diversos
que nos fizeram... o que hoje sômos!
Diante dos acontecimentos que desdobram
sob o nosso olhar a sua trama variada
ou uniforme, é porem, nosso costume
incorrigivel, accusar-mos não só os homens,
mas ainda certos e determinados nomes de
homens!
Não percebemos ainda que uma sociedade,
que um paiz, possam na sua qualidade
de organismos vivos, estar sujeitos ás
mesmas condições de
germinação, desenvolvimento,
degeneração e morte, a que
[194]
está sujeita a Vida Universal em qualquer
das suas infinitas manifestações.
Revoltamo-nos contra o que não pudémos
evitar! Attribuimos á preversidade insolita
dos individuos o que é puramente o
resultado de leis historicas incombativeis!
D'aqui a nossa colera insensata, e contraproducente!
Podem os homens modificar as condições
moraes d'uma sociedade, não podem obstar
a que a vida d'ella siga o curso fatal que
segue tudo que vive na terra, e que na terra
tem de morrer.
N'este ponto, Antonio Candido educado
por Comte e por Littré tem uma vantagem
incontestavel sobre quasi todos os seus contemporaneos
portuguezes. Nenhum, que eu
saiba, se embebeu mais profundamente das
lições do grande philosopho positivista, nenhum
vê de mais alto e com uma imparcialidade
mais bella e mais fecundante para o
espirito, a evolução necessaria das leis
sociologicas
a que todas as civilisações estão
[195]
subordinadas. Mas extranho contraste! Este
positivista de educação, é um
idealista incorrigivel,
por temperamento.
Apezar d'isso ou talvez por isso mesmo
nunca o ouvirão accusar um homem dos
acontecimentos de que pela maior parte das
vezes esse homem não foi senão o vizivel
instrumento; nunca o ouvirão accusar o presente
de não ter sabido perpetuar as virtudes
e as crenças do passado.
Se tem saudades das bellas cousas extinctas,
se tem pena de não ter vindo ao
mundo n'outra quadra, em que o mundo ia
n'um ponto mais pittoresco ou mais interessante,
mais illuminado ou mais espiritualista
do seu caminhar indefinido, se sente a nostalgia
dos bellos ideaes hoje desfeitos, nem
por isso deixa de reconhecer que toda a
vontade individual é impotente para guardar
na alma da Humanidade, pensamentos
que se vão fatalmente dissipando, phantasias
que a experiencia repelle, sonhos de
que infelizmente se acordou, radiosas chymeras
[196]
que se esvairam com a hora infantil
em que tinham visto a luz...
Como orador e como artista, Antonio
Candido não pertence á raça impetuosa
e
enflammada de Castellar ou de José Estevão.
Educado, como já disse, pelos processos
da sciencia positiva, tão
disciplinadora
e tão
methodica; não se deixando nunca possuir
pelo seu assumpto, antes possuindo-o, subjugando-o,
vencendo-o, torcendo-o a todas
as magicas flexibilidades da forma mais correcta
e mais superiormente bella; desprezando
os artificios d'uma rhetorica envelhecida
e inane; sem nunca se deixar ir atraz
das seducções um tanto serodias da pompa
e da exhuberancia oratorias; possuindo uma
[197]
razão clara e lucida, um poder de critica
muito notavel, elle é justamente o orador
moderno tal como os auditorios d'hoje teem
o direito de exigir...
O orador que impressiona mas que persuade,
que tem o brilho e a côr, a illuminação
e o prestigio, mas que tem tambem o
facto, o documento, a
demonstracção
scientifica,
a comprehensão positiva das cousas.
Essa eloquencia que tão poucos teem sabido
comprehender, essa eloquencia que os
ignorantes desdenham, e que os mediocres
teem em pouca conta, encontrou na critica
indigena as interpretações mais diversas e
mais extraordinarias.
Precedido d'uma celebridade cujas exigencias
elle soube completamente realisar,
Antonio Candido, apparecendo em S. Bento
fez um d'aquelles seus discursos magistraes
em que as bellas e largas syntheses brilham
como constellações, n'um fundo azul de arte
pura e de belleza a um tempo moderna e
classica.
[198]
Foi então que o jornalismo portuguez o
sagrou
rouxinol. As
appellações mais vulgares,
que ficaram desde esse dia como
cauda obrigatoria ao seu nome, foram as
de:
orador maviosissimo,
harmonioso tenor,
voz eloquente e suave, etc. etc.
Cantor dos
bosques sagrados de S. Bento―eis a sua
posição social e artistica, perante a critica
do seu paiz.
«―Mas eu não sou tal rouxinol! Eu
nunca na minha vida cantei!―exclamava
elle em vão com um gesto de suplice resistencia.
Eu não tenho a pezar-me na consciencia
nem um trilo nem uma volata.
―É rouxinol―respondeu severa e cathedratica
a critica portugueza. É rouxinol,
e rouxinol hade ficar!...
Foi uma hora amargurada esta, na vida
do orador. Resignou-se então por algum
tempo, para ver se o despediam d'entre o
bando dos
alados cantores, a fazer
politica
de pequenos interesses, e de pequenos assumptos.
[199]
Defendeu eleições, atacou dictaduras; foi
vehemente e apaixonado no ataque ás personalidades
eminentes; teve ironias mordentes
e cruas, teve energias inesperadas; foi
o orador politico, opportunista, habil, argumentador
e arguto, que é necessario ser-se
pelos modos, para arrancar de sobre os hombros
as azas um pouco humilhantes de rouxinol.
Ás vezes no meio d'estes discursos de
argumentação
terra a
terra, a sua imaginação
opulenta e d'um brilhantismo extranho
e raro, tinha uma fuga subita pelas largos
espaços estrellados d'onde andava foragida,
mas dos quaes se sentia eternamente
nostalgica...
Outras vezes a sua faculdade critica tão
educada e tão fina, d'uma subtileza de
comprehensão
tão viva e requintada, atirava
para o meio do auditorio―sempre seduzido,
senão sempre inteiramente capaz de o
perceber―com uma d'aquellas interpetrações
geniaes, um d'aquelles
aperçus soberbos,
[200]
que só pertencem aos que meditam e
estudam os mais arduos e complexos problemas
da vida social.
Foi por essa occasião que alguns noticiaristas
principiaram surrateiramente a chamar-lhe
aguia. Nunca se soube bem qual a
razão d'aquella mudança. Já que elle
estava,
no emtanto, adstricto aos dominios da ornithologia,
antes aguia do que rouxinol,―pensou
decerto Antonio Candido.
E aguia e rouxinol lhe ficaram alternativamente
chamando os seus amigos e os
seus adversarios.
Foi talvez para escapar a esta importuna
classificação, que elle ultimamente, queimando
os seus navios, sacrificando denodadamente
qualquer ambição politica que
ainda porventura se acoitasse no mais intimo
e secreto do seu alto espirito, fez ouvir
em S. Bento uma palavra de verdade suprema
e tambem de suprema condemnação
de toda a politica interna d'este malfadado
paiz.
[201]
De todos os lados da imprensa levantou-se
um brado que, condemnando a doutrina,
glorificava o orador. Esqueceram-se,
n'essa tardia accusação, de que em S. Bento
a camara inteira o applaudira vertiginosamente,
porque era a verdade quem punha
na sua palavra a indignação fremente, a
paixão intensa e viva, a melancolia immensa,
inconsolavel, feita de ironia e de razão...
Accusaram-n'o porque, fugindo á banalidade
e á falsidade historica de que todos
ali são mais ou menos reus, elle não attribuia
a ausencia de costumes politicos, a falseação
do systema representativo, a exagerada
elasticidade das ficções constitucionaes
a violação sempre impune, de todas as suas
praxes, as mil imperfeições do nosso machinismo
governativo á vontade do sr. Fulano
ao ministerio do sr. Cicrano, aos maus conselhos
do sr. X e ao systema de corrupção
do sr. J.
Era isto que elles estavam costumados a
ouvir; era a continuação d'isto que elles
reclamavam.
[202]
Mas Antonio Candido é que lh'o
não fez. É uma desforra brilhante e inolvidavel
este discurso! É uma desforra das mil
vezes em que o orador teve de pôr a sua
palavra, não ao serviço d'uma causa
má,
mas ao serviço d'uma questão pequena
ou d'um assumpto inferior.
Com a impaciencia, longo tempo soffreada,
d'uma consciencia honesta, que vê
continuamente, em torno de si, falseada a
verdade dos factos, desfigurada a noção das
coisas deslocados os assumptos, confundidas
as mais claras e simples questões,―elle fez
a largos traços a nossa historia constitucional,
e provou, uma vez por todas, com o brilho
e o atticismo da sua palavra sem rival, que
isto que nós chamamos
decadencia do systema
parlamentar, não é mais do que
uma
justa e inevitavel consequencia de factos, de
que esta geração não tem a culpa nem a
responsabilidade, e de que ella tem fatalmente
de ser a victima e o joguete.
É bello de verdade e de eloquencia impressionadora
[203]
todo este trecho do seu ultimo
discurso politico, que desenha, com rapida
vivacidade, o modo porque o constitucionalismo
foi improvisadamente implantado
entre nós, e os obstaculos que para o seu
pleno e vigoroso desenvolvimento encontrou
na nossa educação tradicional, na nossa
indole herdada de fidalgos preguiçosos, nos
nossos costumes seculares, na nossa pobreza,
na nossa ignorancia, nos defeitos irreductiveis
de raça que tão adversos nos tornam
por ora e, talvez para sempre, á
ficção chamada
systema representativo.
Taine no 2.º volume do seu trabalho sobre
as
origens da França
contemporanea escreveu
este trecho, que os nossos politicos
deviam meditar um pouco, antes de se entregarem
á desabalada gritaria contra os
governos que se teem succedido, sempre
perpetrando os mesmos erros, e sempre
conseguindo resultados iguaes:
«Se ha n'este mundo cousa que seja difficil
de elaborar-se, é uma constituição,
[204]
sobretudo uma constituição completa. Substituir
os velhos quadros, dentro dos quaes
vivia uma nação, por quadros differentes,
apropriados e duradoiros; applicar um molde
de cem mil compartimentos á vida de uns
poucos de milhões de homens; construil-o
tão harmoniosamente, adaptal-o com tamanha
habilidade e tamanha opportunidade,
com uma tão exacta apreciação das
necessidades
d'esses homens e das suas faculdades,
que elles entrem dentro d'elle de seu
mutuo proprio, para ahi se moverem sem
atrictos asperos; e que immediatamente a
sua acção improvisada tenha a facilidade
d'uma velha rotina―eis uma empreza que
é positivamente prodigiosa, e provavelmente
muito superior ás forças do espirito
humano...»
Foi isto que nós tentamos fazer, e é do
abortamento d'esta empreza impossivel, que
se originam e que resultam todas as nossas
desgraças, todas as provações
dolorosas que
temos atravessado, todas as amargas desillusões
[205]
que a nossa alma nacional tem soffrido
e que tão abatida e descrente a fizeram
desde muito...
E foi isto
que o orador fez
sentir, com a clareza
e a nitidez da sua palavra privilegiada,
na assemblea representativa e no paiz inteiro.
Parece impossivel que este modo de levantar
a discussão, de illuminar os phenomenos
sociologicos, de fazer a critica ampla
e elevada da nossa vida publica, produzisse
um effeito de
indignação
patriotica na imprensa
d'este paiz.
E o grande pensador foi finalmente demittido
do seu posto de rouxinol honorario da
camara dos deputados!
Se Antonio Candido, faltando á verdade
da sua intelligencia e á verdade da sua
consciencia, tivesse declamado pomposamente
sobre a
decadencia politica dos
nossos
dias, attribuindo-a aos manejos machiavelicos
do sr. Fontes, que Deus haja,―uns
applaudiriam enthusiasticamente, outros, invertendo
[206]
o caso, lançariam a responsabilidade
d'essa decadencia ás locubrações
mysteriosamente
preversas do sr. José Luciano
que Deus conserve, mas ninguem alcunharia
de anti-patriotica a inspiração honrada e
nobre d'esse discurso, tão bello pela arte
com que foi dicto, como foi grande pela
sincera verdade com que foi pensado.
Visto que o orador é o homem, fallemos
do homem.
Quem vê Antonio Candido n'uma sala,
quem conversa com elle, quem o observa,
caprichoso, desigual, expontaneo, mais triste
do que alegre, ora silencioso e esquivo como
uma creança amuada, ora vibrante, apaixonado,
inquieto, defendendo ou atacando
uma these artistica ou um problema de
[207]
moral,―perceberá logo que esse homem,
apesar de não ser o que nas salas se chama
um conversador, tem o dom da palavra
maravilhoso
e raro, que a poucos é concedido;
mas não saberá, ainda assim, advinhar n'elle
o portentoso orador que as nossas assembléas
politicas conhecem e acclamam.
É que Antonio Candido, que, como todos
os artistas sinceros, sente tudo o que diz, e
em quem, antes de sêrem verbo incomparavel,
as ideias são sangue das veias,
vibração
dos nervos, cellulas do cerebro,―transfigura-se
d'um modo indizivel, logo que, entre
elle e o seu auditorio, se estabelece aquella
corrente magnetica, que faz com que centenas
de homens vibrem á voz d'um só homem,
que faz com que a sensibilidade d'um homem
se exalte se exacerbe d'um modo violento,
doloroso quasi com a commoção de todos.
O olhar, que a contemplação das cousas
da vida e a vizão interior, desalentada e triste,
tem apagado e como que vellado mysteriosamente,
accende-se então em scentelhas
[208]
chammejantes, ou fulgura como luz fixa, penetradora,
intensa e viva; a cabeça, admiravelmente
modelada, levanta se n'uma attitude
de orgulho infinito; o gesto faz-se, ora
largo, soberbo, magestoso, ora incisivo, ironico,
sublinhando com extranho vigor os
tons diversissimos do discurso; na voz poderosa,
d'uma gamma opulentissima, vibram-lhe
magnificamente todas as cordas que,
diante d'um auditorio um tanto sceptico, póde
fazer vibrar um artista intelligente―a ironia
tempera n'ella a indignação, uma graça
dolente e melancolica, attenua-lhe e como
que lhe subtiliza artisticamente a tristeza.
A sua dicção correcta até ao atticismo
possue
todos os segredos da moderna comprehensão
da arte. A palavra sahe-lhe colorida
por todos os cambiantes d'um sentir
sincero e profundo, as intenções teem uma
graça penetrante, uma fina malicia, benevola
e indulgente, de quem conhece o mundo e
os homens, de quem tem para a Vida, incompleta
como é sempre, miseravel como é
[209]
tantas vezes,―uma larga tolerancia, feita
de sympathia e de bondade...
E a pairar sobre tudo isto, dando a tudo
isto um toque de irresistivel sinceridade―tornando
uma creação de moral cada
manifestação
eloquente de arte―aquella tristeza
que elle exprime tanta vez em traços
leves, discretos e subtis: a tristeza que
sentem os grandes pensadores, ao verem
que é, no fim de contas, tão estreita e
tão
limitada a esphera da sua acção, que é
tão
inefficaz o poder isolado da sua vontade,
que é inutil e vão todo o esforço com
que
elles queiram combater a corrente impetuosa
que passa, a qual os mediocres continuam,
com louvavel modestia, a imaginar
determinada, guiada por elles...
Alem dos seus discursos parlamentares,
que já davam um bom volume e que, segundo
[210]
ouvi, serão breve publicados, Antonio
Candido tem feito algumas conferencias
litterarias de subido merito, que no tribuno
revelam o pensador, no orador o litterato
delicadissimo, o artista vibrante, superiormente
cultivado, a fina sensibilidade em que
os mais differentes estados se repercutem
vivamente.
Estas conferencias são superiores aos
discursos,
porque os assumptos escolhidos pelo
orador põem mais á vontade o seu espirito,
dão mais espaço á sua
imaginação, dão ensejo
ao seu genio de manifestar-se em mais
liberdade.
D'entre ellas destaca-se, pela belleza litteraria,
a que foi pronunciada no Porto,
quando Victor Hugo morreu.
Nem na patria do grande sonhador da
Légende des
Siécles, em que já tinham
morrido
quasi todos os companheiros idolatras
do poeta, se encontrou, n'aquella occasião,
uma voz que melhor e mais lucidamente
soubesse, em traços tão rapidos, com eloquencia
[211]
tão maravilhosa e tão adequada
á
grande gloria que se celebrava, julgar o
o homem e o escriptor, aquilatar o valor e
a especie da sua obra, fazer valer a exhuberancia
extraordinaria d'aquella organisação,
pôr em relêvo a força creadora do
gigante adormecido!...
Era para este genero de conferencias,―muito
moderno, muito no gosto do nosso
tempo, que póde elevar-se á cathegoria
d'uma arte perfeita,―para este genero, a
que Renan tem dado o prestigio da sua
perfeição atheniense de estylo, a
graça ondeante
e melancolica do seu pensamento
de celta, que eu quizera vêr voltado o espirito
de Antonio Candido.
É que elle tem perfeitamente a especie
de talento e de imaginação que este trabalho
requer. Desdenhoso e desattento para o
contorno das cousas exteriores; não se dando
demasiadamente ao espectaculo mais ou
menos pittoresco da Natureza vizivel; adversario
da comprehensão egoista da
arte
pela
[212]
arte; tendo por audaciosas
hypotheses inverificaveis
os sonhos transcendentaes da methaphysica;―são
principalmente as preoccupações
da ordem moral que o interessam,
são as vizões e as
contemplações da
consciencia que o absorvem, com exclusão
de todos os interesses e de todas as actividades
praticas.
Cada grande espirito escolhe para esphera
da sua acção e da sua influencia
aquella em que melhor se aclima o seu temperamento
especial.
Uns, os philosophos, concentram-se na especulação
desinteressada, sem se preoccuparem
sequer das consequencias terriveis, destructivas,
assolladoras muitas vezes, que
possam resultar das suas premissas audaciosas.
Indifferentes a tudo que não seja a
logica do seu systema, seguem-n'a até ás
extremas conclusões, sem curarem do mal
ou do bem que possam produzir na humanidade.
Quando Spinoza o
bemaventurado,
como,
[213]
lhe chamavam os que o conheciam de perto,
doente e pobre no canto isolado da sua
obscura casa, negava ao Deus pessoal a
possibilidade de existir, á Natureza um fim
e um principio, ao homem a noção do mal
e do bem, e o
livre arbitrio―minando
assim
as bases fundamentaes em que assenta a
segurança e a moralisação das
sociedades,
pensava elle, porventura, que da applicação
pratica das suas ideias podiam provir os cataclysmos
moraes mais terriveis, a subversão
de todos os principios existentes, o cahos de
todas as leis e de todos os dogmas?
A lembrança de que, das descobertas da
astronomia e da physica, proviria para o
homem uma comprehensão do seu destino
inteiramente diversa da que elle tinha até
ali, uma concepção do Universo contraria
em tudo á que elle formára, passou alguma
vez pelo espirito de Galileo, de Copernico,
ou de Newton?
