Nota de editor:
Devido à
quantidade de erros tipográficos existentes neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Maio 2008)
PAISAGENS DA CHINA E DO JAPÃO
WENCESLAU DE MORAES
Paisagens
da
China e do Japão
LISBOA
livraria editora
VIUVA TAVARES CARDOSO
5, Largo de Camões, 6
1906
LISBOA
Typ. de Francisco Luiz Gonçalves
80, Rua do Alecrim, 82
1906
A Camillo Pessanha e João Vasco
Nos baldões da
vida bohemia, na
confusa successão dos dias e das scenas,
acontece que os factos, as coisas, os individuos,
invocados pela pobre memoria
exhausta, vão perdendo pouco a pouco
as suas qualidades intensivas, as suas
côres, os seus contornos, a sua feição
propria, emancipando-se do real, como
uma pagina de aguarella desmerece,
solta e perdida no espaço e voando com
as brisas; diluindo-se por fim n'uma
emoção generica, vaga, indifinivel,―a
saudade.―A essas duas grandes saudades,
Camillo Pessanha e João Vasco,
dedico hoje este livro.
Kobe, 10 de Abril de
1901.
Wenceslau
de Moraes.
AS BORBOLETAS
a
J. Moreira de Sá.
A lenda das borboletas.
São tão lindas, as borboletas! Quem as
vê, que
não lhes queira? ahi vagabundando pelo azul dos
campos, razando as corollas frescas, amando-se,
beijando-se, libertas da larva abjecta, como almas
de amantes despidas da miseria terreal, a viajarem
no infinito... São tão lindas, as borboletas!...
Mas na China são talvez mais lindas do que todas.
É um deslumbramento surprehendel-as na
quietação dos bosques, voejando aos pares, que se
tocam, que se abraçam, e enfiando pelas sombras
mysteriosas dos bambuaes, com as suas longas azas
[2]palpitantes,
lancioladas, em matizes maravilhosos,
de negros avelludados, de azues meigos, de amarellos
quentes, como se as loucas vestissem cabaias
de setim, de sedas de alto preço...
Choc-In-Toi, a deliciosa Choc-In-Toi, habitava,
ha longos seculos, uma pacifica aldeia do Yang-tsze-kiang,
não longe do logar que hoje se diz Shanghae.
Como fosse muito dada a estudos litterarios
e as escolas do seu sexo não lhe satisfizessem a
ambição,
conseguiu que seus paes lhe permittissem o
disfarçar-se em homem, e assim abalou, a ir frequentar
a mais famosa universidade do imperio. Volveu
ao lar apóz tres annos; volveu tão pura como
fôra; da
sua innocencia ha provas irrecusaveis. Para não divagar
muito n'estas paginas, basta dizer a quem me
queira ouvir, que um lenço de seda branca, que ella
enterrara na lama em presença d'uma sua cunhada
predisposta a vaticinar-lhe rudes lances, foi depois
tirado sem uma só mancha e sem um só
farpão,
branco, puro, como a alma da donzella; e basta saber
que as flôres da sua preferencia, que ella deixára
no jardim, rogando aos deus
Choc-In-Toi, a deliciosa Choc-In-Toi, habitava,
ha longos seculos, uma pacifica aldeia do Yang-tsze-kiang,
não longe do logar que hoje se diz Shanghae.
Como fosse muito dada a estudos litterarios
e as escolas do seu sexo não lhe satisfizessem a
ambição,
conseguiu que seus paes lhe permittissem o
disfarçar-se em homem, e assim abalou, a ir frequentar
a mais famosa universidade do imperio. Volveu
ao lar apóz tres annos; volveu tão pura como
fôra; da
sua innocencia ha provas irrecusaveis. Para não divagar
muito n'estas paginas, basta dizer a quem me
queira ouvir, que um lenço de seda branca, que ella
enterrara na lama em presença d'uma sua cunhada
predisposta a vaticinar-lhe rudes lances, foi depois
tirado sem uma só mancha e sem um só
farpão,
branco, puro, como a alma da donzella; e basta saber
que as flôres da sua preferencia, que ella deixára
no jardim, rogando aos deuses que as conservassem
frescas como ella, assim se conservaram
durante a longa ausencia, embora, como consta, a
[3]
cunhada as fosse regando com agua quente tirada
da chaleira.
Durante
os tres annos de seu estudo, um companheiro,
por nome Leun-San-Pac,
intimamente se lhe afeiçoou.
Era o seu camarada inseparavel,
o seu irmão; dormindo juntos, conversando
juntos, estudando juntos,
divagando, sonhando; e o lorpa
do mocinho nunca se apercebeu
que tinha a seu lado uma
mulher.
Quando soou a hora das despedidas,
cortava o coração vêr o
rapaz, lamentando o futuro isolamento,
a perda d'um amigo
como aquelle. A moça consolava-o.
A moça poisava-lhe nos
hombros as suas mãos gentis, e
exhortava-o a que se enchesse de
coragem, a que se entregasse ao
amor do estudo, té alcançar um
alto grau de sapiencia.―«E depois, dizia-lhe ella
entre soluços, e depois, se com saudade te recordares
[4]
ainda
de mim, abala, vem vêr me á minha
aldeia.»―E dava-lhe indicações
precisas do logar.
Despediram-se, entre choros.
A donzella esperou, esperou, esperou,―quem
poderá descrever esse tormento? guardando da familia
o seu segredo; e o moço não apparecia. Segundo
os usos do paiz, os paes destinaram-lhe um
marido; e ella, a desolada, escrava da obediencia
filial, obediencia cega, indiscutivel, que é a base da
vida inteira moral do povo china, inclinou-se, acceitou,
sem que uma só queixa proferisse.
Tres dias decorridos depois do contracto nupcial,
eis que chega á aldeia o pobre Leun-San-Pac; pobre,
porque a desventura se lhe acerca; mas rico de
erudição, de uma alma culta, e occupando um logar
proeminente. Encontra o seu amigo, encontra o seu
irmão; mas agora sem disfarces, na graça plena
dos
seus enlevos femininos, na gentil elegancia das vestes
que lhe são proprias, e com grinaldas de flores
na trança negra. De começo, este enigma, pouco a
pouco explicado, confunde-o, desnortea-o; mas tudo
se aclara; da amisade ao amor o salto é rapido. Oh!
elle ama-a agora, elle ama-a de todas as forças do
seu ser; e no olhar de fogo transluzem mil mysterios
de adorações e de desejos!... É tarde.
A
palavra dada ao feliz noivo não se quebra. Os velhos
[5]
paes prezam mais do que tudo, a propria
honra.
Elle parte; elle parte para um logar visinho, louco,
com a alma embebida no fel dos desesperos.
É ainda ella, a doce pomba obediente, que tenta
consolal-o. Ella escreve-lhe; ella diz-lhe que a vida
não é eterna; que a piedade filial arrasta-a a um
consorcio que só lhe vaticina dores e prantos; mas
que as almas são livres, emigram d'uns corpos para
outros; encarnam-se n'outros seres; que elle socegue,
aguarde outra existencia, para a qual ella
lhe jura será a sua companheira, toda fidelidade e
toda amor. Leun-San-Pac lê, faz um bolo d'essa
carta, onde tão demoradamente poisara a mão da
sua bella, e engole-o, e suffoca-se com elle, e exhala
assim na solidão o ultimo suspiro. Um pouco além,
sobre a montanha, se lhe elevou a sepultura.
Soam bategas festivas, estalejam nos ares fogos
de gala, de alegria; e pela longa estrada em ziguezague,
bordada aqui e alli de bambus e bananeiras,
doirada pelo sol do meio dia, serpea em rutilantes
theorias o monumental cortejo do noivado, caminho
do lar feliz.
O estylo de ha mil annos
é o mesmo estylo de
[6]
hoje. São os grandes balões, os estandartes,
conduzidos
por moços vestidos de vermelho. São os
enxovaes primorosos, as cabaias, a collecção dos
sapatinhos,
tudo disposto nas liteiras luzentes dos esmaltes. São as
colossaes peças
de doçaria,
castellos
de assucar,
dragões de assucar,
coisas
espantosas. São os porcos
assados, loiros,
deliciosos, espalmados sobre os taboleiros, com
laços de fita nos focinhos. São as orchestras
estridentes,
de flautas, de rebecas. São as creanças
ataviadas em setins, em allegorias de scenas de outros
tempos, cavalgando alimarias pachorrentas. É
finalmente a liteira da noiva, toda ella oiros, toda
ella esmaltes, fechada como um cofre, furtando á
vista dos curiosos o precioso fardo, Choc-In-Toi.
A noiva solicita do cortejo um curto desvio na
sua marcha. A noiva, antes de entrar no lar e de
[7]
ser esposa e escrava, quer abeirar-se, além, d'aquella
sepultura esquecida na montanha, e orar junto
dos restos do que morreu por ella. Quem lhe recusaria
tal licença? Eil-a que desce da liteira, nas
suas cabaias deslumbrantes; e eil-a que se prostra,
eil-a que beija a terra...
A terra abre-se então,
carinhosa, mãe; a terra
traga-a, chama-a a si, chama-a para junto dos ossos
do seu querido. A comitiva pasma do milagre.
As mãos avançam a detel-a; mas só
logram colher
um pedaço do vestido, que se rasga, e é tudo... O
pedaço de seda,
de mil matizes,
transforma-se
de subito
n'uma borboleta
de mil
côres, que vôa
das mãos rudes,
e desapparece no azul,
desapparece!... É desde aquella epocha que ha borboletas
n'este mundo, tão lindas, tão cheias de
matizes!...
Eu não lhes estou contando uma mentira, meus
[8]
amigos. Ainda hoje se vê a sepultura, esboroada
pelos seculos, d'aquelles amorosos. E as esposas
desprezadas alem vão em romaria, e d'aquella terra
bemdita se suprem ás mãos cheias, e d'ella
provam,
e disfarçada com o arroz a ministram aos maridos.
Consta que o estranho tempero, aquella terra,
que em alguma coisa participa da essencia dos
amantes que ali jazem para sempre, tem virtude
comsigo, e é sempre efficaz em trazer ao bom caminho
os mariolas, os maridos.
A ALFORRECA
a Henrique Carvalhosa.
Falla a lenda japoneza.
Antigamente―e quem sabe se ainda hoje!―no
seio do oceano era o reino faustuoso dos dragões.
Por longos annos, o senhor d'este reino, o
dragão real, viveu celibatario, n'uma existencia descuidosa;
e sabem só os deuses, e não nós,
quantas
noites de dissipação, em companhia de tartarugas
e lagostas ligeiras de costumes, que lhe cantavam
trovas ao som do
shamicen e lhe iam
servindo
saké
em ricas taças, quantas noites elle passou em travessas
intimidades amorosas!...
Verdores, que passam breve. Um
bello dia, resolveu
[10]
casar-se, o bom soberano. A noiva escolhida
foi uma joven dragôasita, dezeseis annos apenas,
adoravel, digna pelos seus mil encantos de ser a
consorte feliz de tal senhor. Explendidas foram as
bodas por essa
occasião, segundo
consta: sem já
fallar na côrte intima,
toda a bicharia
aquatica,
peixes, mariscos,
molluscos, todos vieram processionalmente,
em cardumes, em bellos
kimonos
de sedas encarnadas, offerecer
seus respeitos e presentes; e foram,
durante longos dias, estupendos regabofes, em
danças, em musicas, em
banquetes...
Mas nem os dragões escapam ás
duras provações da existencia! Ainda
bem um mez se não passára, quando a augusta
soberana
caiu doente; e taes cuidados inspirou desde
logo o seu estado, que era uma lastima observar as
trombas compungidas dos fidalgos, commentando
[11]
baixinho, em lamentações do seu officio, o triste
caso.
Reuniram-se os doutores em conferencia; fallaram
muito, discutiram muito, sem chegarem a accordo,
como sempre succede; consultaram-se abalisados
alfarrabios de therapeutica; as barbatanas incançaveis
rabiscaram um milhão de receitas milagrosas,
e todas as tisanas se serviram. Baldado intento;
a soberana extinguia-se; e afinal os focinhos dos
sabios, n'um tregeito de piedade e desengano, tiveram
de ser francos, de declarar que a sciencia―já
n'aquella epoca se enchia a bocca com
a
sciencia―que
a sciencia nada mais podia fazer, e que um
angustioso desfecho era de esperar-se.
Do seu leito de enferma, de entre os
futon, as
fofas colchas de setim, agita as tremulas patinhas
a rainha; chama junto de si o esposo, e diz-lhe
estas palavras ao ouvido:―«Uma só coisa me
salvará:
arranquem o figado a um macaco vivo, e consintam
que o devore; recuperarei a saude....»―O
rei não poude reprimir um gesto de surpresa, quasi
de enfado, e todo se lhe erriçou o bigode
façanhudo:―«Um
figado de macaco! estás louca, minha
querida!...»―Ella promptamente retrucou:―«Louca,
porquê? Vossa magestade esquece por ventura,
[12]
que nós, o grande povo dos dragões, no mar
vivemos
sempre; emquanto que os macacos, muito longe
d'aqui, vivem na terra, nos bosques, entre as arvores,
nutrindo-se de fructos... No figado do mono
alguma coisa virá que participe d'esse mundo, tão
diverso, tão outro;
e essa particula
estranha,
senhor, me salvaria!...»―E
a rainha, a
quem as lagrimas
acodem,
prosegue n'um
tom reprehensivo
e lastimoso:―«Uma
insignificancia,
um nada, pedi, e esse nada vossa magestade me recusa.
Julgava merecer-lhe mais affectos. Dispa-me
d'estas pompas de soberana, não as quero; dê a
corôa a outra esposa, mais digna, mais formosa;
consinta que volva ao ninho carinhoso de meus
paes...»―A voz suffoca-se em soluços,
não pode
mais proferir uma só queixa...
O rei dos dragões não queria passar, entre damas
[13]
por um dragão cruel; por demais conhecia elle
os caprichos pueris do sexo fragil, mas perdoava-os
complacentemente, por systema; e sobretudo adorava
a esposa, cujas lagrimas desejaria poupar a todo o
transe. Satisfaça-se pois o capricho da rainha. Mandou
chamar a sua escrava mais fiel e dedicada, a
alforreca, e disse-lhe o seguinte:―«Vou dar-te uma
espinhosa tarefa, minha velha, mas confio na tua
dedicação nunca mentida; preciso que emprehendas
uma longa viagem, que nades até junto da terra, e
alli convenças um macaco a vir comtigo a estes meus
reinos; falla-lhe, para o resolveres, da magica belleza
d'estes sitios, tão differentes dos seus, e da gentileza
d'estes meus subditos
felizes; mas o que
eu realmente quero
n'este caso, é que se
arranque o figado das
entranhas de tal mono,
e se sirva como
medicamento á tua
joven ama, que, como
de certo sabes,
se acha em perigo de
vida, a desditosa.»
[14]
Lá vae, oceano fóra, vento em pôpa, a
alforreca,
emissaria obediente e ufanosa do encargo. Por
aquelles tempos, a alforreca, como qualquer bicho
das aguas, era um animal gracioso, de contornos esbeltos,
com cabecinha, com olhinhos, com mãosinhas,
e com a competente cauda titillante; e ficava-lhe
tão bem o fato de marujo!... Lá vae, oceano
fóra, olhar sereno e cogitador, rompendo a vigorosas
braçadas a onda fria. Não tarda muito a
abeirar-se
do paiz onde vivem os macacos; por felicidade,
um alem está, um lindo mono, saltando de ramo em
ramo, dependurando-se das arvores que enraizam
nos penedos e se debruçam sobre o mar.―«Bons
dias, senhor macaco. Eu venho aqui expressamente
para fallar-lhe d'um paiz longinquo, muito mais bello
do que o seu; é elle situado alem das ondas e conhecido
pelo reino dos dragões; alli, não ha
estações,
é eterna a amenidade do clima; alli, nas copas das
arvores repolhudas, constantemente amanhecem avelludados
fructos saborosos, é colhel-os, não ha outra
tarefa; para cumulo do conforto, essas creaturas
malfazejas, homens chamados, não pisam taes paragens.
Se lhe agrada vir commigo, eu serei o seu
guia; não tem mais que fazer do que saltar d'esse
tronco para cima do meu lombo...» O macaco
achou gracioso isso de ir vêr novos paizes. Vá
lá
[15]
mais esta extravagancia á conta da bohemia
simiesca.―«Ao
largo, amiga!»―E lá foram os dois;
porém,
a meia travessia, pensou tardiamente o mono na
temeridade do seu feito, expondo-se assim ao arbitrio
d'um extrangeiro, e abandonando a sua patria.
Decidiu-se emfim a perguntar:―«Que pensa você
que vão fazer de mim na sua terra?»―A
alforreca
deveria agora ser discreta,
encapotar as respostas
em evasivas; mas oiçam lá
o que ella deu em troco:―«Eu
lhe digo: meu amo,
rei dos dragões, ordena
ao senhor macaco que arranque
o proprio figado, o
qual vae ser servido á nossa
soberana, hoje enferma,
e salval-a da morte.»―Então o mono, guardando
para si os commentarios que o caso suggeria, disse
cortêzmente, que era para elle uma alta honra e um
esperado prazer, o assim tornar-se util a sua magestade;
acrescentou, porem, que agora se lembrava
de ter deixado o figado dependurado n'um tronco de
arvore, aquelle mesmo castanheiro d'onde saltara
para as costas da alforreca. Continuou discursando
em linguagem fluente, de orador emerito, descendo
[16]
a explanações minuciosas; e explicou como o
figado
era uma coisa bastante pesada, embaraçosa, um
quasi alforge de peregrino, um empecilho que elle
costumava pôr de parte, durante o dia, para se entregar
mais á vontade aos seus exercicios de acrobata;
habitos de familia, já seu avô fazia o mesmo; e
concluiu,
que o melhor que tinham a fazer n'este momento,
era voltarem para trás, e na arvore encontrariam
o figado em questão.
Não pôz objecções a
nadadora. Voltando á terra,
o macaco saltou ao castanheiro com uma ligeireza
nunca vista, nem mesmo entre macacos, acompanhando
o pulo d'uma alegre careta e d'um gesto que
traduzia o jubilo do bestunto, coisa que passou estranha
á alforreca. Procurou entre as folhas o seu
figado. Não o encontrou. Explicou então do alto,
á
alforreca, que provavelmente algum companheiro o
levára para longe, o que o obrigava a mais demoradas
pesquisas pelo bosque; no entretanto que fôsse
ella contar o caso ao seu senhor, que devia estar
ancioso por vêl-a chegar antes da noite.
Assim procedeu o bicho.
El-rei, que a esperava, e que a escutou, enraivecido
por tamanha ingenuidade―para não lhe chamar
[17]
coisa mais feia,―mandou logo vir da maladia
um bando dos seus mais soberbos
samurais, e ordenou-lhes
que malhassem no bicho á pancada, até
cançarem.
O castigo foi cumprido, e com esse vigor de
braços de villões, que miram aos applausos do
monarcha.
É esta a razão porque a alforreca, hoje em
dia, não tem pernas, nem cabeça, nem cauda, nem
barbatanas: tanta pancada levou, que ficou reduzida
a esta miseria, massa informe, um farrapo, um pedaço
de gelatina, boiando despresivelmente á mercê
do turbilhão das vagas.
Com respeito á soberana, reconsiderando no disparate
do seu capricho, concluiu que o melhor que
tinha a fazer era erguer-se da cama e pôr-se bôa; e
assim fez, com grande pasmo dos doutores.
A historia da alforreca está contada, na sua simplicidade
commovente. É veridica esta historia, como
tudo que o povo relata de memoria; creia n'ella quem
crê. Fica-se já sabendo no entretanto,―e
é isto d'um
proveitoso ensinamento,―que os japonezes tão prodigamente
propensos ao perdão para tantos pecadilhos
de alma e de costumes, castigam os patetas.
Diga-se francamente: esta desgraça da alforreca,
[18]
no paiz do sol nascente, era inevitavel; e o caso presta-se
a interessantes commentarios, que eu vou resumir
em poucas linhas. Os japonezes―povo de
artistas―são os grandes amorosos da
creação, da
forma, da vida; ninguem como elles conhece os segredos
da ave, do insecto, do reptil, do peixe, dos
molluscos, do verme, de todos os seres da terra; a
animalidade graciosa d'esses seres, estudada com
percepções especiaes, que nos escapam, constitue
o
thema
mil e mil vezes
variado, dos seus primores
de arte. Mas esse monstro, essa disformidade, essa
alforreca que se apresenta como unica excepção da
lei geral da gentileza da vida, e parece resumir em
si o enfado inteiro d'um dia de mau humor do Omnipotente,
devia ter deixado impressões tristes nos primeiros
japonezes
que a avistaram;
e foi preciso
arranjar logo
uma explicação
condigna do
phenomeno, e é
a que ficou descripta
n'estas linhas.
É ainda interessante recordar de passagem a
[19]
approximação, pela desdita, da alforreca japoneza
com a medusa mythologica da Grecia, não merecendo
esta melhor tratamento dos deuses olympicos. Curiosa
coincidencia!
O ANNO NOVO
a Feliciano do Rozario.
Temos festa hoje, aqui. Acaba o anno velho, começa
o anno novo. Mas não vão imaginar que seja
do anno novo de que rezam os nossos calendarios,
a commemoração; tal
commemoração, aqui, no fim
do mundo, no seio d'esta colonia nostalgica, passa
insipida, quasi sem alvoroços intimos de familia, limitada
á troca banal―
troca sem
cedilha e com cedilha―de
algumas duzias de bilhetes de visita, com
as competentes
boas-festas
escriptas, da pragmatica.
Trata-se do anno lunar que finda, do anno lunar que
principia, o anno chinez emfim, a ampulheta que
marca para o povo amarello as suas horas de existencia;
[21]
vamos entrar no anno XXII do reinado de
sua magestade imperial celestial, Kuang-Su.
Temos festa hoje, aqui. A alma chineza manifesta-se,
evidencea-se, domina, hoje; offusca, pela grande
maioria dos rabichos, o pallido reflexo da
civilisação
do Occidente que logrou chegar a este Macau,
a este exiguo penedo asiatico, onde Portugal
implantou a sua bandeira.
Meia noite. Ao meu obscuro albergue, chega, de
alem dos bazares, o ruido da bombardada amotinadora
dos foguetes, e das mil e mil embarcações
fundeadas
no porto o clamor ovante das bategas, vibradas
pelas mãos rudes das companhas. Que irá
lá por esses bazares, a estas horas, santo Deus!...
Eu não me arredo do meu canto. Bem sei que a febre
das massas suggestiona, contamina todos. Bem
sei que não se dorme hoje; que não ha
chapéo de
côco de amanuense ou kepi de militar, direi mesmo
chapelinho de pellucia com laçarotes de setim e seu
competente passaro empalhado, de menina, que não
vá correr as viellas, perder-se na onda, confundir-se
com os rabichos, gosar com elles. Mas está tanto
frio, e as bagas de agua zurzem-me tão desapiedadamente
[22]
os vidros das janellas... E, peor do que
isto, é o frio da alma, é a apathia enervante do
meu
espirito, é o sorriso amargo que me enruga os labios,
provocado por esse mesmo jubilo do enxame, que
aqui me retêem e me impedem de tambem ir galhofar.
Não, decididamente não serei da festa. Imagino-a
d'aqui. Imagino essas ruas lamacentas, coalhadas de
povo sujo, com as cabaias negras ensopadas dos
chuvascos; e imagino os lumes tremeluzentes das
lanternas de papel, accendendo nas poças, pelo reflexo...
grandes labaredas ephemeras, ziguezagueando.
As lojas estão escancaradas ao publico; fructos,
flôres, doces, carniças, bonecos, coisas santas,
estendem-se
[23]
pelos caminhos em prodigiosas theorias, em
coloridos quasi estonteantes; e é comprar, e comprar
já, porque não tarda em romper o glorioso dia
de descanço, o unico na China em que o camponez,
o artifice, o vendilhão, todos, cruzam os braços,
não
trabalham; e nem a peso de ouro se encontraria um
linguado, uma caixa de phosphoros, qualquer infimo
objecto nos mercados. As espeluncas de jogo, em
galas desusadas, offerecem-se, tentam a onda; e até
pelas ruas o taboleiro de azar se estende ao passeante.
Que pechincha, se se apanha para a festa
um accrescimo de peculio não esperado! O china
adora o jogo―era preciso que elle adorasse alguma
coisa!―mas hoje todos jogam, todos são chinas, e
é isto um exemplo interessante da influencia suggestiva
das grandes maiorias; a mão mais circumspecta
de funccionario, a mão mais mimosa de dama
(de
nhônha, em dialecto
vulgar d'esta colonia) avançam
sem pejo, arriscam á sorte varia umas pratinhas...
Quando bate meia noite; quando, junto do altar
dos penates, se curvaram em piedosas adorações
milhares de cabeças agradecidas, e se queimaram
papeis mysticos, e se accenderam pivetes odorificos;
quando em plena rua um brado de alleluia os echos
acordou; dirige-se então a onda humana para o lar,
[24]
já mercas feitas, já bolsas esvasiadas; e vae
surgir
um grande dia votado inteiro ao descanço, votado
á
glorificação dos deuses, cuja magnanima
assistencia
se exalta pelas graças concedidas e pelas graças
que
vão esperar-se!....
Mesquinha humanidade! como tu me entristeces,
ó pobre humanidade, ó pobre familia minha, ainda
mais nos teus regosijos e nas tuas esperanças, do
que nos teus choros e nos teus desenganos!... Para
este bando chinez com quem me encontro agora,
que explosão de bençãos lhe estimula a
sentimentalidade?
que altos beneficios commemora? O bando
abençoa a sua eterna existencia de miseria, a miseria
passada, a presente e a que fatalmente vae seguir-se-lhe.
Abençoa a labuta sem treguas, em busca
do punhado de arroz de cada dia; ora exercida
no lar immundo, sem sombra de conforto; ora exercida
pelos campos, nas varzeas, nas collinas, no amanho
da terra, sob a oppressão constante dos raios
do sol que escalda, ou dos frios que paralysam; ora
exercida nos barcos, que se cruzam na podridão dos
estuarios, ou pairam sobre a onda adormecida durante
as calmas torpidas, ou se desfazem no escarceo,
quando os tufões rugem em furia. O bando
abençôa
a fatalidade da sua condição social, o problema
espantoso, paradoxal, do seu feitio de ser, que em
[25]
todas as depravações, em todas as iniquidades
imaginaveis,
parece ir buscar as leis unicas por que se
rege. O bando abençôa ainda as calamidades
tremendas,
que
n'estes ultimos tempos, como
uma
maldição
divina, teem pairado sobre a immensa patria:―nas
provincias do sul, nos seus centros mais populosos,
é a peste, a peste negra, roubando em cada
lar um ou dois filhos, ou o pae, ou a mãe, ou mesmo
todos juntos, e vestindo de lucto, de tristes roupas
alvas, os parentes, e ameaçando estabelecer-se
definitivamente, enraizar como uma arvore de peçonha,
d'onde emanará a cada instante o veneno subtil,
destruidor das turbas; e, para cumulo de infortunio
e de descredito, um visinho, um povo irmão,
o povo japonez, invade, vence e desbarata a China,
morde e come pedaços do seu torrão sagrado,
envergonha-a,
offerece-a ao escarneo do mundo na
miserrima condição da sua plebe e na opulenta
infamia
dos seus nobres, desprestigiada emfim, indefeza
á cubiça das gentes, aos homens loiros da Europa,
que não tardarão em vir espezinhal-a.―Embora!
esqueçam-se hoje as miserias, vista-se o povo
em gala, chovam bençãos sobre o anno que
começa.
E amanhã, decorridas algumas horas de folgança,
recomecem, prosigam,―pouco importa!―os turvos
dias de amargura, a fatalidade da existencia no antro,
[26]
a dura labuta no campo e no barco, a faina eterna,
a orgia torpe dos maridos, a escravidão das esposas,
a venda das filhas a quem mais der, os horrores
da
prostituição, as vergastadas nas creadinhas,
as extorções dos mandarins, as torturas nos
carceres,
a morte lenta nos patibulos, a obra de destruição
das epidemias e do opio, as humilhações perante
o vencedor, as exigencias
do Occidente,
as arrogancias
dos homens loiros...
Para o anno novo,
tudo se prepara
com antecedencia,
em prodigiosa azafama;
é para todos
uma occupação incessante
e desusada,
durante as ultimas
semanas do anno que
vae findar. Lavam-se
os covis, lavam-se
as podres mobilias. É o pó d'um anno que se
sacode,
[27]
é a lama d'um anno que se deita fóra,
é
o piolho e é a pulga d'um anno que se afogam
na onda das barrelas; porque, durante os labores
de cada dia, nunca a idéa de limpeza preoccupou
os espiritos durante um só instante. Tudo
é providencial neste mundo, ao que parece. Na chafurda
typica d'estas povoações chinezas, tão
frequentemente
visitadas por todas as pragas―cholera,
peste, lepra,―embebidas no lodo dos canaes,
no ambiente das emanações dos estrumes
pachorrentamente
acogulados e dos despejos que apodrecem
pelas ruas, custa a crêr como a gentalha pollula,
e como os consorcios fructificam em ninhadas
de garotos; e parece á gente que um sopro qualquer
destruidor, de calamidade immensa, irá em breve
prostrar esses enxames, sem que deixe de pé um
só vivente nos albergues. Puro engano: as
povoações
eternizam-se. No parecer de alguns investigadores,
que taes exotismos interessam, se os miasmas
putridos convidam as epidemias a entrar e a
vindimar providencialmente as muitas vidas que superabundam,
estes mesmos miasmas, sobrecarregados
de vapores de ammoniaco, de exhalações corrosivas
de fermentos, se encarregam de ferir tambem
mortalmente os virus morbidos, poupando o
resto do povo. Chegamos ao facecioso paradoxo de
[28]
ser na China a immundicie o purificador por excellencia,
um como que elixir de longa vida, indispensavel
a todas as familias, feito da mais estupenda
alchimia de dejectos.
Conceda-se pois, por
excepção, a este bom povo
celestial, o capricho de lavar uma vez cada anno
o antro onde se abriga. Depois,
é ver a faina de collar pelas
paredes, pelas portas, pelas janellas,
papeis de bella côr escarlate,
com negras inscripções cabalisticas,
que são votos de ventura e
de riqueza, que são preces aos
deuses. E chega a occasião de se
adornarem os altares, de se irem
comprar junquilhos em flor, que
se dispõem em vasos gentis com
agua e seixos alvos, e assim vão
enfeitar os aposentos, levando o
viço e o perfume, por um dia, aos
negrumes das alcovas. No meio
do complicado rito das usanças,
algumas praticas enternecedoras, de ingenuidade
primitiva, interessam o curioso. Reparem por exemplo
nas enormes celhas expostas pelos mercados,
onde enxames de pequeninos peixes negros, carpas
[29]
barbudas, estrebucham na gotta de agua do improvisado
captiveiro; o povo compra-as, e vae lançal-as
em seguida nas ribeiras, gosando na acção do
resgate,
por certo grata aos deuses, e que redundará
em beneficios...