E o artista que adora e procura no mundo
a belleza como elle a imagina, a reproducção
[214]
real d'um typo que elle sonhou, distingue
acaso a belleza, que é pura e sã, d'aquella
que é preversa e corruptora? Não. Para
elle a belleza existe por si só, é só
ella que
o exalta e encanta, é só ella que lhe
dá a
sensação unica, voluptuosa e divina, por
amor da qual, aos seus olhos, a vida tem
um sentido e tem um fim!
O psychologo, como o artista e como o
philosopho, não se preoccupa absolutamente
nada com o resultado nem com a applicação
das suas observações e das suas sondagens.
O seu desejo de penetrar os escaninhos
mais secretos, mais escusos, mais tenebrosos
do coração humano, tem em si mesmo
o seu limite, o seu fim e a sua razão.
O que o interessa é o funccionar da machina
cerebral, a germinação e o desenvolver
do pensamento, o jogo e a combinação
das paixões; são os estados variaveis e
complicados
da consciencia, as inextricaveis e
confusas vegetações da Ideia e do instincto,
[215]
o impeto irreductivel dos sentidos, a
engrenagem complexa do organismo humano.
É-lhe absolutamente indifferente que
haja paixões peccaminosas ou sentimentos
legitimos, ideias preversas ou ideias sãs,
instinctos criminosos ou instinctos bons.
Essa ordem de considerações fica alem
dos limites que a si proprio traçou. Não
tem indignações nem desprezos, não tem
admirações nem alegrias. Tem simplesmente
a curiosidade attenta do chimico, em presença
do qual dois productos se combinam
ou se repellem, do naturalista que encontrou
a lei pela qual se explica um phenomeno
da materia.
Ha porem outra ordem de espiritos, que
teem, como o philosopho, uma concepção
particular do Universo e da Vida; que teem,
como o artista, o amor do bello; que teem,
como o psychologo, a curiosa penetração do
homem interior,―mas que, de cada facto
veem a consequencia, de cada lei veem a
applicação, de cada aspecto bello das cousas
[216]
veem a influencia. Julgam, estudam,
absolvem ou condemnam, impõem
condições
á belleza, regras immutaveis á consciencia,
preceitos sagrados á Vida Humana
e á vida social. Não lhes basta o interesse
dramatico, a magnifica florescencia da Paixão,
a vitalidade intensa do instincto, o jogo
admiravel das energias physicas ou mentaes.
De tudo isto se preoccupam, tudo isto
estudam e analysam, mas com o fim de pôr
o equilibrio e a harmonia n'estas forças indomitas,
que, entregues a si mesmas se aniquillariam
mutuamente, sem uma lei suprema
que as subordinasse!
O espirito de Antonio Candido pertence
ao genero d'estes espiritos em que predominam
as preoccupações de ordem moral.
Os asperos deveres e as amargas tristezas
de todos os dias; os nossos sentimentos
mais intimos; as nossas mais irrepremiveis
paixões; as incertezas, as agonias do espirito
alanceado por tantas contradicções e
tantas duvidas, e que, em nenhuma solução,
[217]
das que offerece a philosophia ou a crença
religiosa, encontrou ainda o repouso desejado;
e lucta interior travada entre o mysticismo―innato
ou herdado no homem―e
o racionalismo victorioso mas cruel, cujas
ondas veem, dia e noite, bater impetuosas
contra a fortaleza mal segura, em que elle
abrigou os seus deuses foragidos; os combates
da consciencia e da vontade, do instincto
e da razão; todo este mundo enorme,
que cada um de nós traz dentro de si, para
sua tortura e seu orgulho;―eis em summa
o que attrae irresistivelmente este espirito
contemplativo, no qual a educação moderna
não poude nunca vencer de todo a nostalgia,
talvez inconsciente, d'outras eras de simplicidade
e de fé, em que a vida era mais
facil, em que o dogmatismo religioso se impunha
sem esforço á consciencia individual
e a conservava mais tranquilla, mais ignorante
e mais... feliz!
O seu sonho―bello e radioso sonho, talvez
nunca realisado―seria a pacificação da
[218]
alma moderna, tão desordenada, inquieta
e dolorida n'este momento, de que, todos
mais ou menos, sentimos em nós a repercussão
dilacerante!
Elle não é dos indifferentes, que assistem
impassiveis e frios a estas angustias enternecedôras
do espirito contemporaneo, ou dos
que trabalham para propagar, em torno de
si, o desinteresse absoluto das cousas invisiveis,
das cousas ideiaes...
Achar uma solução pacificadora para este
estado de crise latente, reconciliar as
aspirações
irreductiveis da nossa alma, que são
o seu mais precioso e imperecivel thesouro,
com as imposições da philosophia d'este seculo,
que se tem insinuado até nos espiritos
que a ignoram, pela indirecta e invizivel influencia
que opera na litteratura, na arte,
no theatro, em todas as manifestações que
democratizam e vulgarisam a
Ideia―tal seria
a ambição suprema d'este pensador, em
quem a
vida interna é
tão exigente e intensa,
tão desenvolvida e tão profunda.
[219]
Em varias conferencias feitas em Lisboa,
em Coimbra e no Porto, Antonio Candido
tem tocado em todos estes pontos delicados
e melindrosos da consciencia moderna.
Em nenhuma, porem, os tocou mais magistralmente
do que no discurso pronunciado
em 12 de abril de 1888, no theatro
de S. Carlos, e n'um saráu promovido pela
imprensa lisbonense em favor das victimas
do Porto.
Tenho ainda no ouvido, as palavras d'aquelle
protesto heroico contra o pessimismo
doutrina, d'aquelle hymno entoado
ás Alegrias e ás Virtudes da vida, por esse
melancolico, por esse vencido da felicidade,
cuja voz musical parecia embebida em lagrimas,
quando pintou as bellas e radiosas
cousas que a Humanidade tem feito e que
lhe conquistaram o direito indeclinavel de
amar a existencia, que a par de tantas tristezas
tem tantos risos, que a par de tanta
covardia tem tão sublimes heroismos, que
a par de tantas paixões cruas e de tão mortiferas
[220]
angustias tem graças de tão ineffavel
virtude, e voluptuosidades de encanto incomparavel.
Que desinteressada homenagem
prestada a essa Vida, que trahiu para elle as
suas promessas todas, que nem das chymeras,
que a constituem e compõem, quiz fazer
a chymera suprema que o illudisse e fizesse
feliz!...
Se realmente Antonio Candido versando
estas questões de interesse maximo, tratando
estes problemas de tão complexa e
vital importancia, podia fazer um serviço
grande á alma portugueza, porque é que
elle se não consagrou principalmente a esta
alta e moralisadora tarefa social? Porque não
falla, elle que o sabe tão bem, aos que teem
sêde de uma palavra de vida; aos que não
julgam grosseiramente que é só de pão
que
vive o homem d'hoje.
E não é! Não o calumniemos, ao pobre
homem d'hoje, tão mal pintado pela litteratura
decadente d'este tempo. Nunca, no meio
do mais asqueroso mercantilismo, houve
[221]
mais violentas aspirações idealistas! Nunca,
no meio de mais desenfreadas ambições
pessoaes, houve uma ancia mais apaixonada
e mais dolorosa de alguma cousa grande,
indefinida e immortal!
Eu sei que essa tarefa de orador e do
escriptor moralista faria sorrir ironicamente
a turba multa soez dos triumphadores do
dia, e que ella não daria vantagens praticas
de especie alguma ao que lhe acceitasse
as responsabilidades e os trabalhos.
Mas sei tambem que o pensador illustre,
desinteressado, altivo e desdenhoso, bastante
superior para cahir no desagrado pleno
d'essa cousa niveladôra e immoral chamada
o sufragio universal, poderia,
renunciando
ao preço mesquinho com que o mundo sabe
pagar aos que o servem, guardar no coração,
como um thesouro immaculado a consciencia
de haver semeado o bem, de haver
lançado a luz d'uma palavra sincera nos mil
labyrintos tenebrosos em que a alma agonisante
de hoje se perde e se debate desnorteada,
[222]
de haver fallado emfim, aos homens,
d'aquellas bellas e sublimes cousas, cuja posse,
sonhada só que seja, nos consola de todo
o mal, de toda a tristeza de viver!..
Se a verdade não é privelegio exclusivo
de ninguem, aquelles que possuem uma das
parcellas sagradas d'esse bem devem repartir
d'elle com os seus irmãos indigentes!
Contar as delicias da Abnegação, os triumphos
do Sacrificio, a graça ineffavel da Virtude,
não será possuil-os por momentos, não
será evocar nas almas o desejo sublime de
os alcançar tambem? Socegar a consciencia
dos que duvidam dizendo-lhe que a Duvida
é o mais seguro meio de attingir a Verdade,
de que é preferivel mil vezes a agonia que
os dilacera á quietação, á
estagnada immobilidade
dos indifferentes, não será levar um
pouco de tranquilidade a tantas almas que
padecem?.. Justificar as ousadias do pensamento
moderno, pela sua ancia tão meritoria
de sciencia e de luz, não será apresentar
sob um aspecto misericordioso e justo tanto
[223]
esforço que a ignorancia condemna, tanto
arrojo que a intolerancia maldiz? Oh! como
é largo este campo, e que beneficio não seria
desbraval-o, e fazer com que na sua terra
esteril as arvores desabrochassem, crescessem,
se enchessem de fructos e de flores, dessem
sombra, e abrigo aos que procurassem
cançados a sua rama protectora!
Ninguem poderia, melhor de que o orador
em quem todos os prestigios da Palavra
se alliam a todos os calmos esplendores do
Pensamento, fazer uma realidade d'esta esperança
que a tantos se affigurará talvez
chymerica e pueril, mas que eu, pobre mulher,
ignorante e sonhadora, me não arrependo
de haver formulado aqui.
TEIXEIRA DE
QUEIROZ
(BENTO MORENO)
Com quanto seja avultada a bagagem
litteraria d'este escriptor, comquanto
seja admiravel a sua actividade
intellectual, n'um meio tão hostil a todos os
trabalhos de imaginação ou de arte, a verdade
é que Bento Moreno não é, e creio
que nunca será, um romancista popular.
É restricto o publico que o conhece e
admira, e por isso mesmo, mais rigoroso é
ainda o dever da critica, perante este ostracismo
injusto a que é votado um talento bem
nosso, bem portuguez, e d'uma probidade
[226]
litteraria, presentemente rara em toda a parte,
quanto mais entre nós.
Hoje o escriptor portuguez, para ser lido
e conhecido, precisa de banalisar-se primeiro
no jornalismo de todos os dias. O nosso publico
tem apenas a paxorra necessaria para
ler as gazetas. Uma
élite
ha, pouco numerosa
ainda assim, que compra a ultima
novidade
parisiense na livraria da moda, mas
isto de ter em cada dia uma ou mais horas
destinadas a essa grande e purificadôra cultura
do espirito, chamada a leitura, é cousa
que realmente não conhecem as nossas mulheres
e muito menos os nossos homens.
Os romancistas modernos, capitaneados
por Flaubert e por Zola, professam o mais
profundo e altivo desdem para com o publico
feminino. Fazem mal, e por duas razões:
Primeiramente porque a imaginação e a
sensibilidade da mulher são muitissimo mais
promptas e accessiveis que as do homem
para este genero de leitura, e depois porque
[227]
a verdade dura, mas positiva é esta: só as
mulheres e os homens extremamente moços,
isto é, ainda um pouco
mulheres, teem
paciencia tempo e gosto de lêr romances.
Passado esse primeiro periodo da vida
em que o sentimento impera sobre a razão,
em que a phantasia é mais forte que o raciocinio,
em que as questões do
coração são
as
grandes questões que sobrelevam a todas,
qual é o homem que lê romances, e se enthusiasma
por esses
creadores d'almas,
chamados
romancistas?
Talvez que os artistas os leiam, mas em
cada dois mil espiritos praticos póde talvez
encontrar-se um espirito de artista. Não é
o bastante para constituir um publico, e sem
publico como é que o escriptor póde passar?...
São portanto as mulheres e os moços que
restam ao romancista. É sobre esses que elle
tem de actuar, é esses que elle interessa e
emociona, educa ou perverte, ammollece ou
tonifica, agita ou faz pensar.
[228]
As nossas mulheres leêm pouco. Falta de
tempo, falta de habito, falta de cultura litteraria,
falta de gosto ingenito?... Não
sei, nem é realmente este o momento de o
investigar. D'aqui provem portanto o escassissimo
mercado dos nossos livros. É o Brazil
que ainda assim se encarrega de lêr o que
os nossos escriptores publicam e no Brazil
tem Bento Moreno uma popularidade muito
maior do que chegou a alcançar aqui.
Foi com um volume de
Contos que
Bento
Moreno, haverá quatorze annos se estreou
na litteratura portugueza. Os que lêram este
primeiro volume da
Comedia do Campo,
e os que podiam ter n'este ponto opinião
que valesse a pena de attender-se, perceberam
no artista que se estreiava faculdades
singulares, que davam á sua penna um
cunho inconfundivel.
Não se parecer
com
[229]
ninguem é a
condição indeclinavel, indispensavel
do escriptor de raça.
Bento Moreno appareceu logo com um
estylo seu.
Era duro esse estylo; não tinha as malleabilidades,
as ductilidades e as graças que
se assignalam sympathicamente ao instincto
do leitor; havia n'elle um não sei quê de
primitivo, de ingenuo, de
não
cultivado,
que o tornava talvez ainda defeituoso e tosco,
mas as qualidades poderosas do observador
e o sentimento vivo e profundo do
pittoresco revellavam-se
já n'este livro d'um
modo surprehendente. A alma primitiva e
rude do minhoto, a paysagem deliciosamente
verde, e singelamente idyllica do Minho,
retratavam-se ali, n'aquelle primeiro livro,
em traços admiraveis de verdade e de encanto.
Observar e sentir, não serão estas
as duas faculdades principaes de todo o artista?
O theatro era talvez monotono e um pouco
trivial na sua verdura sem quebras, na
[230]
sua paysagem sem accidentes e sem relevo
accentuado; os personagens não tinham nem
o vigor brutal, e o monstruoso aspecto inquietador
dos camponezes de Zola, nem a
manha, e a velhacaria quasi grandiosas dos
camponios de Balzac; mas scenario e figuras
eram bem nossas, e não havia nas paginas
d'esse livro, como de resto continuou a não
haver nas obras de Bento Moreno, reminiscencias
litterarias, echos de vozes já ouvidas,
copia ou imitação de processos extrangeiros,
pastiches de
creações alheias!
Seguiram-se, com intervallos desiguaes,
a esse primeiro volume de contos minhotos
d'um sabor tão vivamente original,
sentant
le terroir, na phrase franceza para a qual
não encontro n'este instante equivalente,
muitos outros de varios generos, que accusavam
cada vez mais o progresso do estylista
e a indole especial do escriptor.
São esses livros o
Amor
Divino, o
Antonio
Fogueira, os
Noivos, o
Grande
homem,
o
Sallustio Nogueira, e os
Novos Contos.
[231]
D'esta bibliographia variada e extensa o
que eu prefiro, são os
Novos
Contos, o
Amor
Divino, e o
Antonio
Fogueira.
Desde que a critica hoje não é mais, no
dizer de Anatole France,
que as aventuras
do espirito de cada critico atravez dos livros
que este lê, porque não
confessarei que em
Bento Moreno prefiro o contista ao romancista?
É que o
Amor Divino, os
Novos Contos
e o
Antonio Fogueira, pintam
deliciosamente
e naturalistamente scenas da vida minhota,
quadros da paysagem minhota, traços,
condições peculiares, sentimentos e
impressões
da alma minhota.
Desdenhando inteiramente o successo facil
e o applauso condicional d'um publico
pouco litterario, Bento Moreno continuou
a seguir, com enlêvos de artista, o precioso
filão que descobrira.
Elle, de resto, não fez senão recordar-se
bem, e traduzir―pondo a
nota justa
nas
suas formosas interpretações artisticas,―as
[232]
scenas que vira e que presenceára na infancia,
inconsciente da graça nativa que d'ellas
se evola como um perfume acre e sadio!
Este escriptor, que o publico não tem favorecido
com excessiva attenção, é comtudo
um dos homens mais doidos pela sua arte,
que eu tenho conhecido na minha já não
curta existencia.
A fortuna, que ninguem mais do que elle
merecia, pol-o desde longos annos ao abrigo
d'esta necessidade ferrea, que nos traz a
tantos de nós, curvados sobre a banca do
trabalho, exhaurindo sobre ella a nossa força,
a nossa seiva intellectual, a nossa saude,
a nossa alegria, a nossa vida emfim.
Mas que lhe importava a elle esse secundario
accessorio?
O trabalho litterario é o grande e o mais
profundo amor da sua alma, tão nobremente
povoada de affectos santos.
Debaixo do seu sorriso de sceptico, sob
a sua palavra um pouco mordaz sem nunca
ser maledicente, um pouco acre, sem nunca
[233]
ser cruel, esconde-se um d'estes corações
d'ouro, uma d'estas organisações d'uma
sensibilidade
exquisita e dolorosa, excessivamente
impressionavel, aberta ás proprias
dôres, e o que é mais, ás
dôres d'aquelles
que ama! Esta sensibilidade fez d'elle, irremediavelmente,
o artista condemnado ás
gestações dolorosas da ideia, aos improbos
combates da fórma, ás tristezas invenciveis
dos longos periodos de desalento, ás luctas
sempre renascentes da creação artistica,
laboriosa e terrivelmente fatigante para o
cerebro.
Nos
Contos de Bento Moreno ha duas
figuras, que ressaltam principalmente, com
uma vida intensa, com uma realidade violenta.
São o
abbade e o
brazileiro, as duas
entidades importantissimas na paysagem risonha
e na farta vida tão singela da nossa
verde provincia.
[234]
Foram Camillo e Bento Moreno os que
comprehenderam e puzeram em poderoso
relêvo estas duas figuras caracteristicas e
tão nacionaes! Em Camillo, a linguagem
d'uma riqueza incomparavelmente superior,
a intensidade e a vivacidade comica da expressão,
que o tornam rival, muita vez triumphante,
dos maiores
humoristas do mundo,
imprimem nas suas creações a
perfeição e o
cunho soberbo das duradoiras obras, que
nenhuma revolução do gosto póde
destruir.
Bento Moreno, com muito menos belleza
na execução plastica da sua obra, com muitas
mais imperfeições de processo, dá uma
realidade mais viva, um cunho mais sincero
ao personagem. Camillo faz o typo; elle desenha
a physionomia muito individual, muito
caracteristica da figura evocada, de modo a
não deixar que se esqueça mais, ou que se
confunda com qualquer outra.
As concepções diversas, que os dois teem
da Arte percebem-se claramente nas differenças
fundamentaes do modo de a executar.
[235]
Mas o
abbade é
tão palpavel e real nos
Contos de Bento Moreno, como nas
paginas
scintillantes de
humor do grande
romancista,
e o
brazileiro tem talvez mais
verdade, visto atravez da lente microscopica
de Teixeira de Queiroz, analysado com
a paciencia de naturalista que distingue este
observador, do que pintado a
fresco
em
largas pinceladas d'um immorredoiro sabor
comico, pelo engenho extraordinario de Camillo
Castello Branco.