A PRIMAVERA
a Camillo Pessanha
Ha alguns dias, na cidade
de Kobe,―poderia
precisar o dia, e quasi a
hora, se tamanho rigorismo
me exigissem,―irrompeu
a Primavera. Irrompeu:
não ha sombra de exagero
no vocabulo. Irrompeu,
surgiu d'um pulo, fez
explosão. N'este paiz do
Sol Nascente, onde o sol,
e com elle todas as grandes
forças naturaes, são
ainda uns selvagens―se
[31]
assim posso expressar-me―uns selvagens sem freio,
sem noção das conveniencias, incapazes de se
apresentarem
de visita, de luvas e casaca, n'uma côrte
qualquer da nossa Europa; n'este paiz do Sol Nascente,
ia eu dizendo, a creação inteira apostou, parece,
em offerecer em cada dia uma surpresa, toda
ella exuberancias inauditas, espalhafatos unicos, repentismos
nervosos, caprichos doidos, como se reunisse
em si a quinta essencia da alma das creanças
e a quinta essencia da alma das mulheres, a gargalhada,
a troça, emfim, motejadora de tudo quanto
é ordem, harmonia, contemporisadora lei das
transições.
Hontem, foi um inverno duro, gelido, vestido apenas
d'uma ampla tunica de neve. Hoje, d'um salto,
o sol rompeu em quenturas amorosas, começaram
de florir as arvores, e evolaram-se os insectos. Amanhã,
será o estio torrido, em brazas, como nem na
China, nem na Africa se sente. E assim corre o tempo,
vôam as horas; cada instante é um meteoro; e aqui
um tufão arranca os troncos, e alli a chuva torrencial
inunda as varzeas, e alem um rio transborda do
seu leito, e uma onda do largo afoga as aldeias, e
uma convulsão subterranea abala o solo...
O europeu, o pobre europeu das paizagens serenas,
soffre os choques d'esta natureza, por demais subversiva
[32]
para o seu espirito triste, meditativo e attribulado.
Offerece-se-lhe um de dois caminhos a
seguir: ou communga na vida japoneza, inicia-se nos
seus segredos intimos, ama-a nas suas modalidades,
e assim a existencia se lhe gasta, se consome rapida,
esgazeada em admirações, doidejando em vertigens;
ou se retrae, se isola, odeia a natureza que não
comprehende, odeia o exilio, vive de saudades da
patria, entre as quatro paredes do seu lar, ou dos
clubs cosmopolitas da colonia forasteira. Não é
preciso
mais para justificar o tique de loucura, facilmente
perceptivel, da enorme maioria d'estes expatriados,
homens e mulheres, após curta residencia
no paiz japonez.
Ora pois,―dada esta concisa explicação
á gente
incredula,―ha alguns dias, na cidade de Kobe, irrompeu
a Primavera.
Pela noite velha, fóra chegando uma brisa como
que amorosa, acariciadora, perfumada. No silencio
das trevas, as carpas acordaram, n'um charco fronteiro
ao meu albergue; e estrabuchavam, e produziam
desusados ruidos, saltando fora d'agua, ardendo
em cios, endemoninhadas. Quando rompeu o dia, e
appareceu o sol, não se descreve o enlevo do bafo
[33]
morno, embalsamado, genesiaco, que enchia o espaço.
O ceu tinha azues novos; cirros de paz pairavam
nas alturas. A paizagem esverdeára; esverdeára
da herva nova, que surgia, e das arvores velhas,
que se coloriam. A nossa observação educa-se
n'este meio em especialidades de minucia, abundando
por toda a parte, em campos e jardins, as coniferas,
de todas as fórmas, de todas as grandezas;
estas arvores nunca se desfolham, mas no inverno
descoloram-se, empallidecem como mulheres chloroticas,
chegam a lembrar enfermos, chegam a lembrar
coisas mortas; depois, a primavera excita-lhes
a seiva, um verde intenso assoma-lhes ás folhas, a
vida recomeça, doida, vão desabrochar flores em
fúria!...
Já as ameixieiras se apresentam em galas de florescencia;
os negros troncos rugosos e lavrados pela
lepra dos lichens, sem uma folha sequer, cobrem-se
agora de bastas cabelleiras, alvas ou rosadas, feitas
de mil e mil florinhas presas aos galhos por minusculos
penduculos. Vistas de longe, nos sitios onde
abundam, fazem lembrar uma floresta de arvores
seccas, envolvidas pelo fumo e pelas chammas d'uma
queimada devoradora. Em breve serão os pecegueiros
a florirem. Depois as cerejeiras. Depois as
pereiras. Todas as arvores. Todas em apotheoses de
[34]
coloridos. Chalaça tudo, em todo o caso―estas arvores
não dão fructos, não dão
ameixas, não dão pecegos,
não dão cerejas, não dão
peras; ou, se os
dão, não prestam. Esgotam os ardores da seiva na
superabundancia das petalas das flores enormes,
enormes como nunca se viram em outra parte; contribuem,
em meras orgias de cores, para a incrivel
hilaridade do scenario, para a supina gargalhada
primaveral; nada mais. Servem de pretexto para os
mil motivos de debandada para os campos, d'estes
bons japonezes, cabaça ao hombro,
musumé ao lado,
alma descuidosa aberta aos esplendores.
São estas florescencias paradoxaes, tão
caracteristicas
do solo nipponico, que encaminham a cada
momento o pincel indigena para requintes de matizes
[35]
que a esthetica occidental não comprehende;
ellas que inspiram aos artistas esses tão frequentes
fundos de paizagem salpicados de brancos e vermelhos,
a reminiscencia do instante em que as flores
se desfolharam e cairam do alto, n'um chuveiro de
petalas.
De parceria com as arvores, são as hervas, as
plantas, os arbustos, que se vestem de folhas e se
enfeitam de flores. Já ao longo dos muros espreitam,
por entre as pedras, as violetas silvestres; e o solo vae
vicejar de musgos, fetos, de relvas, de bambus e de
humildes gramineas; e matizar-se de brancos, de
azues, de amarellos, de escarlates, de roxos, de mil
côres, de mil flores sem nome, apenas conhecidas dos
insectos, que são botanicos emeritos e sabem de
cór
e salteado onde as corollas lhes offerecem os manjares
mais capitosos. Já desabrocham os junquilhos,
as camelias. Vão desabrochar a wistaria, as azaleas,
os lirios, os iris, os narcisos, os convolvulos, as peonias,
a legião vegetal.
As ameixieiras, por aqui pelas cercanias de Kobe,
vão vêr-se ao pittoresco oiteiro de Okamoto, ou a
Suma, no dominio d'um templo famoso. Os pecegueiros
vão vêr-se a Momoyama, em Osaka, que as
[36]
florinhas côr de rosa incendeiam por curtos dias. As
cerejeiras, particularmente queridas dos japonezes,
vão vêr-se a um ou dois templos em Osaka; ou
á
formosissima collina de Arashiyama, em Kioto, marginando
a ribeira de Hozukawa, caudalosa e rumorejante;
ou, no mesmo Kioto, ao parque de Maruiyama,
onde uma só arvore, a vetusta
cerejeira
da noite de Guion, de delicados ramos em pendor,
tem merecido os enthusiasmos e as estrophes de não
sei quantas gerações de amorosos e de poetas, que
junto d'ella poisam, dia ou noite, embevecidos no extasis
do espectaculo; ou ainda a Yoshino, o logar por excellencia
preferido, sitio montanhoso e agreste, de difficil
accesso, mas por isto mesmo frequentado pelos
grandes fanaticos da natureza em pompas; Yoshino,
com a sua sentida lenda d'um monarcha fugitivo, e
com o peregrino enlevo das suas mil―conta justa,
affirmam,―das suas mil cerejeiras, muitas vezes
macrobias, offerecendo aqui, acolá, além, n'um
valle,
sobre uma ponte, á borda d'um precipicio, as scenas
mais surprehendentes, mais arrebatadoras, parecendo
as arvores em flor, flocos de nuvens brancas
a rasarem a relva da paizagem. A wistaria, o
fugi, vê-se em Nara, a
velha cidade classica; os
ramos trepadores enrolando-se em torno dos troncos
das chryptomerias gigantes, e os longos cachos
[37]
brancos e os longos cachos roxos pendentes ao capricho
das brisas.
Romarias indescriptiveis de
graça pagã, de vida
exuberante, estas romarias, reunindo se ao quadro
bello da natureza, de uma magestade commovente
e estonteadora, a kermesse hilariante do povo em
festa. Barracas embandeiradas expondo mil artigos;
poisos improvisados para a refeição frugal; os
homens
em bandos a folgarem; as creanças aos saltos,
ás gargalhadas, vestidas a primor, de sedas de mil
tons; mulheres
de todas
as condições,
graves mamans
deliciosas,
meninas
recatadas
em mimos
de flor
de estufa, petulantes
cantadeiras
das
ruas, camponezas
em
roupas escarlates,
gueshas em requintes de luxo e de
encantos,
[38]
ovantes como idolos, todas ellas comesticos, todas
ellas aromas, todas ellas sedas rojantes, todas ellas
mimicas e requebros, espanto-sas.... Ao
recolher
da festa, a onda humana é curiosissima: cada qual
empunhando uma haste florida, cada qual com seu
embrulho para o presente de estylo aos amigos que
não foram; as mulheres commentando as scenas
em gestos e em risinhos; as creanças abarrotando
de fructas e de bolos, cançadas, somnolentas, rabujando;
os homens em galhofa, pouco firmes, com as
frontes e as palpebras encarnadas, que é como se
lhes accusa o peccadilho de terem bebido um pouco
mais do que convinha...
N'esta contemplação dos scenarios está
a alma
do indigena. Eu vou reproduzir-lhes uma local, que
ha dias appareceu n'um jornal da terra, e que define
bem a gentil puerilidade pantheista d'esta gente
unica:―«em Himeji já se deu fé este
anno de duas
flores de cerejeira...»
duas, é sobretudo
delicioso!...
O homem do Occidente pensa, o japonez vê; eis a
enorme distincção que os separa. O prazer dos
olhos
é a alegre preocupação de todos;
vive-se no presente,
para gosar do momento de hoje, para sorrir ás coisas;
e pode ser que seja esta a maneira mais coherente
do ser humano prestar culto aos seus deuses,
ao Creador, que lhe impoz na terra uma missão.
[39]
N'aquella primeira manhã primaveral, debandaram
dos bosques mais cedo, em magotes alegres,
em serenos vôos altos em busca de aventuras, chocarreando,
atirando aos ventos as suas gargalhadas
de mofa, os corvos, nos quaes tão bem encaixa, sem
eu saber porque, o nome japonez, de
karuçu. A pardalada
papeava amores, e safava-se resolutamente
dos povoados em demanda dos campos. Uma borboleta
amarella,―ia apostar que a primeira da
estação,―atravessou
n'um vôo o meu jardim. Sobre
cada flôr poisava um bicho, mosca, ou abelha, ou
vespa, ou besoiro, ou moscardo, vindos não sei como,
por feitiço, pois havia longos mezes que ninguem
lhes punha a vista em cima; e não tarda que chegue
a immensa corja alada, cigarras, gafanhotos, mariposas,
mosquitos, tira-olhos, os pandigos do ar, todos
bulicio, côres e vida!... Pelos corregos, pelas
regueiras, ao longo das ruas e caminhos, surdiam
pela vez primeira das tocas os sapos, rouquejando;
e dois a dois, graves... mas não estou agora para
contar-lhes o que faziam nas regueiras e nos corregos,
os sapos, graves, dois a dois...
Nos rostos da gente, suggestionada, embriagada
em aromas, pintava-se uma alegria nova, uma recrudescencia
[40]
de actividade animal. As raparigas passavam
mais lepidas, em
kimonos alegres,
claros, descalças
sobre os sóccos pela primeira vez depois do
inverno, os seus pés muito brancos, muito mimosos,
após o recatado abrigo durante os mezes frios. Encontrei
além, n'aquella esquina, uma
musumé, que
vendia ovos, e um vendilhão ambulante de cestos e
vassouras; haviam poisado no chão a sua industria,
conversavam em segredo, mas com intensa vivacidade
de expressão; elle agarrava-a pelos pulsos, brutalmente;
e ella, a rir, a julgar pelo brilho dos olhos
e pelo rostinho alvoroçado de desejos... dava-se-lhe,
em promessas.
Pois foi n'aquelle dia, que eu, em vez de ir divagar
pelos campos, como os pardaes,―já não digo:
(ir vender cestos e vassouras) pelas ruas...―que
eu me engravatei cuidadamente e fui bater á porta
d'um amigo. Tratava-se d'uma festa de creanças, o
que é dizer, d'uma estopada para adultos. Effectivamente,
exhibia-se, em frente d'uma duzia de meninos
e de outra duzia de pessoas circumspectas,
um graphophone americano; graphophone, ou coisa
parecida; um
phone qualquer em todo
o caso; que
isto de
phones, para quem cursou
aulas de physica
[41]
ha perto de trinta annos, é de uma
complicação tal,
que nunca a gente chega, por mais que se applique,
a fallar com segurança do assumpto.
Mal lhes posso agora traduzir a dolorosissima
impressão, que a festa me deixou. Ratice minha, sem
duvida. Introduzia-se n'uma caixa um cylindro apropriado
para o caso e dava-se corda ao instrumento...
mas a quem estou ensinando o padre-nosso!... Então,
um americano fanhoso, imbirrante, assim com
ares de bebedo e ademanes de exhibidor de saltimbancos,
a ponto de se lhe presumir a casaca no fio
e cheia de nodoas e a gravata branca em uso ha mais
de seis semanas, fallava ao publico, annunciava a
casa constructora em Nova York, e o que em seguida
iria ouvir-se. Eram cançonetas chulas, solos de flauta,
estrondos de orchestra, devaneios em viola, discursos
grotescos; e tudo aquillo, e as vozes do publico
que ria, que vociferava, que dava palmas, que pedia
bis, creanças berrando,
damas mal suffocando o
riso, cavalheiros atirando chufas, tudo aquillo, distinctamente,
saía da caixa enfeitiçada e enchia a sala
onde me achava, como se uma multidão de patuscos,
vindos da America, vindos do inferno, a tivesse invadido
de surpresa.
Mas que tristeza immensa!... Como eu amaldiçoava,
n'aquella hora, estas invenções da epocha,
[42]
estes engenhos surprehendentes, monstruosos, que
vem zombar da vida, e assassinar arte, enlevos fugaces
que passam, reminiscencias, saudades, tudo o
que é doce ao espirito... porque,―affirmo-o tanto
quanto as palavras me podem traduzir o pensamento,―porque,
no fim de contas, ficou-me uma
desconsoladora noção de desprestigio da
existencia,
e de troça ás leis do mundo, á lei da
successão dos
factos no tempo; e vi em pensamento um bando de
velhinhos alchimistas largarem as retortas, por um
momento, e virem bradar á creação,
fitando o ceu
ás gargalhadas:―«não tenhas
imposturas, sabemos
tanto, fazemos tanto como tu!...»―Já
não bastava
a photographia, esta artimanha irreverente, que vae
implicar com os ausentes, com os defuntos, com o
mundo distante, dando-nos em troca da sentida
recordação,
que guardavamos, o phantasma, em contornos,
do que fugiu dos nossos olhos. Agora é o
graphophone, que eterniza os sons, a voz dos de
longe, a voz dos que morreram. Morte, ausencia, já
não tem razão de existir nos diccionarios. Para o
caso a que me refiro, cá continua o americano imbirrante
a vomitar os seus discursos, os musicos a
tocarem, os cantores a cantarem, o publico a rir, a
chorar, a applaudir, a chalaçar. Passaram-se assim
as scenas ha dois annos, ha cinco annos, ha dez annos.
[43]
Estará a estas horas o americano morto, coisa
de alguma bebedeira mais forte, que o prostou? a
creança, que chorava, dormirá tambem n'um tumulo,
coitadita? a dama, que ria, estará doida, n'um asylo?
o homem, que applaudia, n'um carcere, cumprindo
uma sentença? Nada importa. A machina chama-os,
reune-os, ressuscita-os, renova-os para a pandiga
d'um momento da existencia; o passado é presente;
e a machina agita-os, empurra-os para o interior das
nossas casas, para nos divertirmos á custa d'elles
mesmos...
Primavera? ia eu pensando com os meus botões.
Primavera? ri a natureza? florescem as arvores?
cantam amores os passaros? é uma realidade? Ah!
talvez não, que hoje, a um phenomeno substitue-se
quasi sempre uma industria; e espectaculos do Pae
do Ceu fôram já quasi todos supprimidos, porque
iam aborrecendo a humanidade... Cada dia que
passa, regista cem descobertas, tendente cada qual
a apagar do nosso espirito a lenda do mysterio, do
incomprehensivel. A vida, o mundo reduzem-se a
machinas, a engenhos mais ou menos complicados.
Doce Primavera, que me enfeitiça? Troça. Aqui
anda machina, apostára! Quem me assegura, que
[44]
isto não foi primavera servida a meus avós ha
mais
de um seculo, gravada n'um cylindro, e impingida
depois como nova, de quando em quando, aos patetas,
que a applaudem?...
E a proposito da Primavera
que irrompia, duas palavras sobre
outra Primavera, que morria,
ahi pela mesma epocha.
Não haverá ninguem, imagino,
que, tendo passado em
Kobe, não conheça
Nunobiki,
a cascata. É que o sitio, pela
sua fama merecida, é o passeio
obrigado de todos os que chegam,
embora se demorem duas
horas. Não ha conductor de carro,
guia de viajeiros, um qualquer alcoviteiro que
ande á cata de gente que desembarca dos paquetes,
que se esqueça de indicar, como primeira
diversão, a ida á queda de agua. Lá
vão todos.
Lá fui eu, uma vez, como viajeiro: e muitas vezes,
depois, como residente, residente em ocios,
attrahido pelos scenarios apraziveis. Lá em riba,
muito em riba da montanha, e salpicada de espumas
[45]
e acalentada em rumorejos, na penumbra
do ermo apertado entre penedos a prumo, cobertos
de ramaria silvestre, era a casa de chá, a
cháya
tradicional, offerecendo repoiso por alguns minutos
e uma bebida ao forasteiro extasiado, sem fallar nos
sorrisos, nas mesuras, que prodigalizavam largamente
as raparigas que alli olhavam pela venda. Ha
alguns annos, disseram-me, eram tres as raparigas,
tres irmans,―as tres graças;―mas eu conheci só
duas, tendo casado a outra com um titular europeu,
conforme ouvi. Eu conheci só duas: O-Tane San, a
Senhora Semente, e O-Haru San, a Senhora Primavera.
Como se fica presumindo, eram as japonezas
mais populares de Kobe inteiro; das quaes,
talvez não erre, acreditando que os muitos milhares
de forasteiros, que n'estes ultimos seis annos visitaram
o Japão, guardam uma reminiscencia, uma saudade...
Duas fadas dos bosques, a enfeitiçarem os
incautos? Não tanto: quando muito, duas sereias de
agua doce, simplesmente meigas, simplesmente gentis,
vendendo graciosamente uma chavena de chá,
sem assucar, á moda japoneza, e dando de graça
um sorriso, tão doce, que tirava ao chá o travor
proprio, mesmo para o paladar mais exigente. Eu
preferia á Semente, a Primavera. Era mais fresca,―fresca
como o seu lindo nome,―e mais avelludado
[46]
o olhar negro, e mais esmerada nos
kimonos de
seda e na curva em azas de borboleta dos cabellos.
Com ella palestrava, com ella ria, ria sobretudo,
que o riso é a linguagem mais em uso n'esta terra;
e, tomando-lhe das mãos, perguntava-lhe quem fôra
o delicado, inglez, russo, coreano, hottentote, que
lhe offerecêra aquelle annel com uma saphira, que
enfiava tão bem no seu dedo côr de rosa...
Pois muito bem. Sabe-se que em materia de progresso
material o Japão anda a galope. Lembraram-se
ha pouco estes senhores de constituir uma
empreza para a distribuição da agua aos
domicilios,
em Kobe. A idea não é nova: já
Yokohama,
Osaka, Nagazaki e certamente outros centros, gosam
de instituições da mesma especie. O que
é lastima,―se
vale a pena a gente prender-se em ninharias,―é
que assim, alcançado pelo turbilhão reformador,
que vae dando cabo de todo o pittoresco
d'este povo, tenda a desapparecer o poço... o
poço
classico dos velhos tempos, com a borda circular
talhada n'uma só pedra, o alpendre gracioso
sustido por dois madeiros, os baldes suspensos das
duas pontas da corda de cairo, que enfia no tosco
gorne central; estabelecido em plena cosinha domestica,
ou a um canto do jardim, ou n'uma vereda
accessivel a um bando de visinhos; e cerca as
[47]
vasilhas de uso, celhas, escudellas, colheres, da mais
graciosa e original tanoaria, de que as creadas,
meias-nuas, se vão servindo nas lavagens, demorando-as
para alongar tagarelices, proprias do sexo
e ainda mais das japonezas; eis o poço, correspondendo
a um quadro muito caracteristico da vida intima;
o poço, que os adoraveis pinceis dos mestres
da pintura se compraziam em reproduzir mil vezes,
emaranhando-os na rama das trepadeiras, das
asagao, cujas bellas campanulas de
côres variadas
abrem com o nascer do sol e fenecem logo após...
Para o caso de Kobe, dirigiram-se logo desde
o inicio as picaretas e as enxadas para a montanha
de
Nunobiki, onde a agua jorrava em
manancial
sem fim; e, á força de braços e de
dynamite, no
intuito de encaminhar a torrente aos reservatorios
da empreza, fez-se um desbarato tal, abatendo as
arvores, cortando as rochas, cavando a terra, que
todo o enlevo do sitio desappareceu, a paisagem
tornou-se em ruinas. Rigorosamente fallando, a cascata
acabava de existir. A
cháya, tal como a gente
a conhecêra no seu rustico pittoresco, forçada
pelas
escavações a mudar de poiso, acabava de existir.
E as raparigas? logicamente, tinham de desapparecer
tambem. Com effeito, a Semente casou com
um japonez e safou-se... e faço votos para que o
[48]
seu nome lhe seja de bom agoiro, dispondo os fados
a
concederem aos
conjuges uma prole feliz e
numerosa; e a Primavera
morreu; morreu, por mofina
coincidencia, quando
a outra Primavera ia renascer,
dar viço e flôres
ás arvores, não ás da cascata,
mercê da nova empreza. Morreu tisica; a sua
cascata, onde nascêra, onde
vivêra vinte annos, com
a sua eterna penumbra
crepuscular, com as suas
rochas eternamente gottejantes,
com o seu ambiente
eternamente humido,
roêra-lhe os pulmões...
Pobre Primavera...
Mas não morreu talvez,
pensem bem n'isto que
lhes digo; embora ninguem
mais lograsse vel-a, embora as amigas tivessem
acompanhado ao cemiterio o seu corpinho inerte...
O seu retrato já corre mundo, em photographia,
[49]
vendido pelas lojas, perpetuando-lhe o rostinho. E
nada mais possivel do que o facto de andar ganhando
cobres pelas feiras, hoje, amanhã, d'aqui a quarenta
annos, um sujeito qualquer ajoujado com um
graphophone, um
phone qualquer
americano... Estão
imaginando a patuscada:―Cylindro apropriado;
dá-se corda... A plebe ouve pouco mais ou menos
o seguinte:―«Grande companhia de graphophones
de Nova-York e de Paris! Scena da famosa
cascata de
Nunobiki, no
Japão!»―E a plebe continua
de ouvir: é agora o murmurio continuo, soluçante,
de agua despenhando-se de rocha em rocha;
trina um passaro vagabundo; um francez bate
as palmas, pede cerveja; um inglez pede
whisky;
um nipponico pede chá; a vóz da Senhora Primavera
vibra distincta, fresca, doce; Primavera desfaz-se
em desculpas, em risinhos, diz que já vae,
não tarda; mas o inglez tem pressa, renova o seu
pedido com azedume: e o instrumento é então
perfeito―oh,
maravilhas da sciencia!―que se ouve
até o ciciar d'um beijo, que é naturalmente do
francez...
1899.
NILGUYO
Mukashi,
mukasi (nos velhos tempos, nos
velhos
tempos, como diriam estes bons japonezes, e conforme
reza a lenda, interpretada pelo Nihon no
Mukashibanashi
(Antigas Legendas do Japão), viveu um
homem, um simples, de indole bondosa, de quem
se poderia dizer que passára a mocidade em desejos
de matrimonio; mas como desejos e realização
d'elles são duas coisas mui differentes, attingiu o pobre
a meia idade sem ter levado a effeito essa
firma...―
commercial
não é talvez o termo proprio,―em
todo o caso essa firma a dois parceiros, que
partilham entre si, da vida, alegrias e tristezas.
[51]
As alegrias d'elle consistiam principalmente em
entregar-se á pesca, pesca á linha durante os
longos
ocios; tristezas, sentia-as sobretudo, mais mordentes,
ao recolher á noite a casa, derreado, cambaleando
de somno e de fadiga, sem encontrar uma alma companheira
que lhe sorrisse á porta, e em
saudações o
convidasse a entrar, nem mãos prestimosas que lhe
tomassem do peixe e o amanhassem, e fossem depois
leval-o ao fogo do brazeiro. Em toda a parte,
e especialmente no Japão, estes sentimentos intimos
d'alma,―jubilos de pescador á linha e desalentos de
solteiro,―são bem justificaveis. Com effeito, para
um temperamento vagabundo e impressionavel aos
enlevos da paizagem, como se dá com todo o japonez,
quantos encantos não vão proporcionando a linha
e o anzol, induzindo-nos sem esforço a longos
passeios de bohemio, penedos e praias fóra, contornando
margens ziguezagueantes de ribeiras e enseadas,
em face dos scenarios serenos, todos verde,
frescuras, espelhos de aguas e murmurios... e como
as horas vôam, acocorado o corpo sobre a rocha,
a mão ora affeita, ora prendendo o isco, ora demorando-se
em commovente espectactiva, ora colhendo
o peixe a estrebuchar; e o espirito voando, como as
horas, alheio ao officio, deliciando-se em sonhos, viajando
no reino das chimeras... Mas
á noite, após
[52]
um dia inteiro de labuta, é que o corpo se doe e falham
os joelhos; e deve então saber tão bem chegar
a gente ao lar de esteiras e papel, e vir á entrada
ajoelhar-se em cortezias a figura gentil d'uma esposinha
fresca, envolvida em sedas e perfumes, com
as mãositas rosadas em posição
submissa, as mãositas
tão habeis em córarem nas brazas as trutas
saborosas...
Ora, um bello dia, o nosso homem, de quem a
tradição não tomou conta do nome,
achava-se pescando
segundo o seu costume, bambu em punho, e
meditando ao mesmo tempo sobre o seu desconsolo
e desolada sorte, quando... zaz! um grande safanão
na linha lhe fez logo imaginar que alguma coisa fóra
do commum viera de colher. Por pouco se lhe não
vão, linha, e anzol, e peixe ao mesmo tempo;
então,
com muitas manhas que são proprias da arte, poz-se
a cançar a presa, já alongando o braço
e deixando-a
debater-se a seu capricho, já aproveitando o
repoiso para traze-la á praia; até que emfim,
azado
o instante, puxou com força, e veio cair-lhe o peixe
aos pés.
O peixe? o peixão!... Era uma
Ninguyo, uma
sereia; nem mais nem menos; face de mulher, d'uma
rara formosura, e um enorme corpo ventrudo, alongado,
escamoso, agitando barbatanas e terminando
[53]
em amplo rabo, que então desesperadamente estremecia.
Face de mulher de uma rara formosura,―disse-o
eu, e não me engano:―esse contorno doce
de oval, de
urizanegao, de pevide de
melão, tão
querido em esthetica japoneza; os bastos cabellos
negros fluctuando em coma; a tez de jaspe; os olhinhos
de velludo; a boquinha escarlate. Mas chorava,
a sereia, em contracções de angustia; chorava
certamente
pela dôr, pois lhe rasgava a carne o traiçoeiro
anzol; e ainda mais talvez pela vergonha de
vêr-se assim arrebatada do seu meio habitual, expiando
um peccado de lambarice, indefeza, nua deante
d'um estrangeiro!...
O pescador porém era d'uma indole bondosa,
como ficou notado um pouco atraz; e vae-se agora
ver como o provou. Comprehende-se, é claro, o seu
primeiro espanto: o homem punha as mãos sobre a
cabeça, a esbugalhar os olhos, e gaguejava não
sei
que exclamações... Podera não!
Acalmado, sacou
cautelosamente o anzol da bella face em sangue; e
tomando nas mãos o estranho ser, poz-se a scismar
maduramente sobre o caso. Ora, ia pensando, se
elle fosse correr as feiras todas, as festas dos mil e
[54]
mil templos do paiz; e alinhando a sua barraca com
as outras, onde se exhibem salamandras, crocodilos,
creanças sem pés e sem mãos,
cães sabios e muitas
outras coisas, que abundantissima chuva de sapecas
lhe não cahiria em cima, quer dizer, dentro
das mangas do
kimono!...―"Meus senhores, entrem
todos! Quem não tem cabeça, não paga
nada!
Ora aqui está uma sereia authentica..."―e já ia
estudando o discurso que faria, soberbo, dominador,
impondo-se á plebe embasbacada. Ou então,
outra ideia: se elle comesse a carne da sereia, cosinhadinha,
feita em postas... e sabem todos que a
carne da sereia tem virtude de conservar perpetuas
a vida e a juventude a quem d'ella provou... Mas
a sua indole bondosa revoltou-se afinal contra a
lembrança de reter n'uma tina, em
exposição, ou
peor ainda, de levar á degolla aquelle pobre bicho,
que sobre as suas mãos se lamentava e desfazia em
prantos, como se fôra uma pessoa; contemplou-o
ainda, longamente; e com um nobre gesto e decidido
esforço, atirou a sereia ás vagas, d'onde viera,
e onde mergulhou e desappareceu sem mais cerimonias,
após um acenar de rabo, que poderia ser um
adeus, um adeus e um agradecimento.
O nosso pescador voltou á sua faina. Consta que,
n'aquelle dia memoravel, o cabaz se lhe encheu de
[55]
uma espantosa quantidade de tudo que o mar dá.
Á tarde, tornando a casa ajoujado com a carga, bailava-lhe
nos
labios
um sorriso,
que provinha da
boa pesca que fizera,
e tambem
da boa acção que
praticara.
Quando pela
noite, na cosinha,
mangas do
kimono
arregaçadas até acima dos sovacos, avental sobre
as pernas, celha ao lado, se dispunha a preparar a
sua ceia, ouviu que de fóra, e junto á porta, uma
fallinha
mansa lhe ia dizendo:―"Dá licença! dá
licença?"...―Corre
o homem a abrir a corrediça, ainda
com a faca da cosinha, e um carapau na dextra
adunca; e á luz frouxa d'um luar de quarto minguante,
poude distinguir um vulto de mulher em
nada extraordinario, porém doce e cortez, que lhe
confessou ser uma viajante extraviada do caminho,
sem casa e sem abrigo, e lhe pedia poisada só para
[56]
aquella noite.―«Entre depressa, menina, acode-lhe
o sujeito, e venha partilhar do pouco que aqui
tenho».―Então,
dando-lhe entrada, conduzindo-a ao
aposento das visitas, fel-a descançar sobre a esteira,
e junto do brazeiro, foi-lhe servido o chá
tradicional.―«Muito
obrigada.»―O homem rogou-lhe seguidamente
que esperasse pela ceia, uma ceia de
peixe por signal, que elle ia amanhar sem perda de
um minuto.―«Permitte-me que eu ganhe o direito
ao meu quinhão, ajudando-o n'essa lida?»―Disse
que
não redondamente, que nunca consentiria que os seus
hospedes trabalhassem na cosinha. Em replicas e
treplicas, a rapariga assegurou-lhe que passara a
vida toda, além, da banda do oceano (talvez filha de
gente embarcadiça? pescadora?) e que ella conhecia
as melhores receitas de cosinhar o peixe, no que
até muitas vezes, por passatempo, se occupava; e tanto
ella teimou,―sabem todos o que são teimas de
mulheres!―que sempre foi levando a sua ávante.