Percebe-se
à priori que o
genero em que
mais se deleita e em que mais excellentemente
se manifesta a imaginação e a
observação
de Bento Moreno, não favorece n'elle
o estudo das complicações psychologicas e
dos requintes sentimentaes, que tanto no
gosto estão dos leitores contemporaneos.
São almas simples as que elle melhor
analysa e disseca. Uma pequena ambição,
uma vaidade pueril, um sonho de primitiva
singeleza, uma paixão rude e instinctiva;
bastam para encher estas vidas ingenuas
[236]
que o artista se entretem em pôr a nú. Mesmo
o drama, quando apparece como no
Antonio Fogueira, é um
drama sem complicações
extranhas, sem contradições, sem
complexidade, sem mysterios de indecifravel
profundeza.
Ou selvagens, ou pueris, ou violentas ou
ingenuas, estas almas sentem impetuosamente,
n'uma explosão de instinctos irreductiveis
e ardentes; ou vegetam n'uma doçura
inconsciente de planta que medra ao
sol, bebendo a luz sem saber que a bebe,
amando sem ter a impressão de que ama!
O estylo de Bento Moreno que principiou
por sêr duro e inflexivel, como se não
houvesse meio de o fazer obedecer docilmente
á vontade e aos caprichos do escriptor,
e que pouco a pouco se foi transformando
e aperfeiçoando, ammolleceu-se n'este
ultimo livro―
Os Novos Contos―em
notas
d'uma melancolia discreta, e d'uma sensibilidade
suavemente vellada, e ha
Contos
d'elle
como a
A minha morte, o
Nosso Senhor
[237]
Jesus Christo, o
Cego de Guardiam, que dão
uma nova phase d'este talento progressivo,
e perfectivel como os talentos de bôa raça.
O Amor Divino (pathologia d'uma
Santa)
foi talvez um dos melhores assumptos, que
Bento Moreno encontrou no seu caminho
de observador e analysta scientifico das
doenças e manias do
animal
humano.
A influencia do
missionario na alma
rude,
ingenua e candida da mulher do povo das
nossas provincias do Norte, é, como todos
sabem, poderosissima.
Quando as
missões passam
pelas aldeas
de Portugal, que ainda estão sob a influencia
d'esse meio paganismo, que ellas julgam
religião catholica, o que succede ahi
de perturbador e de desordenado, chega a
parecer inverosimil e phantastico.
As raparigas deixam cahir, cortadas aos
pés, as longas tranças nem sempre excessivamente
[238]
cuidadas dos seus cabellos escuros
e bastos; as mulheres abandonam pela
egreja a casa onde o marido e os filhos ficam
entregues á mais deploravel incuria!
Ouvem-se pelas ruas e pelas azinhagas de
carvalheiras, em que a vinha de enforcado
pendura os pampanos verde-claros, brados
afflictivos de peccadôras arrependidas que
se lamentam; ha restituições de objectos
roubados, denuncias de crimes esquecidos,
bulhas medonhas entre os paes e as filhas
os maridos e as mulheres; as
beatas
arrepellam-se
por quererem, todas á uma, ser
a favorita do sr. missionario que mais virtude
apparenta; e nos campos tranquillos
e nas aldeias monotonas, que a ausencia
completa do aceio feminino torna sempre
tão tristemente contradictorias com a paysagem
circumdante, luminosa, farta e festiva,
tamanho movimento, tamanho bulicio,
tamanhas luctas se d
arrepellam-se
por quererem, todas á uma, ser
a favorita do sr. missionario que mais virtude
apparenta; e nos campos tranquillos
e nas aldeias monotonas, que a ausencia
completa do aceio feminino torna sempre
tão tristemente contradictorias com a paysagem
circumdante, luminosa, farta e festiva,
tamanho movimento, tamanho bulicio,
tamanhas luctas se desenvolvem, que chegam
a fazer, de cada passagem de missionarios
uma revolução memoravel.
[239]
Como em todos os movimentos sinceros
da alma popular ha n'este muito oiro e
muita escoria, muita cousa boa e muita cousa
má.
A inconsciencia animal, em que vive o
nosso camponez, é violentamente sacudida
pela prédica, sempre adquada ao seu rude
auditorio, do missionario que vem espalhar
pelo povo a
palavra de Deus. E,
certamente
levar uma pouca de luz a cerebros rudimentares,
tão profundamente submersos nas
trevas d'uma ignorancia absoluta e d'uma
inconsciencia moral verdadeiramente lamentavel,
poderia considerar-se uma obra santa,
se os missionarios se limitassem a fazer
penetrar no duro cerebro dos seus ouvintes
algumas noções de moral, de religião e
de
tolerancia mutua.
É porem exactamente o contrario que
succede, ou antes, succede o que é mais pernicioso
que tudo!
Dirigindo-se de preferencia ás mulheres,
d'uma impressionabilidade mais dolorosa e
[240]
mais vibratil, d'uma fraqueza organica mais
accessivel a qualquer influencia profunda, o
que elles fazem é exacerbar-lhes perigosamente
a sensibilidade, latente em todo o organismo
feminino, e precipital-as n'uma ordem
de ideias e de sensações morbidas, que
por tenebrosas e desconhecidas, são infinitamente
perturbadôras para as infelizes...
Pintando como peccado mortal a florescencia
do rude instincto irreductivel, e da
innocente e expansiva natureza; condemnando
como um crime horrendo o exercicio
das faculdades naturaes a todo o organismo
humano; fazendo a descripção medonha e
phantastica do inferno, que espera todos
os que tiverem a desgraça de faltar aos
preceitos da Egreja mais orthodoxa, e da
Moral mais austera; accentuando com traços
realistas, e com violentas côres brutaes,
feitas para fallar ao instincto da multidão
ignorante, esse Inferno em que os supplicios
são comprehensiveis pelo materialismo
grosseiro e pelas imagens physicas d'uma
[241]
revoltante energia;―os missionarios levam
a desordem, o desiquilibrio a todas as que
os ouvem, e a loucura ás imaginações
mais
exaltadas, e aos organismos mais fracos.
Quantas raparigas do povo enlouquecem
ao ouvil-os!... Quantas, fugindo para o
convento ou fazendo-se irmãs de caridade
procuram, na lida esmagadora ou na clausura
estreita aggravada pelos cilicios e pelos
jejuns, o perdão de imaginarios peccados
e de phantasticas culpas!...
Pois o
Amor Divino é isto
que pinta dramaticamente,
com verdade, com animação,
com muita diversidade de typos e de figuras
reaes, e bem tocadas.
O
Amor Divino é a
acção exercida pela
palavra candente e inflammada d'um missionario,
no espirito, no coração, na vida
interior, d'uma robusta e alegre minhota, risonha,
sensual, fortemente retemperada por
aquelle bello sol luxuriante e quente para
as sãs alegrias da vida e da maternidade
feliz!
[242]
O missionario transfigura-a, e pouco a
pouco, por uma gradação escrupulosamente
notada, leva a pobre moça á
exaltação, ao
hysterismo, ao delirio, ao mysticismo das
vizionarias e das stygmatisadas, á morte
emfim, acompanhada de torturas e de hallucinações
pavorosas!...
Se á belleza d'esta concepção, se
á intuição
delicada de tantos segredos intimos
da organisação feminina, se ao vigor
transcendente
do assumpto, correspondesse n'este
livro―um dos melhores de Bento Moreno―a
impeccavel pureza d'uma fórma
burilada e perfeita, este volume ficaria como
uma preciosidade litteraria incomparavel!
Raras vezes um assumpto tão verdadeiro,
tão rico de aspectos diversos, tão suggestivo,
se offerece ao estudo d'um observador
no genero especial de Bento Moreno!
Tem defeitos o livro? Tem. Mas é um
dos melhores, dos mais exactos, dos mais
bem feitos que devemos á penna de Teixeira
[243]
de Queiroz, e é um
documento soberbo
de verdade, e de vigor naturalista.
O
Antonio Fogueira, é
outro dos meus
estudos favoritos. Que bellas paginas de
paysagem, que notação exacta no estudo
d'esse typo tão caracteristico e tão popular
de
feirante, amando os bons
cavallos, o
bom vinho, as robustas e alegres cachopas,
vivendo com a inconsciencia vegetativa
d'um bello e forte bruto, que nenhuma lei
flexibilisou, em que nenhum
principio moral
actua, cujo duro craneo não abriga uma
ideia, mas em cujo temperamento vegetam―no
luxo enorme, na floração purpurea, no
regorgitamento sensual da seiva mais opulenta,―os
instinctos do selvagem, do animal
bravio independente e feroz.
Tanto o
Amor Divino como o
Antonio
Fogueira, tanto o primeiro volume como o
[244]
ultimo dos contos soltos, não poderiam ter
sido escriptos, pensados, sentidos, senão
em Portugal, senão na provincia em que
teem a sua origem e a sua raiz vigorosa e
tenaz. Este merito é enorme n'uma litteratura
como a nossa, em que muitos dos melhores
livros de costumes ou de analyse
psychologica parecem traduzidos do francez!
Eis provavelmente o defeito que as nossas
delicadas leitoras lhes encontram. Que
lhes importa a ellas, no fim de contas, o que
pensa um cerebro plebeu de abbade minhoto,
ou de homem do campo robusto, indisciplinavel
e brigão?
Que lhes importa o aspecto extranho
que assumem, o mysticismo e a exaltação
devota, na organisação robusta e brutal de
uma pobre e ignorante mulher do campo?
Não é assim que pensam os cardeaes e
os prelados, graciosamente affaveis, classicamente
eruditos, risonhamente paternaes,
delicados casuistas de consciencia, finos argumentadores
[245]
theologicos e ao mesmo tempo
conversadores adoravelmente indulgentes,
a quem ellas, as gentis catholicas do
mundo, beijam o annel encontrando-os
nas
salas mais
selected, ante os quaes
ellas se
ajoelham rendidas, nas cerimonias patheticas
e magestosas, austeras e tão impressionadôras
do culto, que praticam e professam
devotamente.
Não é assim que procedem os
dandys
que ellas conhecem e admiram; nem é assim
que a paixão dos divinos mysterios, que o
extase das insondaveis beatitudes, as aspirações
mysticas e a exaltação sagrada se
manifestam nas deliciosas e pallidas mulheres,
que ellas tractam de perto, e das quaes
algumas se refugiam de vez em quando, do
mundo que as trahiu e desenganou, sob o
habito austero das
vizitandinas, ou
sob a
grande touca branca de azas soltas das irmãs
de S. Vicente de Paula.
Eu propria, mais amiga dos estudos em
que a alma moderna,
atormentada,
saciada,
[246]
desformizada por uma cultura excessiva, sonhadora
de amarguras e de volupias ineditas,
traduz as suas dôres peculiares, as suas
doenças complicadas e extranhas, eu propria
inacessivel ás vezes á sã e robusta
influencia da mãe natureza, me penitenceio
aqui do crime de que accuso as leitoras.
E no entanto a critica não deve assim
proceder, para ser lucida e justa. A sua
obrigação é collocar-se nos mais
diversos
pontos de vista, e explicar e comprehender
as mais diversas tendencias.
Acceite, sem condições de especie alguma,
o ponto de partida do escriptor, o que
ella tem de verificar é se a obra correspondeu
á concepção embryonaria, e traduziu
bem a sua ideia inicial.
As mais oppostas manifestações de arte
são igualmente legitimas perante o critico,
os temperamentos mais contrarios obedecem
á lei superior que os justifica, explicando-os,
e per
As mais oppostas manifestações de arte
são igualmente legitimas perante o critico,
os temperamentos mais contrarios obedecem
á lei superior que os justifica, explicando-os,
e perante a qual, quem só procura a
[247]
verdade e só a verdade investiga, tem de
curvar-se com respeito sincero.
Não me parece que na sua
Comedia
burgueza,
Teixeira de Queiroz fosse tão feliz
como na
Comedia do Campo.
O estylo tem sempre progredido, a
maneira
do escriptor, á proporção que elle
avança na vida, vae-se tornando ao mesmo
tempo mais flexivel, mais firme e mais sinuosa.
Comtudo é fóra de duvida que o seu instrumento
de analyse presta-se menos ao
estudo do meio burguez, mais complicado e
mais réles, do que se presta á
observação
larga e feliz dos costumes campestres, e das
simples almas plebeias e incorruptas, mesmo
até na violencia ou no crime.
Os
Noivos são talvez uma
pintura exacta.
[248]
Exacta de mais! Não a sobredoira um
raio de luz ideal. N'esse casal burguez profundamente
antipathico e inesthetico, o marido
é mediocre, pobre, mesquinho de comprehensão
e de sentimento, incapaz de nos
interessar pela sua figura incolor e em que
nenhuma paixão cravou a garra leonina,
em que nenhuma força desenvolve e manifesta
energias latentes.
A mulher
é mal
educada, é
rélesmente
ambiciosa, coquette sem graça, amiga do
luxo sem intuição artistica do seu valor,
sensual sem impetuosidades de femea robusta
e indisciplinavel. O meio em que elles se
movem corresponde, pelo seu acanhado ambito,
aos personagens, que longe de reagirem
contra elle se lhe subordinam ás leis
corruptôras.
É esta uma pintura real da pequena burguezia
das grandes cidades? Não creio que
o seja. Mas é um recanto d'essa classe, que
toca d'um lado no povo inculto, que por outro
se relaciona com uma cathegoria social
[249]
mais rica, mais educada e mais ambiciosa;
tendo os vicios d'uma e d'outra classe, sem
ter nenhuma das qualidades solidas e grandes
que no bem, distinguem e caracterisam
qualquer das duas.
Essa classe dubia que tem do povo a
grosseria do instincto e que tem da burguezia
a ancia de
parecer, o amor do luxo
apparente e barato, a ambição de elevar-se
socialmente, o respeito das cousas officiaes,
das pessoas e superioridades consagradas,
está aqui realmente apanhada, em muitas
das culpas flagrantes que a assignalam e a
tornam tão profundamente antipathica para
o artista! Vê-se que Bento Moreno empregou
n'este estudo o mesmo escrupulo de
naturalista, a mesma indifferença de observador
e de colleccionador, ao qual o sapo e
a andorinha, a rosa ou o cardo, a borboleta
multicôr ou a viscosa lagarta, interessam
igualmente, e igualmente sollicitam e prendem!
Foi o mundo politico que no
Grande
homem
[250]
e no
Sallustio
Nogueira, Teixeira de
Queiroz tentou estudar de mais perto.
São simples tentativas no genero estes
trabalhos. Em ambos se manifestam as qualidades
e os defeitos do escriptor. Mas o estylo
tem sem duvida um grande progresso.
Faltam os dados para a observação
positiva;
os factos não tem aquelle
carimbo de
verdade tão indispensavel ao romancista da
nova escola; o
documento humano nem
sempre
é authentico e incontestado. Tudo isto
porem virá com o tempo, e essas
acquisições
secundarias dependem do esforço e do
poder de vontade empregados pelo escriptor.
Concluindo repetirei o que já disse. A
impopularidade de Bento Moreno é inteiramente
injustificavel.
Não falta a este escriptor a graça natural
[251]
nem o colorido pittoresco e vivo, nem a
sensibilidade mais vibrante e mais enternecida!
Elle comprehende a natureza como poucos;
é genuinamente portuguez no modo de
sentir, e de traduzir a impressão que lhe é
suggerida pelo espectaculo do mundo; e no
seu talento impressionavel e delicado, ha
uma flôr de sinceridade, de honestidade e
de nobreza ingenua que me encanta!
No mundo actual em que triumpha o materialismo,
o mercantilismo, o amor do ganho,
elle adora com tocante desinteresse a
Arte, que nem sempre o tem recompensado
dos seus extremos, o trabalho que prosegue
infatigavel, sempre em busca do melhor,
sempre aspirando ao ponto mais alto
e á comprehensão mais ampla do seu assumpto,
sempre perseguindo aquella verdade
relativa que é dado a cada homem
possuir ou sonhar...
Cada novo livro tem revellado n'elle um
progresso ou de estylo, ou de sentimento
[252]
e de observação. Espirito eminentemente
progressivo, Bento Moreno não nos deu
ainda a medida completa do seu valor.
Atravez de todos os seus livros―marcos
milliarios d'uma marcha ascencional―elle
tem caminhado para alguma cousa de definitivo
e de completo, que se está elaborando
talvez inconscientemente no cerebro
fecundo do notavel contista, e que hade
surgir, enriquecida de todos os dons variados
e preciosos que elle tem ido lentamente,
gradualmente adquirindo e manifestando
em cada novo volume publicado.
Entre o auctor do primeiro volume da
Comedia do Campo e o auctor dos
Novos
Contos, que extraordinaria differença, mas
que progresso logico e natural!
Muitas das qualidades que só appareceram
ali em germen apenas, fructificaram já;
muitas estão na primeira flôr, e muitas
não
conseguiram ainda sahir do estado embryonario
em que pela primeira vez appareceram.
Mas o tempo que produz o seu effeito
[253]
n'alguma d'ellas, ha de exercer nas outras
a mesma acção embora mais tardia, e cada
novo livro de Bento Moreno confirmará, estou
certa, este diagnostico da critica.
Felizes os espiritos progressivos porque
elles são os que triumpham do tempo, felizes
os escriptores que em cada obra affirmam
uma nova qualidade, porque n'elles o
talento é uma ascenção laboriosa
embora,
mas feliz e consoladôra para a luz e para o
ideal!
SEGUNDA PARTE
Octave Feuillet
une morte
O CASAMENTO E A EDUCAÇÃO
I
Visto que é da França que nos vem
o santo e a senha, olhemos para a
França, onde litterariamente se discutem
sempre questões geraes, que a todos
interessam.
N'este momento, e como que em protesto
á obra naturalista e á escola que a
produz―escola
de que Zola está dando a formula
no seu ultimo livro:
L'oeuvre―Octave Feuillet,
o velho romantico, acaba de publicar, na
[258]
Revista dos Dois Mundos, um estudo
intitulado:
a
Morta.
A
Morta é uma especie de
pamphleto, escripto
na adoravel maneira, um pouco falsa,
do elegante romancista contra a invasão
crescente e victoriosa das ideias modernas.
Ora o que os velhos de todos os tempos,
de todas as raças, de todas as
civilisações
chamam
ideias modernas, combate-se
sim,
mas não se vence.
A evolução permanente, a lenta
transformação
fatal das ideias humanas, está fóra
da acção exercida pela vontade individual.
Cada geração traz o seu contingente á
formação d'esse inventario enorme, que
é feito
de todas as riquezas do pensamento e de todas
as acquisições progressivas da Sciencia,
e ninguem tem no seu poder regeitar ou
acceitar um facto que é de si inevitavel.
As ideias modernas triumpham sempre, e
é por isso mesmo que a humanidade não
pára, e caminha incansavelmente á procura
do que julga
melhor.
[259]
Imagina enganar-se?
Muito embora!
Retrocede, mas não pára.
E, n'esses momentos de retrocesso os velhos,
que assistem a um espectaculo diverso
d'aquelle a que assistiram moços, continuam
a chamar
ideias modernas ao que mais
propriamente
se chamaria
ideias renovadas.
O
naturalismo exigente, exagerado ou
brutal, tal como elle hoje tenta estabelecer-se
na arte e nos costumes, será uma
invenção
moderna?
Decerto que não!
Na Grecia encontramol-o soberbo, triumphante,
constituindo só por si a religião, a
lei, a moral, a civilisação completa, harmoniosa
e feliz, que é ainda o modelo para o
qual todos os olhos se levantam embevecidos
e saudosos.
Na derrocada final do mundo romano,
achamol-o como um facto irresistivel, como
uma manifestação inconsciente de
força, na
onda germanica que invade o imperio caduco,
[260]
e vem refundir physiologica e moralmente
a raça cuja actividade especulativa,
levada aos requintes extremos, se tornara
na mais rapida e fatal das decadencias.
Mais tarde, ao sair das trevas gothicas,
o que foi o mundo, senão o mesmo que hoje
está sendo com menos pompa decorativa,
com menos vigor physico e moral, com menos
vivo sentimento do pittoresco?
A ideal exaltação de que o
romantismo
de 1830 fez escola, seria porventura, n'aquella
quadra, uma
ideia moderna?
O que foram as epochas de cavallaria, ao
mesmo tempo mystica e sensual, o que foi
a quadra das
côrtes de
amor, dos trovadores
e dos pagens, dos cultos platonicos levados
até ao exagero ridiculo, dos enthusiasmos
apaixonados e symbolicos pela mulher,
senão a traducção na litteratura e nos
costumes do mesmo estado mental, menos requintado,
menos perfeito, menos contradictorio,
menos complexo, menos
civilisado
emfim?
Já nada ha moderno sob a face dos ceus!
[261]
Nous sommes revenus de tout, mas
depois
de tudo havermos experimentado!...
Como quer que seja, Octave Feuillet fez
um romance, combatendo as ideias modernas,
e poz n'esse romance, delicioso em todo
o caso, todas as suas qualidades e todos os
seus defeitos de escriptor.
Entendamo-nos:
Octave Feuillet não é um escriptor profundo,
é um escriptor elegante. Pinta com
uma seducção de pincel muito sua, pinta
de
chic, na phrase de
atelier, uma certa
especie particular da sociedade franceza.
A aristocracia refinada, devota e monarchica,
adora Feuillet, a quem no fim de contas
não deve muito, porque se quasi todas
as suas mulheres são encantadoras de graça
e distincção, n'ellas a virtude é,
raramente,
um principio inabalavel; em quanto que a
fraqueza é na maior parte das vezes um requinte
delicioso.
A gente gosta de ler Feuillet, como gosta
de estar n'um salão elegante.
[262]
Conversa-se ali bem, no tom discreto e
nuancé das
conversações aristocraticas; respira-se
um aroma de feno, ou de tilia, que
tem suavidade sem produzir entontecimentos;
as reticencias, subtilmente accrescentadas
á phrase, dão a esta um sabor vivo e
penetrante, sem todavia melindrarem de
leve as conveniencias mais correctamente
exigentes; as intenções finissimas sublinham
o dialogo, a graça da observação
substitue-se
á profundeza dolorosa da analyse.
A paixão nunca ali soltou o seu uivo estridulo
e dilacerante. Ama-se, como se faz
tudo o mais... correctamente.
O homem é, primeiro que tudo,
gentleman;
a mulher é, antes de mais nada, senhora!
As paginas de Feuillet poderiam ler-se á
vontade n'um d'estes adoraveis salões convencionaes,
que todo o artista aprecia, mas
no qual elle não aprenderia nunca a conhecer
a rude naturesa brutal, a que tem exigencias
fataes, a que tem gritos de paixão
[263]
impetuosa, a que, pelo amor robusto e sagrado
da verdade, atira por terra todas as
hypocrisias, todas as convenções, todos os
veus, todos os sophismas que a mascaram,
que a desformisam, que a falseiam, que fazem
d'ella uma coisa immoral e cahida no
desagrado das familias.
Feuillet é pois genuinamente, o romancista
para a ordem de pessoas acima descriptas,
o romancista distincto na mundana
accepção da phrase.
São deploraveis os seus imitadores, como
são detestaveis na burguezia os salões que
tentam imitar a inimitavel graça aristocratica
dos outros.
Sob este ponto de vista, um pouco restricto,
é que o escriptor tem de ser julgado.
Consideral-o um observador profundo,
um psycologico completo, um moralista convencido,
é pol-o inteiramente fóra da esphera
que lhe é propria.
Com tudo, tal é o desejo que toda a gente
professa de fazer positivamente aquillo para
[264]
que não tem o minimo geito, que Feuillet teve
sempre a tentação de versar e discutir problemas
moraes e problemas phylosophicos
da mais alta importancia.
Na
Histoire de Sybille, elle
já pintou, delicadamente,
finamente, com uma subtilesa
de mão encantadora, o conflito que póde
dar-se na moderna sociedade entre a mulher
educada dentro do ideal catholico mais orthodoxo,
e o homem nascido e creado no
meio sceptico e indifferente que nos envolve.
Respondeu a este livro―que desejava ser
uma these philosophica, e, que foi apenas,
felizmente para o auctor, uma novella encantadora,―a
Mademoiselle de La Quintinie,
de George Sand, e lembro-me d'esse volume
como d'um dos mais aridos e mais seccantes
da grande escriptora.
É que a
these feita
romance é quasi sempre
pretenciosamente enfadonha.
Agora, é ainda um livro d'esta ordem, o
ultimo livro do auctor do
Conde de
Camors.
Duas questões de uma só vez tenta elle
[265]
tratar no seu livro. O problema terrivel do
casamento, e o problema não menos perturbante,
não menos difficil, da moderna
educação da mulher.
Vejamos o enredo do livro:
Bernardo de Vaudricourt, um moço pariziense
da primeira nobreza, da primeira
roda e de primeira educação, apaixona-se
por uma menina de eguaes condições de
posição, nobreza e fortuna.
Elle, porem, inteiramente contaminado
pelas ideias do mundo em que tem vivido,
é uma completa imagem do scepticismo
contemporaneo.
Já se vê que não tem tido tempo de
sondar
o que ha, no fundo das questões que regeita.
E sceptico como... toda a gente. Nem
melhor nem peior, nem mais nem menos.
A controversia philosophica ou religiosa
nunca lhe levou nem uma hora dos dias occupados
em montar a cavallo, em caçar, em
valsar, em seduzir as mulheres dos seus
[266]
amigos intimos, em jogar no seu
club, e em
encher de brilhantes o peito das actrizes em
voga. Que querem! É sceptico por dever de
sociedade.
Qual é o homem do
sport
que se atreveria
a confessar-se crente nos dias que vão
correndo?
Sciencia não a tem, já se vê, mas visto
que não sabe quasi nada, entende mais commodo
não acreditar no que não sabe.
Como gentil homem que é, tem o que na
sua raça, no seu meio, se chama o culto da
honra.
A
honra é a coisa mais
indefinivel e mais
elastica que ha n'este mundo.
Dentro dos seus limites cabem tantas e
tão boas coisas, que não vale realmente a
pena a quem se respeita, ultrapassal-os e
excedel-os!
Aliette de Courteheuse, a noiva, é um
anjo de puresa, mas é tambem um anjo de
piedade orthodoxa. Educaram-n'a dentro do
codigo genuinamente catholico; ás crenças
[267]
que a familia lhe communicou pela educação,
reune uma exaltada comprehensão
dos deveres e da vida, e um certo desdem
aristocratico pela actualidade tão banal e
tão cheia de contrasensos, tão feita de
transigencias
e de covardias.
O amor porém, vence os obstaculos moraes
que separam estes dois caracteres tão
contrarios, e Bernardo casa-se com Aliette
de Courteheuse.
A parte mais estudada do romance é
aquella em que Feuillet conta, analysa, descreve
e sublinha subtilmente todos os conflictos
inevitaveis que d'esta união vão resultar.
Porque Aliette não é uma d'estas catholicas,
que harmonisam o baile com os officios,
a confissão com as desordens de uma
vida
à outrance, o
mundanismo requintado,
com as praticas mais estreitas.
Não!
Esta é uma crente, uma alma que identificou
a sua religião e o seu dever, e fez dos
[268]
dois estreitamente entrelaçados a lei suprema
da sua existencia inteira. Esta não é das
que pegam no seu
catholicismo, como
quem
pega no seu livro de missa: unicamente para
os levar á egreja.
Tudo que ella pensa, tudo que ella sente,
tudo que ella pratica, se subordina ao alto
principio a que submetteu a sua vida.
No museu de pintura, no theatro, nas salas
elegantes onde a vida moderna ostenta
as pompas viciosas do seu goso, no interior
da familia, ao pé dos indifferentes e ao pé
do seu marido Aliette é sempre impeccavelmente,
a bella e escrupulosa creatura,
que para se respeitar a si propria, precisa
de não transigir com os sophismas e as
contradicções
dos outros, que para não descer
aos seus olhos, precisa de não afastar os
passos que dá do ideal que concebeu!
Realise-se esta hypothese figurada pelo
primoroso romancista,―a mulher profundamente
e sinceramente religiosa ao pé do marido
indifferente para umas coisas, incredulo
[269]
para outras, sempre divorciado moralmente
da mulher amada,―e ter-se-ha esse obscuro
inferno da vida domestica tantas vezes apontado,
tantas vezes combatido por mim.
O casamento tem só uma base moral, séria
e inviolavel; é a uniformidade de vistas
entre marido e mulher a respeito das questões
fundamentaes da vida.
A felicidade, sem essa base, é uma chymera
irrealisavel, e eis o motivo porque em
cem casamentos desgraçados, ha um que o
não seja.
II
A vida dos dois heroes do livro é portanto,
dilacerada obscuramente por dissenções
intimas, que ambos elles, por mais vontade
que tenham de facilitarem reciprocamente
a felicidade commum, não podem
evitar que se levantem a cada passo.
Conclusão tremenda do auctor, indicada
[270]
apenas, mas clara para todos os olhos: a
mulher piedosa não pode, dado o modo de
ver do homem moderno, achar a paz da
consciencia, achar a harmonia das coisas na
vida conjugal.
Surge, porém, em scena, a mulher educada
segundo o que Feuillet quer imaginar
o ideal moderno,―a mulher que lê Darwin,
que applica na existencia as theorias do
grande sabio inglez, que conhece as sciencias
naturaes e que fortaleceu o seu espirito
na formidavel negação que d'ellas resulta
como um effeito fatal,―e Feuillet reune n'ella
todas as monstruosidades, todos os crimes,
desde a abdicação voluntaria da honra
até
ao assassinio.
Perto da propriedade rural, para onde
Bernardo de Vaudricourt consente em retirar-se
com a mulher, depois d'esta ir quasi
que morrendo de dôr na vida de
dissipação
parisiense que ao principio é obrigada a seguir,
vive um medico retirado da clinica,
um chimico notavel, que fez da sobrinha e
[271]
pupilla uma discipula dilecta da sua philosophia
materialista, uma companheira dos seus
trabalhos scientificos, uma ajudante das suas
experiencias chimicas e physiologicas.
Sabina, a sobrinha do doutor, é, segundo
Feuillet parece pensar, a mulher moderna,
tal qual vae ser, creada pela educação que
a França está dando ás suas filhas.
Pois Sabina envenena Aliette para casar
com Bernardo; consegue casar com este, depois
de ter feito morrer de degosto o tutor
e tio, e a breve trecho é infiel ao marido,
com o primeiro que lhe apparece diante dos
olhos, e responde muito serena a quem ousa
interrogal-a, que fazendo tudo isto, e muito
mais ainda, se é possivel fazer-se mais, ella
segue simplesmente até ás suas consequencias
logicas as doutrinas com que lhe embeberam
o espirito infantil.
Quando o doutor Tallevaut descobre
o horrivel crime commettido pela sua adorada
sobrinha e lh'o lança em rosto antes
da apoplexia que o fulmina, ella responde-lhe
[272]
que é apenas sua humilde discipula.
―«Minha discipula, miseravel! exclama o
desgraçado. Pois eu ensinei-te alguma vez
principios diversos d'aquelles que eu proprio
praticava? Pois eu dei-te, pela minha palavra
ou pelo meu exemplo, outras lições que
não fossem de rectidão, de justiça, de
humanidade
e de honra?...
―«Realmente o meu tio surprehende-me
immenso. Como é que um espirito tão lucido
poude deixar de perceber, que eu podia tirar
das suas doutrinas e dos nossos estudos
communs, consequencias e ensinamentos diversos
d'aquelles que o seu espirito tirava?
A arvore da Sciencia, não produz em todos
os terrenos os mesmos fructos?... Fallou-me
de rectidão, de justiça, de humanidade
e de honra?... Espanta-se que as mesmas
theorias que lhe inspiraram essas virtudes
m'as não houvessem inspirado a mim?... E
com tudo a rasão d'isto é bem simples...
Sabe tão bem como eu, que essas suppostas
[273]
virtudes, são na realidade facultativas...
pois que não passam de instinctos... de
verdadeiros preconceitos que a natureza nos
impõe... por que necessita d'elles para a
conservação e progresso da sua obra...
Gosta de submetter-se a esses instinctos...
eu não gosto... eis a unica differença que
nos separa.
«―Mas eu não te disse e não repeti mil
vezes, desgraçada, que o dever, a honra, a
propria felicidade consistiam na submissão
a essas leis naturaes, a essas leis divinas?!
―Disse-m'o, «e assim o julga, bem sei...
Eu, pela minha parte, creio o contrario. Creio
que o dever, que a honra d'uma creatura
humana consiste em revoltar-se contra essas
servidões, em sacudir essas cadeias com que
a natureza... ou Deus, como quizer, nos
prende, nos opprime, para nos fazer cooperar,
contra a nossa propria vontade, n'um
fim desconhecido... n'uma obra a que somos
estranhos... Ah! de certo. O meu tio
disse-me e repetiu-me mil vezes que era
[274]
para si não sómente um dever, mas até
uma
alegria, o poder contribuir humildemente
pelos seus trabalhos e pelas suas virtudes
para não sei que obra divina, para não sei
que fim superior e mysterioso, que é como
o alvo supremo, a que o universo se encaminha...
Mas que quer? esses prazeres deixam-me
a mim perfeitamente insensivel; não tenho
o minimo desejo de levar a vida a constranger-me,
a privar-me, a soffrer, para preparar,
a não sei que futura humanidade, um estado
de felicidade e de perfeição, do qual nada
gosarei, festas a que não posso assistir, paraizos,
emfim, onde não entrarei nunca!...
E depois de continuar n'este tom meia
hora, amontoando paradoxos, argumentos
falsissimos, dos quaes a sciencia humana
nunca, que eu saiba, se serviu, acrescenta:
«Um crime foi o que eu perpetrei?... Mas
isto de crime não passa d'uma palavra, bem
sabe.
[275]
«O que é o bem? O que é o mal? O que
é verdadeiro e o que é falso?
«Na realidade o codigo da moral humana
não passa hoje d'uma pagina em branco,
na qual cada um escreve o que quer, segundo
a sua intelligencia e o seu temperamento.
«Já não ha senão cathecismos
individuaes...
O meu é aquelle que me foi pregado pelo
exemplo da propria Natureza: ella elimina
com egoismo impassivel tudo que a incommoda;
ella supprime tudo que lhe é obstaculo;
ella esmaga o fraco, para dar logar ao
forte... e creia que não é de hoje que esta
doutrina é acceite pelos espiritos livres e superiores.
Em todos os tempos se disse: os
bons vão-se embora cedo! Não, não
são os
bons que se vão embora, são os fracos, e
não fazem mais que o seu dever. Quando
a gente lhes presta n'este sentido um pequeno
auxilio, imita apenas o exemplo do
creador! Leia o seu Darwin; leia o seu Darwin,
meu tio!»
[276]
O pobre do tio responde a esta bella tirada
caindo varado por uma congestão; e
Sabina d'ahi a pouco tempo, casada já com
Bernardo, responde ao marido, que a accusa
de faltar aos deveres mais elementares da
mulher, pelo mesmo modo emphatico e pedantesco,
e com os mesmos argumentos falseados,
desformisados pela vontade do escriptor.
Por tanto a ignorancia de Feuillet a respeito
de Darwin, ou a sua má fé litteraria,
é evidente na intenção d'esta obra.
Eu não conheço profundamente a doutrina
do naturalista inglez; mas conheço-a bastante
para poder affirmar que nem essa doutrina
é uma philosophia, nem Octave Feuillet
tem d'ella a comprehensão mais elementar.
Darwin, dos seus estudos analyticos e
das suas observações e experiencias, deduziu
algumas leis com applicação restrictamente
biologica, e que só por um aventuroso
esforço de analogia se podem applicar
á sociologia e á historia.
[277]
A selecção natural, a luta pela vida no
mundo organico não passaram ainda de hypotheses,
segundo o rigoroso criterio da
philosophia positiva; mas, quando chegassem
a converter-se em leis perfeitamente
liquidadas, haveria entre o dominio d'essas
leis e os factos superiores do pensamento,
a mesma distancia scientifica que vae de
quaesquer theorias geneseticas do mundo
até quaesquer systemas de embryogenia animal.
Resta-nos, por tanto, a convicção de que
o auctor procedeu de má fé.
As applicações da doutrina de Darwin
aos factos sociaes, feitas pelos mais illustres
dos seus discipulos, por Spencer por exemplo,
estão penetradas de um espirito moral
austero e digno, a que faltará talvez uma
base scientifica, mas a que não faltam de
certo a elevação e a belleza. Feuillet, por
conseguinte, é tão exacto, é
tão verdadeiro,
é tão honesto na sua obra como seria qualquer
livre pensador que, para combater a
[278]
moral catholica, a mostrasse exemplificada
na devassidão de Alexandre Borgia, no instincto
sanguinariamente devoto de Carlos
IX, no fervor assassino de Torquemada, no
fanatismo criminoso dos que acenderam as
fogueiras da inquisição, dos que vibraram o
punhal da S. Barthelemy, dos que bem disseram
as dragonadas de Nantes, dos que
organisaram a matança dos Algibenses, dos
que teriam perdido a Egreja, se a Egreja
não tivesse a salval-a na historia, e ainda na
actualidade, a sua missão civilisadora pela
disciplina, pela arte, pela politica, pela unidade,
pela sciencia, e, sobretudo, e principalmente,
por ter mantido sempre,
acima do
interesse dos individuos e do egoismo
das nações, o principio da humanidade, que
antes d'ella o mundo não conhecera.
Aquelles todos comprehenderam tão bem
o catholicismo, como a heroina de Feuillet
comprehendeu o alcance moral, pequeno ou
grande, que pode extrair-se da doutrina
darwiniana.
[279]
Já se vê que o que pode concluir-se do
livro de Octave Feuillet é realmente desconsolador
até á desolação mais intima
e
mais profunda.