O que é certo, é que nunca o pobre
solteirão se
lambera com tão deliciosas petisqueiras. Comeu a
sua dose, repetiu, pediu terceira vez; e dizia, a chuchar
ainda as cabeças dos ruivos, que a pena que
lhe ficava, era de não lhe ser servida uma ceia egual,
todas as noites. A companheira observou então modestamente,
a meias fallas, que lhe parecia não ir
[57]
além dos seus poderes, um tal desejo; e instada a
explicar melhor a sua phrase, accrescentou que era
solteira, sem parentes, sem lar... Comprehendida
finalmente, o remate de tão feliz encontro foi ella
consentir em ser a esposa do sujeito.
Antes, porém, impôz as suas
condições.―«
Danna,
meu dono, eu tenho, como disse, passado a vida
pelo mar, e não posso prescindir do meu banho de
agua salgada ao menos uma vez cada semana; consente-me
isto?»―Elle acenou que sim.―«E jura-me
(agora vão ouvir os pudores da pequerrucha...) que
me deixará banhar em paz, sem seguir-me, e sem
sequer espreitar-me?»―Elle jurou que sim; e deu-se
por feliz (já se ia babando pela moça, o
maganão!)
de, por tão pouco preço, ver-se possuidor de tal
thesoiro.
Casaram. Bodas de estrondo; e viveram ditosos
durante longos mezes. O peixe, o prato querido dos
nipponicos, foi sêmpre excellentemente preparado
pela esposa, activa, intelligente, a rir-se sempre. O
pargo, em fatias cruas regadas com molhos excitantes,
era divino! As enguias com arroz, uma delicia!
O caldinho de ameijoas, superfino! As trutas assadas
sobre o lume, sem egual! E até uma certa caldeirada,
assim como quem diz á moda do Algarve,
era de estalo, sem favor! E o marido tornava-se
[58]
anafado e luzidio, a testemunhar a toda a gente, pelo
volume e pelas banhas, que alguem olhava por elle
com disvelo...
Mas o banho? Melhor fôra não fallarmos n'elle...
Ai que pandega que era esse tal banho!... Ella
passava a manhã inteira preparando-o, afinando o
appetite, podia-se dizer; e no banho se quedava horas
esquecidas, pela tarde. Depois, ajoelhada sobre
a esteira, espelhinho em frente, e em torno os cofresinhos
mysteriosos, era a interminavel tarefa de
fazer-se bella, ora branqueando as faces, ora avermelhando
os labios, ora compondo o penteado. O
esposo chegára mesmo a esta conclusão
não muito
lisongeira:―que a companheira mais queria á agua
salgada do que a elle;―mas perdoava-lhe,―outros
ha que bem menos innocentes caprichos vão perdoando...―e
nunca a sombra sequer d'um arrependimento
viera turvar a paz do seu viver.
Uma bella tarde,―tarde de banho por signal―chegou
o homem a casa, e, como se diz em portuguez...
cheio de fome.―«Tardará muito para a
ceia? resmungava. Irá o banho em meio ou em
principio?»
A esposa, é claro, achava-se invisivel, e com
a portinha fechada a sete chaves; mas casas japonezas
[59]
são casas de papel, e uma fenda, um
rasgão,
convida-nos a enfiar os olhos para dentro. O caso
é que elle espreitou. Surpresa! Horror!... Não
é
uma mulher, mas uma sereia, que se banhava, melhor
dizendo―que nadava, em demoradas circumvoluções
de regalo ao longo da tina, agitando mansamente
o rabo e as barbatanas, e cantarolando baixinho
canções do mar, canções das
praias...
Pobre marido!―«Ah! canta-me assim, exclamou
elle, canta-me assim, grande mostrengo!...
Agora percebo eu as tuas habilidades em lidar com
peixes,―lidas com os teus parentes, grande mostrengo!...―Melhor
fôra, sem duvida, que eu nunca
te conhecesse em tal estado, em tal nudez; mas, feito
o mal, quer-me parecer que nunca mais poderei tragar
com appetite os teus guisados, intrujona...»
A porta, abriu-se então e appareceu a esposa.
Chorava, cahiam-lhe as lagrimas a punhos; chorava
mas digna, resignada, lia-se-lhe no olhar uma
resolução fatal. Fallou assim,
ajoelhando:―«
Danna,
meu dono, foi a sua benevolencia para mim, um
dia, extrema, tirando-me das aguas, podendo fazer
da minha vida o que quizesse, e salvando-m'a.
Trouxe-me aqui um dever de gratidão: julguei com
a minha presença poder amenisar a sua soledade,
servindo-o como escrava. Deu-me o nome de esposa.
[60]
A minha gratidão será eterna. No entretanto,
acabando de ver-me assim na minha forma verdadeira,
um bicho, um monstro que mette medo a toda
a gente, comprehendo que a missão que tomei
chegou ao termo. Estala-me o coração, mas pouco
importa!...
Danna, meu dono, adeus.
Do ceu lhe
chovam bençãos...»―E correu para a
praia e desappareceu
nas ondas.
Pobre marido!... Por um acto inpensado, perdeu
para sempre uma companheira carinhosa; e,
como das nupcias com a sereia lhe resultava o dom
de longa vida, foi longa a sua viuvez, e longo o seu
martyrio...
A fabula, segundo observa, e com criterio, o
auctor japonez que consultei a tal respeito, offerece
duas lições de alta moral. Uma é esta:
a mulher
que pretenda conservar um bom marido, deve captival-o
pela barriga, isto é, pelo esmero do seu repasto;
parecendo averiguado que o estomago é o
orgão mais sensivel, e porventura o mais grato, do
homem, o rei da creação. A outra
lição é a seguinte:
o marido que deseje manter a harmonia do seu
lar, nunca interfira na toilette intima da consorte;
porque, isto de damas,―com sua licença,―todas
lá têem o seu rabo, ou escama, ou barbatana,
coisa emfim que melhor é não seja conhecida, em
[61]
proveito dos dois, e em conformidade com o codigo
inedito do amor, capitulo
Illusões, artigo...
esqueceu-me
agora o artigo, meus senhores.
1899.
O CAVALLO BRANCO DE NANKO
A
Carlos Campos
Isto aconteceu ha cerca de mil annos, em terras
japonezas: um cavallo, que o grande artista Kanaoka
desenhára n'um biombo do templo de Ninnadji, perto
de Kioto, era uma tão bella creação,
cheia de
verdade e palpitante de vida, que todas as noites
se escapava do papel para ir galopar pelos campos
em roda, culturas fóra, devastando a esmo as sementeiras;
e o caso dava-se, claramente, com magno
espanto e raiva dos camponios, que o perseguiam
á pedrada. Estes camponios, impressionados
pelas fórmas incomparaveis do animal, persuadiram-se
por fim de que elle não podia ser outro senão o
[63]
cavallo de Kanaoka; e a persuação converteu-se um
dia em certeza absoluta, quando viram na pintura as
patas do travesso, humidas ainda da lama fresca dos
[64]
caminhos. Sem mais cerimonias, arremetteram contra
a tela e esfuracaram-lhe os olhos; e consta que
nunca mais houve queixas de estragos nas fazendas.
Ainda outro cavallo de Kanaoka, que era mestre
no genero, cavallo desenhado n'uma parede interior
do palacio imperial, tinha o vezo de ir devorar
pelos jardins as flores tenras do açafrão; e
só
cessou a brincadeira quando alguem se lembrou de
retocar a obra, amarrando o patife á parede com
um pedaço de corda pintada para o effeito.
Ora bem. De muitas maravilhas é sem duvida
capaz a mão inspirada d'um artista!... Esses dois
cavallos de Kanaoka, nascidos d'uma gotta de tinta
e de algumas curvas humoristicas de pincel, mas
em todo o caso ungidos do sopro sublime do eximio
mestre, animavam-se por momentos, soltavam-se
da tela, e ahi iam elles!... Felizes bohemios eram
e felizes tempos eram. Arte creadora, arte radiosa
das epochas passadas, porque não vaes tu regendo,
ainda e sempre, os destinos de todas as coisas d'este
mundo?...
N'estes dias que correm, deslavados e tristes,
[65]
mesmo no Japão, e não cessando de divagar no
mesmo
assumpto de cavallos, confesso francamente a
quem me lêr, que nada me mortifica tanto como o
espectaculo dos cavallos sagrados dos templos shintoistas.
Ora aqui estão umas cavalgaduras bem authenticas,
bem vivas, bem reaes, de carne e osso;
e que, se fossem lidas em coisas de arte antiga nacional―mas
não são,―por certo muito invejariam
as simples creações no papel da mão de
Kanaoka.
N'este paiz japonez, onde parece que os seres, homens
e bichos, nasceram e vivem n'um banho perenne
de sorrisos, mais desoladora se afigura ainda
a condição dos pobres brutos, que um dia
inspiraram
estas linhas melancholicas que escrevo.
Se pretendo ser de certo modo comprehendido
nas divagações que vão seguir-se―e
é obvio que
pretendo,―convem que me detenha um pouco,
fallando de templos shintoistas em geral. O shintoismo,
da palavra
shinto (a estrada dos
deuses), é
a crença primitiva, patriarchal, das epochas remotas
no Japão; e conservada até hoje, a despeito da
grande
propaganda de Buddha que se fez e se faz,
é ainda a religião nacional, a
religião do Estado. O
shintoismo é a adoração pelo sol, pelo
Imperador
seu filho, por todas as forças da
creação, pelas divindades
protectoras, pelos genios, pelos nobres,
[66]
pelos heroes e pelos sabios. O templo de shinto é
o recinto consagrado a uma d'essas invocações.
Distingue-se
antes de tudo pelo
torii, o grande
arco de
pedra ou de madeira avisinhando do logar, e como
que indicando o caminho ao peregrino.
Torii quer
dizer
descanço dos
passaros; e assim ficamos já com
uma noção primeira e delicadissima na essencia,
aprendendo que no campo sagrado tudo é paz, tudo
é remanso, pois que até aos pardaes,
cançados
dos vôos doidos que fizeram á aventura, se
offerece
um poleiro protector onde descancem. Ao
torii succedem-se
[67]
o amplo portal e o vasto espaço murado;
e lá dentro, symbolos, alfaias d'uma
religião
toda
de amor, são a paisagem graciosa, os jardins verdes,
os bosques frescos, as rochas musgosas, os lagos
quietos; aqui é a cisterna destinada ás
abluções
preliminares dos crentes;
alli são as monumentaes lanternas
de granito, esverdeadas
pelos annos; além o nicho
escarlate votado a Inari, raposa,
Deus do arroz, não
sei que mais, em todo o caso
coisa muito santa; depois as
construcções ligeiras, de madeira
nua, dispersas, e onde
em dias festivos as donzellas
do culto dançam ao som
de estranhos ritornellos, ou
silenciosos officiantes abençoam
as multidões, agitando
sobre as cabeças reverentes um penacho de papel
branco, emblema de pureza.
Nos templos mais faustuosos, não faltará outro
accessorio: o nicho garrido, a pequenina estrebaria,
onde o cavallo sagrado mastiga eternamente a
insipida palha do seu officio. O deus, ou genio do
[68]
templo, tem o seu cavallo de estado; é justo. É
geralmente
um cavallito albino, de pello branco e olho
azul celeste, talvez porque se ligue uma certa idéa
de candura a tal enfermidade. O deus serve-se d'elle
como entende; alguem, a quem pergunto informações
do cargo, diz-me que é o
Ó tsukae mono...
assim
como quem diz:
o nobre moço de
recados. Admittamos
pois que faz em regra os recados do deus,
o que é já muito, e um alto mister, e por isso
é sagrado
e tem honras de santo; e em lances
difficeis,
mais distinctos serão ainda os seus serviços.
Ardeu
ha mezes um dos mais famosos templos do Japão,
em Yamada; não sei que coisas do culto foram depois
encontradas ao abrigo e longe do sinistro;―foi
o cavallo que as transportou para lá.―É voz
do povo que em Osaka, em dois templos de shinto,
desappareceram os cavallos quando rebentou a ultima
guerra com a China;―está-se mesmo a perceber
que as almas d'esses deuses montaram nos ginetes
para irem aos campos do inimigo, abençoar as
tropas de Nippon.―Taes casos, porém, são raros,
são
rarissimos, n'esta epocha positivista, tão escassa de
milagres; e os cavallos brancos sagrados vivem e
morrem amarrados á mangedoira, passeando uma
só vez em cada anno, no dia da festa do templo,
encorporados então triumphalmente á
procissão, que
[69]
percorre as ruas da cidade. É o encerro absoluto,
é a constante immobilidade tediosa, sem mesmo as
furtivas escapadelas dos cavallos pintados de Kanaoka.
A palha abunda-lhes; acercam-se d'elles as
creanças e as mulheres, que os adoram, e compram
á velha, que por alli está cerca do estabulo,
montinhos
de feijões cozidos, que offerecem sobre as palmas
das mãos rosadas, aos
focinhos
nostalgicos dos
rocins.
Eu conheço uns poucos d'esses brutos, mas tenho
mais intimas relações com o de Nanko, um
templo aqui em Kobe, celebre, dedicado á memoria
de Kusunoki Masashige, que foi um nobre guerreiro
e patriota.
No amplo santuario do templo estabeleceu-se
uma feira permanente, dia e noite, mas principalmente
de noite, atractiva e frequentada por passeantes
e devotos. A vida inteira japoneza passa,
perpassa aqui; quem já folheou os albuns de desenho
de Hokusai, e n'elles se interessou, deve depois
votar horas inteira
No amplo santuario do templo estabeleceu-se
uma feira permanente, dia e noite, mas principalmente
de noite, atractiva e frequentada por passeantes
e devotos. A vida inteira japoneza passa,
perpassa aqui; quem já folheou os albuns de desenho
de Hokusai, e n'elles se interessou, deve depois
votar horas inteiras a esta historia viva e flagrante
do povo de Nippon; e assim completar, quanto possivel,
a noção que haja formado d'este povo, um dos
[70]
mais interessantes, e o mais sympathico talvez, do
mundo inteiro.
A gente afflue de toda a parte, d'aqui, d'alli,
d'alem... Junto ao portal, condensa-se o formigueiro
humano, em centenas, em legiões de cabecinhas; a
pouco e pouco, sedas roçando sedas, risos correspondendo
a risos, vae-se entrando, ao som d'um
continuo ruido de sóccos e sandalias, que se arrastam
pelo lagedo resonante. Na escuridão da noite,
o recinto define-se a principio como um negrume
[71]
vago, complicado de sombras de arvoredo, cheio de
gente e de myriades de luzinhas bruxoleantes. Depois
os olhos habituam-se. Vae por ahi fóra, direitinha
ao templo, a grande rua principal, bordada de
arvores varias, lageada; pelos lados espraia-se o
labyrintho das passagens, por entre os alinhamentos
das barracas, das tendas, das quitandas, armadas
de improviso, estiradas pelo chão; e é,
á luz
frouxa das lampadas, a exposição phantastica das
côres, chispando em disparates como n'um campo
immenso de kaleidoscopo, correspondendo ás mil
industrias que se estendem... Roupas, perfumarias,
livrinhos, bocetas, charões, porcellanas, cachimbos,
ferramentas, utensilios domesticos, bolos, brinquedos,
flores, plantas, tudo: a industria inteira do Japão,
se condensa, coalha em museu. Alem algumas
chayas
vendem refrescos; as creadinhas convidam a turba
a que se acerque. Mais longe, são os theatros populares,
um cobre por entrada:―cães sabios, athletas,
abortos, serpentes, panoramas;―ou a sala do
hanashi,
da palestra, onde um patusco entretem os freguezes,
contando-lhes historias. N'um espaço mais
livre, um sujeito com um graphophone, um dentista,
um inventor de remedios milagrosos, discursam,
explicam, prophetizam.
O formigueiro humano ondula, alastra se,
sem
[72]
designio,
á aventura. As sociedades occidentaes nada
nos offerecem de parecido. Isto, aqui, é a
multidão,
sem pressas, sem gritos, sem exasperos, tal como
nol a apresentam todas as grandes tribus do Oriente;
é o cardume de gente, retida na praça publica
como
o sargaço em mares tranquillos; aqui, quadro requintadamente
gentil e sorridente, inconfundivel, mas
que ainda nos recorda as agglomerações da plebe
nos templos de Cantão ou nos bazares de Aden, ou
do Cairo; e, subindo nos tempos e retrogradando
em espirito vinte seculos, quasi nos desdobra aspectos
vividos, embora fugidios, da Jerusalem biblica,
nos seus magotes de homens vestidos de tunicas
[73]
rojantes, vagueando, palestrando de manso, alongando
os braços nús em gestos calmos e solemnes.
Querer inventariar os typos, fôra insania,―é a
massa inteira popular despreoccupada, risonha, gosando
de viver.―Passam familias,―o pae, a mãe,
um filho preso ao seio e os outros pela mão;―ranchos
de soldados e ranchos de marujos; ranchos
de raparigas; moços, alguns indo caminho do bairro
dos prazeres, Fukuwara, que está perto; peregrinos;
mendigos; vadios; larapios; extrangeiros. Os garotos
assopram nas trombetas que compraram, ou mordem
em bolos ou em fructos. Aquella
musumé fresca,
vestida apenas do seu
kimono de
verão, azul e branco,
já vae de volta; e leva dependurada das mãositas
uma gaiola em miniatura, cheia de reluzentes pyrilampos.
Uma velha rejubila com o vaso de bellos
lirios que mercou. É aqui em Nanko, no mercado
especial das plantas, que se revela bem o mimo
d'esta gente em jardinagem,―delicados arbustos,
havendo merecido longos disvelos de cultura,
selecção
graciosa de florescencias;―e é de ver-se o afan
na escolha, o brilho dos olhitos cubiçosos, dos grupos
em roda da exposição dos pinheirinhos, das
cerejeiras, dos bambus, dos chrysanthemos, dos
lirios, da wisteria.―O espirito simples, o desejo
facil de contentar, a puerilidade quasi infantil, estampa-se
[74]
em todos esses rostos, e dom gentil da
mão industriosa, resalta de todos os artigos. Quem
tiver duas moedas de cobre na bolsinha―e todos
as terão,―póde comprar um objecto de arte;
compra-o
sem duvida, e no jubilo da face transparece
a alegria plena d'uma alma satisfeita. D'essa manifesta
innocencia de sentimentos, d'essa psychologia
alheia de complicações e de tormentos, deve em
rigor deprehender-se uma superioridade de raça,
uma animalidade esplendida e exhuberante, muito
distanciando-se da vibratilidade morbida das raças
exhaustas do Ocidente; e é isto que vagamente se
adivinha na esbelteza dos vultos que vão passando,
na flexibilidade harmonica das curvas, no jogo pathetico
da mimica, na confiança serena com que o
pé dominador poisa no chão. Feliz povo! Feliz
povo
de hontem, de hoje, e possivelmente de amanhã...
Não é outra a conclusão sincera do
nosso exame
passageiro.
No entretanto, a um canto, no estabulo garrido,
boceja o cavallo branco sagrado de Kusunoki Masashige.
Por velha sympathia, procuro-o sempre, e
passo quasi horas inteiras, a vêl-o, a namoral-o.
[75]
Quantos annos terá de sacerdocio? Dez annos?
Quinze annos?... Não lhe despertam zanga nem
prazer as minhas visitas repetidas. Cabeça baixa, o
olho azul mortiço, parece nada querer, nada sentir,
nada soffrer e nada desejar. É quasi de papelão,
á
força de insipidez, o garranito. Ao burburinho, á
luz, ás côres, ás musicas distantes,
é insensivel. Ao
bello verde do arvoredo é insensivel; pelos modos,
não se recorda já das paizagens por onde
espinoteou...
O seu olho azul-celeste, vitreo, provavelmente
myope, relancea com a mesma apathica frieza,
as mil scenas do acaso; á gente que o
encara,―ralé
da praça publica, garotos, cavalheiros, acaso um
general, acaso um conde, acaso um inglez de nobres
pergaminhos,―vota a mesma indifferença irreverente
que ás moscas importunas que poisam, por enxames,
sem que o commovam, na mucosa descorada da sua
pobre focinheira. Só uma vez, presumo, o vi enternecido:
relinchava uma egua algures, longe sem duvida;
levemente se lhe agitaram as orelhas, como
se uma vaga reminiscencia, penso eu, pelo bestunto
lhe corrêra; e pareceu-me então vêr o
seu olho azul-celeste
arrazar-se de lagrimas, pareceu-me... Ás
vezes, avança de bom grado a lingua, a ir lamber as
mãos das raparigas; por capricho talvez, e por habito,
porque são aquellas mãos que costumam
offerecer-lhe,
[76]como
obulo piedoso, os feijões cosidos
comprados á velhita que por ali anda, proximo do
estabulo...
Eis todo o seu romance.
E mais nada. Disse tudo. Se alguem, por mais
curioso, quizer ainda arrancar-me o segredo d'esta
minha estranha sympathia pelos cavallos sagrados
dos templos de shinto,―tanto mais estranha sympathia,
quanto é certo que não me accusa a consciencia
de jámais ter pertencido a qualquer sociedade
protectora de animaes,―aqui lhe
offereço,
a esse
alguem, a seguinte estupenda confidencia. No Japão,
se não erra o meu juizo, só os cavallos dos
templos
são tristes. Elles, e eu. Ha entre nós
mysteriosas
analogias; não gracejo. Após longos estudos da
propria
carcassa, acabo de concluir―imaginem o quê!...―que
tambem sou albino. Não pela anomalia congenita
da falta de pigmento corante da pelle, dos
cabellos e dos olhos, concordo; albino psychico porem―não
sei se me faço perceber...―albino na
alma dolente, na vibratilidade exangue, na apathia
da vida, após os mil baldões da sorte, e desfeita
no
[77]
ar a ultima bola de sabão das minhas illusões. Do
meu poiso, que comparo sem grande esforço ao
estabulo de
Nanko, assisto ao
contorno das scenas
e ao perpassar da turba; mas alheado de tudo, e
esquecido até das saudades da paizagem serena
onde vivi os meus primeiros annos. Alvoroços de
affectos? amores? fazem favor de me dizer para onde
fugiram essas chimeras
aladas da minha
pobre juventude?...
Quando muito, como
o cavallo de Nanko,
mas ainda mais desinteressado
do que elle,
porque me sinto naturalmente
excluido do
quinhãosito de feijões
que pode seduzil-o, quando muito, se deviso essas
musumés, com as suas
mãositas muito alvas, muito
mimosas, tenho por essas mãos, vagas ternuras: aqui,
n'este meio onde me vejo, são-me ellas o emblema
dos carinhos do sexo delicado; e incutem no meu
espirito uma noção de paz possivel,―aqui,
algures,
não sei onde,―no lar da familia, quando
abençoado
pelos fados...
1899.
A PRIMEIRA FORMIGA
A Sebastião Garcez.
Á parte esta dedicatoria especial, é
ás formigas
e aos sabios―Deus não permitta que ellas, ou que
elles, tomem a mal o parallelo―que eu offereço
as revelações que vão seguir-se, nas
quaes se explica,
após longos preambulos, como é que a primeira
formiga veiu ao mundo.
Quando na China, pela era do imperador Tai-Sun,
as terras andavam divididas pelas mãos de
muitos monarchas irrequietos, envolvidos em continuas
batalhas e baralhas, deu-se um caso no ceu,
digno de particular ensinamento. Acontecia que uma
certa deusa do Olympo―Lei-San era o seu
nome―nunca
[79]
em demorados
arrebiques, em meticulosas
pinturas de cutis,
das
ia dar o seu (passeio pelas nuvens, imagino)
sem se esmerar sobrancelhas e dos labios.
Pieguices do sexo, desculpaveis,
e até de certo
modo meritorias; mas o caso
motivou, certo dia, um risinho
malicioso da sua serva
mais querida, e ainda por
cima este commento pouco
respeitoso:―«A deusa
tem pelos
modos algum defeito
no seu rosto, e cuida de escondel-o
á força de
cosmeticos...»―Vão
lá chasquear
impunemente dos encantos
d'uma dama! e quando
ella fôr divina... É certo
que tão cheia de cholera
ficou a divindade, que vestiu a deliquente d'uma pelle
diabo que encontrou a geito, pelle horrivel, cara
azul, ruiva a guedelha, dois dentes curvos surdindo
da bocca para fóra, e mãos e pés
disformes; e assim,
n'esse bonito estado, a escorraçou do ceu, aos
[80]
beliscões, e a enviou ao mundo em
expiação. Chamava-se
Tchong-Mou-In, a penitente.
Tai-Sun, empenhado em pellejas, e mortificado
por innumeras derrotas, teve uma noite um sonho
radioso, difficil de explicar. Consultado sobre o caso
um lettrado favorito, anão por signal e muito feio,
mas um poço de sciencia, elle disse ao soberano,
após magnos processos de magia, que o sonho revelava
que os deuses lhe haviam destinado certa
dama por esposa, forte de genio e habilissima na
guerra, a quem mais tarde se deveria a salvação
do estado.
O anão dispunha-se a proseguir, depois de curta
pausa; mas não quiz mais ouvir o imperador; e
eil-o cavalgando o ginete dos cortejos, em pompas
de comitiva festival, dirigindo-se para onde vivia a
sua bella, conforme as indicações do
anãosinho.
Atravessa povoados, galga montanhas, desce valles;
vôa, não corre, sua magestade; vôa nas
azas da esperança,
pula-lhe o coração em mil anhelos; e assim
foi dar com Tchong-Mou-In.
Imagina-se a scena. Não ha palavras que descrevam
[81]
o desapontamento do monarcha. Tremulo de
indignação, rompeu logo em iras e em blasphemias;
pela mente, passaram-lhe de subito processos de torturas
a exercer; e d'um gesto esporeou a alimaria, no
intuito de regressar ao seu palacio. Ah! mas o soberano
não contava que a dama, que a principio o recebera
com doces humildades de etiqueta, que a dama,
expulsa embora do ceu e do convivio dos seus deuses,
ainda d'elles auferia benevolentes protecções. A
dama,
n'um esgar provocante da sua face azul, arreganhando
os dentes e estendendo solemne a mão
papuda, conteve d'um aceno suggestivo a furia do
cavallo, e vomitou ao cavalheiro, severos vaticinios.
Gritou-lhe que havia de casar com ella, se não quizesse
alli ficar eternamente quedo; gritou-lhe que
havia de recebel-a como imperatriz, e que ao seu
braço de mulher, astuto e vigoroso todavia, teria de
confiar altas emprezas. Emfim, para encurtar razões,
e apressar o fim da historia, direi que o imperador
desfez-se em cortezias e desculpas, venceu-lhe o
asco e o medo, e tudo prometteu. Não tardou que
aquelle monstro feminino lhe
entrasse
pela casa,
rude e plebeu, endiabrado, dispensando cerimonias,
transportando ella propria ás costas o enxoval―dois
cabazes, uma thesoira, um espelho, um pente,
uma vassoura, uma bacia de lavar o rosto,―utensilios
[82]
que, desde então até hoje, como que
ficaram
consagrados, symbolisando do lar domestico o nucleo
indispensavel.
Tres mezes, consta, esteve o imperador alheio
á convivencia da esposa, prolongando-lhe por esta
forma uma castidade fastidiosa, com que ella provavelmente,
não contava. Paciencia. Por vezes, na
fria intimidade dos salões, procurou desprestigial-a
aos olhos dos vassallos. Diz-se que um dia, reunidas
a esposa e a concubina favorita, uma aposta se fez,
sobre qual das duas, em escripta, mais habil se
mostrava; e para isto se combinou contar quantos
caracteres eram ellas capazes de escrever no tempo
necessario para arder de um pivete perfumado, que
alguem foi collocar sobre uma urna proxima. Do
lado da favorita, cuja cultura litteraria é primorosa,
estão o imperador (o basbaque!) e dois validos; do
lado da soberana, apostam tres lettrados, e um d'elles
é o anão. Eil-a, a amante, interessada vivamente
no
certamen, toda olhos, toda attenção, toda
adoraveis
fernesis dos seus bellos dedinhos côr de leite, que
empunham o fino pincel, e correm febrilmente sobre
o papel que lhe trouxeram. A soberana, o mostrengo
[83] segredam, por
piedade, decida-se a escrever...»―A
bruta não os escuta.
(perdôe-se-me o qualificativo que me occorre),
face azul pousada
nas manapulas, dedos disformes
enfiando
pela trunfa
ruiva, olho
impassivel
e matreiro,
relanceia, aparvalhada
e immovel,
a scena,
e os espectadores.
Sobresaltam-se
os
lettrados, que adivinham, n'uma eminente surriada,
o desprestigio proprio no conceito do monarcha.―«Senhora,
Repetem se,
multiplicam-se as instancias; até que finalmente, attendendo
a tantas supplicas, diz ella:―«Vão buscar
aos meus aposentos um pincel.»―Voam escudeiros,
volvem breve:―«Não se encontra,
Senhora!»―Ella
indica que está junto d'um armario. Os vassallos
replicam:―«Perdão, não
está; o que está é uma
vassoura...»―Então berra a
soberana:―«Pois é isso
[84]
mesmo, seus patetas!»―E tomando da vassoura, e ensopando-a
n'uma mixordia de tinta, de que mandou
encher a bacia que trouxera no enxoval, isto quando
o pivete ia chegando já ao termo, com a vassoura
lambusou um enorme papel, d'um gesto apenas; e
por milagre,―que só assim se explica tal
portento―appareceram
nitidos, sublimes, mil e mil caracteres
da mais adoravel forma caligraphica.
Na guerra, dirigindo ella mesma, em pessoa, a
turba dos guerreiros, foi colhendo victorias e engrandecendo
os seus dominios. Nos ardis, um primor.
Uma vez, convidados, imperatriz e imperador,
para um banquete de monarchas, com os quaes andavam
de guerrea porfiosa, um dos nobres apresentou
aos convivas um enorme macaco que possuia,
mono astuto nos seus modos de selvagem, e eximio
n'um jogo então em moda, semelhante ao gamão
dos nossos tempos.―«Senhora, ides jogar tres partidas
[85]
com este mono; se a ultima ganhardes, são
vossas, nossas terras; se a perderdes...
percebeis-me?»―Trava-se
o jogo em que a imperatriz não
era forte, pouco affeita a prendas de salão, e sendo
notorio que nos ceus, onde passara a juventude, o
jogo é prohibido. Coragem!... Primeira partida: ganha
o mono. Segunda partida: ganha o mono. Tchong
Mou-In desfalece em intimas angustias, julga-se
perdida, quando então se lembra de invocar os deuses.
A sua divina ama, que nunca a abandonára,
despede do ceu um aviso visivel só para ella:―Toma
este fructo; esconde-o na manga da cabaia, de
modo que apenas o macaco dê fé d'elle, e joga
resoluta.―Terceira
partida: o mono dando vista do
acepipe, banana ou coisa parecida, estremece de
desejos; o trazeiro, onde parece residir a alma dos
macacos, pula-lhe em sobresaltos, em anhelos, sobre
o assento da cadeira; e com a dentuça arreganhada,
o olho em braza, em arco as espessas sobrancelhas,
o bestunto por certo desvairado, balbucia
gritinhos repetidos―eh, eh! eh, eh!―que irritam
os convivas. A mãosita felpuda ainda vae mexendo
as pedras, por habito, por dever, mas sem
arte, sem intuito; e a razão foge-lhe,
abandona-o―tão
imperativa é a lambarice n'estes figurões da
fauna
comica!―E perde a partida decisiva!
[86]
Um parenthesis na historia. Dizia-me ha dias
um companheiro de desterro, dos raros com quem
logro palestrar:―Ora vêja você quantos macacos ha
por este mundo, de gravata, e casaca, e rosa na
carcella, quando não é uma commenda, astutos no
gamão e n'outras prendas varias, quasi attingindo
as alturas da audacia e do triumpho; n'um momento
fatal, uma banana qualquer, mostrada a geito,
desnortea-os, allucina-os, aniquilla-os... E que,
por
mais que façam, são macacos, embora a cauda se
não vêja, de certo occulta nas ceroulas, e ninguem
ha que possa purgal-os, expurgal-os, do sangue dos
avós...
Continuo.
Uma das mais bellas façanhas que illustram a
gloriosa mulher, se mulher é, de quem me occupo,
é a seguinte. Travava-se então renhida a lucta
pelas
armas, entre varios soberanos, já com enfado de
vencedores e de vencidos. Tai-Sun ia levando a melhor
nas investidas. Eis que os reis desbaratados,
unidos em conluio, julgam ir pôr termo a tão
irritante
situação, e muito em seu proveito, propondo
ao imperador um curioso problema.―Não nos façaes
a guerra. Aqui tendes uma perola, arrancada
[87]
d'um annel; notae que tem dois furos esta perola,
communicando entre si interiormente por um labyrintho
de nove canaesinhos; se conseguis apresental-a
enfiada n'uma linha, juramos-vos a paz e a entrega
por inteiro de tudo que hoje é nosso.
Irra! Em que apuros se viu o bom soberano em
caso tão difficil!... Os conselheiros ficaram-se calados,
macambuzios, e nada aconselharam. Foi então
impingindo esta questão á esposa, elle, que a
não beijava, nem lhe queria, mas que em assumptos
escabrosos só n'ella tinha fé. Tchong-Mou-In
recolhe-se,
implora os deuses. A sua divina ama envia-lhe
então do ceu uma formiga, a primeira formiga
que veiu a este mundo; e manda a verdade que se
diga que essa formiga prehistorica era um nadinha
differente das formigas contemporaneas, menos esbelta
nas formas, mais bojuda. Tchong-Mou-In comprehende
o precioso auxilio: ata uma linha a meio
corpo do bichinho, leva-o assim junto da perola,
junto d'um dos seus furos, por onde se vê forçado
a enfiar, não tardando que surda pelo outro, arrastando
a competente linha atraz de si. É a gloria!...
E não reparam hoje na delicadeza da formiga,
leve a cintura, como a cintura d'uma dama espartilhada?
D'antes não era assim. Consigna-se o facto
como indicando ainda ás gerações
presentes uma
[88]
maravilhosa herança atavica, a impressão do
nó com
que a linha se prendia e apertava a primeira formiga,
a formiga lendaria, a mãe de todas as formigas
que hoje passeiam sobre a terra.
Nada mais sobre o insecto. Poucas
palavras apenas
pelo que respeita á soberana. Lei-San, a sua
divina protectora, perdoou-lhe
finalmente o passado sorriso
de motejo, que valia uma
injuria; despiu-a da pelle
monstruosa que lhe dera, por
expiação do seu peccado, restituiu-lhe
a peregrina belleza
que lhe era propria... O imperador,
antes que a consorte
volvesse aos seus labores divinos,
poude vêl-a, e por longos
annos, no completo esplendor
dos seus enlevos. O
imperador, que já lhe tributava
incondicional veneração, graças aos
seus prodigios,
que tanta ventura lhe trouxeram, e prosperidade
ao imperio, poude então tambem amal-a, amal-a
[89]
apaixonadamente, embevecido em tanta graça, em
tanta formosura. Imagine quem quizer como áquelles
amorosos as horas iriam correndo encantadoras, na
serenidade mysteriosa do palacio, cingido por muralhas
de marmore, e rodeado de jardins, e no afan de
festejarem aquella lua de mel, tardia embora, que
lhes apparecia no horisonte!...
1899.
OS DIABOS E OS VELHOS
A Nuno Queriol
Falla a lenda japoneza.
Era uma vez um velho, que tinha um enorme
lobinho sobre a cara, na face por signal. Certo dia,
achava-se elle na montanha, a cortar lenha―era esta
a sua humilde profissão,―quando o surprehendeu
uma terrivel tempestade, chuva a potes, ventania
desabalada, o raio faiscando nas alturas; tão terrivel,
que se viu obrigado a ficar por aquelles sitios e
a buscar um abrigo para a noite. Abrigo, na floresta,
era difficil problema; um grande tronco de arvore,
escavado pelos seculos, offereceu-lhe a unica guarida.
No seu posto, agachado e sem poder dormir, foi o
[91]
velho passando tristes
horas. Alta noite, principiou a
dar razão d'um estranho vozear, longe a principio,
mas pouco a pouco
avisinhando-se-lhe―«Olá,
resmungou, tanta
gente por aqui, e eu
que contava achar-me
só?...»―E pôz-se a
espreitar, curiosamente,
sem sombra de receio.
O que o velho então
viu, muito a custo,
á luz fugidia dos relampagos,
mal póde imaginar-se.
Uma numerosa
sociedade approximava-se;
mas nunca
ao velho apparecera
tão estranha sociedade
como aquella. Era
um bando immenso de
patuscos, de diabos incontestavelmente,
medonhos nos aspectos: uns, encarnados,
vestidos de
kimonos verdes; outros,
negros,
vestidos de
kimonos encarnados; a um
faltava
[92]
um olho; a outros o nariz; alguns não tinham bocca.
Pozeram-se a accender uma fogueira enorme,
com palha, com folhas, com cavacos que encontraram;
e as chammas sinistramente os patentearam.
Acocorados em torno da fogueira, em duas filas, bebendo
saké em amigavel
reinação, pareciam mesmo
gente, os taes demonios. A vasilha ia passando á
roda, de garra em garra, entre os convivas; e tantas
voltas deu, e renovada tantas vezes foi, que jâ
não tinham conto as bebedeiras. Um dos mais jovens
assistentes ergueu-se como poude, e começou uma
cantiga, dançando ao mesmo tempo; os outros imitaram-n'o.
Era então extremamente emocionante a
vista da paizagem: a fogueira, ateada pelas rajadas
successivas, alastrava-se e subia, furiosa, até
ás nuvens,
em turbilhões de fumo e labaredas, e ia alumiando
diabolicamente a scena
inteira―ramarias
de bambus e de pinheiros, profundezas de bosques,
penedos gottejantes, torrentes espumosas, e ainda a
turba immensa dos diabos esbravejando em mimicas
atrozes―Uns rodopiaram em vertiginosas piruetas;
outros iam gravemente alçando a perna e ensaiando
minuetes; outros, immoveis, ou antes querendo assim
quedar-se, ondulavam em bordos grotescos de
borrachos; e de colina em colina os echos repetiam
os torvos descantes em falsete, de mistura com
[93]
as lamentações das arvores açoitadas
pelo vento, e a
salva de artilharia dos trovões. Berrava uma vóz
esganiçada:
«Que grande reinação! mas bem quizera
vêr mais alguma novidade!...»―
Mettido no seu
esconderijo, o rachador de lenha
passou por todos os tormentos que o espanto, o
susto e o desamparo juntos produzem no animo d'um
velho. Por fim, passadas horas, ia já folgando na
festa―ou não fosse elle japonez!―e tal poder teve
sobre elle a bambochata, que lhe venceu escrupulos
e temores, e o levou a esta resolução
formal.―«Matem-me
embora estes diabos, se quizerem, mas pretendo
tambem ir pandigar!»―Surdindo então da
tóca, barrete enfiado até ás orelhas,
machadinha suspensa
da cintura, ei-lo a reunir-se á malta, a dar as
boas-noites e a ensaiar passos de dança. Foi agora
a vez de se espantarem os demonios; mas tão comico
era o velho, no seu pobre corpinho corcovado,
avançando em meneios, e recuando após, e
virando-se
para a direita em cortezias, e voltando-se para a
esquerda em reverencias, e traçando no ar, com o
pé
descalço, estupendas parabolas coreographicas, que
[94]desataram todos em
risóta, gritando:―«Viva o
velho!
muito bem! que bem dança o velho!»―E proseguiram
depois, n'este proposito:―«Queremos que
tomes sempre parte em nossas festas, por seres mui
reinadio; mas, como póde acontecer que não
pretendas
voltar mais, vaes deixar-nos um penhor de
que acederás a este convite.»―
Consultaram-se entre si, e decidiram da consulta,
extrahir-lhe o lobinho; muita gente do povo, é notorio,
[95]
considera este achaque como um valioso talisman
para ser-se afortunado. Eil-os pois, olhos attentos,
braços nús, dedos palpando, lancetas e tenazes em
acção; e o velho estendido sobre o solo, um
segura-lhe
uma perna, um outro a outra, outro prende-lhe
os braços, outro delicadamente ampara-lhe a
cabeça;
e sairam-se do caso com limpeza, não causando a
menor dôr ao paciente. Depois, fôram guardar o
lobinho n'um estojo.
Quando, sereno já o tempo, rompeu a madrugada,
uma bella madrugada côr de rosa, e os pardaes
começaram a papear nas ramarias, desappareceu
então a malta dos demonios. O velho desceu á
sua aldeia. Entrou em casa muito contente, ainda
um tanto estonteado da bebida, sem o lobinho é
claro, com a sua face muito lisa, sem o minimo defeito.
O caso maravilhou com razão a companheira,
e a gente conhecida. Ia-se servindo o chá pela familia
e pelos curiosos que accorriam, sobre a esteira,
junto do brazeiro; e era uma chuva de exclamações
e de perguntas, que obrigaram o velho a explicar,
nos seus detalhes surprehendentes, as peripecias
da estranha noite que passára na montanha.
[96]
Ora, havia entre os visinhos presentes um outro
velho, que tinha um enorme lobinho sobre a cara,
na face esquerda por signal. Muito calado, assim
com ares de não prestar ouvidos á palestra, ia em
mente, o finorio, retendo todas as minucias. Não
partilhando das crendices da gentalha, pelo contrario,
desejoso de vêr-se livre do tortulho, ia já
estudando
a maneira de entregar-se nas mãos de
tão
sabios curandeiros. Eil-o pois, por uma noite escura,
caminho da montanha; seguidamente, eil-o abrigado
sob o mesmo tronco de arvore, á espreita dos diabos.
Não faltaram. Começou a bambochata,―risota,
dança, vinho.―Juntou-se então aos demonios, a
medo, um outro figurão.―«Olá,
cá está de novo
o velho! voltou, e vem
dançar!»―Dançou, effectivamente,
e sem ser muito rogado; mas era um desastrado;
e tão mal desempenhou o seu papel, tão
falto de geito e de pilheria, que os demonios,
tomando-o sempre pelo conviva primitivo, zangaram-se
e disseram-lhe:―«Enganaste-nos, brejeiro! és
um grande desgeitoso; devolvemos-te o penhor que
nos deixaste e aconselhamos-te a que não pises
[97]
mais este logar.»―Um da chusma foi buscar o lobinho,
e zaz! pespegou com elle na face direita do
sujeito. Saira de casa com um, e voltou com dois,
um lobinho em cada face. Pode imaginar-se o desapontamento
do sujeito e a hilaridade dos visinhos.
Parece que, na aldeia, durante semanas e semanas,
paralysou todo o trabalho; os velhos, as velhas,
as raparigas, os garotos, não faziam senão rir,
rir a bandeiras despregadas,―e o caso não era
para menos!―
1899.
PAU-MAN-CHEN
A
Antonio Baldaque da Silva.
Scena domestica. Lá está o meu cosinheiro a
bater cabeça, como se diz
n'este Macau; lá está elle
rezando aos seus deuses protectores. Que lhe preste!
Acabou de me roubar nas contas, como bom chinez
que é, serenamente aggressivo em tudo ao europeu;
e passou a entregar-se a esta outra occupação
não
menos meritoria.
Sendo seus os aposentos inferiores, é ali rei, ou
pelo menos mandarim; faz o que quer. Os altares
aos deuses anicham-se pelas paredes, aos cantos do
sobrado, sobre as mesas; e até junto ao fogão,
onde
se guisa o meu jantar, se presta culto a supinas divindades.
[99]
Mysteriosos ritos. São papeis encarnados,
contendo cabalisticos dizeres; são figuras de horriveis
monstros, coloridas pelas tintas mais surprehendentes,
nas disposições
mais grotescas, despertando
quasi o riso, despertando quasi o medo, a
quem não vive em graça em tal Olympo. Alli o
cosinheiro,
em humildes genuflexões
de crente, vem depôr
suas offertas, minhas offertas,
pois sou eu que pago a
festa,―offertas de laranjas,
de doces, de chá, de porco
assado e de outras iguarias.―Alli
ardem lumes mysticos;
e frequentemente, pela
noite, como agora, se queimam
pivetes, cirios rubros,
rezinas e papeis, de tudo
emanando um fumo atróz,
que invade em torvelino a
casa toda, que chega sem
respeito ao sitio onde me encontro, e me soffoca.
Paciencia!
Paciencia é o
unico codigo de conducta
para o aventureiro que escolheu para exilio um
canto exotico, longe, muito longe do torrão onde
nasceu, e no qual a civilisação disparatada, a
feição
[100]
propria das gentes com quem lida, hão-de fatalmente
apresentar-se, dominantes.
Os deuses, com quem por assim dizer vivo em
contacto, e a cuja sublime protecção, posto que
indirectamente,
me confio, são muitos, um enxame.
É todo o Olympo buddhista e o inteiro mytho primitivo,
amalgamados em crendices; legiões de espiritos.
Naturalmente, ha uns mais preferidos, que
se invocam no lar com mais piedoso amor; n'este
numero, segundo informações recentes que colhi,
deve contar-se Pau-Man-Chen; e é a sua historia
maravilhosa que me proponho narrar, como puder.
O deus Pau-Man-Chen, venerado em todo o immenso
imperio, tem uma face branca e tem uma
face preta. Na China não ha effectivamente ninguem
que não o adore, que não lhe preste no altar
domestico,
o culto merecido; a elle, que tudo sabe e tudo
pode, que possue a sciencia do bem e a sciencia do
mal, que com um olho contempla os ceus e as
grandes coisas puras, e com o outro mira
O deus Pau-Man-Chen, venerado em todo o immenso
imperio, tem uma face branca e tem uma
face preta. Na China não ha effectivamente ninguem
que não o adore, que não lhe preste no altar
domestico,
o culto merecido; a elle, que tudo sabe e tudo
pode, que possue a sciencia do bem e a sciencia do
mal, que com um olho contempla os ceus e as
grandes coisas puras, e com o outro mira a terra
profunda até aos antros lobregos dos demonios,
adevinha-lhes os maleficos designos. O deus Pau-Man-Chen
[101]
tem uma face branca e tem outra face
preta...
Ha não sei quantos mil annos, morreu não sei
aonde, uma mulher casada. O marido, não resta
duvida, procedeu segundo o ritual do estylo, e mandou
depositar o caixão n'um solitario templo. Mal
imaginava elle que a defunta seguia gravida no esquife;
e mal imaginava que o menino, que se occultava
no seu ventre, ia votado a altos destinos...
Foi por aquella epocha, n'uma mercearia do sitio,
que começou sendo notado, com justo sobresalto
do dono da quitanda, o caso que vou expôr.
Fazia-se sem novidade a venda, dia a dia; mas,
quando pela manhã se dava balanço ás
contas e ao
dinheiro, encontrava-se sempre, de mistura com o
monte das sapecas, dois d'esses papelitos amarellos,
com a competente mancha prateada, que são nada
menos do que a moeda corrente entre as almas do
outro mundo, nas suas transacções... Era prova
clarissima
[102]
de que andava por alli coisa sobrenatural,―bruxaria,
visita de phantasmas, ou
outro mysterio
parecido.―Estudou-se o caso attentamente e com
bem justificaveis ancias de terror; observaram-se os
freguezes, um por um. Chegou-se por fim á
conclusão
de que, em tal enigma, andava por certo envolvido
aquelle vulto de mulher de maneiras suspeitosas,
trazendo uma creança no regaço, e chegando-se
todas as noites ao balcão para comprar um bolo,
que offerecia ao pequerrucho. Aos cobres, que largava
das mãos lividas, cadavericas, não havia nada
que dizer-se; eram excellentes;
mas quem ignora que de noite
todos os bruxedos são possiveis,
e é a luz fraca do dia que seguidamente
os desmascara?... O
patrão (os tendeiros do mundo
inteiro, e desde seculos sem conto,
são homens de raro engenho),
o patrão, certa noite, conseguiu
sem ser sentido, atar um longo
fio á ponta da cabaia da fregueza;
e quando ella se ausentou,
pôz-se a largar o fio, á medida
dos seus passos. No dia seguinte,
facilmente o finorio percorreu a linha de trajecto da
[103]
mysteriosa caminheira; e foi assim esbarrar, no
termo do passeio, com o caixão da defunta, de que
atraz se fez mensão. Do caso, sem detenças,
correu
a dar parte ao viuvo, de quem era conhecido.
Acercam-se o viuvo e um bando de curiosos, do
esquife, e abrem-n'o, ao pasmo de todos. Scena
extranha! Sobre os farrapos descoloridos, humidos,
fetidos, pasto de vermes,―quem já, dos que me
lêem, poisou os olhos no espectaculo d'uma tumba
escancarada?―lá está estendida a esposa, e
lá está
um menino. Vivo? sim. Viva? viva parece, d'uma
existencia sobrenatural embora; mas como ninguem
d'ella cuidasse, alli ficou jazendo para sempre. As
attenções, os carinhos, convergem para o menino;
o pae estende-lhe os braços, arranca-o á
desolação
d'aquelle leito, chama-o á vida, á sociedade, ao
mundo.
A lenda popular completa esta curiosa historia
pela maneira que vae vêr-se. A defunta, alli amortalhada,
alli estendida sobre as tabuas, foi mãe, não
sei por que milagre―não se discutem milagres.―O
resto explica-se melhor: o mysterio psychico da maternidade,
isso que nas mães se patenteia como uma
[104]força
immensa, sem limites no affecto, sem barreiras
nos zelos, capaz de todos os arrojos, poude aninhar-se
n'aquelle corpo
inerte, e imprimir vontade
áquelle
feixe de ossos. Aos primeiros vagidos da creança, o
cadaver pôz-se a contemplar os proprios seios murchos,
pendentes, vazios de seiva, roïdos pelos bichos.
O cadaver moveu-se então, galvanisado pelo amor―qualquer
cadaver de
mãe, n'aquellas condições,
faria o mesmo;―começou
a dar pontapés
no impossivel; partiu a
murros as paredes do seu
carcere; e apertando de
encontro aos ossos o filhito,
e embrulhando-se
discretamente na mortalha,
foi a correr comprar
um bolo á venda proxima.
A creança assim foi medrando,
passando os dias
n'aquelle estranho berço. Foi por isso que ficou com
uma face branca, a que voltava para a luz e para o
ceu, e com uma face preta, a que poisava na sombra,
de encontro á terra negra. De então lhe veio o
duplo condão de conhecer o bem e de conhecer o
[105]
mal, de vêr com um olho os deuses, e com um olho
os demonios. Pelo correr dos annos, foi mandarim
de modestos logarejos, pois lhe sobrava asco pelas
riquezas, pelo fausto e
pelos altos cargos. Os nobres
senhores, o proprio imperador que muito o honrava,
tremiam do seu juizo. Lia nas consciencias e lia nos
destinos. Distinguia na turba os humildes, os bons,
os opprimidos; e tambem
os impostores, os verdugos,
os infames. Premiava as
virtudes, azorragava os vicios.
Os desmandos da côrte,
a rapina dos ministros,
os mexericos das concubinas,
fôram por elle desmascarados
e punidos. Assim
viveu por longos tempos
este grotesco e sublime figurão;
assim passou por
todo o imperio, para gloria
da China e para consolação
dos offendidos. O povo punha de parte os labores
e vinha prostrar-se em saudações á
borda das estradas,
ao vêl-o atravessar cidades e campinas, galgar
os montes e descer os valles, sempre incansavel,
seguindo a largos passos, como se fosse um
[106]
procurador atarefado com demandas. Fluctuava-lhe
ao vento a longa cabaia esfarrapada, suja de lama
e de poeira dos caminhos; a mão adunca brandia
um baculo nodoso; as pupillas chammejavam iracundas;
o corpo ossudo definia-se, na magestade
façanhuda dos gestos arrogantes, nos compridos
bigodes de asiatico, pendentes como franjas, na barba
aberta em leque, chegando-lhe á barriga, e na disformidade
do rosto pintado a duas côres, branca uma
face e outra face preta. Um bello dia safou-se d'este
mundo; mas lá anda no outro, certamente, espreitando
cá para baixo, e não largando de mão o
seu
fadario.
1899
A CARICATURA NO
JAPÃO
a
Camillo Pessanha e
João
Vasco.
Grande coisa, meus senhores, é ter engenho!..
Eu não me gabo muito d'esta prenda, confesso-o
francamente; mas tive ha pouco azo de julgar pela
propria consciencia―mercê d'um rasgo excepcional
do meu bestunto―quanto vale uma boa idea; e
conclui que a felicidade humana seria coisa facil, se
uma impulsão sagaz do espirito fôsse guiando
sempre
os nossos passos n'este mundo. E assim fica
satisfatoriamente justificada, penso eu, a
exclamação
com que enceto estas divagações, escriptas por
uma
noite fria de janeiro, no meu gabinete silencioso, na
cidade de Kobe, no Japão.
[108]
Vamos ao facto. Ah, pobre espirito enferrujado
pelos azedumes da existencia, gasto pela longa
fricção
das coisas e dos homens, soffrendo pela dôr do
passado, pela insipidez do presente e pelas tristes
promessas do futuro! como tu, meu pobre espirito,
cahiras na quasi insania, consciente, e por isso mesmo
mais penosa, d'aquelles para quem, por mal dos
seus peccados, a vida se vae tornando toda um immenso
enfado... Morbidez de temperamento? incompetencia
ingenita para a lucta? fadiga, após os
mil baldões da sorte? pouco importa; não vale a
pena
agora desenredar esta meada. Passava, e passo
ainda, longas horas do dia junto da minha secretaria;
é este o meu officio. Alguem, que entrasse, via-me
grave, correcto, rodeado de livros e papeis, e
até, presumo,―perdôem-me a vaidade―talvez me
atribuisse uns certos ares de sabio, em cuja mente
magnos problemas se iam sublimando. Só, bem só,
entre quatro paredes discretas, desfallecia; o olhar
vago fixava-se no nada, todo o meu ser se inutilizava,
perdia-se em abstracções, desinteressado da
realidade, de mim mesmo, morto,―porque ha para
alguns uma morte percursora d'aquella que roe na
tumba a febra e põe a nú os ossos brancos do
esqueleto.―E
vae então, um bello dia, achando-me
casualmente n'um bazar de Osaka, compro uma
[109]
figurinha de barro da deusa O Fuku-san, que colloquei
sobre a mesma secretaria referida.
Ora aqui está, no fim de contas, em que consiste
o meu rasgo genial; e vou dizer porquê. O
barro é trabalhado por dedos tam amorosos de artista,―um
obscurissimo artista certamente;―a pasta
impregnou-se com tanta obediencia da feição
predominante
da alma japoneza,―naturalismo humoristico,
caricatural;―que a deusasinha patusca que
aqui tenho a meu lado, uma bugiganga de tres pollegadas
de altura, quanto muito, é toda ella uma
gargalhada viva, supina, radiosa!... Acontece que
a tristeza, borboleta negra das trevas, foge espavorida
da minha convivencia; poiso os olhos na deusa,
e desato a rir perdidamente; e assim me tornei o
homem mais divertido d'este mundo.
Antes de ir mais longe na palestra, justo é que
me detenha e diga em poucas phrases quem é O Fuku-san.
Divindade popular, patrona da boa fortuna e da
alegria, representa na genesis japonica um papel de
subida importancia incontestavel. Izagani e Izanami,
os deuses iniciaes e creadores, formaram o Japão e
[110]
tiveram por filha, Amaterasu, a deusa do sol, e outros
filhos, todos com maravilhosos attributos. Amaterasu
residia no ceu, alumiando a terra; delicioso
officio; mas tamanhas affrontas soffreu de um seu
irmão, o deus da lua por signal, que se amuou e
decidiu esconder-se, escolhendo para retiro uma
caverna, aonde se metteu, vedando a entrada com
uma enorme pedra; a terra, é obvio, achou-se ás
escuras de repente. Os deuses, apavorados,―o caso
não era para menos,―recolheram-se em conselho, e
resolveram o seguinte, depois de larga discussão:
fôram postar-se todos bem junto da caverna; Takadjira,
o deus de enormes braços, ficou junto da entrada,
fazendo sentinella; O Fuku-san, a mais divertida
das patuscas, poz-se a cantar modinhas; ou,
quando não cantava, tocava n'uma gaita de bambu;
ou, quando não tocava, bailava minuetes, acompanhando
a dança de mil tregeitos faceciosos. Tanta
pilheria teve a figurona, que a deusa Amaterasu, no
seu antro, começou a interessar-se na galhofa, a rir
ás furtadellas,―ou não fosse ella japoneza!―e
arredou
um pouco, para o lado, o pedregulho, alongou
um nada a cabecita para fóra, e assim se pôz a
gozar
melhor da brincadeira. Então Takadjira, n'um
relance―zás!―caiu-lhe em cima, lançou-lhe os
longos
braços ao pescoço, puxou-a para si, foi
á força
[111]
poisal-a no seu throno... e a terra de novo continuou
a ser alumiada pelo sol!
A arte popular veste a deusa O Fuku-san em
bellos trajos da côrte, dos velhos tempos, setins rojantes,
brancos e escarlates, e molda-a nos ultra-comicos
contornos d'uma japonezita enormemente
obesa, toda ella refolhos de gordura, banhas de pescoço,
de collo, de seios, de barriga, redondezas pasmosas
de quadris, e mãos e pés papudos. A cara, a
immensa caraça, de lua cheia, é um poema completo
de monstruosidade triumphal e hilariante: faces
prodigiosamente bochechudas, caiadas de cosmeticos;
um narizito que mal se vê, rombo, abatatado,
como que calcado para dentro, a golpes de
martello; á fronte curta e estreita, de imbecil, collam-se
dois bandós de cabellos de azeviche; fôram
rapadas á navalha as sobrancelhas, segundo o uso
classico; os olhinhos piscos, matreiros e gaiatos, reluzem
pelas fendas estreitas das palpebras carnudas;
e a bocca, a boquinha, em forma de cereja, acarminada,
sorri em curvas, em prégas, em covinhas impagaveis...
Mas não ha palavras que descrevam,
nem de longe, a expressão de toda a figurinha―porque
vae alem da nossa comprehensão de occidentaes,―no
que d'ella irradia de jocosidade perenne,
de beatifico comprazimento, de vagos tiques de
inconsciencia
[112]
infantil, de imbecilidade, de malicia, de
perversão; um indefinivel conjuncto de não sei
que
de imminentemente pueril, satanico e grotesco, todavia
gracioso, que é no fim de contas uma das
feições mais caracteristicas e mais emocionantes
da
arte inteira japoneza.
Ensina-se nos livros que por
meados do nosso seculo XII, o
pintor Kakuyu, que era bonzo
buddhista, iniciou no Japão a
pintura caricatural. Pois seja assim;
concedo ao frade o merito
de ter traduzido pelo pincel,
por vez primeira, o humorismo
d'esta gente. Mas tal humorismo,
como feição moral, nasceu
com o mesmo povo, é-lhe um
fector do sentimento; e cada japonez
é, e foi, e será, um caricaturista.
Quando se estuda a
lenda indigena japoneza, no vasto
reportorio das suas fabulas, que eu penso representarem
[113]
sempre o mais remoto documento do feitio
estetico, da individualidade
psychica, d'uma qualquer
grande familia humana, depara-se na scena com
a mais curiosa fauna fallante―macacos, caranguejos,
raposas, alforrecas, ratazanas e outros varios
bichos;―no apologo grego, por exemplo, os brutos
são doutores, discursam como philosophos e como
moralistas; no apologo japonez, menos profundo,
mas talvez mais incisivo, a bicharia contenta-se em
mascarar-se vestindo
kimonos e
enfiando as patas
nas sandalias, faz caretas, galhofa, dança e ri, em
desenvolturas caricaturaes da mais desopilante troça
a todos os ridiculos.
Quando as artes se desenvolvem e nacionalisam,
e attingem uma feição independente,
inconfundivel,
a caricatura, como que traduzindo uma recordação
da lenda, vem desempenhar um papel importantissimo,
não só na pintura, mas nas multiplices
affirmações
do engenho―esculptura, ornamentação da
porcellana, da faiança, dos charões, dos bronzes,
em
tudo.―Graças ao pincel e graças ao buril, as
rãs
decidem-se a vir tocar guitarra para a rua; os pardaes
offerecem banquetes aos seus intimos, servidos
em porcellanas primorosas; desfila um cortejo de
rapozas, levando a noiva, a rapozinha, ao noivo feliz,
que a espera no seu lar; pelo dorso de Hotei,
[114]
deus da bondade, vão trepando os garotos, e um
mais atrevido vae poisar-se-lhe em cima da careca;
os guerreiros cobrem os rostos com mascaras de
um comico façanhudo indescriptivel. Hokusai, o
grande mestre da escola vulgar em pintura, delicia-se
em desenhar cegonhas d'um só traço repentino,
maravilhosos gatafunhos, palpitantes de
observação
e de verdade; no seu album dedicado ao Fuji-yama,
a montanha sagrada, contorna-a vista atravez de
uma rede, que um pescador tira do mar; e atravez
de uma teia de aranha; e entre o A das pernas
nuas d'um operario tanoeiro, que do alto de uma
dorna ajusta á força de malho as aduellas; e
reflectida
no chá da taça que um esfarrapado mendigo
leva á bocca. Hokusai, em 1804, durante certa festividade
n'um templo, manda estender no solo uma
folha de papel de cerca de duzentos metros quadrados
de grandeza; vem mais um barril com agua,
outro barril com tinta preta, uns oitenta litros d'ella,
e mais duas enormes vassouras e tres vassouras
mais pequenas; entra o mestre, empunha uma vassoura
embebida na tinta, traça sobre o papel curvas
gigantes; no fim de alguns minutos termina a sua
obra, que só é comprehendida quando alguns dos
milhares dos assistentes se lembram de galgar ao
telhado do templo: a distancia e do alto, o immenso
[115]
quadro representa um admiravel busto de Daruma,
o grande apostolo buddhista. Por aquella mesma
epocha, Hokusai pintava sobre um bago de arroz
um grupo de aves, encantador, mas só distincto
com a ajuda de uma lupa.
É esta caricatura,
melhor
será talvez dizer―este
humorismo, que o
japonez exerce com habilidade
unica, magistralmente,
prodigiosamente;
é por ella, é por elle, pelo
segredo dos exaggeros,
pelo arrojo da execução,
que alcança intenções flagrantes
no traço, uma
alma quasi na paizagem,
um conceito na arvore,
no ramo em flôr, no simples
contorno de um rochedo...