A piedosa e doce mulher christã, collocada
em plena sociedade elegante do seculo
XIX, tem que fugir, por que principia a perder
pé, e tem medo de naufragar. Entre ella
e seu marido nunca chega a realisar-se a
união intellectual, a invejavel
identificação
de duas almas, sem a qual o casamento é
apenas a attracção dos dois sexos, legalisada
perante Deus e perante o mundo.
A vida intima que todos sonham tão penetrada
de luz beatifica, tão unida, tão ardentemente
vivida por dois espozos moços,
intelligentes, namorados, torna-se para qualquer
d'elles um lento e obscuro supplicio
que os punge, e que, por mutua caridade,
elles tentam disfarçar.
A mulher, desligada do ideal catholico, é
o monstro que mata, que atraiçoa, que morde
a mão que a alimentou, que precipita na
[280]
deshonra e na inconsolavel dôr o marido
que a estremeceu?... Que ha então a fazer?...
Que alvitre proporá o auctor de
une
morte?...
Eu por mim humildemente declaro
que não concordo com o que elle diz, que
não
acceito, as suas
aterradoras
conclusões.
III
É fóra de duvida que hoje a questão
religiosa,
existente em toda a parte, aqui revelada,
ali occulta, é uma das causas determinantes
do horrivel mal-estar que tortura o
nosso tempo e principalissimamente a nossa
raça, mas não se conclua da enorme importancia
d'essa questão que a mulher,―fatalmente
educada n'este meio cada vez mais
materialista, mais negativo, mais incredulo
em tudo que seja sobrenatural e alem do humano,―se
transforme no perigoso monstro
phantasiado por Feuillet.
[281]
Que culpa teem as pobres creaturas, educadas
agora, das ideas que pairam sobre todos
nós, que nos penetram insensivelmente,
que nos roubam ao influxo mystico do catholicismo,
que, mau grado nosso, substituem
pela duvida dolorosa, pela curiosidade analytica,
pela ancia penetrante de saber, os enthusiasmos
fervidos, as crenças pueris e simples
da nossa mocidade.
Não são os homens que nos teem ensinado
a duvidar do que elles duvidam? não são
elles que nos teem perturbado, agitado, com
a sua duvida e incerteza? e sobretudo desnorteado
com a leviandade cynica da sua
negação? E terão elles tambem culpa
por
ventura de que os descobrimentos extraordinarios
e imprevistos da sciencia, de que o
alargamento continuo e progressivo do pensamento,
de que as lições irresistivelmente
verdadeiras da natureza, desvendada emfim,
depois de tantos seculos de mysterio, lançassem
por terra, de envolta com a tradição
desmentida, tantos dos alicerces em que
[282]
elles haviam construido o edificio da sua
crença?!
Sim, o catholicismo sendo o codigo mais
completo que a humanidade elaborou ainda,
tinha soluções para todas as crizes do nosso
destino, podia dar-nos a paz, podia satisfazer
as mais irrequietas ambições da nossa
alma. Mas esse catholicismo, contra o qual
o enorme oceano chamado humanidade deixou
durante vinte seculos bater a onda tremenda
das suas duvidas―foi por ventura a
nossa geração que o fez em ruinas?!
Se a tibieza da fé, se a incredulidade no
mysterio, se o desdem pelo sobrenatural são
factos, dolorozos muito embora, se assim o
querem, mas factos positivamente adquiridos,
se a ancia da verdade, impondo-se ao
homem, lhe deu na duvida a sua gloria maxima
e tambem a sua maxima tortura, se a
nenhum de nós, filhos d'este seculo, e vergados
ao pezo terrivel e tragico d'essa herança
titanica de tantos seculos de investigação
e de angustia, nos é dado fugir á excruciante
[283]
agonia da nossa eterna e audaciosa
interrogação, se nós fômos
os eleitos
da Historia para esta tragedia que consiste
em agonisar junto ao tumulo d'um Deus, digam-me:
não será tempo de fazer uma tentativa
suprema, que pacifique emfim a nossa
consciencia desnorteada e vacillante?...
Pois se fora do catholicismo não podem
subsistir as grandes leis moraes, de cujo
austero cumprimento depende a nossa felicidade
e a nossa intima paz, assim se lançam
ás gemonias tantas almas sinceras, tantas
almas inquietas, tantas almas sedentas de
verdade e de justiça, que não acharam na
Egreja a solução aos graves e complexos
problemas da vida?...
Porque, emfim, o catholicismo não é uma
convicção raciocinada, é uma
fé subjugadora.
Ha muitos espiritos, que, achando a organisação
catholica a mais elevada expressão
de força intelligente, que, achando a disciplina
catholica o mais frizante e
Porque, emfim, o catholicismo não é uma
convicção raciocinada, é uma
fé subjugadora.
Ha muitos espiritos, que, achando a organisação
catholica a mais elevada expressão
de força intelligente, que, achando a disciplina
catholica o mais frizante exemplo da
vontade applicada á moral, sentem com tudo
[284]
que, para serem catholicos, lhes falta simplesmente...
tudo!
Tudo, quer dizer a fé na origem divina
d'essa religião que os enthusiasma, que os
apaixona, considerada como resultante de
uma serie de leis historicas e puramente humanas.
A nossa crença, ou a nossa duvida,
estão em nós; mas dependem acaso de
nós?
Não, mil vezes não!
Os estados da nossa consciencia proveem
do ambiente moral que temos respirado
desde o berço e de uma serie de causas
existentes já antes de nós existirmos, e cujos
effeitos herdámos involuntaria, inconscientemente.
Se a nossa vontade entra como elemento
importante na obra complexa do nosso destino,
ella é apenas um elemento, subordinado
a centenas de outros, que nós não podemos
sujeitar, nem prever sequer.
Assim como o sangue que nos corre nas
veias vem eivado, ou fortalecido já, de maculas
ou de qualidades hereditarias, o nosso
[285]
espirito traz impresso o cunho de mil influencias
anteriores á propria formação d'elle.
Ninguem se esquiva ás idéas do seu tempo;
e tão impossivel seria Voltaire em plena
Edade Media, como S. Francisco de Assiz
em pleno seculo XIX.
Portanto, tudo o que se diga hoje, para
provar que a mulher é absolutamente obrigada
a ter a fé de santa Theresa, não passa
d'um entretenimento de rhetorica, sem a minima
seriedade, e sem o minimo pezo.
Eu, já se vê, que ponho aqui completamente
de parte aquella porção distincta e particular
da sociedade do meu tempo, para a qual
a religião é um luxo, requintado, feito de
pequeninos
apuros frivolos, um ritual de praticas
estereis, sem pensamento, sem alma, sem
significação moral, um preceito de alta
educação
mystico-elegante, um formulario ôcco,
uma lampada artisticamente cinzelada, sim,
mas já sem oleo perfumado e sem luz fecunda
e clara! Mas se, alem d'essas praticantes,
que sabem a letra do Evangelho e
[286]
que não sabem ou não querem saber a preciosa
essencia do seu espirito, se alem d'essas
zelosas, que contradizem e desmentem a
cada passo a doutrina que acceitam, ha ainda
hoje creaturas simples, piedosas, absolutamente
crentes, que teem a fé
do
carvoeiro,
como guia da propria existencia, que, aquellas
que não podem imital-as lançam para ellas
um olhar de admiração, de inveja sem
fel, e lhes digam ingenua e simplesmente!―Abençoadas
sejaes vós, ó doces e queridas
irmãs, que nunca tereis de hesitar nos desfiladeiros
e nos algares, nas asperas charnecas
e nas rudes montanhas d'esta vida!
Abençoadas sejaes vós, que pudesteis fechar
os ouvidos ao clamor confuzo das gerações
atormentadas e não ouvir o que dizia, no murmurio
vago das noites mysteriozas, a voz de
tantos ardentes corações, pedindo á
Natureza
um raio de luz, um raio de verdade, a
pacificação suprema ás torturas,
sempre renascentes,
da Duvida! Abençoadas sejaes vós,
que para cada pergunta da vossa consciencia,
[287]
tendes a resposta prompta do vosso codigo
divino!
E depois da rapida e ephemera passagem,
que é para vós a vida, tendes, para
matar todas as sedes, a Eterna fonte sempre
limpida; para compensar de todas as
abnegações terrestres, a celeste recompensa,
sempre renovada; para satisfazer todas
as ambições ainda as mais incontentaveis, a
ineffavel beatitude sempre luminoza e sempre
azul!
São essas as felizes, as privilegiadas, as
raras.
Mas não são essas que precisam das lagrimas
da minha piedade, nem dos conselhos
da minha razão.
As que n'este momento de transição terrivel,
eu supponho bem dignas de piedade,
aquellas para quem eu desejava ver formulado
um codigo de moral positiva, feito de
todas as acquisições da experiencia,
são as
que não teem uma fé solida a dirigil-as na
vida.
[288]
A moral preciza de tornar-se independente
de qualquer religião, para ser, ao lado
d'ella ou sem ella, o principio dominante a
que sujeitamos todos os arrojos do nosso
pensamento, todos os impetos desordenados
da nossa paixão. Porque é fatal que o
individuo tenha de sacrificar-se pela collectividade,
e que a vontade de cada homem
se subordine á utilidade e ao bem de todos.
A moral positiva, disem os seus adversarios,
funda-se pura e exclusivamente no interesse.
É triste eu bem sei, que é triste,
esta conclusão humilhante a que temos de
chegar; mas qual é a lei que se nos impôe
e que nós acceitamos, que não tenha por
fundamento mais ou menos disfarçado o
nosso proprio interesse? A felicidade no ceu
ou a felicidade na terra, eis os unicos motores
que dirigem este hybrido ser, meio
animal e meio anjo, que se chama homem.
N'este momento, pois, o ponto interessante
e capital a discutir vem a ser este:
Dos resultados já liquidados de todas as
[289]
sciencias particulares poderá sommar-se um
capital de conhecimentos positivos, capaz só
por si de constituir a moral social?
Se a resposta feita pelos observadores,
pelos moralistas, pelos philosophos, fôr affirmativa,
que elles tratem de formular esse
codigo, visto que a humanidade, eterna tutellada,
abomina a independencia da sua
propria razão, e preciza de ter escripta, e
reduzida a preceitos dogmaticos, cada uma
das leis a que tem de subordinar o seu destino.
Se a resposta, por emquanto, for negativa,
trabalhe-se no sentido de augmentar
as riquezas já coordenadas, e tracte-se de
chegar cedo á conclusão pacificadora, pela
qual todos nós anceiamos.
Acreditemos, para nossa consolação e
para nosso descanço, que ha em nós,
independentemente
de qualquer principio extranho,
embora superior, a aspiração permanente
ao que é bom, ao que é bello, puro
e harmonioso.
[290]
Muita vez, é claro, a paixão desvaira a
mulher, mas a mulher religiosa nem sempre
escapa a esses desvairamentos, visto que a
Historia os aponta nos seculos do mais exaltado
ascetismo. Não queiramos particularisar
tanto o sentimento da moralidade, que
esta não possa viver senão ao abrigo de
qualquer templo.
É um mau serviço que fazemos, pois que
não nos é dado a nós, nem a ninguem,
obstar a que o ideal religioso vá pouco a
pouco cedendo o passo á invasão triumphante,
embora desconsoladora, da sciencia
positiva e experimental.
Escrevendo o que ahi fica, eu não tomo
o partido contra as tendencias da minha
epocha, nem a favor d'ellas. Sou o relator
imparcial do espectaculo a que assisto.
Não ha porém, a meu ver, tragedia mais
dolorosa do que esta de que o meu tempo
é o theatro.
[291]
E sinto no fundo desconsolado e escuro da
minha alma de mulher, aquella ineffavel tristeza
dilaceradora que Virgilio sentiu, quando,
pelas florestas do seu Lacio, ouviu passar
a voz lamentosa e inolvidavel, que annunciava
ás gentes a morte do velho Pan!
Desgraçadas as gerações que
são fatalmente
condemnadas a assistirem ao desmoronar
de um mundo.
OS
IRMÃOS GONCOURT
I
Um dos defeitos, ou, se preferem,
uma das virtudes do nosso tempo
é a
curiosidade.
Somos curiosos de tudo; descemos ás
minuciosidades mais microscopicas, e subimos
ás mais altas generalisações. Nada
eguala o cuidado attento com que reunimos
os documentos dispersos, que devem conduzir-nos
á acquisição de uma verdade qualquer,
senão o poder de synthese com que
[294]
sabemos, do encadeamento de todos os
phenomenos, tirar a lei que os explica, relaciona
e domina.
Em cada ramo do pensamento humano
se revella, por todos os modos, a nossa insaciavel
e inquieta curiosidade.
A litteratura está, como todas as mais
manifestações da actividade physica ou mental
do homem, subordinada a esta tendencia
tão moderna do nosso espirito. Os livros
hoje interessam-nos principalmente,
por nos revellarem o machinismo interno
de quem os escreveu, e atravez d'elle o homem,
com as suas contradicções e desordens
mentaes, com os seus desequilibrios,
fraquezas, vicios e virtudes.
A critica tornou-se uma especie de romance
historico, muito mais interessante
que os romances da imaginação.
Para conhecermos os homens, e d'entre
os homens o escriptor,―quer dizer, aquelle
que mais deve ter condensado em si todas
as energias intellectuaes do seu seculo―pegamos
[295]
nos seus livros e analysamos
miudamente, scientificamente, anatomicamente
essas creações vivas que elle nos
legou.
Cada livro é um orgão ainda palpitante
do corpo que estamos dissecando.
Não nos contentamos, porém, com o livro,
desde logo destinado pelo seu auctor
a ser lido e interpretado pelo publico.
Queremos, exigimos, muito mais. As cartas,
os diarios posthumos, as confidencias
involuntarias, pelas quaes a alma se manifesta
irresistivelmente, nas suas particularidades,
nas suas idyosincrasias, eis o que
hoje nos satisfaz.
É extraordinaria
a
indiscricção com que
temos ido rebuscar todos os documentos do
passado, para encontrarmos n'elles a alma
occulta, a vida mysteriosa e latente.
N'esse ponto, temos tido como instrumento
maravilhoso de investigação e de critica,
o nosso proprio scepticismo, o nosso
dilletantismo tão
moderno, pelo qual nos é
[296]
facil penetrar em todas as epochas, comprehender
todas as civilisações e assimilar
todas as idéas, ainda as mais oppostas e as
mais extremas.
O passado, porém, já nos não basta. O
homem do passado não é o homem d'hoje.
O seculo XVII não pensa como o seculo
XVIII, do mesmo modo, porque o nosso seculo
não pensa como qualquer dos dois.
A alma contemporanea é bem mais complexa.
Dizem que o cerebro moderno tem
mais circonvoluções. Pudera! Se elle tem
por força muitas mais idéas. Tem todas as
que tinham os seus antecessores, e mais
aquellas de que fez a acquisição por seu
esforço
proprio.
E depois
sabe muito, sabe de mais,
este
endemoninhado seculo! Não ha coisa que
não fôsse desenterrar para sobrecarregar
mais e mais a memoria e a consciencia.
Os que estão acima do nivel vulgar, os
que por sua desgraça, pensam, julgam e
criticam, são todos mais ou menos
hystericos.
[297]
Ha uns requintes doentios, uma
etherisação
morbida, um excesso de actividade
cerebral no homem da nossa geração, que
fôram inteiramente desconhecidos n'outras
epocas mais equilibradas e mais sadias. O
systema nervoso desconjunta-se-lhes á força
de o terem em continua e dolorosa vibração.
D'aqui as oscillações e os desequilibrios
fataes de todo o mechanismo interno.
Penetrarmos o
porquê
d'essas aberrações,
que nos surprehendem e desorientam nos
que são grandes pela imaginação e pelo
talento,
eis um dos nossos eternos e justificaveis
apetites.
É esse que nos leva a devorarmos tudo
que são autobiographias, memorias, correspondencias,
indiscricções litterarias, sejam
de que genero fôrem. As cartas de Julio de
Goncourt, o
Diario dos dois
irmãos, ultimamente
publicado por Edmond de Goncourt,
fôram, portanto, e estão sendo, objecto
da maior curiosidade da parte dos
gourmets
[298]
litterarios de toda a Europa,
e não sei
se da America tambem.
Os dois Goncourt, por muito tempo desconhecidos
e
negados, são hoje,
finalmente,
considerados como os continuadores do pensamento
de Balzac, sob uma fórma litteraria,
mais artistica, mais requintada, mais
tourmentée
que a do grande romancista da
Cousine
Bette.
N'este exercito, cujos generaes se chamam
Flaubert, Zola, Daudet,―são os Goncourt
que vão na vanguarda, desbastando a
grande floresta, em que Balzac foi o primeiro
a penetrar, com as suas passadas de gigante
e a força herculea do seu machado
de explorador.
Esta geração começa a perceber quanto
deve a Balzac; e é realmente honroso para
ella, pagar emfim a divida que os contemporaneos
d'esse escriptor assombroso, tão
grande como Shakespeare, deixaram de solver!
Se os Goncourt são os precursores da escola
[299]
chamada
naturalista, e cuja
paternidade
se attribue injustamente a Flaubert, é
fóra de duvida que elles, o proprio Flaubert,
Zola, Daudet, e alguns discipulos d'estes,
são apenas os filhos espirituaes de Balzac.
Elles são incontestaveis e distinctos artistas;
elle era o Genio.
Cada um d'elles tem a sua accentuada individualidade
propria. Um, a analyse impessoal,
outro a amplificação e a força brutal
e desregrada; este a sensibilidade feminina
quasi doentia; aquelle a fina intuição
psychologica, a
visão
interior n'um grau
de lucidez estranho.
Todos, porém, procedem do Mestre.
O seu largo sôpro creador penetra-os e
inspira-os a todos. Nenhum d'elles teria a
magistral perfeição technica da fórma
e a
comprehensão ampla do assumpto que tractam,
na altura em que a possuem, se o auctor
da
Eugenie Grandet, do
Pêre Goriot,
e de tantas obras immortaes lhes não tivesse
ensinado o caminho a seguir.
[300]
Os Goncourt, todavia, sendo os primeiros
que se filiaram, sob uma fórma diversa,
na escola iniciada pelo genial creador da
Comedia Humana, nem por isso
são os mais
conhecidos e os mais apreciados. Só uma
limitada
élite
intellectual seguiu com profundo
interesse o trabalho d'estes irmãos gemeos
em litteratura.
Duas qualidades predominantes os distinguem.
A finura subtil e delicada da analyse
e a linguagem que á força de
trabalhada
adquiriu uma fluidez, uma flexibilidade,
uma sinuosidade ondeante, uma transparencia
crystalina, uns tons, uns cambiantes,
umas côres que a tornam apta para
notar
e traduzir a impressão mais fugitiva,
ou mais rara, o traço mais leve, a
sensação
mais incoercivel, a sombra mais impalpavel
do pensamento, ou do sentimento humano.