Na pintura japoneza,
por exemplo, um pargo, um caranguejo, uma
lagosta, o figurão zoologico mais lorpa que possa
imaginar-se, vivem na tela, isto é, accusam uma
vontade, uma intenção, um sentimento, como a
fome, como o medo, como o cio. Não se diga que
[116]
é a fiel reproducção do modelo que
dá isto,―a photographia
d'um caranguejo não palpitaria de vida;―é
pelo contrario o exaggero propositado de certas
linhas, o exercicio de uma arte mysteriosa, que
naturalmente se inspira no perfeito conhecimento
estructural e sentimental do bicho, animalizando de
certo modo o artista e humanizando o bruto, e permittindo
caprichos descommunaes que o observador
não descrimina, que o levam a exclamar, não sei
por que remotas reminiscencias
ancestraes de subito
recordadas:―«aquelle linguado acha-se triste...
aquelle
camarão arde em ciumes...
aquella lombriga
está-se a rir...―»
O humorismo japonez
não se limita ás artes; divulga-se
nos costumes do
povo, nos seus habitos;
quando nos intromettemos
na intimidade indigena,
ainda o espectaculo de
inesperados disparates, de
[117]
requintadas extravagancias, vem ferir a nossa pupilla
e prolongar-nos o espanto. Eu não pretendo
escrever aqui um tratado dos exotismos d'esta gente,
aponto ao acaso alguns dos que me occorrem.
Pois não são disparatadas, caricaturaes, estas
mangas prodigiosamente amplas dos vestidos, e na
propria fazenda a estupenda polychromia dos matizes?
E estas peanhas de madeira, á laia de calçado,
onde se poisam os pés nús
dos japonezes? E estes
penteados enormes das mulheres, transformando-lhes
as cabeças em estupendos monumentos ambulantes?
E o
obi, a cinta de seda que cinge
as ancas
da
musumé em voltas
sobrepostas e rematadas n'um
laço colossal? E o costume das casadas, quando
em signal de desapêgo ás vaidades d'este mundo, se
desfeam rapando as sobrancelhas á navalha, e envernizando
de
preto a fila
dos dentinhos?
A casa
de papel,
o jardim de
Lilliput, a
vida passada
de joelhos
sobre
[118]
a esteira, a refeição servida em
taçasinhas e apprehendida
nas pontas dos pausinhos, a arte domestica
da preparação do chá e dos ramos de
flores, a dança,
a musica, a cama improvisada a um canto com duas
colchas de seda e uma boceta de charão por travesseiro,
as mil saudações trocadas entre duas pessoas
que se encontram, todos os aspectos da vida indigena
emfim, intimos, sociaes,
brincadeira, como se o japonez tivesse vindo ao
mundo para se rir de tudo são surprezas, extravagancias,
excepções unicas, simples pretextos para em que
se occupa, e para
se rir de si primeiro do que de tudo... Chega-se sem
muita difficuldade a comprehender porque, nas
relações
de convivio de um para outro, de preferencia
á palavra, de preferencia ao gesto, uma maneira ha
mais eloquente de traduzir o pensamento:―a gargalhada!...
O proprio japonez é uma caricatura. Não se
espantem da asserção os que tiverem a pachorra
de me ir lendo; eu hei de ainda provar que o proprio
deus dos japonezes, o sublime creador do Dai-Nippon,
formou n'um estado de alma galhofeiro esta
terra, sem systema, sem programma estudado e sem
[119]
pressas; sem pressas certamente, recreando-se nos
comicos caprichos que a phantasia lhe ditava e a
mão omnipotente ia executando, ferramenta do officio
em acção, escopro ou broxa,
afeiçoando, retocando,
caricaturizando, o que do chaos ia surdindo
á flôr das aguas. Depois, concluida a obra, devia
ter soltado uma gargalhada retumbante!...
Ora desde remotas eras
até hoje, pratica-se no
Japão um exercicio de lucta, um
sport (como se diz
agora) muito em voga, e do especial agrado d'esta
gente; é o espectaculo favorito durante determinadas
epochas do anno. Limita-se no campo um espaço com
esteiras e bambus, e ao centro dispõe-se uma pequena
elevação em forma circular; içam-se
galhardetes e bandeiras,
rufa o tambor,
e o povo afflue
por centenas de curiosos,
compra o seu
bilhete e toma poiso;
dois homens, quasi
nús, combatem corpo
a corpo, como
na arena grega, até
que um d'elles derruba
o companheiro
e é proclamado vencedor.
[120]
Estes luctadores de profissão são
escolhidos
d'entre os gigantes, d'entre os athletas, e é na
provincia de Tosa que especialmente se recrutam.
Não são homens, são caricaturas de
homens, são
monstros, enormes, valendo cada um em peso e em
dimensões por seis japonezitos ordinarios. Não se
imagina, nem podem descrever-se, as caras, os carões
de taes sujeitos; são mascaras disformes, caraças
imberbes, olhinhos ferinos repuchados para
a
testa, queixada vigorosa e dentuça arreganhada,
orelha polpuda e ampla, trunfa hirta e espessa, e
um risinho estranho, sarcastico, mistura de riso de
creança e de riso de demonio; nem ha palavras que
expliquem a amplidão dos vultos, a obesidade das
carnes, o braço roliço quasi feminino, os seios
erectos,
o enorme ventre impando, lenta a marcha e
ondulante, de urso da Siberia em liberdade. Asseguram
estudiosos que estes monstros de Tosa são
os ultimos restos, preciosos modelos vivos, da raça
prehistorica japoneza... Pode assim ser; no japonezito
de hoje, embora geralmente franzino, miudinho,
delicado, não repugna acreditar que alguma
coisa haja de commum com os luctadores de Tosa:
como que laivos de familia, a vaga semelhança com
um avô... a não querermos mais longe ainda ir
procurar-lhe affinidades, n'um remoto parentesco
[121]
com a deusa O-Fuku-san, que continua a rir-se para
mim, e eu a rir-me para ella...
Relanceêmos a chusma, nos theatros, nas feiras,
nas romarias, nos
bazares? Pode dizer-se, em geral,
que o typo do japonez, da sua femea, e mais accentuadamente
ainda nos obesos, ou nos magros, ou nos
anões, ou nos albinos, ou nos côxos, ou nos
corcundas,
ou nos leprosos, ou nos que têem um lobinho, ou nos
que têem o nariz roido, em todos aquelles em fim em
que um defeito, uma tara, sobresae, é caricatural
supinamente,
comico a ponto de
nos fazer morrer de rir ás gargalhadas!...
Ah, maganões!
vocês, quando nos deram as
imagens dos seus deuses, dos
seus genios do lar: uns pansudos,
como odres; outros
esqueleticos, macrabos; uns
pachorrentamente joviaes,
outros terriveis, despedindo
raios sobre a terra; vocês retrataram-se
a si mesmos, segurando
com uma das mãos
o pincel e com a outra o espelhinho
onde se viam, maganões!...
Especialisando,
[122]
da multidão das ruas, essa figurinha em miniatura
que tão irresistivelmente captiva as
attenções do estrangeiro,
toda ella matizes, perfumes, frescura, gentileza,
a figurinha da
musumé, da
rapariga, podemos
ainda definil-a como uma caricatura, a caricatura
mais travessa, a chimera humana mais deliciosa, em
que jámais olhos de viajante se poisaram!...
Profundar o enygma do feitio moral da tribu é
impossivel. Apenas conhecemos vagamente que a
vida intima desliza serena e pueril, sem ralhos, sem
exasperos, em culturas de arbustos, em
contemplações
dos astros, em banhos quentes, em esmeros
junto do espelho, em brinquedos com as creanças,
em debandadas pelos campos, em libações de
chá,
em jantarinhos de arroz e fatias de nabos em salmoira,
em sonecas tranquillas debaixo do verde mosquiteiro
protector... Mas d'esta mesma gente expludem
tambem por vezes os grandes dramas: crudelissimos
assassinios, por cegueira de ciumes; suicidios
duplos, por desespero de amor,―elle e ella cingidos
n'um derradeiro abraço;―e essa horrivel sede
de sangue, o homem transformado em fera, trucidando
tudo vivo que encontra, estado de loucura
conhecido entre os estrangeiros do Oriente pela
denominação
de
amock, palavra malaia ou
javaneza.
[123]
A tribu parece ter sido feita de
encommenda
para o paiz exotico que lhe foi dado em patrimonio.
Percorrendo-o, estudando-o nos aspectos, melhor se
comprehende a indole estetica do povo, a alma nacional,
com as suas delicadezas, com as suas graciosidades,
com os seus caprichos, com os seus disparates;
manifestações multiplices de um
caracter
particularissimo de origem, mas no qual a influencia
muito especial do meio laborou tambem intensamente.
Comparando os aspectos normaes, comezinhos,
que se desdobram por este mundo fóra, com outros
aspectos excepcionaes, em contraste flagrante com
a disposição commum das coisas, pergunto eu se o
termo―disparate,―se o termo―caricatura,―são
permittidos, julgando a obra da omnipotente
creação?
Haverá, por exemplo, um ilheo disparatado, um
pinheiro caricatural? Se permittidos são, se ha tal
ilheo, se ha tal pinheiro, então não se pode
imaginar
coisa mais disparatada, mais caricatural, do que
este archipelago, já disparatado de nascença,
emergindo
a pique e como por encanto, do seio das aguas
mais profundas do oceano, tenue, rendilhado como
[124]
uma joia em filigrana, convulsionado a todos os momentos
por mysteriosas commoções vulcanicas, zurzido
por tremendos cyclones, invadido por vezes
pelas ondas enormes do Pacifico, caprichosa chimera
geologica emfim, que pode ámanhã desapparecer no
abysmo, sem que por tal se espantem muito os sabios!...
Tal é o imperio do Japão.
A paisagem
extravagante,
inverosimil,
inacreditavel,
das porcellanas
e
charões, hoje
divulgada
em toda
a parte, é com effeito a paizagem real d'este
Japão.
Collinas, penedias, verdes planices, lagos, cascatas,
torrentes espumantes, ribeiras dormentes,
valles profundos, mares interiores salpicados de ilhas
e rochedos, tudo reduzido a miniaturas graciosissimas,
reunido em grupos incongruentes e projectado
em fundos de ceu estupendamente coloridos, eis o
que os olhos abrangem n'um relance.
Demorêmo-nos nos detalhes. As coniferas (algumas
[125]
especies enormes) vestem as encostas, trepam
pelas ribanceiras acima, até irem coroar os ultimos
pincaros das serras. Aqui, um bosque de bambus
gigantes, cuja sombra eterna e cuja paz soturna dão
allucinações áquelle que se aventura
em devassar o
seu mysterio. Alli, outro bosque, de bordos, de
momiji;
em novembro, a sua tenue folhagem digitada
passa do verde claro ao escarlate; o scenario adquire
assim deliciosos exotismos ultra-terrestres, como se
a gente se achasse de repente pisando o solo de
Marte ou de Saturno. A semente do acaso caiu sobre
uma pedra á flôr das aguas; germinou o pinheiro,
a rede das raizes abraça-se ao granito, e
ergue-se desamparado o tronco, torcido, contorcido
pelos annos e pelas intemperies, reflectindo no espelho
glauco a sua eterna cabelleira de verdura; ha
arvores, enobrecidas ou pela vetustez ou pela forma
estranha, celebres como heroes, que são visitadas
por uma multidão de peregrinos. As ameixieiras, as
cerejeiras, abundam; pela primavera, cobrem-se de
florescencias pasmosas, luxuriantes, como nunca se
viu em parte alguma; mas não dão fructo, as
trapaceiras.
Nos jardins, continua a flora exotica, desconhecida.
Trepa, por onde pode, a
asagao; e
abre á alvorada,
por curtas horas, as suas frescas campanulas,
[126]
de qualquer côr, porque as variedades não se
contam, são milhares. Desabrocha a peonia, enorme,
paradoxal. E enfileiram as chrysanthemas, a flôr nacional,
sob tendas que as abrigam do sol, podendo
lembrar cortezãs em exposição nos
bairros de prazer,
pela extravagancia das côres e dos feitios, que
recordam a confusão polychroma dos vestidos e dos
penteados das mulheres; mas que realmente se assemelham
a enormes actineas, monstros dos mares,
multiplicando-se em mil tentaculos contorcidos, brancos,
amarellos, rosados ou sanguineos.
Agora a fauna. Pelo espaço, negrejam bandos
de corvos, os
karasu, escarninhos,
voando e rindo
ás gargalhadas. Enormes borboletas pretas, nunca
vistas, sugam as corollas. De dia, de noite, é incessante
o ruido das cigarras, dos grilos, de outros bichos.
Noites ha, pelo estio, junto ás ribeiras, em que
uma chuva de fogo, de pyrilampos aos myriades,
motiva festas ruidosas. Nos lagos dos jardins vagueam
peixes de oiro, com os olhos a estoirarem,
com as caudas esfarrapadas e rojantes, como se fôssem
longos capotes de mendigos. Junto da casa de
papel toma o sol, cantarola o gallo anão, do tamanho
d'uma pomba; e á porta assoma o gato indigena,
esqueletico, rabugento, sem rabo... porque
todos os gatos no Japão nascem sem rabo; ou
[127]
é o cão que ladra, o
chin, verdadeira caricatura de
cão, com os olhos esbogalhados a saltarem-lhe das
orbitas, sem nariz, a cauda em pluma, parente degenerado
de qualquer monstro de epochas remotas,
hoje extincto.
De sorte
que todo
este Nippon,―arte,
povo, paizagem,
planta
e bicho,―é
uma deliciosa
mascarada. Como
fazer sentir isto a quem o não conhece, depois
de ter escripto o que escrevi, e de concluir que nada
escrevi do que me vae no pensamento? Olhem: fixem
um espelho espherico, ou cylindrico; o aspecto
das formas reflectidas é uma interminavel surpreza
hilariante, de caretas supinas, de linhas torturadas;
pois tal é o aspecto do Japão...
[128]
Todos sabem como a caricatura, pelo desenho
e pela escripta, exerce nas sociedades uma influencia
decisiva. A pintura e o livro humoristicos subjugam
a attenção e imperam no espirito com intensidades
unicas, alheias ás outras formas de arte. Porque?
Fôra difficil explical-o aqui. É certo que a
ironia, na obra creada, faz mais do que crear: estigmatiza
um defeito, aponta um ridiculo, sublinha
uma virtude. As coisas triviaes, taes como as conhecemos,
passam desapercebidas ou esquecem brevemente;
o exaggero, pelo contrario, fica, grava-se a
estylete na memoria. Viu-se hoje um bom retrato
d'um sujeito, de Balzac, de Bonaparte, se quizermos;
amanhã nada restará no pensamento; mas, se foi
relanceada a caricatura, fica a summula cá dentro,
uma reminiscencia pertinaz do traço phisionomico
(e mais do que isso) do individuo. Seja como fôr e
por que fôr, é hoje indiscutivel que a caricatura
representa
um meio altamente poderoso de impressionar
os homens
Todos sabem como a caricatura, pelo desenho
e pela escripta, exerce nas sociedades uma influencia
decisiva. A pintura e o livro humoristicos subjugam
a attenção e imperam no espirito com intensidades
unicas, alheias ás outras formas de arte. Porque?
Fôra difficil explical-o aqui. É certo que a
ironia, na obra creada, faz mais do que crear: estigmatiza
um defeito, aponta um ridiculo, sublinha
uma virtude. As coisas triviaes, taes como as conhecemos,
passam desapercebidas ou esquecem brevemente;
o exaggero, pelo contrario, fica, grava-se a
estylete na memoria. Viu-se hoje um bom retrato
d'um sujeito, de Balzac, de Bonaparte, se quizermos;
amanhã nada restará no pensamento; mas, se foi
relanceada a caricatura, fica a summula cá dentro,
uma reminiscencia pertinaz do traço phisionomico
(e mais do que isso) do individuo. Seja como fôr e
por que fôr, é hoje indiscutivel que a caricatura
representa
um meio altamente poderoso de impressionar
os homens; estude-se-lhe os effeitos, por
exemplo, na polemica dos principios, onde ella vale
pela mais possante picareta demolidora das
instituições,
[129]
dos thronos e das crenças,
rasgando a estrada
nova por onde investem os partidos avançados.
Estando isto assente, imaginem agora um paquete,
despejando em
qualquer caes
japonez um
bando de loiros estrangeiros. Elles todos, os lorpas,
têem nos rostos essa feição anodina das
cabeças, que
é uma das formas de belleza mais frequentes nas
raças europeas; e a julgar pelo olho azul, de porcellana,
sem
expressão,
sem alma,
póde admittir-se
que lá
dentro da
casca não
ha senão
pevides em
guisa de
miolos.
Mãos rudes, vermelhas, cabelludas, pés
enormes;―estigmas
de um temperamento avesso a coisas de
arte e a todas as delicadezas do sentir.―Emparelham
pelas manifestações do gosto: vestidos todos
de alvadio, côco no cocuruto da cabeça, sapatos
amarellos e ramosinho na carcela. Como entidades
prestantes, embora talvez não prestem para nada,
[130]
uns são sabios, outros são navegadores, outros
são
diplomatas, outros possuem manhas maravilhosas
de balcão; mas―coitados!―em todos se acoberta
o microbio desvastador, oriundo dos grandes centros,
nascidos da podridão da descrença, do egoismo,
da inveja, da cubiça e da misanthropia; e na
face e nos gestos alguma coisa já assoma do mal de
que enfermaram. Alguns dão o braço a outros
sujeitos
sem bigode, com grandes mãos
vermelhas
igualmente, e enormes pés calçando sapatos
amarellos;
usam bengala, collarinho alto de bretanha,
gravata, tunicas em forma de campanula, uma alcofa
á cabeça, cheia de hervas, de aves e de
fitas:―são
as damas―.
Os pobres forasteiros vêem-se assim de improviso
e de surpreza no meio exotico entre todos, requintadamente
artistico, caricatural e sorridente,
que é todo este Japão. Dominados pelos aspectos,
allucinados pela iniciação imposta, riem tambem,
e
julgam tambem sentir a graciosidade indigena e a
gentileza dos scenarios. Eil-os que cruzam as estradas
e os trilhos das montanhas, seguem em caravanas
numerosas a visitar os logares celebres, encorporam-se
nas romarias, entram nos templos e entram
nos theatros, bebem chá japonez, e até,
burlescamente
ajoelhados, engolem o arroz cosido e
[131]
deliciam-se no peixe cru que as creadinhas vão servindo.
Oh, a paisagem japoneza! Como ella
é encantadora
e fresca, estranha, paradisiaca!... e como aqui
o pensamento se dilata, n'um longo divagar sereno e
amoroso, tão distincto das
preocupações sombrias
que alem, na Europa, azedam a existencia!... Mas
não sei quê da alma
asiatica, subtilmente
motejador e sarcastico,
subtilmente intolerante,
paira aqui, emana
da coloração e da
forma das coisas, do
grito dos animaes, do
gesto e voz da gente;
não se define, mas
existe, hostilisando em
tudo o pobre intruso.
É como que uma
exhortação continua e impertinente do Buddha e
dos
deuses tutelares, murmurada a todos os instantes:―«Vae-te,
volta á terra dos loiros; contempla os teus
deuses, visita os teus templos, recrea-te nos teus salões,
bebe o teu whisky e soda; mas deixa em paz
este solo, que não é teu, que te detesta; e onde,
[132]
para assimilares a harmonia da creação e o
sentimento
nacional, precisas de uma fluidez de espirito
e de uma serenidade de consciencia, que te faltam!...»―
Cedo ou tarde,
ámanhã, em dois mezes, em dois
annos, o homem loiro enfastia-se, compenetra-se da
fatalidade dos destinos, que crearam o Japão para
os japonezes. Uns desertam, e fazem n'isso muito
bem; outros ficam. Nos que ficam, o desgosto pela
terra do exilio enraiza, alastra como uma lepra corrosiva.
O desgosto, nas mulheres, crystallisa brevemente
em odio, um odio desesperado,
sem treguas;
explicavel pela maior vibratilidade
dos nervos
no sexo, pela vida ociosa,
e tambem, e principalmente,
pelo penoso
confronto com a mulher
indigena, cujo fresco perfil
e requintado tacto femenil
são uma provocação
terrivel aos seus meritos.
A mascarada eterna
japoneza, a despreocupação,
[133]
o riso chronico, os traços
caricaturaes de
todos e de tudo, os dichotes zombeteiros dos gaiatos,―«ijin,
ijin!» estrangeiro, estrangeiro!―tudo irrita,
bellisca redunda por fim n'um
supplicio insuportavel,
que nêm respeita o lar, entrando mesmo pelas janellas
dentro como um exame de mosquitos. Triste lar,
tantas vezes!... Junto da familia do sr. Fulano, seja
qual for a sua nacionalidade e situação, contae
como
provavel um hospede permanente,―o aborrecimento.―A
embriaguez, a dissipação, a quebra fraudulenta,
o roubo, o suicidio, o adulterio, o assassinio,
todos os desmandos de uma sociedade incongruente,
succedem-se nas pequenas colonias europeas do Japão
com uma triste frequencia, eloquentissima!...
1900.
DOIS CEMITERIOS JAPONEZES
A
V. Almeida d'Eça
Pelos fins de dezembro, em vesperas de Natal e
de Anno-Bom, encontrei-me um bello dia, sem bem
saber porque, vagabundeando no cemiterio dos europeus
em Kobe, o velho. O velho, porque ha um
cemiterio novo que se estreou ha pouco tempo, e
onde até agora se reuniu coisa de meia duzia de inquilinos;
está este situado longe da cidade, n'um
declive de collina, amplo, com bellos horisontes em
redor. O velho, de acanhadas dimensões, enchera-se
de moradores em uns trinta annos de exercicio, e
foi por tal razão posto de parte.
O velho cemiterio fica em plena cidade, para as
[135]
bandas de oeste e cerca dos edificios da alfandega,
quando começa um bairro sujo, de fabricas, de armazens,
que povôa uma misera ralé de carregadores
e de mendigos. Encerrado entre as altas paredes
de tijolo vermelho de enormes depositos de
mercadorias, sem outro horisonte, com pouco ar,
com pouca luz, humido e ermo, é bem triste este
canto; até, se não me illudo, os vetustos
pinheiros
que o arborisam, testemunham pelo verde escuro e
estorcimentos convulsos das ramadas, alguma coisa
da desolação que aqui impera sobre tudo.
[136]
Hoje, que é um domingo, acolá, a curtos passos,
sobre a relva do parque publico, a chusma dos caixeiros―inglezes,
americanos, allemães,―a chusma
cosmopolita, em mangas de camisa, sem chapeu,
berra, corre, esbraceja, espernea, joga o
tennis,
o
fout-ball. Mais alem, pelas ruas
de trafego indigena,
presumo magna enchente, bazares em festa,
povo em barda, entre japonezes e estrangeiros.
D'estes ultimos, são especialmente as damas que
mais se alvoroçam com a proximidade do
christmas
day, e que afanosamente percorrem a cidade,
em carruagens, em
jinrikshas, a
pé―a pés... e
que pés!...―enfiando pelas lojas, mercadejando
bonecas, quinquilherias, guloseimas, as mil e mil
frivolidades que vão constituir os fructos d'essas
estupendas arvores de Natal, préstes a surgirem
nos salões. Pobre natal! N'estes paizes exoticos,
de ganho e de aventura, as festas particulares da
familia europea perdem em regra a sua feição de
severidade tocante e amorosa, para se transformarem
n'um simples
sport, irritante,
massador,―fallo
por mim,―mero pretexto para ostentações,
dissipações
[137]
e mexericos, a caterva de todos os
symptomas
da morbidez do exilio. Para o povo japonez, o
impulso é bem outro: o dia de anno novo é a festa
principal de cada anno, a unica para muitos; religiosa,
emocionando a alma indigena, levando a
turba aos templos a dar graças aos deuses pelas
prosperidades realizadas, e a implorar novas fortunas:
intima, de familia, preceituando o doce dever
das saudações aos parentes e aos amigos; ninguem
trabalha, veste-se fato novo, enfeitam-se os altares
e a casa toda; por isto, com louvavel antecipação
se compram nos bazares os pequeninos nadas que
vão ornar o lar, e os bolos de arroz, e o córte
de
fazenda, e a flôr para o cabello, coisas de que
não
prescinde a mais modesta familia de lavrador ou
de operario, n'aquelle dia abençoado.
No sitio onde me encontro a quietação
é plena,
em contraste com o que palpita lá por fóra.
É positivo
que os mortos não festejam o Natal... nem
eu tam pouco, poderia accrescentar, desde mui largos
annos de bohemia, sem lar e sem familia. Pesa
aqui, no cemiterio, mais duramente por certo do
que em outro logar, a aspereza de um triste dia de
[138]
inverno, sem sol, sombrio e humido; paira no ar
uma poeira levissima de neve, que mal se vê, mas
fere o rosto como picadas de alfinetes; de quando
em quando, uma rajada fresca sacode a rama dos
pinheiros, corta o silencio então um vago murmurio
de folhagem,―da folhagem sem duvida, mas que
acaso poderia parecer o palrear dolente dos mortos
uns com os outros, de cova para cova...―
Vou vagueando, com passos e em
espirito. Estou
só, ou quasi só; ha pouco dei fé, por
entre as sepulturas,
de uma velha japoneza, guarda do cemiterio,
que ia apanhando do chão alguns cavacos.
Vou lendo os epitaphios,
estudando a botanica tumular
nos arbustos plantados
e nos musgos espontaneos,
lançando um
olhar condoïdo ás corôas
murchas, que aqui e ali
se encostam ao marmore
das lapidas, pobres corôas
queimadas pelo sol, rasgadas
pelo vento, roïdas
pelos vermes, polluidas
pelo pó, e em pó se desfazendo...
N'este gremio
[139]
de mortos abundam os padres e os missionarios de
todas as seitas e de todos os paizes; varios pilotos
dos mares do Japão, capitães, tripulantes de
barcos;
gente de negocio; e a mais uns pobres nomes
obscuros de mulheres e de creanças, sem titulos
nem historia. Aqui deparo agora com um nome de
portuguez, Felisberto da Cunha, da Figueira, que
morreu com quarenta annos, e a esposa (uma japoneza)
lhe mandou erigir o mausuleo.
De trilha em trilha e de tumulo em tumulo, eis-me
em frente do monumento tumular dos marinheiros
francezes assassinados em Sakai. Lugubre
historia; e aqui, n'este Japão da grande hospitalidade
e da notoria cortezia, impressiona por estranha
e quasi inverosimil. Pois foi bem verdadeira.
Ha mais de trinta annos, por um dia de março,
uma lancha a vapor da corveta
Dupleix aguardava
na praia de Sakai a volta de alguns officiaes, que
haviam descido á terra e seguido para Osaka; passa
casualmente um troço de tropas do Mikado,
samurais
da provincia de Tosa; e sem provocação, sem
um leve pretexto, fazem fogo sobre os marinheiros,
matam onze. São os onze tumulos d'estes martyres,
[140]
d'estes miseros camaradas (porque eu sou como
elles marinheiro), que agora contemplo.
Sobre tres degraus de pedra alça-se uma alta
cruz; e aos lados, cinco por banda, e o aspirante á
frente, como se estivessem na tolda da corveta em
formatura, estão os onze corpos, estão as onze
lages,
aquelles desfeitos em pó seguramente, estas ennegrecidas
pelo tempo e pela lepra dos lichens resequidos...
pois não se esqueça que ha mais de
trinta invernos vae durando a triste formatura. Sobre
a cruz leio o seguinte:―«
À la
memoire des
onze marins de Dupleix, massacrés à Sakai le 8
mars 1868. Requiescant in
pace.»―
Massacrés!
massacrados! Como isto é destonante n'este solo,
no
Dai-Nippon das paizagens amorosas
e do sorriso
perenne nos rostos dos que passam!...
Vou lendo seguidamente as inscripções dos
tumulos:―«
Ci
git Guillon, Charles Pierre, aspirant
de 1ère classe, agé de 22
ans. Priez pour
lui.―Ci
git Boulard, Vincent, matelot de 3ème
classe,
agé
de 21 ans. Priez pour lui.―Ci git Nonail, Jean
Mathurin, matelot de 3eme classe, agé
de 25 ans.
Priez pour lui.―Ci git Condette, François
Désire,
matelot de 3ème classe,
agé de 24 ans. Priez
pour
lui.―Ci git Lemeur, Gabriel Jacques Marie, quart.r
m.tre de manoeuv.re de 1ere
classe, agé
de 29 ans.
[141]
Priez pour lui.―Ci git Savie, Jacques, matelot de
3eme
classe, agé 23 ans. Priez pour lui.―Ci git
Humet, Arséne Florimont, matelot
de 3eme classe,
agé de 24 ans. Priez pour lui.―Ci git Langenais,
Auguste Louis, matelot de 3eme classe,
agé de 22
ans. Priez pour lui.―Ci git Bobes, Lazare Marie,
matelot de 3eme classe, agé de 22
ans. Priez
pour
lui.―Ci git Modest, Pierre Marie, matelot de
2e classe, agé de 26 ans. Priez pour
lui.―Ci git
Grunenberger, Victor, ouvrier chaufeur de 3eme
classe, agé de 24 ans. Priez pour
lui.»―A ladainha
é longa, como vêem; e bem commovedora, quando
se attenta nas idades. Onze rapazes; quadra de illusões,
de amores, de esperanças. O mais velho do
grupo teria hoje os seus sessenta e dois annos, se
fosse vivo; de sorte que todos estes pobres moços
poderiam muito bem gozar ainda agora da doce
alegria de viver, se o destino lhes fosse menos duro:
o aspirante vestiria provavelmente a sua farda
de capitão de mar e guerra, chapada de veneras; e
os marujos estariam talvez com a sua baixa, na aldeia
patria, em descanço, a vêrem o mar por um
oculo, rodeados de filhos e de netos... Ah! barbara
cafila de soldados japonezes!...
A gente póde recompôr em pensamento a scena
da praia de Sakai. Uns bellos loiros, rosados como
[142]
pecegos, robustos como jovens Hercules. Riem,
brincam, cantam, pisando a fôfa areia. É um bando
de irmãos, todos da mesma idade, tratando-se por
tu, passando de mão em mão a bolsa de tabaco, e
até de bocca para bocca o cachimbo de gesso
fumegante.―«Olha,
Jacques! Repara, Gabriel!»―E
batem palmadas nas costas uns dos outros, e
brilham-lhes as pupillas gaiatas e sagazes, apontando,
em grandes gestos rudes, para os recortes estranhos
da paisagem, para os contorcidos pinheiros que rendilham
o horisonte, para as ameixeeiras em pasmosas
florescencias, para as casinhas de madeira e de
papel, para as
musumés em
sedas, seductoras...
exoticos, captivantes aspectos de um paiz maravilhoso,
que abre agora as suas portas á curiosidade
do mundo occidental, deslumbrando a imaginação
juvenil d'estes pobres francezes, habituados á monotonia
do azul das longas viagens fadigosas. Consta
que os garotitos de Sakai iam affluindo á praia, e
quedavam-se em volta dos marujos, bocca aberta,
espantados dos seus modos, do uniforme, das suas
feições de raça branca; e que estes
com as creanças
partilharam algum pão das suas provisões. De
repente, surde de
algures um bando petulante, irrequieto,
multicôr pelas bandeiras desfraldadas e pelas
sedas das cabaias, e reluzente pelas armas que
[143]
empunha; são
samurais do
imperio; o
quadro é
deveras
interessante; os marujitos, surpresos e attentos,
são todos olhos... olhos que em breve se
cerram, quando os
corpos caem inertes
sobre a areia,
após uma descarga
de metralha... Ah!
barbara cafila de
soldados japonezes!...