Por estas duas qualidades se percebe já
que os Goncourt não poderão nunca ser
uns escriptor
Por estas duas qualidades se percebe já
que os Goncourt não poderão nunca ser
uns escriptores populares. Só os delicados
[301]
se comprazem n'estas subtilezas da idéa e
da fórma.
O que n'elles porém avulta a todos os
olhos, é este phenomeno raro de
identificação,
que fez de ambos
um só,
sem que possa
de modo algum descriminar-se a parte em
que qualquer d'elles concorreu para o trabalho
commum.
Edmond de Goncourt, quando perdeu o
irmão mais novo, que estremecia como uma
porção da propria vida, como um membro
do seu corpo, ou uma parcella indivisivel da
sua alma, ficou por largo tempo emmudecido,
no lethargo que succede aos grandes
abalos da sensibilidade.
Sahiu d'esse estado, porém, e escreveu entre
outros livros, muito inferiores em todo o
caso aos que tinham sido collaborados por
Julio, um estranho livro, que é necessario
lêr attentamente, para que se possa penetrar
até certo ponto no segredo da maravilhosa
união intellectual, que fazia um só escriptor
dos dois escriptores mais requintados e
[302]
mais vibrantes da moderna litteratura franceza.
Chama-se
Les frères
Zenganno este livro
que, á parte a linguagem, não tem a
meu vêr outro merito positivo que não seja
a revelação ou antes a critica d'esse phenomeno
psychico-litterario de que acima fallámos.
Les frères Zenganno
são dois clowns, que
trabalham sempre juntos, conseguindo, por
um milagre de gymnastica, harmonisar e
identificar os movimentos communs.
Percebe-se aqui a allusão ao trabalho litterario
em que os dois escriptores consumiram
a existencia.
Entremeiados, porém, na obra, um pouco
extravagante e levemente phantastica,
ha capitulos que são uma confidencia completa,
e que mais do que tudo que eu podesse
dizer, explicam o caso phenomenal
que tanto interesse merece aos observadores,
aos criticos e mesmo aos simples profanos
da arte.
[303]
Oiçamos por exemplo este trecho:
«Os dois irmãos não tinham um pelo
outro
um simples affecto fraternal. Não. Estavam
mutuamente ligados por laços mysteriosos,
por affinidades psychicas, e isto apesar
de serem de idades muito diversas e de
caracteres diametralmente oppostos. Os
seus primeiros movimentos instinctivos eram
identicamente os mesmos. Experimentavam
sympathias ou antipathias egualmente subitas,
e quando iam a qualquer parte, sahiam
do sitio onde haviam estado, tendo a respeito
das pessoas que tinham visto uma
opinião inteiramente similhante. Não
só os
individuos mas tambem as cousas, com o
porquê irraciocinado do
seu encanto ou do
seu aspecto desagradavel, lhes fallavam do
mesmo modo a ambos. Emfim, as idéas,
essas creações do cerebro, cujo nascimento
é d'uma phantasia tão livre, e que tanta vez
nos espantam pelo «não sei como» do seu
apparecimento, as idéas, de ordinario tão
[304]
pouco simultaneas e tão pouco parallelas nas
uniões de coração entre homem e
mulher,
até as idéas nasciam commum aos dois
irmãos,
que não raro, depois de uma pausa
silenciosa se voltavam um para o outro para
se dizerem a mesma coisa, sem que achassem
explicação ao singular acaso que fazia
encontrar nas suas boccas, duas phrases
que formavam apenas uma só. Assim moralmente
acolchetados um ao outro, os dois
irmãos precisavam de confundir constantemente
os seus dias e os seus serões, separavam-se
sempre a custo, e cada um d'elles
experimentava na ausencia do outro, o
sentimento estranho, indefinivel de alguma
coisa de incompleto e de mutilado.
«Quando um tinha sahido por algumas
horas parecia que o que sahia levava para
fóra o poder de attenção do
irmão que ficára
em casa, e que não podia fazer mais nada
senão fumar até á volta do ausente.
«E se a hora annunciada para o regresso
passava, o cerebro do que estava á espera,
[305]
enchia-se de desastres, de catastrophes,
de accidentes medonhos, de preoccupações
estupidamente sinistras, que o faziam
correr continuamente do quarto á porta
da rua. De modo que só forçadamente
os separavam; que um, nunca acceitava o
convite que o outro não devesse partilhar;
e que, relembrando todos os annos da sua
existencia commum, elles só recordavam terem
passado vinte e quatro horas completas,
um longe do outro.
«É necessario, porém, accrescentar que,
entre os dois irmãos, este estreitamento de
fraternidade fôra feito por alguma coisa de
mais poderoso ainda que tudo isto. O trabalho
de ambos achava-se tanto e tão bem
confundido, os seus exercicios de tal modo
identificados, e tudo que elles faziam unidos,
parecia pertencer tão pouco a qualquer dos
dois em particular, que os applausos eram
sempre dirigidos á associação e que
nunca
o par tinha sido separado na censura ou no
elogio. Era d'este modo que estes dois seres
[306]
tinham chegado ao ponto de constituirem
um―e caso raro, quasi unico nas
amisades
humanas―de não terem senão
um
amor proprio,
uma vaidade,
um orgulho
que o publico feria ou acariciava ao mesmo
tempo em ambos.»
Foi trabalhando d'este modo, tão subtilmente
descripto pelo ultimo que ficou, ferido
e inconsolavel para sempre, que elles,
fazendo da physiologia o novo instrumento
do romance contemporaneo, e levando para
os estudos delicadamente cinzelados da Historia
o mesmo escrupulo de analyse e a
mesma finura extraordinaria de processo,
pintaram, desde
Maria Antoinette a
adoravel,
sympathica, leviana e altiva rainha, até
Germinia Lacerteux a pobre e humilde
creada, victima inconsciente e fatal de um
temperamento de hysterica; desde as deliciosas
e corruptas amantes de Luiz XV, até
á doce e graciosa
Renée
Mauperrin; desde
as endemoninhadas cortezãs do seculo XVIII,
até á austera e pensadora madame Gervaisais;
[307]
conseguindo, ao par d'isto, pôr tanta da
vibrante personalidade de ambos em toda
a sua obra, que a gente reconhece-os em
Charles Demailly, o homem de lettras, victima
da sua propria delicadeza organica, e
em dezenas de figuras, eminentemente modernas,
que atravessam as suas paginas impressionadoras
e tão intensas de vida.
Ninguem exprimiu com uma penetração
mais intima do que elles, a
nevrose
contemporanea
com todos os seus simptomas de depravação
ou desequilibrio moral; a melancholia
dos espiritos, exhaustos pelos excessos
de actividade mental; as baixas miserias
da experiencia quotidiana, tão cheia de catastrophes
interiores e de angustias dilaceradoras
e invisiveis.
Mas tambem ninguem, como elles, resuscitou,
em mais garrida e rendilhada moldura,
esse mundo galante, artistico, enfeitado, risonho,
frivolo, vicioso e triumphante, que
principia na orgia da Regencia e acaba na
orgia da Revolução
Mas tambem ninguem, como elles, resuscitou,
em mais garrida e rendilhada moldura,
esse mundo galante, artistico, enfeitado, risonho,
frivolo, vicioso e triumphante, que
principia na orgia da Regencia e acaba na
orgia da Revolução.
[308]
II
Depois de Balzac, ou antes d'elle, talvez,
o espirito que maior influencia exerceu no
destino dos dois irmãos, foi Gavarni, o insigne
caricaturista, o desenhador admiravel,
a quem mais tarde elles erigiram, n'um
livro de grande arte, um monumento de
admiração reconhecida e terna e de critica
verdadeiramente magistral.
Ainda os dois escriptores estavam como
que encerrados na perfumada guarda-roupa
d'esse seculo dezoito, que amaram tanto,
resurgindo, com o seu poder de evocadores,
as interessantes figuras d'aquelle mundo
extincto, d'onde nós vimos todos, e que,
tão diverso e tão distante é de
nós, quando
um acontecimento fortuito os fez travar relações
com o artista, que mais profundamente
sentiu e amou o tempo em que viveu.
[309]
Gavarni não comprehendia nem amava
o passado. Como Balsac, cujas obras illustrou,
o que elle amava, o que lhe prendia
a attenção, o que lhe embebia amorosamente
o olhar investigador, eram os typos que
a cada instante acotovellava pelas ruas.
Os Goncourt fallando em Coriolis, o pintor
da
Manette Salomon, descrevem d'este
modo
saisissant o artista que se
compenetra
apaixonadamente dos espectaculos do
seu tempo. Este pintor sente o que sentia
Gavarni; o que os dois escriptores sentiram
tambem mais tarde; e é d'este modo especial
de encararem a arte que toda a obra
d'elles deriva naturalmente.
«Vagueiava de um lado a outro de Paris,
estudando os typos salientes; tentando
apanhar na passagem, n'essa multidão enorme
de transeuntes, a physionomia moderna;
observando os novos signaes da belleza
d'um tempo, d'uma epoca, d'uma humanidade;
o caracter que se imprime como uma dedada
de artista n'esses rostos agitados, febris,
[310]
o caracter que marca e designa para
a Arte; o aspecto exterior dos pensamentos,
das paixões, dos interesses, dos vicios,
das doenças, das energias d'uma grande capital.
A sua curiosidade penetrava essas
physionomias de civilisados, que levam o
pensamento para tão longe do vago sorrir
dormente dos Egyneos, da divina placidez
grega; esses rostos devastados pelas idéas,
pelas sensações, por todas as
acquisicões
da actividade moral do homem, extenuados
pela complexidade das preoccupações,
atormentados pela aspereza das carreiras,
pelo trabalho insano, pela difficuldade e
agrura do viver.
«E interrogava a expressão das pessoas
atarefadas, que passam a correr pelo meio da
rua, lembrando formigas n'um formigueiro,
com um pacote debaixo do braço, ou um
embrulho na algibeira, homens de miseria,
que passeiam a sua fóme, em frente do balcão
dos cambistas; physicos de larapio, escondendo
a maldade do instincto, sob a femenilidade
[311]
d'uma cabeça de imperatriz romana;
figuras estranhas de inventores incomprehendidos,
que vão ao acaso, monologando
pelos passeios, com gestos inconscientes
de actor.
«Estudava aquella belleza singular e espirituosa,
a indefinivel belleza da mulher de
Paris. Seguia as apparições imprevistas; as
caritas irregulares e radiantes; as pequeninas
creaturas estranhas, que desabrocham,
como flôres, d'entre as pedras da calçada e
que, de repente, desapparecem,―com o seu
arzinho de costureiras, que vão amanhecer
cortezãs―por uma porta humilde e escura,
por uma escada ingreme e repugnante. E
tentava analysar o encanto d'essas magras
raparigas, que teem nas fontes como
que o reflexo do candieiro da officina, pallidas
das noites perdidas á costura, e como
que vagamente torturadas pela nostalgia da
preguiça e do luxo. Ás vezes debaixo d'uma
touquinha muito pobre, dava subitamente,
com uma graça requintada, uma expressão
[312]
rara, um ar de suavidade martyrisada, de
melancholia virginal, que a vida dos grandes
centros, o refinamento das civilisações,
o fim dos sangues empobrecidos parecem
fazer cahir sobre o rosto das costureirinhas
miseraveis. Uma vez levou na memoria, para
um estudo que principiou no dia seguinte,
o rosto da filha d'uma parteira, uma pobre
pequenita lymphatica, tão mansinha, tão
definhada,
tão branca, com os olhos tão cheios
de ceu, sob a sombra das pestanas, que fazia
scismar n'um anjo doentinho.
«No seu intimo, n'aquella agitação dos
seus passeios, havia um mal estar terrivel e
indefinido, a inquietação que se apossa do
homem abandonado pela religião da sua
mocidade. Sentia-se n'esse momento critico,
n'essa hora da vida d'um artista em que
elle sente morrer dentro de si a primeira
consciencia da sua arte; instante de duvida,
de tortura contradictoria, de anciedade, em
que, incerto a respeito de proprio futuro,
hesitante entre os habitos de seu talento e
[313]
a vocação da sua personalidade,
elle sente
agitar-se e estremecer dentro de si o presentimento
de outras fórmas e d'outras visões,
o começo de novos modos de sentir, de vêr, e
de querer!...
O trabalho interior que, por este modo
incisivo e brilhante, os dois Goncourt, aqui
descrevem, fez-se n'elles, sob a influencia
de Gavarni.
É mais raro do que parece este dom especial,
que nos torna, por assim dizer, physicamente
sensiveis ás fórmas, ás linhas, ao
relevo e ás côres do que nos tem cercado
desde a infancia....
Parece que o nosso tempo é aquelle que
nós devemos saber pintar melhor.
Nem sempre.
Na arte, o mais difficil é traduzir as coisas
simples, as coisas reaes, sem nos afastarmos
da exactidão, e sem cahirmos na banalidade.
Pintar por exemplo o aspecto de uma rua;
um grupo de gente do povo que conversa
[314]
e gesticula; uma senhora que passa, bem
vestida, discreta, envolvida muito prosaicamente
no seu chaile de cachemira, distincta,
fina e natural; pôr em attitudes expressivas
e
reaes duas porteiras que
tagarellam; esboçar
com rapidez frisante um
decavé da
Bolsa ou de
baccarat que vae andando
cabisbaixo,
lugubre e banal; desenhar a dois
traços um
dandy de
charuto na bocca e ar
spleenetico; dar emfim o tom vivo, o
destaque
poderoso e ao mesmo tempo a nota
exacta e verdadeira áquillo em que nós,
nem reparamos já, á força de o termos
visto
milhares de vezes, eis um milagre que só
realisam artistas consummados e organisações
muito especialmente dotadas.
É muito mais facil ser phantasista do que
ser verdadeiro, descrever a largos traços o
pôr do sol por detraz de uma cordilheira
gigantesca, do que pintar uma paisagem
doce, simples, vulgar, que apenas se distinga
pela doçura da luz, pela graça enternecedora
e humilde da expressão.
[315]
A verdade de todos os dias parece impôr-se
a todos nós, sentimol-a, vêmol-a,
ella penetra-os por assim dizer: pois apezar
d'isso tudo, tentemos traduzil-a artisticamente,
e veremos depois que esforço, que
condensação de vida intellectual, essa pequena
coisa tão grande exige de nós!
Pois é positivamente, repetimos, esse dom
possuido em alto grau pelo grande pintor
de costumes do seculo XIX chamado Gavarni,
que elle soube communicar aos dois
irmãos Goncourt.
Os que duvidarem que leiam a lancinante,
a dolorosa historia tão mesquinha e tão
tragica, tão humilde e tão desoladora da
creada
Germinia; que leiam aquelle
terrivel
estudo
chamado Charles Demailly,
em que Julio de Goncourt como que
advinha e prophetiza as torturas da sua vida
de escriptor, e a agonia longa e martyrisante
da sua morte de artista ambicioso e
incontentado.
Muitas das cartas de Julio são dirigidas a
[316]
Gavarni. Ha outras a Flaubert, a Paulo de
Saint Victor, a Theofilo Gauthier, a Saint
Beuve, á princeza Mathilde, a Zola, etc., etc.
Todas ellas explicam, esclarecem, commentam,
illuminam, dia a dia, o trabalho
constante que os dois irmãos proseguiram,
até á morte do mais novo, atravez de todas
as hostilidades da critica, da indifferença
do
grosso publico, do desdem de
muitos,
da ironia incredula, ou do pasmo ingenuo
de quasi todos.
O amor da litteratura, este amor que nós,
em Portugal, só por ouvirmos fallar d'elle,
conhecemos incompletamente, amor que
absorve, que encanta, que allucina e que
mata por fim―como matou Flaubert, como
matou Julio de Goncourt, como matou Balsac,
como é muito provavel que mate brevemente
Daudet―o amor da litteratura
respira-se n'estas cartas com um perfume
subtil que as embalsama, e que as impregna
admiravelmente.
Póde mesmo affirmar-se que este amor é
[317]
o maior que domina a vida dos dois irmãos,
e que os faz vêr a vida nos livros e atravez
dos livros.
E a cada obra bem feita, que sentido e
sincero applauso! que vibrar de phrases
sonoras traduzindo a admiração, o goso
agudo da intelligencia satisfeita!
O estylo, isto que a nós nos parece apenas
o instrumento mais ou menos perfeito
de que a idéa se serve, e que a outros parece
toda a arte, dá-lhes a elles, quando é
cinzelado com o primor a que aspiram, prazeres
comparaveis aos que nós, os que não
commungamos n'essa religião da fórma, temos
diante de um grandioso espectaculo da
Natureza ou diante de uma sublime acção
do homem.
«Ha no seu livro, diz Julio de Goncourt
n'uma carta a Michelet, phrases feitas de
luz, paginas inteiras de sol, epithetos que
se respiram, idéas que fremem e palpitam
sobre a haste das palavras!!»
Qual de nós tem esta viva impressão intellectual,
[318]
tão delicada e subtilmente expressa
aqui, ante a musica mais ou menos
bella de um livro de prosa? E, no entanto,
são incompletos todos os artistas da palavra
que a não sentem. A palavra é
tudo
para o escriptor, visto que é o unico meio
que elle tem de traduzir as variadissimas, as
infinitas modificações do espirito humano.
Os dois Goncourt fizeram do estylo uma
sciencia, a mais complexa e requintada das
sciencias. Comprehenderam e muito bem,
que todos os doentios symptomas, todos os
phenomenos pathologicos da alma moderna,
todos os effeitos multiplos, inteiramente
ineditos que na Vida produz a comprehensão
morbida que nós temos da Vida, precisavam
tambem de uma formula nova que
os exprimisse.
Para as doenças recentes que o excesso
da civilisação, o
détraquement nervoso, as
diversas aberrações cerebraes nos teem trazido,
precisava-se de uma technologia ainda
não sabida até hoje. A elles foi-lhes necessario
[319]
encontrarem a arte de
notar os sentimentos
indiscriptiveis; de traduzir as imperceptiveis
vibrações da alma; as
mutações
rapidas da sensibilidade; as delicadezas
doentias de uma geração estragada pelo
excesso da vida nervosa e cerebral. Julio
de Goncourt conseguiu, pois, á custa de
um trabalho mental exagerado e exclusivo
que lhe custou a vida, dar á lingua franceza
a subtileza, o nervosismo, a intensidade
harmonica, a rapidez e a variedade de cambiantes
que ella não tinha.
O estylo d'elle, ou antes o estylo dos
dois irmãos, tem musicas e tons esbatidos,
e perfumes agonisantes, e fremitos voluptuosos,
e sobresaltos hystericos. Para lêr
e apreciar a obra dos Goncourt é necessario
ter como elles, os nervos vibrantes, o
cerebro excitado, e a sensibilidade estranhamente
irritavel.
Escrevendo a Zola, a respeito da morte
de seu querido irmão, Edmond de Goncourt,
dizia:
[320]
«A meu vêr, elle morreu do trabalho,
morreu sobretudo da elaboração da
fórma,
da cinzeladura da phrase, do lavôr do estylo.