No meu espirito
vagabundo, depois
da ferocissima scena
de matança, é
agora a sorte d'estes
samurais que
relembro, e me
commove. Commovem-me assassinos? Sim; os annos
fôram correndo sobre os factos e esfriaram os
rancores. Póde hoje memorar-se, sem asco, com
sympathia, mesmo nos seus transes sanguinarios,
a breve lucta de resistencia que o velho Nippon feudal,
[144]
embevecido na sua lenda prestigiosa, manteve
contra aquelles que vinham despertal-o do seu sonho;
e para o bando de Sakai, soldados todos, pertencendo
á nobre casta dos guerreiros, seria realmente
excepção estranha se não fulgurassem
no
seu animo, remindo-os do opprobrio, as virtudes da
casta―a extrema dedicação aos chefes, o
sacrificio
de si proprios pela patria, e o amor por essa patria
guindado á intensidade de paixão, mais alto
ainda,
aos paroxismos do delirio.―
A historia plenamente nos explica o odio que a
massa dos guerreiros ia nutrindo então pelos estranhos.
O shogun, generalissimo do imperador, com
residencia em Yedo, assignára por conta propria tratados
de amisade e de commercio com a America
e com a Europa, e os estrangeiros, em Yokohama,
pisavam já afoitamente o solo japonez. O shogun
violava por este modo o dogma sagrado do imperio,
que era o isolamento absoluto, a exclusão do
homem do Occidente, o desdenhoso desinteresse
pelo mundo, o goso eterno e sem partilha, deliciosamente
egoista, do paiz maravilhoso que os deuses
haviam legado ao povo eleito. Quando a noticia do
insolito desacato chegou até Kioto, a cidade santa,
onde vivia a côrte, em torno do Soberano, a mais
accesa colera explodiu, e todas as energias se ligaram
[145]
para humilhar o shogun e varrer para sempre
da patria os teimosos intrusos.―«Morte aos
barbaros!»―foi
o grito do soberano, da côrte, dos senhores
feudaes.―«Morte aos barbaros!»―foi o
credo que incutiram ás legiões á
pressa reunidas,
que corriam a expulsar, a massacrar, a exterminar,
os estrangeiros. O shogun, supremo em mando até
então, estava perdido, debaixo de seus pés tremia
a
terra, rugia o vulcão politico que em breve ia esmagal-o;
mas, pela fatalidade dos tempos, as energias
e as cubiças dos intrusos haviam de vencer, de
impôr
os seus designios; e a rhetorica dos diplomatas,
prudentemente sublinhada pela metralha dos canhões,
tinha de ser ouvida. Os dias iam passando,
e o solemne decreto de exterminio não podia ser
cumprido; apenas, de quando em quando, um ou
outro
samurai lograva decepar alguma
cabeça loira
de inglez, merecendo dos seus chefes fartos applausos
pelo feito. Cedo, bem cedo, os vultos dirigentes
comprehenderam que a lucta era impossivel, que o
mysterio nipponico findára; e o Japão foi
descerrando
pouco a pouco as suas portas, entrando em
negociacões com os diplomatas estrangeiros, não
já
pela iniciativa incompetente do shogun, mas pela
propria iniciativa do soberano. O shogun, por inutil,
foi deposto; como se não conformasse com a vontade
[146]
imperial, travou-se dura lucta, foi batido e retirou
para Yedo. Estes acontecimentos succediam-se
em tropel; a grande maioria da nação
não podia
aprecial-os, e menos presumir das vistas do soberano;
a grande maioria da nação ia odiando o shogun e
repetindo o seu credo―«Morte aos barbaros!»―sem
se aperceber que a situação mudára,
que a
côrte já tratava com as potencias, e que a
aggressão
aos europeus, havia pouco meritoria, era agora
condemnada e prejudicava fortemente a marcha
da politica imperial.
Foi assim que os soldados de Sakai, massacrando
os marinheiros francezes que encontravam, julgavam
ter cumprido um dever grato ao soberano e util para
a patria. Illudiam-se. A resposta ás energicas
reclamações
das auctoridades francezas foi a condemnação
á morte de todos os culpados, que eram vinte.
Como guerreiros, não bandidos, foi-lhes concedido
como graça o
hara-kiri,
isto é, a morte honrosa,
devendo cada qual rasgar a propria carne a punhaladas.
Foi escolhido para a cerimonia Myokokuji, um
[147]
templo de Sakai, e em 16 de março teve logar o
supplicio. Passou-se então um espectaculo tremendo,
não de tristeza, antes
uma festa de sangue, de
morte, que excede a comprehensão dos homens europeus.
Enchia o recinto
do templo a
multidão dos officiaes
do imperio, das
auctoridades francezas,
das testemunhas,
dos amigos,
dos bonzos, dos curiosos,
vistosa em
côres, em bellos uniformes,
em garbo e
fidalguia; e, um por
um, por seu turno,
veio apparecendo cada
condemnado, todo vestido de lucto, de alvas
vestes, ajoelhou no solo, curvou-se em reverencias,
saudou a multidão, recebeu solemnemente o curto
sabre de etiqueta, cravou-o até aos copos nas entranhas,
rasgou as carnes com mão firme, tingiram-se
as vestes de escarlate, jorrou o sangue sob uma urna
proxima, a fronte crispou-se pela dôr, a côr fugiu
da tez, o corpo pendeu inerte, para a frente...
[148]
Minamura Inokichi Minamoto no Motoaki, de
vinte e cinco annos, escreveu no seu ultimo momento
de vida uma curta poesia, que era assim:―«Condemnam
me; não discuto a minha morte;
servirá ella de pretexto á justiça do
futuro, que decidirá
se, para honra da patria, devem ser expulsos
os barbaros.»―Nishimura Saheji Minamoto no
Ujiatsu, de vinte e quatro annos, escreveu o
seguinte:―«Não
me pesa o morrer, a vida passa
como o orvalho desapparece com o vento; uma
coisa me afflige:―o futuro da patria»―Ikegami
Iasakichi Fujiwara no Mitsunori, de trinta e oito
annos, escreveu o seguinte:―«É preciso alumiar
o espirito da nação; para isto abandono o corpo
ao
meu paiz;»―este, quando as entranhas lhe caíram,
fez menção de atiral-as á cara dos
francezes.
Oishi Jinkichi Fujiwara no Yoshinobu, de trinta e
oito annos, escreveu o seguinte:―«Façamos hoje
o sacrificio da vida, com o maior respeito, pois somos
todos filhos d'este paiz dos deuses.»―Sugimoto
Shirogora Minamoto no Yoshinaga, de trinta e
quatro annos, escreveu o seguinte:―«Sinto o
coração
feliz pela agonia que soffro, ao dar a vida
pela patria;» este, por um gesto respeitoso, offereceu
as entranhas aos francezes. Katsugase Saburoku
Taira no Ioshihaya, de vinte e oito annos, escreveu
[149]
o seguinte:―«Ninguem póde abalar no animo d'um
samurai o sentimento que tributa ao
seu senhor.»―Iamamoto
Tetsusuka Minamoto no Toshiwo, de
vinte e oito annos, escreveu o seguinte:―«Muitos
condemnam a alma do
samurai;
pensarão de outro
modo aquelles que bem a conhecem.»―Morishita
Mokichi Fujiwara no Shigemasa, de trinta e nove
annos, escreveu o seguinte:―«Abramos o caminho
aos ignorantes, a fim de alumiar o mundo.»―Kitashiro
Kensuke Minamoto no Katayoshi, de trinta
e seis annos, escreveu o seguinte:―«Para legar o
seu nome á posteridade ha um meio: o sacrificio
da vida.»―Inada Kwannoyo Fujiwara no Norashige,
de vinte e oito annos, escreveu o seguinte:―«Os
japonezes não temem de perder a vida; tambem
a cerejeira, rainha das arvores pelas suas flôres,
perde um dia essas flôres.»―Yanagase Tsuneshichi
Fujiwara no Yoshiyoshi, de vinte e seis annos,
escreveu o seguinte:―«Sacrifiquemos aqui as
nossas vidas, e mostremos aos estrangeiros o que
vale a nobre coragem japoneza.»―Contando bem,
são onze já. Parou aqui a scena, porque o
commandante
do
Dupleix, notando já
onze mortos para
expiação dos onze crimes, deu-se por satisfeito,
pediu
que cessasse aquelle espectaculo assombroso.
Dos
samurais perdoados, um
suicidou-se em breve
[150]
trecho, dando de barato a graça pela honra de
morrer com os seus; os outros dispersaram-se;
vive um ainda hoje, presumo que em Nagoya, um
interessante velhinho, que reconta de bom grado as
peripecias d'aquelle horrivel drama.
Os onze
samurais foram
alli mesmo enterrados,
no cemiterio, junto ao templo. Ainda ha pouco lá
estive. O templo é um placido retiro de sombra e
de silencio, tam velho, que ha alguns mezes um rijo
vendaval quasi o desfez em pó.
Os peregrinos visitam primeiro um jardim interior,
onde uma arvore sagrada, um enorme sagueiro,
occupa o espaço todo, lançando em volta as
suas palmas verdes. A lenda dá-lhe mui longos annos
de existencia, e reza que ha quasi quatro seculos
o shogun Nobunaga tanto se agradou d'aquella
arvore, que mandou arrancal-a e transportar para
um dos seus jardins; mas tanto se mirrava o sagueiro,
e tanto se lamentava noite e dia, que não
houve remedio senão trazel-o de novo ao velho
poiso.
Do jardim, passa-se ao pequeno cemiterio. As
sepulturas, apresentando a fórma de cubos de granito,
aconchegam-se, agrupam-se n'uma intimidade
commovente; por entre as pedras, tufam e florescem
as azaleas e verdejam os musgos, e mãos piedosas
[151]
vêem depôr ramos de flôres e de
verdura.
Entre estas sepulturas contam-se as dos onze
samurais.
Mais adeante, as urnas de charão que serviram
ao supplicio, alinham-se n'um altar, e ainda
se distinguem manchas negras, do sangue derramado.
Como eu dizia ha pouco, os annos passaram sobre
os factos e esfriaram os rancores. N'estes dois
cemiterios, de Kobe e de Sakai, nem já existe sequer
o pó dos ossos, existem só legendas. Em Kobe,
as onze sepulturas evocam no espirito esse periodo
de frenesi da Europa, de curiosidade, de cubiça,
em face da morna inercia d'este canto do
mundo; e as esquadras que o devassam, que o visam
com os canhões; e os diplomatas que intrigam,
que teimam, conduzindo o finalmente,
á força,
ao convivio das nações; e, como peripecias
infimas,
quasi olvidadas e não pesando na marcha progressiva
dos negocios, o sacrificio inglorio de alguns humildes
obreiros d'essa empreza... Em Sakai, as onze
sepulturas rememoram a desesperada resistencia
d'uma tribu feliz, contra aquelles que vinham arrancal-a
[152]
aos seus sonhos amorosos, rasgar-lhe a lenda
e a crença, e bradar-lhe que ser-se assim ditoso,
já
não é permittido. Pobres mortos!
abraço com um
mesmo olhar d'alma, enternecido, as vinte e duas
campas...
1900.
O ESPELHO DE MATSUYAMA
Ás
Filhas de Carlos
Campos
Viveu ha muito tempo no Japão um feliz casal
de gente rustica, modelo de virtudes conjugaes; eram
elles, os dois, e uma filhinha, o seu encanto. O povo
varreu já da memoria os nomes d'essa gente; não
admira, quando se pense que tantos seculos passaram.
Indica-se apenas o logar,
Matsuyama,
que quer
dizer
Montanha dos pinheiros, na
provincia de Echigo.
Esta ligeira indicação basta para que imaginemos
o scenario: serranias, pinheiraes, succedendo-se
a serranias, pinheiraes; a terra, a rocha, fôfas de
musgos, de fetos, de herva brava; covôes, precipicios,
cachoeiras, por onde a agua golfa, espuma e
[154]
rumoreja; pios de corvos e hymnos de cigarras;
raros caminhos serpeando, calcados pelas sandalias
dos que passam; e aqui, e alem, alguma humilde
cabana de aldeões, de barro e colmo, aonde a vida
intima, após as horas de labuta, desliza em longos
repousos sobre a esteira, em simplicidades primitivas,
em face da grande paz da scena agreste, e
do azul sem fim dos largos horisontes. N'uma d'essas
cabanas vivia o casal
a que alludi.
Ora, aconteceu uma
vez que negocios muito
graves chamaram o
marido á faustuosa cidade,
á capital de todo
o imperio. Figure-se o
alvoroço e o reboliço
na choupana. Em coisas
de viagem, a experiencia
da esposa resumia-se
ao trilho que
seguíra raras vezes,
[155]
em duas horas de caminho, do seu lar ao logarejo
mais visinho. Alanceavam-n'a agora varios sustos,
acudiam-lhe ao espirito não sei que perigos e trabalhos,
maleficios dos genios das florestas, mil revezes
a que se ia expôr o companheiro... Por outro
lado, envaidava-se com a idéa de ser elle o primeiro
do logar que ia vêr por seus olhos a mansão da
côrte e do soberano, e contemplar as grandes maravilhas
que lá por certo havia. Ella ficava; ella tinha
a sua pequerrucha e o cuidado do lar; e, embora
mordida de saudades, devia resignar-se aos deveres
do seu mister, e aos anceios d'aquella dura ausencia.
E que terna que foi a despedida!... Beijos e
abraços não se deram, porque os japonezes
não dão
nem beijos nem abraços; lagrimas não correram,
porque os japonezes nunca choram; mas fôram tantas
as mesuras e tantos os sorrisos, e tam longa a
ultima palestra, elle promettendo voltar breve, ella
prodigalisando mil conselhos, que era mesmo um
regalo contemplar casal tam meigo e tam feliz!...
E lá foi o marido.
Passaram-se semanas e semanas; para encurtar
razões, annuncia-se agora o regresso do Passaram-se semanas
e semanas; para encurtar
razões, annuncia-se agora o regresso do sujeito.
É
[156]vêl-a
então, a cirandeira, ora
varrendo, ora
lavando
ora arrumando, dispondo a choça em festa para a
ditosa hora da chegada. É a pequenita certamente
que mais cuidados lhe merece: o
kimonosinho de
crepe de seda preciosa, a faixa da cintura, a flôr
para o cabello, tudo novo, tudo fresco, tudo lindo,
se põe de parte, se examina; e os dedos finos da
maman, em curvas adoraveis, saltam, vôam, aqui
alizam pregas, alli
compõem laços,
com habilidades
unicas, prodigiosas;
convem saber
que não ha mãos
mais bonitas e mais
destras do que as
mãos das japonezas,
nem mães mais
carinhosas do que
estas mamans do
Dai-Nippon. Ella
propria, a maman,
tambem cuida de
si, não se furta aos
adornos, não por
arte talvez, por instincto
[157]
do sexo; e eil-a enfiando os pés nús em
grandes
soccos novos, de charão negro e luzente, e estreando
um
kimono catita, azul e branco. E
lá vão
ellas, as duas, certo dia, trilhos fóra, tic-tac, tic-tac,
ao encontro do homem.
Ai, que jubilos, ao toparem com elle são e salvo,
todo chibante, bamboleando-se no seu passo vagaroso,
para mais prolongar tam doce transe!...―«Bons
dias, senhor marido! Bons dias, senhor meu
pae!»―e os corpos agaxam-se em mesuras, e as
cabecitas vão quasi tocar o chão do campo. E como
a pequerrucha bate as palmas, e se lhe accendem os
olhitos, quando elle logo alli lhe quer vasar no regaço
a caixa de bonecos que comprára, carretas de
madeira, raposas de pellucia, uma viola, minusculos
apparelhos de cosinha e muitas outras maravilhas!...
Elle promette entreter dias inteiros, só com a
narração
do que seus olhos viram: theatros regorgitando
de
musumés, vestidas como
deusas; principes em
comitivas resplendentes, passeando em liteiras de
charão, e o povo prostrado a adoral-os pelas ruas;
serenatas nos rios, barcos vogando a transbordarem
[158]
de mulheres e enfeitados com balões, gemem as
cordas das violas e estalejam nos ares foguetes de
mil côres; templos gigantes e enormes sinos badalando;
palacios cheios de luxo; jardins cheios de flôres;
e por toda a parte a immensa multidão, de velhos,
de rapazes, de meninos, feliz, risonha, pachorrenta;
e a immensa industria dos bazares, charões,
oiros, sedas, porcellanas, adornos sem conta nem
medida, tudo digno de ir adornar mansões de fadas,
no mundo das chimeras!...
O marido passou depois ás mãositas da esposa,
tremulas de emoção, um bello cofre de madeira
branca, cuidadosamente fechado, e disse-lhe
isto:―«Não
me esqueci de ti, como estás vendo; trago-te
uma coisa muito linda, que tu de certo não conheces,
um espelho, um
kagami, como lhe
chamam
na cidade.»―Ella então, abrindo o cofre, observou
a offerta; era um grande disco de metal, com o seu
cabo, tendo uma face prateada, com relevos de folhagem
de bambu e vôos de cegonhas, e a outra face
limpida e brilhante como um puro crystal.
É bom saber-se que, sendo a industria do vidro
recentissima no Japão, só ha mui pouco tempo aqui
se conheceram os espelhinhos reles da industria occidental;
nos velhos tempos, os espelhos do paiz
eram metalicos, de preciosa liga e artistico trabalho,
[159]
objectos caros excluidos, do lar dos aldeões; de sorte
que é presumivel, dada a simplicidade de alma da
pobre gente rustica de então, que as bellas ignorassem
que eram bellas, por nem no espelho da agua
das ribeiras se mirarem. Mas vamos nós á
historia,
excluindo divagações que pouco interessam.
Dizia o marido á companheira:―«Olha bem
para a face brilhante d'este espelho e conta-me o
que vês.»―Ella era toda olhos, toda surpresas,
toda
extasis; e respondeu por fim que via o rosto de uma
mulher muito gentil, com um oval de enfeitiçar,
comuns olhinhos negros
muito doces, com uma
rubra boquinha de cubiça. Disse mais que essa mulher
não cessava de fital-a; e se ria, a mulher ria;
e se fallava, os labios da mulher acompanhavam-n'a
no gesto; e, para cumulo de estranheza, vestia um
kimono azul e branco, igual ao seu,
que ella trazia...
O marido sorria-se, já com uns ares de doutor, que
da viagem lhe provinham; e foi benevolamente convencendo-a
de que essa mulher era ella mesma, e
que o espelho, por um mysterio que elle não sabia
explicar, apenas reproduzia a sua imagem, os seus
encantos proprios; lá na cidade, muitas raparigas
possuiam espelhos como aquelle, e n'elles se viam
e reviam, ora compondo as voltas do cabello, ora
pintando os labios de escarlate, ora por mero passatempo
[160]
de se acharem bonitas, as garridas. A esposa
ficou então louquinha com o presente; e...
diga-se toda a verdade: cheia de orgulho de si mesma,
por se vêr tam catita, tam fresca, apetecivel.
Fôram semanas e semanas votadas a esse enlevo,
a mirar-se, a namorar-se―quem não lhe relevará
essa vaidade?―até que finalmente convenceu-se de
que um espelho era joia preciosa de mais para servir
todos os dias, alli na choça núa, na
solidão dos
bosques; assim se explica o caso de ter elle ido parar
dentro de uma gaveta, esquecido de mistura com
as velhas reliquias da familia.
E vão passando os dias, os mezes e os annos.
A felicidade bafeja constantemente aquelle lar. A
grande alegria do casal é a filha, que cresce em mimos,
tornando-se a verdadeira imagem da maman,
e como ella submissa, e como ella affectuosa, e como
ella activa na labuta. Vaidades de mulher, que
tanto prejudicam no futuro as raparigas, não as tinha;
e deve aqui prestar-se inteiro applauso á previdencia
da maman, que em lembrança dos seus
caprichos de outro tempo, passageiros, nunca á
[161]
mocinha confiou o espelho, velha joia sem
uso,
esquecida na gaveta.
E vão passando os dias, os mezes e os annos.
Muitos annos. A mãe, uma velhinha com a alvura
da neve por côr dos seus cabellos, jaz prostrada na
cama, sem forças, moribunda; a filha, junto d'ella,
multiplica-se em cuidados, anima a triste enferma.
A custo, diz a velha:―«Sinto que morro, vae-me
fugindo a luz dos olhos. Vou deixar-te, e o nosso
velho amigo. É isto que me
pesa; cheguei a persuadir-me
de que este nosso bem
não tinha fim. Por ti, tam só
que ficas, receio muito, filha:
o mundo é um grande mar,
cheio de escolhos e de perigos...»―E
deteve-se e pôz-se
a meditar por muito tempo,
passando pela fronte os
dedos descarnados; então,
um pensamento lhe acudiu,
uma d'essas travessuras de
velha que só redundam para o bem, e proseguiu
[162]
d'esta maneira:―«Olha, tenho uma idéa: toma este
espelho, este objecto milagroso que veio de muito
longe; e jura-me que uma vez em cada dia e uma
vez em cada noite, o irás vêr. Eu te apparecerei
então,
no mesmo espelho; e assim, na minha companhia,
terás mais animo na vida, mais força nas
angustias,
mais tento com as indecisões da juventude
e com os males que te rodeem.»―E a filha jurou
isto; e a velha deixou-se morrer serenamente, resignada,
sorrindo á paizagem verde, sorrindo ao sol
festivo, que investia em faixas de ouro pela casa...
A
musumé cumpriu
attentamente o juramento.
Por esta forma percorreu a via da existencia, tranquilla,
sempre assistida pela mãe, que nunca cessou
de apparecer-lhe, quando, nas mãos piedosas sustinha
o espelho milagroso. Não era da moribunda,
livida, prostrada em agonia, desfallecendo pouco a
pouco, a doce apparição; era a maman gentil, de
outros tempos, cheia de louçanias e sorrisos. Achava-se
com ella n'um placido convivio sem reservas,
com ella palestrava, a ella confiava os seus segredos,
os seus sobresaltos de donzella; e n'aquella face pura
bebia conforto e recompensas.
[163]
O velho algumas vezes surprehendeu a filha
com o espelho entre as mãos, sorrindo, murmurando
singellas confidencias. Pareceu-lhe estranho o caso;
e ia um bello dia notar-lhe o disparate, quando a
moça lhe fez uma pergunta, por onde avaliou a chimera
amorosa com que ella ia embalando o pensamento.―«Repare,
senhor meu pae: não vê no espelho
a minha mãe?...»―O que o velho via claramente,
era a imagem da filha, que alli
tinha junto
de si em carne e osso,―e que
carne! e que osso!―palpitante
de vida e gentileza... mas julgou mais
prudente conserval-a sob o prestigio da illusão; e,
franzindo muito o rosto, de rude pergaminho, sem
que se percebesse se ria ou se chorava, ou se ria e
chorava ao
mesmo tempo,
fez côro com ella,
assegurando
que sim, que via
a santa mãe, e
tam bella, e tam
fresca, como
no dia do noivado...
1900.
AMÔRES...
A
J. Godinho De Campos
Uma impressão de Macau.
O que faria aquelle bando
de leprosos, que a policia
da colonia surprehendeu
e agarrou? O que faria
aquelle bando de leprosos,
além no meio do rio,
sobre um miseravel barco,
pela noite velha, tenO que faria aquelle bando
de leprosos, que a policia
da colonia surprehendeu
e agarrou? O que faria
aquelle bando de leprosos,
além no meio do rio,
sobre um miseravel barco,
pela noite velha, tenebrosa
e fria, ora pairando e deslisando
ao grado da corrente,
[165]
ora remando manso, de margem para margem,
em vigia?...
Elles eram uns ossudos filhos das aldeias, dando-nos
de longe uma impressão de robustez de musculos,
de gente affeita á enxada e á vida de lavoira.
Vistos de perto, resaltava horrivelmente o ferrete
de peçonha do seu sangue; eram indiscriptiveis seres
inuteis, abjectos, quasi sem mãos, quasi sem
pés, porque os dedos lhes iam caindo podres aos
pedaços; rostos medonhos lavrados pelo mal, sem
narizes, com os beiços roidos, com as faces chagadas;
ainda mais sinistros pela infamia estampada
nas feições e nos olhares, denunciando
perversidades
de alma de infimo quilate, por certo derivadas
da suprema degradação do seu viver. Vestiam
farrapos immundos, sem fórma definida e sem côr
reconhecivel; e escondiam as frontes, talvez envergonhadas,
sob as abas enormes dos chapeus de rota,
em uso nas aldeias.
Pescavam? por aquellas horas da noite e n'aquelle
paradeiro, não era admissivel esta
supposição;
nem no misero barco, onde se amontoavam
alguns trapos, se deu fé de anzoes ou de outras artes
de pescar.
Mendigavam? menos possivel ainda que assim
fosse. A taes horas, dormem todos, incluindo os
[166]
mendigos. O rio dormia, silencioso, lugubre pelo
aspecto das suas aguas negras, dos cascos alterosos
das grandes lórchas juntas em magotes, desenhando-se
vagamente junto ás margens os barquitos em
cardumes, presos ás varas de bambú encravadas
no lodo. Apenas de espaço a espaço algum raro
tanka atravessava d'um lado para
outro, chape-chape,
remos movidos lentamente pelas mãos das
raparigas somnarentas, fartas da lida do dia,―coisa
de ir levar ao seu albergue algum retardatario,
de volta do jogo ou das orgias.―Não era dos
nocturnos viajeiros, e menos dos pobres tankareiras,
que o bando de leprosos lograria um punhado
de sapecas, que compensasse o esforço da vigilia.
Nem a sua miseria, realmente, era tal, que os levasse
a tão duros extremos. É certo que o leproso
se encontra excluido dos povoados. Em paragens
mais rusticas, matam-n'o á pedrada, se o encontram;
em Macau, porém, a brandura dos costumes
regeita em regra esta medida, tenha embora o miseravel
de viver pelos esteiros, em barcos podres,
ou sobre os lodos, escondido das gentes como um
bicho peçonhento. No entretanto, o esteiro fornece-lhe
peixes vis, e caranguejos, e molluscos, e vermes;
os cäes vadios encontram de quando em quando,
nos despejos, um punhado de arroz cosido, e o leproso
[167]
tambem o encontra, como elles. Na altivez da
sua pasmosa abjecção, o leproso não
vem expôr-se
ao asco, ao opprobrio; sorri ao mundo com desdem,
acoita-se no antro, come immundicies, bebe
agua pôdre; e os fados são-lhe bastante
complacentes
em geral, para matal-os da molestia antes
que arrebentem pela fome...
Averiguou-se finalmente o que fazia aquelle bando
de leprosos.
Aquelles infimos párias passavam a existencia
isoladamente, cioso cada qual do seu covil, dos
seus farrapos, devorando sem partilha o que o
acaso lhe offerecia nos enxurros. Conheciam-se certamente,
pela visinhança dos antros, sobre a mesma
vasa que se alastra na margem fronteira á de
Macau, e a fatalidade commum estabelecia de direito
affinidades, allianças tacitas de tribu, entre
elles; mas, como não carecessem uns dos outros
para soffrerem, para odiarem a natureza creadora,
para jazerem no ninho da trapagem, para morrerem,
não se procuravam. Na imaginação
immersa
em trevas de cada um, rustica, pouco elastica, e
[168]cultivada em
ascos, em maldições, em
misanthropias
rancorosas, nunca por certo passara a phantasia
de vir insinuar-se na turba, partilhar das suas
distracções, relancear os festins, percorrer os
bazares,
invadir os templos e os theatros.
Mas na torva
e lenta elaboração do pensamento, durante os
longos
dias, os longos mezes, os longos annos de isolamento
e de ocio, um desejo se fôra pouco a pouco
avolumando, definindo, convertido finalmente em
tortura, amargurando como uma dôr constante e
implacavel:―era a mulher, o desejo, a tortura da
mulher.―Prazeres do mundo não se queriam, nem
mesmo se lhes imaginavam os feitiços; era-se superior
a essa chimera. Mas,
no ambiente acariciador
da vida, em presença
das arvores fructificando,
das flores perfumadas,
dos animaes requestando-se,
os hymnos da terra,
da creação em galas, do amor
dos sexos, vinham tambem echoar
n'aquelles cerebros, electrisar
aquelles nervos; a visão da mulher,
durante as mornas monotonias
sem termo, aparecia como
[169]
um apetite crescente, como uma fome de carne; e
os miseraveis, allucinados pela obsecação de
todos
os momentos, estremeciam, erguiam-se de subito do
seu leito de trapos, arquejantes, o sangue a escaldar-lhes
as frontes, o olhar em fogo...
Então, tacitamente, impôz-se a cada qual a
necessidade
de fraternisar com o seu visinho, de agremiar-se
em bando. A união faz a força. Procuraram-se,
intenderam-se. Medonhos conciliabulos se
passaram, a coberto das trevas, pelas noites longas,
sobre os lodos. Segredava-se, aventurava-se um plano,
discutia-se. Os olhos fuzilavam como raios, a
phrase rouca golfava dos labios, eloquente, persuasiva,
os membros disformes erguiam-se na sombra
em gestos tragicos. E assim se escolheu o barco
menos podre, se nomeou a companha, o capitão, se
esperou por uma noite mais escura, azada aos seus
intentos. Assim tiveram inicio e proseguiram os estranhos
cruzeiros, á aventura. Eil-os, o bando immundo
dos gafados, á capa, pairando ou remando
a medo, de manso, de manso, silenciosamente, e
prescrutando as trevas. Se ia passando algum
tanka,
os ouvidos subtis e os olhos experimentados, estudavam,
presumiam, adivinhavam. Quando era chegado
o bom momento, então,―oh delirio supremo!―n'um
impeto de remadas e desejos, o barco voava,
[170]
dava a abordagem, os milhafres caiam sobre as
victimas indefesas. Habeis no ataque, com as mãos
sem dedos suffocavam os gritos das mulheres, a
murros, ou premindo; n'um relance, pelo faro, distinguiam
das velhas as moças, apartavam dos ossos
duros a carne fofa e tenra; e com fome de hyenas,
as boccas pestilentas comiam, devoravam com beijos
as pobres raparigas, que em vão se debatiam na
lucta tremenda d'uns instantes...
Após, o barco dos leprosos seguia serenamente
a atracar á margem chineza, e elles dispersavam,
mudos, quasi felizes, indifferentes por momentos ao
prurido das chagas; e semanas depois reuniam-se
novamente. No
tanka, as
moças ficavam-se chorando,
arrepelando-se de horror, de desespero, de vergonha
por sua mofina sorte; e tanto mais mofina,
que é assim, por um beijo, segundo a voz do povo,
que a lepra se propaga, se multiplica de corpo para
corpo.
1900.
UM PINTOR DE GATOS
Era uma vez, em
mui remotos tempos,
uma familia de boa
gente lavradora, vivendo
em certa aldeia
do Japão. Marido,
mulher e um
rancho de filhos; gente
pobre, é claro; e
ajunte-se que a mui ardua fadiga se dava o camponez,
para que não faltasse em cada dia, a cada uma
das vorazes boquinhas dos garotos, a tigela de arroz
[172]
do almoço e do jantar. O mais velho dos rapazes,
já aos quatorze annos, robusto quasi como um homem,
começava a ajudar o pae, nas varzeas e nos
campos, o pobre pae, a quem as forças minguavam;
e os outros, cada um conforme a sua idade, iam
fazendo tambem o que podiam; até a irman pequena,―uma
migalha de gente, coitadita!―lá ia alliviando
a atarefada mãe na lida do casebre.