«Estou-o vendo ainda, pegar dos trechos
que tinhamos escripto em commum, e que,
ao principio, nos tinham satisfeito, e trabalhar
n'elles horas e horas, tardes inteiras,
com uma obstinação quasi colerica, mudando
aqui um epitheto, pondo n'uma phrase
o rythmo que lhe faltava, emendando
uma expressão, fatigando, gastando o cerebro
á procura d'essa perfeição
tão difficil, ás
vezes impossivel, á lingua franceza, na
traducção
das coisas e dos sentimentos modernos.
Depois d'essa tarefa enorme, cahia
para cima d'um sophá, moido pelo cançasso,
e alli ficava um longo espaço de tempo,
silencioso, a fumar.»
Balzac, que teve como nenhum dos discipulos
que vieram depois d'elle, a larga, a
profunda, a milagrosa intuição dos sentimentos
que agitaram, moveram, convulsionaram,
[321]
subjugaram o seu tempo; Balsac,
que pintou os
frescos collossaes e
as deliciosas
miniaturas, que soube fazer viver as
suas eternas figuras, criminosas, sublimes
e depravadas, cheias de odio ou cheias de
amor, illuminadas pela chamma de todas as
paixões, queimadas pela fornalha rubra de
todas as cubiças insalubres, e que, não contente
de personalisar, á grande maneira de
Shakspeare, a Avareza, a Sensualidade, a
Paternidade ludibriada e dolorida, a Amisade
viril, os sentimentos fundamentaes do
homem emfim, soube ainda penetrar nos refolhos
mais reconditos da alma feminina, e
colher ahi a fragil, a doce flor da melancholia,
as tristezas silenciosas do amor trahido,
as saudades, cuja raiz suga as forças todas
de um coração solitario; Balsac, que foi
muito maior que todos os modernos pelo
pensamento proprio e pela vida dos seus
personagens, não soube vencer, nem subjugar
como elles as tyramnias da Fórma.
Foi tambem n'esta lucta titanica de que
[322]
sahia, deitando um vapor denso e quente
de todos os póros do seu corpo athletico,
que elle consumiu e gastou a existencia.
A morte surprehendeu-o quando, no seu
ultimo livro, a
Cousine Bette, elle
tinha emfim
alcançado uma victoria decisiva e tinha
quasi achado a formula, que o podesse contentar.
A verdade é esta: ha escriptores para a
maioria do publico. Esses não teem mais do
que traduzir os sentimentos communs a toda
a humanidade. Ha escriptores para os delicados,
para os doentes d'essa terrivel nevrose
cerebral que hoje martyrisa os pensadores,
os artistas, os investigadores incontentaveis
da verdade. Esses hão de ler
com prazer agudo, quasi doloroso, os livros
de Julio e Edmundo de Goncourt. De resto,
não ha, entre os modernos, livros que mais
vivamente ponham a nú a personalidade de
quem os escreveu. Ha paginas inteiras que
são confidencias mentaes. Ha estudos que
foram feitos depois d'estas longas meditações
[323]
em que a alma se revela nas suas minimas
particularidades, nos seus mais intimos
e dolorosos segredos!
Por isso se explica que, nas suas
Idéas e
Sensações, elles escrevessem
esta observação
que, applicada aos dois artistas de que
tratamos, é d'uma verdade tão intensa e
palpitante.
«Para as delicadezas, para as requintadas
melancholias d'uma obra, para as phantasias
raras e deliciosas que se executam na corda
vibrante da alma ou do coração, não
será necessario,
indispensavel mesmo, uma pontinha
de doença no artista?
E, como Henrique Heine, não terá cada um
d'esses escriptores de ser como que o Christo
da sua obra, o crucificado physico da sua
fé?...»
Os Goncourt foram isto, e é por esse motivo
que os que soffrem se sentem um pouco
irmãos d'esses artistas de tão morbida e delicada
tristeza!
GEORGES SAND
Á LUZ DA SUA CORRESPONDENCIA
O nosso tempo tem, e com muita razão,
um verdadeiro enthusiasmo,
pelo genero especial de litteratura
constituido pelas
correspondencias,
pelas
memorias, pelas notas e
observações colhidas
dia a dia, por estas confissões involuntarias,
sem fito feito, que mais que nenhum
outro trabalho intellectual nos desnudam o
segredo da psychologia humana.
Muitas
correspondencias, que n'estes
ultimos
tempos teem visto a luz, mais serviriam
para
diminuir os seus auctores de
que para
[326]
os engrandecer no espirito da posteridade.
Em compensação outras ha, que vieram mostrar
a uma luz bem mais favoravel, bem mais
doce, aquelles que o mundo julgava com a
sua proverbial e incuravel injustiça.
A este numero pertence a Correspondencia
de Georges Sand.
Quando eu, sugeita como todas as mulheres
aos desfallecimentos da alma, ás subitas
e inexplicaveis tristezas, succumbo ao peso
da Vida, tão hostil aos que pensam, tão dura
e cruel aos que sentem muito, e pego em um
d'esses volumes em que uma alma enorme
de mulher conta dia a dia a historia do seu
pensamento, sinto-me como que milagrosamente
reconfortada.
A leitora n'este ponto pára um pouco surpreza
e um pouco triste, não é verdade? E
pergunta-me espantada:―Pois quê?!...
Tem esta opinião a respeito de Georges
Sand?
Seria longo e seria melindroso entrar a
este respeito em minuciosas explicações.
[327]
Diante d'esse genio assombroso que para
o mundo se chama Georges Sand, eu não
indago as fraquezas que macularam tristemente
uma parte da vida intima da mulher
que tinha por nome de familia Aurora Dudevant.
Na sua Correspondencia, escolhida por
mãos piedosas, expurgada de todas as
recordações
impuras d'um passado, que a grande
mulher expiou nobremente e longamente,
não ha um reflexo, senão muito longiquo e
apagado, das luctas tremendas, das tragicas
luctas que se deram n'esse espirito revoltado
e extraordinario.
Porei portanto de parte considerações de
uma ordem extranha ao assumpto que trato,
ao vir transplantar para aqui as notas que
a leitura da Correspondencia de Georges
Sand me arrancou irresistivelmente.
E de resto, que pode haver de mais interessante
para um espirito de mulher, obscuro
e humilde embora, do que as confidencias
d'uma mulher de genio? E se pensarmos
[328]
que o
genio não
é mais que o
maravilhoso
poder da condensação concedido
a um cerebro humano, a faculdade de synthetisar
em si as impressões e as sensações
de muitos, e de formular com eloquencia e
verdade, para todos comprehensiveis, as
paixões e os sentimentos da multidão
anonyma,―comprehenderemos,
ao penetrar na
vida interior d'esses seres privilegiados, que
nada do que os faz sentir, palpitar e soffrer,
nos é extranho a nós.
Sentimos, talvez em gráu menos intenso,
tudo que elles sentiram; o que nos falta é
a palavra inspirada e verdadeira com que
o possamos exprimir.
É sob este ponto de vista, particular, que
as cartas de Georges Sand nos interessam
tão vivamente.
Lacrimosas e repassadas de angustia,
palpitantes de indignação e de revolta,
resignadas
e entristecidas depois, como que
envoltas na pacificação melancolica do crepusculo
da vida, e tendo a serena magestade
[329]
e as linhas ondulantes e suaves das
paizagens outoniças, respira-se n'ellas a verdade,
a espontaneidade mais sincera, a mais
natural despretenção.
Ser sublime, sem nunca deixar de ser simples;
aspirar continuamente aos mais altos
pincaros do pensamento, attingil-os muita e
muita vez, e não ter nunca a consciencia da
propria grandeza, a vertigem da propria
elevação, antes conservar-se, atravez de tudo,
humilde, ignorante do seu valor e como
que impregnada de um vago aroma de
bonhomia
rural―eis o encanto mais singular
d'esta mulher singularissima.
Nenhuma, entre as que deixaram na historia
do espirito humano um rastro luminoso,
lhe é superior; emquanto que ella, na
complexidade da sua opulenta organisação,
tem de todas um traço caracteristico.
Ha n'ella, como em
Madame Rolland, o
amor enthusiastico da liberdade, a paixão
robusta da justiça, o sentimento ardente e
viril da democracia; no emtanto, mais feminil
[330]
que
Madame Rolland, ella
teria lagrimas
e gritos de piedade, e accentos de enternecida
eloquencia, para salvar das garras
do algoz a bella cabeça patricia de Maria
Antonietta.
Tem, como a Sevigné, a ternura maternal
senão absorvente e exclusiva,
pelo
menos
penetrante de carinho, e cheia de engenhosas
e subtis delicadezas.
Como a Stael, adora as letras, devora-a
a curiosidade de todos os segredos da intelligencia,
professa a altivez intransigente
e desdenhosa, em face das tyrannias brutaes.
Advoga continuamente, como Madame de
Recamier, a causa dos vencidos, concilia os
odios, pacifica as divergencias, implora com
incansavel constancia a favor de todas as
victimas e embebe-se na doce utopia de um
mundo, onde todos se amassem e se abraçassem,
e tivessem, como premio supremo
da lucta de tantas gerações de martyres, a
fraternidade, a paz universal.
Como Georges Elliott, a grande romancista
[331]
ingleza, tão
humana e tão natural,
ella
estuda de preferencia os simples, os humildes,
os obscuros, e encontra n'essas organisações
rudes e inconscientes os mais reconditos
thesouros de bondade e de amor.
Porem o que a especialisa e distingue
d'entre todas, o que lhe dá o cunho d'uma
superioridade incontestavel, o que a faz do
nosso tempo, e lhe conquista as sympathias
da nossa geração,―é a sua viva e
fecunda
comprehensão da Natureza em todos os seus
aspectos, e o seu tão sincero e tão moderno
naturalismo em face das paixões irreprimiveis
da humanidade ou das bellezas santas
e pacificadoras da terra.
Paizagista adoravel, nunca nos dá em termos
technicos, e de uma precisão de botanico
ou de geologo, a descripção minuciosa
do que vê.
É incontestavelmente melhor o seu processo
artistico, em que peze aos sectarios
fanaticos da escola descriptiva.
O que ella nos dá, com uma riqueza de
[332]
linguagem em que nenhum mestre a excede,
com uma poesia penetrante e evocadora que
só póde comparar-se á de Michelet,
é a robusta,
a sádia, a profunda, a deliciosa impressão
que recebe dos mil variados aspectos
da natureza physica.
Nos seus livros respira-se o aroma resinoso
dos pinheiraes alpestres; a frescura dos
regatos sombrios onde a pervinca humedece
o azul dos seus olhos pequeninos, e avelluda
o verde escuro da sua folhagem lustrosa;
a melancolica doçura das florestas
gorgeiadas de rouxinoes; o idyllio suave das
campinas humildes; o cheiro do feno e dos
trigaes floridos; a acre respiração que sahe
dos flancos da terra humida, dilacerados
pelo ferro da charrua...
Ha nas paginas d'ella a estridula alegria
victoriosa das auroras escarlates; a languidez
voluptuosa e electrica do meio dia abrasado,
quando uma sêde infinita contorce em
espasmos de febre tudo que respira e vive;
a tristeza, dilacerante e intensa como um
[333]
adeus, da hora do crepusculo; a immensa
paz cariciosa, protectora e calmante, das silenciosas
noites!...
Quem melhor de que este coração tão
eminentemente feminino sentiu e communicou
aos que a leram, as delicias de que a
terra, a nossa eterna Amiga, é tão prodiga,
para os que entendem as harmonias ora vibrantes
ora enlanguecidamente morbidas,
ora de uma intensidade perturbadora, da
sua orchestra colossal?
Se mais nada lhe devessemos alem d'esta
iniciação sagrada, era enorme ainda assim
a divida contrahida por todos nós com a
nossa grande e gloriosa irmã.
Mas devemos-lhe mais alguma cousa, e
ha n'esse
alguma cousa um vasto
alcance
moral. Devemos-lhe a alta licção que ella
nos deu, trabalhando sempre, trabalhando
sem um dia de afrouxamento ou de cançasso,
perdoando aos que a encheram de injurias
e de insultos, sem uma só tentativa de
retaliação
ou de vingança, sem um grito de
[334]
raiva, sem uma interjeição de furor. A qualidade
predominante d'este caracter, fraco
ás vezes, vacillante no seu caminho, e de
uma indecisão devida ás influencias que
actuaram na sua juventude desamparada de
toda a luz moral, é apezar de tudo, é atravez
de todos os erros que lhe sombrearam
para sempre a memoria, a mais completa
bondade, desartificiosa e simples. Bondade
immensa, bondade inextinguivel, que mais
d'uma vez a transviou, mas que teve a força
triumphante de a rehabilitar; bondade a que
se devem as suas culpas, gravissimas é certo,
mas tambem as suas raras virtudes, e entre
ellas os thesouros, os mananciaes inexgotaveis
da sua evangelica, ardente e apaixonada
caridade.
Oh! a caridade! a doce virtude que a todas
sobreleva, e cuja limpida corrente, nascida
no humilde presepe de Bethlem, o mundo
tem tentado em vão enlodar e corromper!...
Flôr, que desabrocha luminosa e
perfumada na alma dos que são bons, que os
[335]
consola de tudo, até da ignominia a que os
homens ás vezes os condemnam, e que tem,―como
certos seixos côr de purpura que se
apanham á beira do oceano, e que o oceano
tem polido no eterno fluxo e refluxo das
suas ondas tumultuosas,―o dom mysterioso
de extinguir e apagar todas as maculas...
É possivel que a leitora condemne agora
como um crime de lesa-moral, como
uma contradicção inexplicavel e extranha, o
meu enthusiasmo
confessado por essa
mulher,
que foi um genio, mas que foi tambem
uma enorme peccadora.
Eu peço-lhe porem que, antes de pronunciar
a implacavel sentença que condemna a
escriptora inimitavel, leia algumas das cartas
adoraveis que ella escreveu, e com as
quaes remiu, litterariamente, muitos dos peccados
que não tracto aqui de conhecer nem
de indagar.
O nosso tempo, grande em tudo, é grande
principalmente pela tolerancia, pela equidade,
[336]
pela bondosa indulgencia que o homem
lhe merece.
Longe de vêr n'elle o criminoso irremissivel
dos tempos da sombria escholastica, a
victima fatalmente condemnada pelo peccado
original ás chammas do inferno, ou ás
chammas da fogueira, o monstro que se
havia de deixar mutilar ou se havia de deixar
perder, para quem a natureza e as suas
forças indomadas eram outras tentações
demoniacas,
e que só podia ter perdão sob a
condição barbara de ser anti-humano,―o
nosso seculo, conhecedor de todos os segredos
defezos aos seculos que o antecederam,
só vê no homem o criminoso, quando
lhe é de todo impossivel vêr n'elle o doente
ou o vencido pela fatalidade das cousas.
Os seus grandes pensadores, herdeiros
n'este ponto, de antepassados gloriosos que
foram como que os prophetas da nova era,
e que se chamaram Voltaire e Diderot, ensinam-lhe
a não condemnar o reu, sem primeiramente
[337]
o terem ouvido. Exigem mais
ainda, para depois sentenciarem.
Exigem que se conheçam as influencias
atavicas a que elle obedeceu, o meio em
que se formou o seu caracter e se desenvolveu
a sua educação, as circumstancias
especiaes que na vida o rodearam, o conflicto
que o destino estabeleceu entre as fatalidades
que o arrastaram e o dever que
se lhe impunha.
II
Não venho contar aqui, é claro, a vida de
Georges Sand, que de resto, é sufficientemente
conhecida. Não venho advogar a
causa das suas paixões irregulares, que ella
chorou com lagrimas de sangue, e que eu,
pela admiração infinita que a grande mulher
me inspira, quizera, á custa d'um sacrificio
immenso, poder apagar da memoria
de todos que a amaram. Era-me tão doce,
[338]
poder levantar-lhe um altar no meu espirito,
sem as dolorosas restricções que a sua
desvairada mocidade me impõe!..
Eu queria vêr n'ella apenas os ultimos
trinta annos da sua vida, illuminados pelo
mais grandioso talento que ainda ardeu em
cerebro feminino.
Não posso!..
Para que ella fosse a sublime desenganada,
cuja palavra era uma lição, cujo conselho
era um dogma, cujo sorriso doce e
triste era feito de experiencias amargas e
de decepções crudelissimas, era indispensavel
que ella tivesse percorrido a Via Dolorosa,
ferindo-se em todos os silvedos, precipitando-se
em todos os barrancos, dilacerando
os pés em todas as urzes da estrada!..
Lembremo-nos comtudo que Georges
Sand, filha d'uma ligação irregular e portanto
condemnada pela sociedade e pela familia;
eternamente combatida entre dois
poderes igualmente funestos―o primeiro,
[339]
a avó
voltaireana e sem
crenças, o segundo
a mãe, plebeia, leviana, inteiramente
ignorante,―só poude sahir d'esta
situação
difficil, dolorosa, causadora de eternos conflictos,
pela porta d'um casamento desigualissimo,
um casamento que fatalmente a predestinava
á desgraça.
Esse casamento fez d'ella―natureza superior,
bella e robusta organisação artistica,
espirito cultivado e grande―a quasi escrava
de uma especie de bruto, sempre ebrio,
incuravelmente grosseiro, de gostos baixos,
de costumes iguaes aos gostos.
Nada d'isso a desculpa, bem sei. Eu não
quero, nem devo desculpal-a. Sei que este
virtuoso e sabio mundo impõe a cada mulher
a facil obrigação de ser heroica, julgando-a
muito feliz por lhe merecer depois
um pouco de consideração banal, ou
um grão de louvor condescendente!..
Mas a esta mulher em particular, dada a
educação que ella tivera e o meio em que
viveu por tanto tempo, quem podia dar-lhe
[340]
forças para levar ao cabo a sua missão de
sacrificio? Não tinha uns braços de
mãe que
a amparassem; um exemplo santo que a fizesse
preferir a tudo o incompensado, o obscuro,
o aspero dever! Não havia ao pé
d'ella uns labios immaculados que a beijassem
e lhe dissessem:
―Tem delicias austeras, tem voluptuosidades
verdadeiramente dignas das que são
grandes, o cumprimento do dever, por mais
duro que elle seja. Vaes procurar a felicidade
ás paixões ephemeras, que na ebriedade
da sua febre romantica te pintaram os
artistas e os poetas, cuja obra tem sido o
alimento de tua vida interior? Olha que elles
todos mentem! O que de lá trarás, do
paiz das chymeras azues e das miragens
enganosas, é uma sêde de ideal ainda mais
ardente, é o tedio da vida ainda mais profundo
e mais penetrante; é uma chaga
aberta que só em longos annos de renunciamento
e de velhice tu poderás sarar, mas
cuja cicatriz, eternamente asquerosa, desformizará,
[341]
para sempre, a formosura ideal do
teu genio sublime!―»
Mas ai! ella era moça, tinha a sofrega
curiosidade da vida; tinha lido os poetas da
paixão; tinha-se contaminado d'aquella febre
sensual, que se exhala, como um miasma
putrido, dos livros ardentes de Rousseau. O
periodo, de resto, era de delirio ardente.