Só o mais novo dos rapazes em nada se empregava
que prestasse; era um inutil; não que elle fôsse
falto de juizo; pelo contrario, excedia em esperteza
qualquer dos irmãos ou das irmans; mas era
enfezadito, debil de musculo; e bem cedo os paes
se convenceram de que aquelles braços tenros não
haviam nascido para a enxada.―«Faça-se d'elle um
bonzo»,―combinaram; e foi n'esta
intenção que um
bello dia decidiram leval-o ao templo do logar, e á
presença do velho sacerdote, que era como quem
diz―o prior d'aquella freguezia.―O pae fallou e
expoz a questão, em quanto que a mãe approvava
com a cabeça; o reverendo, que em breve trecho
descobrira rara sagacidade na creança, consentiu em
tomal-a por pupillo, pensando talvez intimamente
que alli o acaso lhe trazia um digno successor, quando
a hora lhe chegasse de despedir-se d'este mundo.
E ficou tudo resolvido.
[173]
O noviço mostrou-se, desde os primeiros dias,
submisso, intelligente e piedoso; e tambem―valha
a verdade―não lhe iam mal a rude tunica amarella
e a cabecita rapada á navalha, de preceito; mas
como não ha formosa sem senão, segundo um
proverbio
portuguez (e a philosophia dos proverbios se
applica á humanidade inteira), tinha um defeito o
rapazito: pintar gatos. Expliquemos o caso, que é
curioso: nas horas de sueto ou nas horas de estudo,
no templo, na cella, no jardim, em toda a parte
onde estivesse, punha-se a pintar gatos; e tão bem
os pintava,―faça-se-lhe justiça n'este
ponto,―que
nenhum pintor até então pintou gatos melhor do
que
o fradinho. As paginas dos livros sagrados do convento,
as paredes, os biombos, os pilares, as arvores,
os rochedos,―forte mania de creança!―tudo
servia, tudo era tela para exercer a sua pecha. Por
onde elle passava, por onde se quedasse dois minutos,
era logo a successão interminavel de desenhos,
eram as curvas caprichosas dos travessos
felinos, de
todos os tamanhos, em todas as posturas, creio que
até enjaneirados, os olhos redondos, esbrazeando as
[174]
duas orelhas espetadas, o côtosito alçado
e
petulante
(os gatos japonezes não têem rabo), a garra
atrevida posta em guarda... Está-se a adivinhar com
que azedume o reverendo acolhia taes desmandos;
vezes sem conto reprehendeu o
artista (como por
ironia lhe chamava), tentando dissuadil-o d'aquella
triste balda, que nem lhe permittia estudar com
attenção
os velhos alfarrabios
do buddhismo,
de tam necessaria sciencia
ao seu santo mister.
Intento inutil: não por
maldade, por instincto,
quanto mais lhe prohibiam
a proeza, mais ia
pintando gatos o teimoso.
Até que finalmente,
em certa occasião, o reverendo
perdeu de todo
a paciencia e gritou ao
moço incorregivel:―«Vae-te
embora! Foge
da minha vista!... Bom
padre, nunca serás seguramente;
serás talvez
um bom pintor.»―A
[175]
ordem era terminante. Foi facil ao mocinho entrouxar
os seus poucos haveres, pôz a trouxinha ás costas,
e fez uma mesura ao padre mestre.
Eil-o na rua, escorraçado, em bem angustiosas
condições. Que fazer? Tremeu de voltar ao lar
domestico,
onde o pae, mui certamente, o puniria da
sua teimosia. Lembrou-se então que a quatro leguas
de distancia havia uma outra aldeia, com um templo
cheio de bonsos, e para lá se encaminhou, disposto
a pedir abrigo e protecção aos padres. Era
notorio que o tal templo desde alguns mezes se achava
abandonado, por n'elle ter entrado um demonio,
um espirito malfazejo, como tantos que abundavam
então pelo Japão; muitos guerreiros animosos se
tinham decidido a ir lá dentro, mas nem um só
voltou;
porem estas noticias, que iam ja apavorando
aldeias e cidades em redor, nunca haviam chegado
aos ouvidos do pequeno.
Era já noite escura quando alcançou a aldeia; o
povo dormia nas choupanas; ao fundo da rua principal,
e sobre um dorso de collina, de entre a rama
das mattas erguia-se o templo magestoso, e uma
[176]
luz interior bruxoleava, luz de esperança para a misera
creança. Luz de esperança parecia: mas o povo
bem a tinha por feiticeira do diabo, que assim manhosamente
ia attrahindo algum caminheiro solitario
em busca de poisada. Bate ao portal uma primeira
vez, bate segunda vez, bate terceira, sem que ninguem
acuda ao chamamento. Por fim percebe que
basta empurral-o para abril-o; e então, por um leve
impulso dos seus braços, achou livre o ingresso, e
assim entrou, largando dos pés nús as suas
sandalias
poeirentas.
Nos aposentos interiores ardia uma lampada
com effeito; mas nem um bonzo só, de tantos que
alli deviam estar, apparecia. Julgou que tinham ido
dar o seu passeio e que em breve voltariam, e resolveu
esperal-os. O tempo ia passando, e os seus
olhos curiosos de garoto entretinham-se em devassar
o aspecto do sitio onde se achava. Notou com
espanto que abundava o lixo, e pelo tecto as aranhas
iam tecendo sem cerimonia as suas longas
teias; era estranho que, sendo em regra os templos,
mimos de limpeza e de cuidados, aquelle se encontrasse
em tal desleixo, como se fôsse coisa abandonada.
É que, provavelmente, aos santos bonzos
faltava o auxilio d'um acolyto, a quem, como de
praxe, cabe o dever de todas as manhãs lavar, varrer
[177]
e sacudir o pó, arte exercida no Japão com
especial
disvelo; e concluiu logicamente que bom acolhimento
lhe fariam, no proprio interesse da communidade.
Agora o rapazito, proseguindo no exame, fixa o
olhar n'um movel que o captiva, que é um grande
biombo que tem em sua frente, com as duas faces
brancas; passára-lhe na mente o irresistivel desejo
de encher aquellas faces de gatos, de cem gatos,
de mil gatos, lindos, felpudos, assanhados, com as
bigodeiras hirtas e os olhos chammejantes; e uma
subita alegria illuminava-lhe o rosto sonhador...
Pensado e resolvido. Cerca encontrou a classica escrivaninha
japoneza,―a caixa com os pinceis, com
a gota de agua n'um deposito metalico, com o pedaço
de tinta negra e com a loisa onde esta se prepara.―Mãos
á obra. O pincel voava em curvas humoristicas;
a mãosinha inspirada corria, pullava de
alto a baixo, ponto aqui, rabisco alli, traduzindo a
impressão propria com habilidades prodigiosas. Assim
fôram apparecendo, sobre aquella tela improvisada,
ranchos e ranchos de gatos adoraveis; e tantos
gatos desenhou, e tantas horas correram, sem
que os bonzos voltassem do passeio, que o pobre
garotito sentiu-se de repente cheio de somno e de
fadiga; n'um cubiculo contiguo se recolheu e se fechou;
[178]
estendeu-se sobre a esteira, e em breve adormeceu.
Lá pela noite velha, um
barulho inaudito, como
se uma terrivel lucta se travasse entre mysteriosos
combatentes, despertou a creança. Os gritos, os
gemidos, o ruido
dos corpos que
caiam, vinham de
perto, do aposento
visinho onde estivera;
tremiam as
paredes, o chão, a
casa toda; a pelleja
durou até á madrugada.
Como elle
soffria de pavor!
Caido sobre a esteira,
immovel, parecia coisa morta, sustendo
o proprio folego, para que a sua presença
não fôsse presentida...
Já com a manhã clara e sol bem alto,
ergueu-se então, e animou-se a espreitar um
pouco para fóra, por uma fenda da parede.
[179]
Foi medonho o que viu. No chão grandes poças de
sangue se alastravam; e mesmo ao meio da casa,
jazia morta, esphacelada, uma enorme ratazana,―maior
do que uma vacca!... Mas quem matára
o monstro, se ninguem parecia ter entrado? Reparou
por acaso no biombo, onde horas antes pintára
tantos gatos; lá os viu, mas com os focinhos lambusados
de sangue e as patinhas igualmente; eram
elles que tinham dado cabo do demonio...
O mocinho tornou-se, com o correr do tempo,
um grande artista. Ainda hoje se ademiram muitos
gatos pintados pelo seu pincel inimitavel.
O chronista de quem extrahi esta legenda, nada
conclue, como moralidade, da historia que narrou.
Concluirei eu o que bem me parecer, se m'o permittem.
Em primeiro logar, pouco propenso a crêr
em coisas do diabo,
embora mesmo no Japão,
concluo que, se a rata do convento era tam grande,
é que a despensa se achava provida com um
[180]
enorme arsenal de gulodices; o que, a despeito
de tanto que se diz dos frades de outras terras, dos
frades portuguezes por exemplo, faz honra á sobridade
de habitos dos maganos, pois não consta que
jamais os presuntos e a marmellada de reserva nutrissem
uma rata lambareira até attingir igual tamanho.
Concluo ao mesmo
tempo, humilhado, confundido,
que os pintores
do meu paiz estão bem
longe do traço creador dos
pintores do Dai-Nippon.
Por ultimo (e talvez esta
final conclusão seja a mais
util), vejo que ás vezes as
nossas qualidades, de que
os outros se riem e escarnecem,
são as que mais
nos valem n'este mundo.
1901.
IMPRESSÕES
RAPIDAS
a
S. Peres Rodrigues.
Era uma noite de luar do mez de abril, esplendida.
Eu seguia pelo caminho de Suwayama, na
parte mais elevada da cidade. De um lado alinham-se
as casinhas japonezas, entre ellas as mais famosas
chayas de Kobe,
Tokiwa e outras, onde os japonezes
vêem folgar; do outro lado, é a rampa ingreme,
coberta de pinheiros, e sóbe a collina inculta,
em corcovas accidentadas, onde assenta um templo
notavel.
Nas
chayas, segundo o costume, havia
festa. As
corrediças de papel estavam fechadas; mas a luz
interior coava-se para fóra vivamente, desenhando
[182]
alguns vultos dos convivas em sombrinhas deliciosas;
eram os vultos d'elles, dos amigos reunidos,
certamente banqueteando-se sobre a esteira, e eram
os vultos d'ellas, das
gueshas, que
lhes iriam vasando
o vinho nas taçasinhas de fina porcellana, e cantando
balladas ao som do
shamicen. Musica,
cantigas,
gargalhadas, chegavam-me aos ouvidos n'um
vago sussurro de alegria.
Na minha frente iam seguindo uns cinco sujeitos
europeus, gente de distincta sociedade, a julgar
pelo esmero do trajo e da linguagem, e pelo aroma
dos soberbos charutos que fumavam. Iam fallando
inglez. Dois discutiam finança:―o Japão
atravessava
uma crise economica terrivel; os cofres do governo,
segundo as apparencias, exhauriam-se; o trafego
em marasmo; duas grandes fabricas de Osaka,
constava, suspendiam o trabalho...―Os tres outros
palestravam de politica:―primeiro foi o Transvaal,
e fez-se a conta de quantos boers haviam já
caido sob o chuveiro das balas inglezas; depois saltou-se
ao Extremo-Oriente; a Russia ameaçava o
imperio japonez; apparecesse um pretexto, o mais
leve, o mais futil, e era a guerra; discutiam-se as
probabilidades da victoria, presumiam-se os estragos,
o numero de victimas no primeiro embate das
esquadras...―Teriam talvez muita razão, todos os
[183]
cinco; mas ia-me parecendo aquella gente um bando
de mochos agoirentos, folgando com a ruina, dando-se
bem com o fetido dos mortos. Para elles não
nascera, imaginava eu, aquella lua esplendida, que
ia alumiando o espaço todo e espargindo sobre a
terra uma chuva de prata; nem era para elles que
os pinheiros de Suwayama se enchiam agora de rebentos
viçosos; nem para os seus pulmões que o ar
vinha oloroso de florescencias multiplices, distantes.
Suppunha-os, coitados, dyspepticos, biliosos, misanthropos,
perseguidos nos fofos leitos por cruciantes
pesadelos.
N'aquelle ponto, as
gueshas de
Suwayama entoavam
uma cantiga popular, que assim
começa:―«
Haru
wa, ureshiki...»―cujas primeiras estrophes
se podem traduzir, pouco bem, por estas duas quadras:
Na primavera, enlevae-vos
Nas cerejeiras em flor.
No v'rão, folgae nas ribeiras,
Quando se abraza em calor.
No outono, vêde a folhagem,
Toda escarlate, voando.
No inverno, espreite-se a neve,
Bebendo vinho e cantando.
[184]
Quando eu escrevi a
Primavera, e a
offereci a
um delicado amigo, prometti a mim mesmo, e creio
que tambem a elle prometti, completar com pachorra
e vagar, os aspectos das estações, aos quaes o
tempo, o sol, a cor do ceu, n'este paiz deslumbrante
de scenarios, imprimem mais intensivamente, mais
emotivamente do que em outro logar, feições
differentes
e imprevistas. Por preguiça ou outras causas,
não cumpri a promessa, com o que,―valha a verdade,―nada
se perdeu que falta faça; mas, succedendo
agora que tenho de reunir em volume umas
impressões dispersas, que intitulei
Paizagens, pareceu-me
indispensavel, por um melindre de consciencia
litteraria, voltar ao assumpto, concluil-o. Pede-me
pressa um editor bondoso. Tomo o negocio de
empreitada; reuno as ligeiras notas soltas que encontro
em esquecidos papeis velhos.
Antes assim. Impressões do acaso, apontamentos
rapidos, vão-me parecendo preferiveis a um longo
estudo que intentasse das mutações de scena que
hoje, amanhã, meus olhos relanceam; e não perco
o ensejo, por natural intuito de desculpar-me perante
[185]
quem me lêr, de traduzir aqui uma deliciosa pagina
de um livro francez, tambem sobre o Japão, escripto
ha poucos annos.―«As circumstancias concorrem
mais para a inspiração, do que todos os
esforços
do homem, e a experiencia quotidiana é a grande
instigadora das imaginações. Vêde em
litteratura:
de ordinario, tanto mais breve é um trabalho, ou,
se é extenso, tanto mais é feito de
pedaços, de fragmentos
escriptos primitivamente ao acaso dos tempos,
tanto melhor elle é; um longo livro de historia,
um longo romance, um longo tratado de philosophia
ou de moral, jamais valerão um conjuncto de memorias,
uma curta novella, um jornal intimo ou um
caderno de pensamentos, e jamais um poeta epico
alcançará o viço de vida que
dá ao improviso feliz
tamanho encanto; porventura, o homem sensato deveria
decidir-se a não publicar senão volumes de
paginas destacadas.»
Pretendo ser sensato uma vez na minha vida.
Verão.
Um calor de fornalha. Na Africa, na China, não
é mais suffocante. O enervamento é enorme.
Desfalece-se
de preguiça, de langor.
[186]
No entretanto, é no estio que o Japão
alcança a
sua genuina feição typica, pela natureza e pelo
povo,
descripta pela lenda, pintada pela arte e como os
estranhos a imaginam.
A terra é toda verde. Crescem as mattas, trepa
a herva, viceja o mar de arroz nas varzeas alagadas.
Nos jardins, floresce a
asagao, a
caprichosa
trepadeira, cujas flores, as frescas campanulas de
todas as cores imaginaveis, duram o espaço de uma
madrugada; nas aguas, floresce o lotus.
O vestuario attinge a maior simplicidade; um
unico
kimono de algodão
azul e branco, amarrado
na cintura, é tudo... e ás vezes nem é
tanto. O
europeu, quando ainda estranho ao meio, encara
então surpreso este Japão nu ou quasi nu,
passeando
sem cerimonia as suas pernas, os seus braços,
os seus collos, os seus seios e ainda
mais,―exposição
paradoxal de grotescos e de encantos...
A casa, durante o dia, tambem se despe; despe-se
das suas paredes de papel, ficam o telhado e
quatro ripas; patenteam-se aos olhos de toda a gente,
o lar, a vida intima.
É a epocha das peregrinações, das
excursões
aos templos, aos logares frescos, onde ha brisas,
onde ha sombras, onde ha aguas. Trepa-se ao Fujiyama,
a montanha sagrada. Busca-se o abrigo de
[187]
um pinheiro, para petiscar, para folgar em companhia;
e os corpos estendem-se na relva, como repetis.
As
musumés vão
molhar os pésitos nas areias
das praias, para colherem algas e mariscos. As ribeiras
convidam: n'umas, entre juncos, é a caça
nocturna aos pyrilampos; n'outras,―o Sunsidagawa
em Tokio, o Iodogawa em Osaka,―em noites calmas,
é a flotilha immensa dos barcos de prazer,
todos elles sanefas multicores, lanternas, balões,
galhardetes, harmonias de instrumentos, festins, rapazes,
raparigas, amores...
[188]
Outono.
Em novembro floresce a chrysanthema, a flor heraldica.
Estupenda coisa. Não me parece flor; antes
um monstro, com a sua enorme cabelleira de mil
petalas, contorcidas como tentaculos de um polypo,
em colorações indefiniveis. Alinhadas nos
jardins,
sob tendas de abrigo, as chrysanthemas lembram
mulheres, lembram-me cortezãs de Ioshiwara, quando
ellas vestem os ricos mantos polychromos,
quando ellas enfeitam os cabellos com diademas de
espavento, e vêem postar-se em filas, princezas pompejantes
do vicio, encantadoras e perversas...
No outono, a folhagem do arvoredo perde naturalmente
o verde, e cobre-se das cores mais vivas
e mais estranhas, o amarello, o vermelho, o roxo,
em cambiantes varios. A paizagem offerece então
um luxo de tintas innarravel; momentaneo, porque
as brisas vêem breve despir os troncos, e juncar de
folhas mortas os campos e os caminhos. A delicada
arvore que aqui chamam
momiji, de
graciosas folhas
digitadas, torna-se toda em purpura, como em fogo;
ao abrigo da sua rama ardente acolhe-se o povo, em
[189]
magotes, que vem rir, que vem beber, que vem folgar,
arrebatado pela scena, que é sem rival em maravilhas.
O inverno.
Mas ha inverno no Japão?
Julgo
que sim, pois gela a agua nos charcos
e ribeiros, cae profusa a neve,
alvejam no horisonte as serras,
como embrulhadas em lençoes.
No entretanto, ainda ao sol de dezembro
desabrocha a chrysanthema,
e já em janeiro as ameixeeiras,
nuas de folhas, começam a
florir. Seja pois um inverno de
flores. É certo que essa grande
desolação das longas invernias dos
climas temperados é desconhecida
em solo japonez. A paizagem é sempre alegre; o ceu
é sempre azul; os pinheiros, que são as arvores
que
mais abundam, sempre verdes. Se então se prolongam
mais as palestras em roda do brazeiro, chegando
os deditos ao calor, tomando chá, o povo não
cessa de affluir aos theatros, aos bazares, aos templos,
ao abrigo da sua rama ardente acolhe-se o povo, em
[190]
aos jardins; apenas, por cuidado ou garridismo,
as
Musumés cobrem com um
manto de delicada cor
as cabecinhas petulantes, deixando vêr do rosto
apenas uma nesga da fronte e os olhos negros, humidos
de amor e de mysterio... deve ser antes
garridismo, pois ficam d'este modo mais seductoras
do que nunca.
A neve, que constitue uma
calamidade em tantas regiões,
entra aqui no rol das coisas
deleitosas. Tanto é assim, que
as mulheres, cujos nomes são
sempre mimosos como ellas,
lembrando flores ou outras gentilezas,
se apropriam do termo
com frequencia:―
Yuki-San, a
Senhora Neve, ou com mais
cortezia,
Ó Yuki-San, a Nobre
Senhora Neve, é nome muito
em uso. A nevada, sem que prejudique o povo na
vida e no conforto, vem branquear as serranias, os
campos e as estradas, esplendida apothéose de alvuras
e purezas; rendilha as arvores de crystalinos
ornamentos, ostentando-se como uma florescencia
immensa, uniforme, que brotasse dos restolhos, da
herva, dos bambus, dos cedros, dos pinheiros; sobre
[191]
os telhados das casas e dos templos, sobre os
dorsos das grandes raposas de granito que d'estes
se avisinham, sobre as lanternas de pedra dos jardins,
demora-se em fofos floccos, que dão ás coisas
proximas, realces seductores; por onde a agua corre
e se despenha, o frio congela as gottas, adormece-as,
transforma-as em recortadas estalactites, que um
raio de sol mais quente virá em breve desfazer.
No vocabulario japonez, tam amorosamente naturalista,
ha um termo de que agora me recordo, que
não tem, como muitos, synonimo em linguas europeas;
é
yukimi.
Yukimi quer
dizer:―excursão ou
banquete preparado para ir vêr cair a neve.―Nas
[192]
chayas, em certos sitios
pittorescos, exemplo―as
collinas de Kioto,―combinam-se reuniões; vêem os
rapazes, vêem as
gueshas
com as guitarras, começa
a festa ruidosa, interrompida a espaços pela
contemplação
muda do espectaculo que se offerece; no
entretanto, a neve vae caindo n'uma chuva continua
de folhepos, ligeiramente sussurante, de um ruge-ruge
de sedas que arrastassem, vestindo o solo, as
arvores, o colmo das choupanas, poisando mesmo
nos vestidos e nas mãos brancas como a neve das
moças irriquietas...
Outro assumpto: a historia da arte.
No Japão, não ha nem houve nunca, sabios;
é
medida, penso eu, de hygiene nacional, consequencia
de antigos habitos de limpeza das creadas, que
os sacodem do solo como sacodem as teias de aranha
das paredes. No respeitante a historia, é evidente
que o officio de historiador, com a secura e
a frieza que lhe suppomos inherentes, não existe.
A historia japoneza é feita pelo povo, incluindo a
collaboração preciosa das velhas, das raparigas,
dos
garotos; emana das tradições, da lenda e da
intuição
[193]
sentimental das massas. Recorda por este facto os
evangelhos biblicos, escriptos pelos rudes discipulos
de Christo, pobres e simples pescadores alheios
ao convivio dos classicos, sem sciencia e sem arte,
mas abrazados em poesia, em crenças, em amor.
Na historia japoneza, palpita, como nas paginas da
Biblia, a alma da tribu, propensa, pela tendencia
geral da gente rustica, ao milagre, á maravilha, ao
inverosimil; convindo apenas não esquecer que o
japonez, menos idealista do que o hebreu, não vae
mui alto no mundo das chimeras, voeja terra a terra,
aprazendo-se em entretecer de graciosas
fabulações
as aventuras dos seus homens illustres. A
historia da arte, para este povo feito todo de artistas,
sempre sob o arrebatamento das bellezas naturaes
do seu paiz, é um dos capitulos preferidos,
por onde mais rodopia sem freio a phantasia; e
é d'este capitulo da arte que eu destaco algumas
graciosas lendas que se seguem.
O bonzo Chyo Densu, que viveu pela primeira
metade do nosso seculo XV, foi um grande pintor
em coisas religiosas.
[194]
Sendo noviço n'um templo da Kioto, Tofukuji,
conta-se que já se dava á pintura com
paixão, incorrendo
por esta fórma no desagrado do superior
Daidô, que o ia
asperamente reprehendendo. Certo
dia, acabava elle de pintar um retrato de Buddha,
quando sente passos de Daidô, que se approxima
do seu poiso; rapidamente, esconde o desenho entre
os joelhos; o vulto entra na cella, esbrugando
as suas contas, resmungando;
do resplandor
do deus subito irradiam
chammas de apothéose,
que innundam
de luz a casa toda; a
falta do noviço estava
assim conhecida;
mas tambem perdoada,
pois Daidô humilhou-se a este avizo do céo, e
nunca mais atormentou o seu discipulo.
Já no fim da existencia, dignou-se uma vez o
Shogun recompensal-o dos seus muitos serviços, dizendo-lhe
que pedisse o que quizesse.―De nada
careço n'este mundo, retorquiu Chyo Densu, tendo
em cada dia um
kimono lavado para
vestir e uma
tijela com arroz; só vos supplico, senhor, que por
vossa ordem terminante sejam cortadas cerces todas
[195]
as cerejeiras do jardim d'este templo, para que
de futuro se não torne um logar de folia e
desacato.»―Foi-lhe
o desejo satisfeito; e em Tofukuji,
ainda até hoje, nem um só pé de
cerejeira floresce.
Tadahira, do nosso seculo X, pintou certo dia
um cuco sobre o panno de um leque. Tam perfeito
era o cuco, tam inspirado de verdade foi o pincel
que o desenhou, que em todas as vezes que alguem
abria o leque, o cuco, assim exposto á luz do dia e
á paizagem, acordava, soltava o pio habitual dos
cucos. Maravilha!...
Maruyama Okio, nome moderno, pois é do seculo
XVIII, foi pintor muito celebre, a ultima gloria
talvez da escola classica, convencional, mas cheio
de amoroso realismo nas suas concepções. Um seu
cliente fizera-lhe encommenda de desenhar um urso
bravo. O consciencioso Okio
pede a certo aldeão do
seu conhecimento que o avise de quando algum
appareça pela serra; o aviso vem ligeiro, pois abundam
[196]
taes bichos no Japão, e eil o que parte,
com
a tinta, com os pinceis e com o mais de que carece.
Levado pelos campos, depara com o animal dormindo
junto a uma arvore. Mãos á obra, e em curto
espaço conclue o seu trabalho e se retira; mas dentro
em pouco rasgava a tela, desgostoso, depois de
a ter mostrado a um caçador de officio, em ursos
entendido, o qual lhe observou que achava bello o
quadro, mas falho de verdade
após um exame attento,
pois não traduzia a imagem
a vaga ondulação que é propria
ao arfar do corpo que
respira. O melhor da passagem
foi ter, annos corridos,
contado o aldeão ao bom
Okio que o tal urso da serra
se quedava dias e dias junto
á arvore; até que se deu fé,
entre curiosos, que o bicho
não dormia, mas se achava
alli caido morto...
[197]
Sonhou um dia o Shogun, Generalissimo do imperio,
que um padre lhe apparecia e lhe dizia estas
palavras:―«Eu sou o defunto superior do templo
de Kurama; e rogo-vos, senhor, que ordeneis a Kano
Motonoba de pintar o meu retrato, para ser collocado
no templo onde passei meus longos dias de
existencia.»―Acordando, mandou chamar o grande
artista, fez-lhe a encommenda, e soube então
que elle tivera igual visão durante a mesma
noite.
O peor é que Kano não conhecera o reverendo,
nem lhe constava que existisse um só retrato para
modelo. A tarefa era ingrata. O pintor passou então
dias sem conto, tendo na frente a tela nua, pincel
em punho e tinta preparada, immovel, perplexo,
desesperado de jamais poder realisar o seu intento.
Foi em um d'aquelles dias que uma aranha desceu
do alto do tecto lentamente até poisar na tela, onde
teceu a sua teia, que era nada menos que o esboço
do frade a traços rapidos; Kano limitou-se a completar
a obra em seus faceis detalhes.
Outra difficuldade se levanta: Kano desenhára
[198]
um retrato gigante, em uma grande tela, não reflectindo
a principio que nunca poderia conseguir que
passasse pela porta do seu modesto albergue. Quando
concluido e como o
problema se apresentasse
irresoluvel,
eis sopra de repente uma rajada em furia,
que deita a terra uma parede do albergue, e leva
em triumpho, pelos ares, o primoroso quadro até ao
templo de Kurama, onde até hoje
está, e os visitantes o admiram.
Sesshiu, um nome glorioso
entre a pleiade dos pintores do
Dai-Nippon, entrára como noviço
aos treze annos no templo
de Hofukuji. Sabe-se que, durante
a sua aprendizagem, mais se applicava á arte
do que ás praticas devotas. Uma vez, por uma
offensa d'este genero, foi posto em penitencia junto
a uma columna do templo, durante longas horas,
com as mãos atraz das costas, fortemente amarradas.
Quando o superior vinha soltal-o,―imagine-se
o espanto do sujeito!―eis que surde de junto
dos pés do pobre moço um bando de ratinhos, que
[199]
se escapam espavoridos pela casa. Qual era a
explicação
de tam estupendo caso? Eu lhes conto: o
penitente, choroso e inactivo, fôra entretendo o
tempo a pintar sobre o sobrado poeirento aquelles
galantes animaes, servindo-se das proprias lagrimas
como tinta, e do dedo grande do pé nu, como pincel;
logicamente, os ratos salvavam das iras do velhote
as preciosas vidas com que o artista acabava de
dotal-os.
Esta é uma velha lenda classica da religião de
Shinto.
O templo shintoista de Shimo-Gamo, em Kioto,
é dedicado á deusa Tamayeri-hime. Esta menina,
antes de dar pretexto aos fieis para ser adorada,
achava-se uma vez dedilhando sentidas melodias
na guitarra, á beira do rio Seminogarva, quando
avistou boiando á tona de agua uma feicha vermelha,
encimada de lindas pennas de certa ave das
selvas. Colheu-a e levou-a para casa, collocando-a
junto do seu leito. Acto continuo, succedeu a maravilha
de dar á luz um filho. Seus paes, descrentes
de artes milagrosas, e a despeito dos mil protestos
de innocencia que ella lhes fez, singelamente,
[200]
não acreditaram no milagre, accusando-a da falta
que mais póde envergonhar uma mulher honesta.
Passados annos, Taketsumi-no-Mikoto, o pae
da desolada, resolveu aclarar este mysterio. Em
tal designio, offereceu um banquete a todos os visinhos;
e quando estavam todos reunidos, dirigindo-se
ao neto, e entregando-lhe uma taça cheia de
saké, que é o
vinho do paiz, disse-lhe isto.―«Leva-a
a teu pae»―A creança, obedecendo, saiu para a
rua e poz-se a contemplar o céo, e ia murmurando
uma oração; de subito, transforma-se n'um raio,
que corisca, subindo ás regiões celestes,
acompanhado
pela mãe, para a qual começou assim a
glorificação.
Encontrei-me, em pleno dia, n'um luxuoso bairro
indigena, que me disseram chamar-se a
Cidade-Nocturna,
pois só com a noite acorda, e só na noite
vive, deslumbrante de galas, de lumes, de harmonias,
de povo alegre que transita, para cair em repouso
ao alvorecer da madrugada.
Áquella hora, a estranha cidade, esbrazeando
a um sol de intensidades tropicaes, do mez de Agosto,
modorrava; torpida quietação; raros vultos se
[201]
viam,―mendigos, vadios, párias da vida,―cosidos
com as nesgas de sombra dos edificios e das arvores
que ajardinam ao centro as avenidas.
Fixei casualmente a
attenção n'um edificio mais
pomposo, de
vastas dimensões,
todo de
madeira nova,
alto de quatro
ou cinco andares,
rodeado
de varandas,
d'onde pendiam
a arejar
ricas colchas
de seda e mantos
de matiz;
não sei que caravançará
de
mysteriosos
habitos, aquelle,
silencioso
tambem áquella
hora, mas dando de si a idéa de conter
nos seus arcanos uma legião do moradores.
Ao centro d'este edificio erguia-se em triumpho
[202]
um amplo portal, de madeiras lustrosas; seguia-se-lhe
um vestibulo; depois alguns degraus de escada,
acharoados; e ao fundo, muito ao fundo, havia passadiças
cobertas de esteiras muito limpas, corrediças
entreabertas patenteando, n'uma meia penumbra,
confusos verdes de jardim.