Gosar, eis o motte d'essa geração de
desequilibrados,
nascida d'um beijo entre duas
batalhas sangrentas.
Quando ella voltou das suas primeiras
excursões ao paiz maldicto onde se respira
a
malaria dos desejos insalubres,
que immensa
dôr inconsolavel se evola, como um
aroma de morte, das suas tristes cartas!
«O meu coração envelheceu vinte annos!
Já nada na terra me sorri! Para mim já
não póde haver nem paixões profundas,
nem vivas alegrias. Tudo está dito! Dobrei
o cabo. Cheguei ao porto, não como esses
nababos que regressam em redes de sêda,
ao tecto de cedro dos seus palacios, mas
[342]
como os pobres pilotos, que esmagados pelo
cançasso, queimados pelo sol, deitam a ancora,
para não exporem mais ao mar a chalupa
avariada. Não têem de que viver em
terra, e demais a terra aborrece-os. Tiveram
antigamente uma bella vida, tiveram
riquezas, aventuras, combates e amores.
Talvez lhes fosse grato recomeçar... mas
como se a embarcação está
desmantellada
e a carregação perdida?..»
Desesperada, na hora dos remorsos supremos,
que os orgulhosos nem a si confessam,
sentindo porventura essa dôr incomportavel,
que deve ser o tedio de si propria,
é a morte que ella chama com lamentos de
uma incomparavel e poderosa melancolia.
E voltando depois, d'essa viagem que ficou
celebre no mundo das letras, pelos formosos
livros que produziu, pelos versos divinos
que inspirou, voltando a
Nohant, ao
ninho humilde onde segundo ella propria
diz, não póde viver mas onde a morte lhe
será mais doce, murmura meigamente:
[343]
«Vim dizer adeus ao meu paiz, ás memorias
da meninice e da mocidade, porque
decerto comprehendes que a
vida me é odiosa
e impossivel e que é forçoso,
absolutamente
forçoso que eu morra.»
Oh! quem me dera poder citar largamente,
d'essas cartas que resumem uma vida,
e uma vida cheia, accidentada, agitada
por todas as paixões que fazem pulsar febrilmente
um coração de mulher, quem me
dera poder citar todos os trechos adoraveis,
que me arrancaram lagrimas!..
Sonhadora, que nenhum desengano conseguiu
acordar; vizionaria, que nenhuma
realidade chama á terra; ave enamorada, a
que nenhuma queda parte as azas de enorme
envergadura, ella vae sempre, pedindo
ás amarguras dilacerantes de uma chymera
impossivel, consôlo para as dôres sem nome
que outra chymera lhe deixara...
Pisam-n'a? abandonam-n'a? Enganam-n'a?
Que importa!
A vida prometteu-lhe a felicidade, e ella
[344]
vôa, sem cançar nunca, atraz da sombra errante
que lhe foge!
Allumiada, a intermittencias rapidas, pela
cruel faculdade critica que é a sua superioridade
e o seu martyrio, ella despenha por
suas proprias mãos do pedestal marmoreo
o idolo que as suas proprias mãos ali tinham
erguido.
Que importa? Porque se enganára uma
vez não é licito esperar que se engane
eternamente.
A bella figura immaculada, que a sua
phantasia imaginou, ha de vir; não tarda
ahi; é mister que ella tenha todo o seu
coração
vivo e juvenil, para lh'o entregar, renascido
das proprias cinzas.
E levantando-se mais vigorosa apoz o
desfallecimento de todo o seu ser, e resurgindo
mais apaixonada e mais crente da
completa derrocada de todas as paixões e
de toda
E levantando-se mais vigorosa apoz o
desfallecimento de todo o seu ser, e resurgindo
mais apaixonada e mais crente da
completa derrocada de todas as paixões e
de todas as crenças, ella caminha insaciada
e insaciavel, peccadora inconsciente, somnambula
da paixão, ambiciosa sempre trahida
[345]
d'essa chymera eterna que se chama
amor feliz!
Mas em meio da carreira vertiginosa e
febril ha duas forças que a chamam, ha
dois poderes secretos que a redimem e a
salvam.
A maternidade e o trabalho.
Então no seu horisonte nublado e tempestuoso
ergue-se, a principio indecisa e dubia,
depois purpurea, victoriosa, flamejante,
a luz pura que vae illuminar a vida
d'esse grande espirito transviado e enlouquecido.
Os homens pagaram-lhe, com insultos, o
amor que, na sua fragilidade, ella lhes teve,
mas o filho extremecido, preferindo o appellido
glorioso que o genio de sua mãe lhe
conquistara ao nome herdado de seu pae,
deu-lhe n'este acto de adoração intensa e
delicada a desforra de todas as humilhações,
a victoria de todas as derrotas.
Mais tarde, no outomno tão purpureado
de tons opulentos, da sua vida de trabalhadora
[346]
intrepida, ella sabe com a palavra
convencida e grave dos que soffreram, luctaram
e venceram, incutir coragem aos
que fraquejam, ensinar o caminho do bom e
do justo aos que vacillam na escolha da sua
estrada, dar animo, incentivo e applauso
aos artistas, que succumbem ao desalento
d'uma hora infecunda, ser ella propria um
exemplo de força viril e de femenil ternura.
Os seis volumes da correspondencia de
Georges Sand são como que a ascensão
d'um espirito para a região luminosa da
bondade, da justiça e do amor! Á
proporção
que a vida lhe declina―a pacificação, a
doçura e a paz vêem descendo sobre o seu
agitado espirito, até fazerem d'elle um
exemplo de força e caridade, de
resignação
e de tolerancia.
«Quanto mais vivo, diz ella n'uma das
suas cartas, mais profundamente me prostro
diante da Bondade, porque vejo que é
ella o beneficio de que o Senhor é mais
[347]
avaro. Onde a intelligencia não existe, chama-se
bondade ao que é simplesmente inepcia.
Onde não existe a força, julgam bondade
ao que é apenas apathia. Onde a força
e a luz intellectual se encontram, é raro que
se encontre tambem a bondade, pois que a
experiencia e a observação produziram a
desconfiança e o odio! As almas votadas aos
mais nobres principios são tambem muitas
vezes as mais acres e as mais rudes, porque
as decepções as adoeceram para sempre.
A gente estima-as e admira-as ainda, mas
já não póde amal-as.
Ter sido desgraçado
sem deixar de ser intelligente e bom, faz suppôr
uma bem poderosa organisação, e são
estas as que eu mais procuro e mais amo.
N'um periodo caracteristico d'uma carta
a Lammenais diz assim, com entristecida e
commovedora franqueza:
«Mestre, ha n'este mundo atalhos pelos
quaes os seus pés nunca passaram, abysmos
onde o meu olhar mergulhou. Viveu com
os anjos e eu tenho vivido com os homens
[348]
e com as mulheres; sei como se padece, sei
como se pecca, sei a immensa necessidade
que existe d'uma regra, que torne possivel
a virtude. Confie em mim, creia que ninguem
a procura com mais desejo de encontral-a,
com mais respeito pela virtude e com menos
personalidade; porque eu não tentaria
jámais palliar as minhas culpas passadas, e
a idade já me permitte o encarar com placidez
as tempestades, que palpitam e morrem
no meu longinquo horisonte.»
A um dos queridos amigos da mocidade,
tão piedosamente conservados até á
velhice,
ella escreve um dia, n'uma d'estas horas
em que a verdade nos acode irresistivelmente
aos bicos da penna, n'uma explosão
de sinceridade cheia de lagrimas?
«Oh! como eu soffri n'esta vida, meu pobre
irmão!.. E tu, sentes-te agora mais
tranquillo?..
«Eu, por mim, tive um terrivel duello
comigo mesma, um combate gigantesco
com o meu ideal. Que ferida, que dilacerada,
[349]
que ás vezes me senti!.. Agora vegeto
docemente, placidamente. Pareço a mim
mesma um cypreste que viça em cima d'um
cadaver. Meu Deus! meu Deus! quantas lagrimas
eu não contive! quantas queixas
não suffoquei! quantas dôres sem consôlo
eu guardei para mim só!..»
E n'outra carta, como que tirando a suprema
conclusão dos sacrificios interiores,
que se impoz pelo amor do bem, escreve
d'este modo:
«Desde que sinto pezar por sobre mim a
mão da velhice, experimento uma paz, uma
esperança, uma confiança em Deus, que eu
não tinha nas commoções da mocidade.
Acho que Deus é tão bom, tão bom, por
nos
envelhecer, por nos acalmar, por destruir
em nós o egoismo, tão aspero em quanto
se é moço!.. E queixamos-nos de perder
alguma cousa, quando a verdade é que alcançamos
tanto, que as nossas ideias se ampliam
e se tornam mais justas, e o nosso
coração se faz mais vasto e mais doce, e a
[350]
nossa consciencia victoriosa emfim, póde
olhar para o caminho já percorrido e dizer:
«Cumpri a minha tarefa, está perto a hora
da recompensa!»
Comprehende-se que, em seis volumes,
ha centenas de paginas que eu citaria com
prazer, e que justificam amplamente o enthusiasmo,
que n'este rapido artigo se revella.
As cartas em que Georges Sand deixa
transparecer, com divina eloquencia, o seu
patriotismo de vizionaria, a sua caridade
inexgotavel e ardente, a sua doce tolerancia
para as fraquezas humanas, o seu genio
simples e bom, feito de sinceridade e de
ternura...
A indole porem d'estes estudos não comporta
tamanhas delongas, e na impossibilidade
de citar tudo, quasi que acho preferivel
não citar nada. A tentação todavia
arrasta-me
ainda a transcrever para aqui, ao
acaso, mais alguns trechos caracteristicos:
Quando a França parece querer suicidar-se
nos excessos selvaticos da Communa,
[351]
quando todos se curvam desalentados
ao pezo da mesma dôr impotente, ella, a
valente mulher, exclama cheia de fé:―«Sinto
me
fluctuar ao acaso sobre as vagas, mas
buscando a terra, porque sei que a terra
existe, e que tudo lá vae dar fatalmente.
«A verdade, o bem não são mentiras;
basta
que a gente os sinta viver dentro de si
propria, para ter a certeza firme de que elles
existem no coração da humanidade.»
E quando Flaubert, nas suas explosões
de epileptico, lhe mandava em cartas que
tambem estão publicadas, mas que são
incontestavelmente
inferiores ás cartas d'ella,
os seu lamentos pueris ácerca dos males
imaginarios que o torturam, Georges Sand, a
martyr de tantas agonias, em vez de rir-se
desdenhosamente d'essa velha creança, que,
a tanto talento juntava tão extraordinarias
fraquezas, tracta, pelo contrario, de combater
o soffrimento que a sua alma intrepida
nem concebe, e explica-lhe d'este modo o
ideal da sua velhice.
[352]
―«Amar sempre, sacrificar-se continuamente,
não reassumir a posse de si proprio
senão quando o sacrificio já não seja
necessario
áquelle a quem se consagra, e sacrificar-se
ainda, na esperança de servir a unica
cousa verdadeira que ha n'este mundo―o
amor!
«Não fallo aqui da paixão pessoal,
fallo
do amor da raça humana, do sentir que
cada ser amplia até aos outros seres! Esse
ideal de justiça, de que tu me fallas, nunca o
poude comprehender separado do amor,
visto que a primeira lei, para que uma sociedade
natural subsista é a que faz com
que os membros que a compõem se sirvam
mutuamente e mutuamente se amem. Chama-se
nos animaes instincto este concurso
de todos para o mesmo fim; nos homens,
porem, deve chamar-se amor; quem se subtrahe
ao amor subtrahe-se á verdade e á
justiça.
«Lamento a humanidade; quereria vêl-a
boa porque não posso separar-me d'ella;
[353]
porque
ella é
eu; porque o mal que ella se
faz a si me fere o coração; porque a sua
vergonha me faz corar; porque os seus crimes
dilaceram as minhas entranhas; porque
não posso comprehender o paraizo na terra
ou no céo para mim sósinha.»
E como o grande escriptor de madame
Bovary, na sua eterna lucta contra o que elle
chama a
bêtise humaine,
continúa a expandir-se
em manifestações colericas que irritam
quem lhe lê as cartas, Georges Sand,
sempre serena e doce, sempre maternal, responde-lhe:
«Quanto mais desgraçado és, mais eu te
quero!
«Como te apoquentas, como te affliges com
a vida!.. Porque, no fim de contas, é da
vida que te queixas. Ella nunca foi melhor
em tempo algum, para ninguem! A gente
sente-a mais ou menos, comprehende-a
mais ou menos, soffre por causa d'ella mais
ou menos, e quanto mais adiantado está em
relação á epocha em que vive, mais tem
de
[354]
padecer em resultado d'essa desharmonia.
«Passamos como sombras sobre um fundo
enublado que o sol apenas rompe em raros
instantes, e chamamos incessantemente por
esse eterno sol que não póde allumiar-nos.
Está em nosso poder affugentar as nuvens...»
«Tens demasiado amor pela litteratura;
ella ha de matar-te sem que tu consigas
matar a
tolice humana. Pobre tolice
humana!
Eu não a detesto como tu. Pelo contrario!
Olho para ella com olhos maternaes,
porque a considero uma infancia, e toda a
infancia é sagrada para mim! Que odio que
lhe votaste! que enorme guerra lhe fazes!
Tens intelligencia e sciencia de mais; esqueces-te
de que ha alguma cousa superior
á arte, e essa cousa chama-se sabedoria,
da qual a arte no seu apogeu é apenas a
expressão simples.
A sabedoria comprehende tudo: o bello,
o verdadeiro, o bom, e por conseguinte o
[355]
enthusiasmo que d'elles derivam. É ella que
nos ensina a vêr fóra de nós, alguma
cousa
de mais elevado que o que está em nós, e a
assimilal-o pouco a pouco pela contemplação
e pela admiração. Mas eu nem sequer
conseguirei fazer-te comprehender bem o
modo pelo qual encaro e percebo a
felicidade,
quer dizer a acceitação da vida tal
qual ella é.»
Quem não sentirá sympathia por estas
palavras de fé, de pacificação e de
conforto!
De quantas dôres superiormente supportadas,
de quantos erros expiados d'um
modo sublime, se compõe esta serenidade
augusta que dá a velhice de Sand uma grave
e encantadora magestade.
E ao par d'estas graves lições de alta
moralidade, d'estas lições que reconciliam
com a vida o espirito mais dolorido, mais
inquieto e mais revoltado, encontram-se
aqui e ali phrases encantadoras d'uma graça
femenil deliciosa e fina. «Quando eu tiver
exgotado a minha taça de amargura,
[356]
hei de então levantar-me. Sou mulher, tenho
ternura, tenho piedade, e tenho impetos
de colera. Não terei nunca a serenidade
d'um erudito ou d'um sabio!.. «Os fortes
são aquelles que não amam! Não
serás nunca
um
forte e ainda bem!»
«Sou ainda, senão necessaria, pelo menos
extremamente util a todos os meus, e emquanto
houver em mim um sopro da vida,
hei de pensar, trabalhar, soffrer por elles!»
... «Já não tenho tempo de pensar em
mim, de scismar em cousas desanimadoras,
de desesperar da especie humana, de olhar
para as minhas proprias dôres e para as
minhas alegrias passadas e de chamar a
morte. Olha, se a gente fosse egoista era o
caso de a vêr chegar com alegria; é tão
commodo dormir para sempre, ou accordar
para uma vida melhor! Mas para quem tiver
ainda de trabalhar, a morte não deve
chegar antes da hora em que o extenuamento
completo nos possa abrir as portas
da liberdade.» ... «Não sejas fraco!
então?!
[357]
Devemos o exemplo da nossa força moral
a todos que nos cercam e podem ouvir-nos!
E eu?! Julgas que eu não tenho tambem
necessidade de auxilio e de amparo,
na minha longa tarefa ainda por concluir?
«Pois não tens amor a ninguem, nem sequer
á tua velha amiga, que sempre canta,
e chora muitas vezes, mas que se esconde
para chorar, como os gatos se escondem
para morrer?.. »
Estas cartas a Flaubert são todas d'uma
graça maternal, d'um encanto affectuoso
que conforta e fortifica. Depois de se terem
lido, a gente sente-se envergonhada de succumbir
a meio do caminho, de se lamentar
egoista e puerilmente, porque a vida é
triste e incompleta, e cheia de aspirações e
de esforços vãos!
Para Georges Sand a vida, dura e inhospita
como lhe foi, a vida que segundo ella propria
confessa
lui a manqué de
parole muitas
vezes, muitas vezes a fez sangrar por todos
os póros da sua carne, muitas vezes a dilacerou
[358]
e abateu, nunca logrou prostral-a.
Tinha―dom raro e milagroso que constitue
a unica superioridade d'este mundo―tinha
a faculdade da
eterna
renovação que
a natureza empresta a raros eleitos seus.
Mon coeur mille fois brisé et toujours
heureux de vivre―dizia ella aos setenta annos,
definindo, d'este modo profundo e brilhante,
o seu coração de valente e de luctadora,
tão energico e tão meigo, e dando-nos
assim o segredo de seu genio cheio de
contrastes, illuminado por todos os esplendores,
obscurecido por todas as sombras,
opulento e suave, risonho e melancholico,
impetuoso e terno, bom sobretudo, bom
como a grande natureza sua inspiradora e
sua mãe, sua confidente na mocidade agitada,
sua amiga na serena velhice.
Confidencias d'um apaixonado coração de
mulher, que teve na amisade os ardores e
os extremos que outros, nem nos amores sabem
ter; despretenciosas lições de arte, de
litteratura e de bom senso; conselhos d'uma
[359]
delicadeza penetrante, d'uma alteza de pensamento
maravilhoso; descripções formosissimas;
palavras de caridade e de conforto;
doces expansões de amor materno; profissões
eloquentes, e singelas ao mesmo tempo,
de tolerancia, de benevolencia universal, de
religiosidade profunda e intima, quasi que instructiva,
de amor da humanidade elevado ás
sagradas proporções d'um culto;―eis o que
nos dão essas cartas soberbas, superiores
talvez pela significação e pela verdade a
toda a obra da prodigiosa romancista.
Será a vida de Georges Sand um exemplo
a apontar-se? É claro que não, e que
ninguem, d'este rapido esboço critico, póde
deprehender tal absurdo. O genio, porem,
tem attenuantes excepcionaes para os seus
excepcionaes desvarios.
E se a obra da grande escriptora nos
[360]
deixa ás vezes entristecidos e descontentes,
se a sua mocidade nos desola como uma
pagina lamentavel da vida dos grandes entendimentos,
as suas cartas reconciliam-nos
com ella, e são os seis volumes das suas
cartas que eu recommendo a todos os que
me lerem.
INDICE
|
Pag.
|
Gonçalves
Crespo |
1 |
Ramalho e
Eça |
37 |
Ramalho
Ortigão |
53 |
Anthero de
Quental |
107 |
Antonio
Candido |
165 |
Teixeira de Queiroz |
225 |
Octave
Feuillet |
257 |
Os irmãos
Goncourt |
292 |
Georges
Sand |
325 |