Junto ao portal, dois moços de serviço, quasi
nus, dormiam sobre um banco, como dois cães de
guarda cançados da vigilia. Notei que vultos de
mulher, de quando em quando, passavam, perpassavam,
longe, no ultimo plano; languidas, vagarosas,
com os penteados desfeitos, arrastando amplas tunicas
de seda estampadas de entrelaçamentos de
flôres. Uma d'ellas, por desenfado, avançou
té ao
portal, ergueu os braços alto, enfiou os alvos dedos
de ociosa pela juba negra dos cabellos; e assim,
n'aquella posição, poz-se a fitar o azul do
céo que
uma ave cruzava em vôo rapido. Gentilissima, esplendida
no vestido, miudas fórmas graciosas, da
côr do jaspe os pés descalços em habito
de humildade,
e um olhar de dezoito annos quando muito,
pueril, coando a expressão intima de um ser affeito
á passibilidade e inconsciente das coisas d'este mundo.
De dentro, uma voz de velha, azeda e imperativa,
chamou-a pelo
nome:―«
Mitsu-Riyo!»―E
eu
fui seguindo o meu caminho, acordando de subito
[203]
para um enternecimento doloroso, que me é peculiar
em presença de certos relances da existencia,
um pequenino nada ás vezes, confuso e passageiro...
Mitsu-Riyo quer dizer,
litteralmente:―
Mel que se
offerece―a quem? á turba, a toda a gente.
No Japão, uma vez em cada anno é a festa das
meninas, e uma outra vez em cada anno é a festa
dos rapazes.
Na primeira, como
de justiça, e em attenção
ao sexo, tudo se
passa entre a familia,
de paredes a dentro; e
o profano nada logra
devassar dos jubilos
d'aquellas presumidas,
vestidinhas com mil esmeros
e attenções, em
extasis em frente do
altar que se arma em
casa em honra d'ellas, aonde se dispõe, além de
coisas
santas, a collecção de bonecas e brinquedos, a
[204]
serie em miniatura do espelho, da caixa de costura,
do brazeiro, das chavenas, da chaleira, de tudo mais
onde mais tarde os seus dedos mimosos poisarão,
no placido exercicio dos seus deveres de esposa e
mãe por sua vez.
A festa dos rapazes é publica, ostensiva. É certo
que no lar se agrupam os trophéos de armas e
allegorias de guerreiros, e brinquedos condizentes
com a turbulencia innata nos garotos; mas no que
mais se empenha o cuidado da familia é n'um curioso
emblema que enfeita a cidade inteira, offerecendo
aos passeantes um estranho quadro de festa e
alegria. Cada qual que tem filhos―e quem ha que os
não tenha?―espeta a prumo ao pé da sua casa uma
vara de bambu de grande comprimento, tendo amarrado
na ponta um enorme peixe de papel, soberbamente
pintado de negro ou de vermelho, escamudo,
com ampla cauda e esbogalhados olhos; cada qual
amarra um peixe, ou dois, ou tres, ou quatro, conforme
o numero de filhos; e ha casaes tam abençoados
dos deuses e tam cumpridores do seu dever,
que amarram sete peixes, oito peixes, um cardume!...
Qualquer curioso em coisas de estatistica poderia,
sobre uma eminencia da cidade, registar pelo
numero dos peixes o numero de filhos varões
[205]
n'aquelle sitio; mais ainda: os ventres benemeritos
que mais soldados dão ao exercito imperial.
Ha uma lenda adoravel n'esta usança. Os peixes
figuram carpas, no Japão abundantissimas; a
carpa, sabe-se, vive nos rios, e apraz-se teimando
a nadar contra a corrente, subindo da fóz té
ás origens;
aquelles peixes de papel, enfunados pelas
brisas fuscas que reinam em geral n'aquella epocha,
que é em maio, perfilando-se contra o vento, dão
uma perfeita imagem do phenomeno. Assim o homem,
no curso da existencia, deve adquirir a rude
teimosia de resistir, de passar para além da corrente
dos revezes, dos desalentos, das intrigas, té
alcançar o lago bonançoso da paz da consciencia e
da abastança ganhas com o seu trabalho intelligente.
A festa é ao mesmo tempo um aviso aos tenros
nipponicos de agora, ranhosos, rabujentos, dependurados
da teta maternal, ou, mais crescidos, caçando
as cigarras poisadas sobre as arvores, lambendo
doçarias e soletrando o
i-ro-ha pelas escolas,
mas que amanhã constituirão a massa activa e
dirigente
d'esta tribu inchada de orgulhos patrioticos,
e abrazada em ambição.
[206]
Se um dia me sobrarem ocios e pachorra juntamente,
hei-de ainda escrever um longo capitulo inspirado
na mulher japoneza, tal como eu a comprehendo,
ou antes, tal como a não comprehendo. Não agora.
Agora intento apenas fallar d'ella em breves phrases,
ao capricho das rapidas idéas que me occorrem.
Qual é o seu destino? O enlevo do lar. Seria
pois, como quem diz, um canario cantador, gentil e
inutil, saltitante, papeando ao sol e enchendo a casa
toda de alegria, se não se devesse incluir em tal
enlevo, dois meritos ainda: o delicado instincto da
ordem, da limpeza, e um fundo de carinho maternal,
tam amoroso, que talvez não tenha egual no
mundo inteiro. De sorte que, sem missão activa
propriamente, parece vir ao mundo destinada a uma
doce passibilidade feita de cuidados e sorrisos, para
tornar feliz o esposo, e preparar para a vida um
outro homem, o seu filho. Sem iniciativa propria
no ramerrão da existencia quotidiana, simples nos
habitos, nas occupações e nos desejos, a sua
condição
mantem-lhe, e mesmo lhe exaggera, os attributos
peculiares do sexo,―delicadezas phisicas fixadas
no requinte, e um discorrer ingenuo de creança.
[207]
É uma escrava do homem? É difficil dizel-o,
n'este mundo, que é todo escravidão. Sim,
será
talvez; e recorda-se este velho preceito de moral,
ainda não esquecido:―«Obedece a teu pae, mais
tarde a teu marido, mais tarde a teu filho primogenito.»―No
entretanto, bem chimericas algumas devem
ser as que supportam... pois para que lhes
servem a ellas, as
musumés, o sorriso
perenne dos
labios, o mimo dos gestos, das feições, do
garridismo
do seu trajo, a alma de graças que têem nas
pontas dos dedinhos, que tudo aformoseam onde
tocam, senão para trazerem submisso ao jugo dos
seus desejos e caprichos o bruto seu senhor (porque
os homens são brutos em todo o planeta) e
folgarem como princezinhas voluntarias?... Que se
julgam felizes, ellas, esta Senhora Ameixeeira, esta
Senhora Crysanthemo, esta Senhora Primavera,
não ha duvida, concluindo por este mesmo sorriso
dos labios frescos durante todo o dia―e possivelmente
toda a noite―pela alegria fervilhante dos
olhitos, pela serena ondulação da mimica,
já surprehendendo-as
nos mil misteres caseiros, já pela
rua, caminho dos bazares, dos templos, dos theatros,
dos campos floridos...
É certo todavia que uma grande dissemilhança
afasta a mulher japoneza, da mulher occidental, pelo
[208]
menos d'aquella que a importação despeja dos
paquetes
e vem pisar a terra de Nippon; a ponto,
persuado-me, que um sabio zoologo qualquer, que
descesse do planeta Marte a estas paragens, jamais
ousaria classifical-as como exemplares da mesma
fauna.
Vede esta femeasita minuscula, toda
ella pieguices
de roupas e maneiras,
fragil, sem
musculos, com mãos
e pulsos de creança,
impropria para o
esforço e para a
lucta; passa a vida
de joelhos, sobre
macias almofadas,
brincando com bonecas
como se fôssem
filhos seus, ou brincando com seus filhos como
se fôssem as bonecas; se sae de casa, vae arrastando
os pésitos em passos indecisos, preguiçosos,
borboleta bohemia, sem rumo e sem intento; sabe
cuidar dos seus cabellos, pintar a bocca de escarlate,
dedilhar no
shamicen,
compôr ramos de flôres,
servir o chá nipponico, lêr historias de raposas
fabulosas
e de macacos legendarios...
[209]
Agora comparae esta chimera humana com as
rudes viageiras que o mar aqui arroja, bravos exemplares
do feminismo em moda,
fontes de
musculos,
de animo atrevido, usando monoculo, bengala e
collarinho; deixam ás amas os filhos, se é que os
têem, para correrem as cidades a passos de gigante,
ou, mais velozes ainda, manejando com mão firme
a bicycleta; umas são jornalistas, outras são
missionarias,
outras são medicas, outras são sabias,
outras são coisa nenhuma. Não ha
comparação possivel
entre as duas. A europea offusca a japoneza
pelos seus meritos triumphantes. A esta, humilde e
timida, só restaria acaso uma desforra:―era entreabrir
o
kimono de seda na parte junto ao
peito, patentear
lhe o par de maminhas brancas e roliças,
com os bicos côr de rosa macerados pelos dentinhos
do garoto que lhe brinca no collo, nu em pêlo...
Uma amavel senhora, cujas cartas vem de quando
em quando amenizar a solidão do meu viver, dizia-me
ainda ha pouco coisa parecida com o seguinte,
a proposito de dois livros que escrevi (que ella leu,
a bondosa), e da subsequente prolongada preguiça
[210]
litteraria em que fiquei:―«Você deu ao publico as
suas illusões; o publico espera agora as suas
desillusões.»―Não
sei ao certo o que então lhe retorqui;
mas eis o que me occorre responder-lhe, ao
escrever a ultima pagina d'este livro:
Vá de barato que a gente publique as suas
illusões;
melhor fôra calar-se, todavia. Mas para as
desillusões
não ha, supponho eu, publicidade ademissivel;
soffrem-se no silencio intimo, e manda o orgulho
proprio, além de outros motivos, que a gente
as não divulgue. No entretanto, para o paiz japonez,
com o qual ia especialmente contender a gentil
observação que referi,―um nadinha maliciosa,
querendo aparentar estimulo apenas ás minhas actividades
em lethargo,―para o paiz japonez, devo
confessar que me encontro ainda no periodo do enlevo
e dos feitiços. Não ha terra, que eu
conheça,―e
tantas tenho conhecido!―mais deslumbrante
do que esta nos aspectos; não ha povo mais interessante
do que este, pelo feitio moral, pelos costumes,
pela alma artistica; não ha mulheres mais mimosas
do que estas
musumés; e
não ha no mundo
inteiro gente mais feliz do que esta gente japoneza;
é dizer tudo. O que o tempo e a experiencia me
têem dado a conhecer, é a
convicção profunda da
incompatibilidade absoluta entre tudo isto e o europeu;
[211]
o Japão é dos japonezes e só dos
japonezes,
o europeu, como um pingo de azeite dentro de agua;
conserva-se aqui sempre isolado, não se assimilla
ao meio. Porquê? por dissemelhanças
irreconciliaveis
do sentir, da educação, dos habitos, por essa
invencivel barreira que se define em tres palavras,
a―differença de raças.
Minha senhora: para poder assim
synthetisar-se
um sentimento como eu acabo de fazer, para adivinhar
o encanto no que nos é vedado, para dizer
que é grato o aroma de um ramalhete de flôres que
nos mostrassem dentro de uma redoma de crystal,
não é fácil tarefa; tem de elevar-se a
alma a um
extremo altruismo
estetico, paradoxal
até, não por virtude
nem sciencia,
mas derivado de
condições tristes
da vida, e quando
se é já tam pobre
em esperanças e
desejos, que o individuo
rasteja como
um pária moral,
alheio a tudo.
[212]Tal
pária, n'um ponto, n'um só ponto,
é grande como
um Deus: vê o mundo do alto, parecem-lhe os homens
formigueiros, segue com a vista as formigas
nas batalhas, nas labutas, nos cuidados e nos prazeres;
em tal estado de desinteresse e independencia,
custa pouco então apontar com o dedo para a
tribu que mais bem dotada parece na partilha das
graças, dizer―é esta, o Dai-Nippon.
Deixe-me pois guardar, para guardar alguma coisa,
as illusões d'este paiz... e a sua estima, e esta
não é uma illusão.
1901
ISSUMBOSHI[2]
(CONTO JAPONEZ)
a
A. A. Ferreira d'Almeida.
Ha mui remotas eras, dois velhos esposos residiam
na provincia de Settsu, em Naniwa, como
então se chamava a cidade de Osaka. Eram os dois
sósinhos; nunca tiveram filhos, posto que ardentemente
os desejassem. Ora, a prole é a grande
preoccupação
da familia japoneza; considera-se mesmo
incompleta e quasi ignominiosa a existencia d'aquelle
que a não teve, e assim se vê privado de legar o
seu
nome, e os encargos do culto devido aos ascendentes,
ao natural herdeiro de taes honras, restando-lhe
apenas o triste expediente da adopção de um filho
estranho, que, com a herança do appellido de familia,
assuma os encargos da supposta primogenitude.
[214]
―Um filho... um filho ao menos, fôsse elle
embora um aleijado, um monstro, uma migalha de
gente, com o tamanho de um dedo por estatura...
mas um
filho!...―tal o
thema constante, durante
longos annos, das mais gratas esperanças do casal
a que me referi. Quando, pelas rugas nos rostos e
pela alvura dos cabellos, os bons velhos concluiram
que não mais lhes era dado confiar na iniciativa
propria, elevaram então o pensamento aos deuses,
como dispensadores que são de todos os milagres;
encaminhando de preferencia a sua devoção para o
glorioso Myojin, que é
a divindade venerada
no celebre templo de
Sumyoshi, a curta distancia
de Naniwa.
Quasi todas as manhãs
elles se dirigiam
em piedosa romaria,
juntos, cada qual arrimado
ao seu bordão,
pois já as pernas lhes
vergavam ao peso dos
[215]
invernos; e era então um espectaculo deveras commovente,
e supinamente grotesco ao mesmo tempo,
que fazia correr lagrimas e estalejar risadas á gente
que passava, o d'aquelles dois decrepitos, cheios de
uncção e abrazados em fé, erguendo ao
céo as
pobres mãos escarnadas, e implorando o deus para
que lhes desse um filho, fôsse elle como fôsse,
fôsse
elle uma migalha de gente, do tamanho de um dedo
por estatura!...
Ora, succedeu que tendo assim decorrido varios
annos, o deus de Sumyoshi se apiedou por fim de
tantas supplicas dos velhos, e lhes appareceu um dia
para lhes proferir estas palavras:―«Faço-vos a
vontade,
bons caturras, haveis de ter um filho.»―Os
dois pularam de contentes, como se póde imaginar;
galhofando, batendo palmadas amigaveis nas costas
um do outro, voltaram para o albergue. Não tardou
muito que a velha sentisse com alvoroço os primeiros
remoques que prenunciam gravidez; e finalizados
nove mezes dava á luz uma creança, um menino...
Caspité!... Mas reparem agora no ponto mais
surprehendente da aventura: o menino, lindo como
[216]
os amores, tinha a estatura de um boneco, como
esses de porcellana que se usa collocar nos jardins
liliputianos, contidos n'um vaso ou n'uma caixa,
muito do agrado da gente japoneza. O espanto dos
paes foi grande, e a decepção tambem; mas em
verdade
não havia motivo de queixa contra o deus, que
concedêra o que se lhe rogára,―um filho, com o
tamanho de um dedo por estatura.―Era assim.
Issumboshi foi o nome que deram ao
menino, isto
é, traduzindo litteralmente em portuguez: o
Cavalheiro
Pollegada. As chronicas não rezam se foi
amamentado a
biberon, ou se o
mirrado seio maternal
entumeceu de subito e se offereceu solicito aos
labios do garoto. O que é facto é que Issumboshi
foi medrando em graças e em esperteza; não
porém
em tamanho; e quando tinha os seus dez annos era
tal como viera a este mundo. Esta gentil disformidade
trouxe o enfado ao lar e até um certo azedume
[217]
mal contido contra as suppostas bondades do deus
de Sumyoshi. O escarneo era espontaneo nas boccas
dos visinhos; os gaiatos do sitio apraziam-se em
zombarias d'esta ordem:―«Lá está o
anão comendo
arroz! lá vae a
ervilha
passear!»―Emfim, para encurtar
razões, direi apenas que chegou um momento
em que Issumboshi se tornou insupportavel a seus
paes, vergonha viva do casal, sem prestimo presente,
e sem que se lhe suppozesse utilidade possivel no
futuro.
Certo dia decidiram os velhos, embora lhes pezasse,
pôl-o fóra de casa, abandonal-o ao acaso da
fortuna. Foi chamado o menino á presença do pae,
que lhe expôz os motivos da sua
resolução, e lhe
apontou de um gesto o caminho da rua.―«Sim,
papá, partirei sem demora, retorquiu, resignado e
submisso; mas faça-me favor de dar-me antes uma
agulha d'aquellas de que a maman se serve para
coser os seus
kimonos.»―Perguntou o pae
para
que? e foi-lhe respondido que era para usar d'ella
como um sabre, muito proporcionado ao seu tamanho.
Depois pediu á mãe uma tigela de madeira,
d'aquellas que se empregam em servir o caldo ás
[218]
refeições, e mais um d'esses pausinhos que se
chammam
hashi, com o comprimento de um
palmo, substituindo
na mesa japoneza o garfo e a colher.
Perguntou a mãe para que? e foi-lhe respondido
que, para a longa viagem que ia emprehender, a tigela
seria o barco, o
hashi seria o remo,
tudo proporcionado
ao seu tamanho.
Em posse dos utensilios que alcançára da
munificencia
de seus paes, Issumboshi fez-lhe uma rasgada
reverencia e desappareceu de casa.
Eil-o só, o pobre abandonado, entregue ao seu
arbitrio, dispondo como haveres de uma tigela, de
um palito e de uma agulha, collocando esta á cinta,
á laia de catana, com uma palhinha por bainha!...
Que fazer? Para onde ir?... Corria cerca o Iodogawa,
o extenso rio lodoso e calmo que tem suas
origens no famoso lago Biwa, desce a Kyoto, atravessa
Naniwa, e vae perder-se no oceano. Que fazer? Para
onde ir?―«Ir a Kyoto, pensou comsigo o anãosinho,
á capital do Imperio (então não era
Tokyo a capital),
á residencia do Soberano, aonde muitas coisas
curiosas deve haver, dignas de vêr-se...»―E
abalou.
[219]
Seria impossivel relatar as peripecias da viagem,
os mil perigos affrontados por tão exiguo barco, que
uma simples casca de laranja,
boiando á tona de agua,
já punha em risco de naufragio. Issumboshi ia perguntando
aos pescadores o caminho para Kyoto; se
refrescava o vento, abrigava-se junto da estacaria das
pontesinhas que galgavam de uma margem do rio
para a outra margem; pelas noites escuras, ou quando
a fadiga o affligia,
encalhava
o seu barco junto
á terra, por entre a maranha
dos limos e das
plantas aquaticas; e foi
assim, com mais de
trinta dias de derrota,
que abordou uma manhã
á famosa capital do
paiz do Sol Nascente.
Eil-o em terra, bamboleando-se, folgando com o
chão firme, com as palestras da turba, com o cheiro
das tabernas, como effectivamente succede aos
marinheiros após longos dias de cruzeiro, enfadados
[220]
de balanço, de isolamento, de carne salgada e de
bolacha. Issumboshi, pouco maior que um escaravelho,
passava despercebido por entre os muitos
passeantes; assim poude furtar-se a commentarios
zombeteiros e percorrer tranquillamente as ruas da
cidade, embasbacando-se em face dos aspectos grandiosos
que aos seus olhitos sagazes se iam offerecendo.
Por fim, eil-o acercando-se da mais sumptuosa
residencia em que os mesmos olhitos jamais
tinham poisado; era alli que vivia um grande personagem,
o principe Sanjo-no-Saishó, primeiro ministro
na côrte do soberano. Entra Issumboshi resolutamente
no amplo pateo da entrada, e informa
os serviçaes de que pretende fallar ao senhor de tal
dominio. Deu-se
então o comico incidente
de estar
sua alteza muito
cerca e de acudir,
á porta, attrahido
pela maviosa voz
do visitante; como
ninguem visse porém,
ia de novo
recolher-se, resmungando
que teria
[221]
jurado achar-se alli um estranho em conversas
com a gente de serviço; mas um derradeiro olhar
pesquisador revelou-lhe, quasi occulto por detraz
dos seus tamancos, que estavam junto á entrada
conforme o uso do paiz, o curioso figurão que
conhecemos.―«Oh!
exclamou, eras tu, minusculo vivente
que ainda ha pouco proferias o meu nome?»―O rapaz,
polidamente, assegurou que sim, que era elle
proprio.―«E que me queres
então?»―Issumboshi
expôz a sua procedencia, os seus titulos e as tristes
condições em que se via; e concluiu rogando que
lhe desse agasalho, e o admittisse ao seu
serviço.―«Pois
sim, fica comnosco, respondeu sua alteza,
após ligeira reflexão; tu és sem
duvida, continuou,
o homem mais pequeno que tem apparecido n'este
mundo, e a tua historia uma das mais commovedoras
que conheço; não quero perder o léo de
possuir
tamanha galanteria, praticando ao mesmo tempo
um acto meritorio, protegendo-te.»
Embora tam infimo em grandeza, o
Cavalheiro
Pollegada soube mostrar-se utilisavel em tudo em
que o occuparam. Dentro em pouco, tornou-se querido
da familia, o brinquedo, o passatempo predilecto
[222]
para matar enfados, dos quaes ninguem se
livra, e menos ainda os ricos, sempre
ociosos em
seus palacios de regalo. Ko-Haru, a filha do fidalgo,
a mais gentil donzella de Kyoto (que é a terra das
mulheres mais gentis de todo o Imperio), especialmente
lhe votou as suas sympathias, impondo-lhe
o dever―dulcissimo dever!―de acompanhal-a por
toda a parte onde ella fôsse, qual rato sabio que
seguisse a dona em seus passeios...
Entre os dois, a formosa
musumé e a migalha de
gente, passaram-se então graciosas scenas, as mais
tocantes que póde imaginar-se, se imaginaveis
são...
Era um enlevo vêl-o, sempre
vestidinho de guerreiro,
a primor, com roupas de
setim que ella pelos proprios
dedos habilidosos lhe bordava,
e lhe cosia, privando
de carinhos as suas bonecas
favoritas; e Issumboshi, muito
compenetrado do seu papel
de pagem, nunca largando
o sabre da cintura,
arrogava-se uns taes ares marciaes, tão petulantes,
que
a gente morria de rir, ao
[223]
avistal-o!... Se chovia, ou se a excursão se prolongava,
Ka-Haru tomava nas mãos alvas de neve o
seu pequeno companheiro, aconchegando-o ao collo,
ou aquecendo-o ao seio. Issumboshi, é bem de crêr,
possuia, como todo o ser humano possue, um
coração,
embora reduzido ás proporções de uma
cabeça
de alfinete, mas pulsando de gratidão e de ternura.
Aquella convivencia escravisou-lhe a alma. Uma
dedicação
immensa, uns zelos infinitos, um desejo
constante de agradar á sua nobre ama, taes fôram
os sentimentos dominantes no animo do pygmeu.
A sua disformidade permittia-lhe delicadezas, que
aos outros mortaes eram vedadas... (oh, mysterio
psychologico de todos os namorados d'este mundo!
quantos de vós, que lêdes estas linhas, invejareis
a
sorte de Issumboshi!...) Quando, pelas noites calidas
de agosto, Ko-Haru se aprazia em estender-se
sobre a relva dos jardins, Issumboshi, vencido tambem
pela fadiga, poisava e adormecia sobre um dos
pés nus de sua ama, como em leito de marmore
de alvuras resplendentes. Uma vez, caiu dos labios
frescos da donzella uma petala de magnolia, em que
por distracção os dentinhos se entretinham
mordicando:
Issumboshi comeu-a; e durante um dia inteiro
não se serviu de outro alimento, assegurando
com verdade
que aquelle lhe
bastava...
[224]
Aconteceu um dia dirigir-se Ko-Haru ao templo
de Kiyomizu-no-Kwannon (Kwannon é a deusa buddhista
da piedade), a fim de praticar as suas devoções;
como sempre, o anão acompanhava-a. Ora,
de volta, quando ambos desciam o ultimo degrau
da ampla escadaria que dá accesso ao templo, dois
demonios surdiram de improviso das proximas balseiras,
horriveis de figura, herculeos, colossaes, cuidando
sem detenças de raptar a linda peregrina.
Ko-Haru desfaz-se em pranto e quasi desfallece. Issumboshi
retira a espada da bainha (a agulha que
a mãe lhe dera n'outros tempos), perfila-se em frente
dos demonios e brada-lhes assim:―«Vis temerarios,
que commetteis a magna offensa de perturbar em
seus passeios piedosos a princeza Sanjó! sabei que
se um de vós, com um só dedo lhe tocar, commigo
se ha de haver! e, tão certo como ser eu Issumboshi,
assim este meu sabre lhe rasgará a
entranha!...»―Consta
que os diabretes se pozeram a
rir, arreganhando os dentes; e um dos dois, mais
fallador, dignou-se responder com uma vóz de
trovão
que fez afugentar das arvores os pardaes, em
[225]
cinco leguas ao redor:―«Acalma a tua furia, infimo
insecto; não percebes acaso que a lucta contra
nós
é-te defeza? para encurtar razões e
não seres importuno,
vaes vêr o que te faço...»―Levantou-o
do solo, mui delicadamente, com as pontas dos dedos,
e enguliu-o...
Pareceu a Ko-Haru
fugir-lhe a ultima
esperança de
salvar-se. Illudia-se.
Em plenas trevas, escorregando
pela guela
babujenta do monstro,
e penetrando na
enorme rotunda da
barriga, o anãosinho
empunhou o sabre a
duas mãos e foi espicaçando ao acaso, para a
frente,
para a direita, para a esquerda, o ventre, a fressura,
os intestinos; o diabo sentiu-se de repente incommodado,
soffreu ancias atrozes, vomitou o jantar e
Issumboshi de novo appareceu á luz do dia. O outro
monstro tentou em seguida igual ardil, devorando
o pygmeu; d'esta vez Issumboshi subiu-lhe para o
nariz, em cujas fossas sanguineas e felpudas recomeçou
esgrimindo, a ponto de produzir tal comichão,
[226]
que o diabo espirrou, salvando-se o inimigo pelos
ares. Foi então que os demonios se encheram de
pavor, convencidos de que tinham em frente de si
um ente extraordinario, posto que de tão desprezivel
apparencia; e deitaram a fugir...
Muito bem. Agora o heroe cuida de acalmar a
desolada dama, convence-a da ausencia do perigo e
faz-lhe vêr que são horas de seguir para palacio,
onde de certo o pae a espera com anciedade. Ko-Haru
vae partir; antes porém testemunha ao pagem
a sua muita gratidão, promettendo contar á
familia
o succedido, para que chovam justas recompensas
sobre o seu donodado salvador.
Partiram com effeito. Eis que, a curta distancia,
Ko-Haru encontra no caminho um utensilio alli abandonado,
o pequenino martello milagroso de que os
demonios e os deuses se utilisam, certamente esquecido
pelos monstros na ancia de safarem-se.
Tomou-o pressurosa. Perguntou o companheiro o
que era aquillo; e, como ella lhe exposesse que
bastava brandil-o para a gente realisar os seus desejos,
e que elle proprio, se algum desejo tinha, lh'o
[227]
dissesse, que logo lhe seria satisfeito, Issumboshi
berrou, no auge da commoção e da
esperança:―«Altura!
Altura! Altura»―Ko-Haru não percebeu o
que elle queria. Elle então, mais prolixo, explicou
que queria a altura de si proprio, crescer em tamanho,
tornar-se um homem como todos os homens
d'este mundo. O milagre, a um gesto da
musumé,
realisou-se. Issumboshi attingiu n'um momento as
regulares proporções de um guapo
mocetão; ao lado
da princeza, quem se pozesse a vêr aquelle par, diria-os
feitos um
para o outro, de
encommenda...
Chegaram
ao
palacio. A admiração
foi grande;
mas não sei
o que mais commentarios
mereceu, se as peripecias da princeza,
rematadas com tão feliz epilogo, se o milagre do
martello na pessoa de Issumboshi. Logo alli se lhe
mudou o nome, para outro nome apropriado; recebeu
[228]
do seu nobre protector mil recompensas, mais
tarde do soberano mui fartas honrarias, subindo aos
mais altos cargos publicos; mas a mais doce recompensa
que aqui se lhe póde assignalar foi tornar-se
o esposo querido de Ko-Haru, que elle amava, do
fundo da alma, desde o primeiro dia que lhe foi dado
contemplal-a...
Kobe, março de 1902.
O PESCADOR URASHIMA
a
Joaquim Costa
Viveu em remotos tempos, n'um logarejo da
costa do Japão, Urashima, um moço pescador.
D'este simples, pouco ia tagarelando a visinhança:―que
tinha um coração propenso ao bem, e que
em destreza ninguem o igualava, tratando-se de
artes de linhas e de anzoes;―nada mais, mas já
não era pequeno o elogio.
Ora, um bello dia, saiu elle a pescar, sósinho
no seu barco. E que pescou Urashima d'essa feita?
Oh! a sorte sorria-lhe em tal hora... pescou uma
enorme tartaruga, com a casca espessa e dura, a
cabecita rugosa, denunciando assim a grande vetustez;
[230]
é notorio que as tartarugas vivem muito;
vivem
mil annos, no Japão.
Era um opiparo jantar que o acaso offerecia ao
pobre pescador, pouco mimoso de acepipes; jantar,
ceia e almoço, e mais ainda, fóra os lucros que a
casca lhe trouxesse; mas o moço poz-se a scismar
na crueldade que ia
commetter, roubando assim
talvez longos seculos de vida áquelle bruto, fadado
pela sorte ao goso da existencia, durante
gerações
e gerações da tribu humana; e lembrou-se da
mãe,
da santa velha que tantas vezes lhe ensinava a ser
caritativo com os brutos indefezos... É certo que
as mãos abandonaram a presa, n'um largo gesto de
bondade; e a tartaruga,
volvendo á agua sem
se fazer rogada, lepida
mergulhou no azul e se
safou das vistas.
Fazia então tanto
calor!... Era um d'esses
dias abrazadores de
agosto, embebidos de
[231]
paz, de luz, de torpidos affluvios. Além, a aldeia
quedava-se na sésta, amodorrava, jazia em aniquilamento
absoluto; apenas, sobre as arvores, cantavam
as cigarras, doidas de cio, estonteadas... Interrompera-se
nos campos a faina da lavoira; nas choças
escancaradas, patenteavam-se os corpos nús,
estendidos em repoiso, adormecidos, banhados em
suor. E Urashima, no seu barco, vencido tambem
pelos ardores d'aquella hora, largou das mãos os
remos e as linhas, encostou-se á bancada e adormeceu.
No entretanto, eis que surge das aguas um vulto
feminino, encantador. O episodio, que a tradição
do povo foi retendo até aos nossos dias, póde
agora
reconstituir-se em pensamento. Sobre o convez do
esquife, poisa esse vulto, essa fada adoravel de feitiços,
envolta em roupas carmezins, solto o cabello
ás brisas e corôada a fronte com o diadema de
oiro,
que é apanagio das princezas; estende o braço de
neve para o adormecido, toca-lhe na fronte com as
pontas dos dedos delicados, e diz-lhe de manso estas
palavras:―«Acorda, Urashima, escuta-me; eu vou
contar-te quem eu sou; sou a filha do deus do oceano
immenso, habito com meu pae o palacio do dragão,
no seio das ondas; a tartaruga, que ainda ha pouco
colheste e restituiste á liberdade, era eu propria;
[232]
meu pae impoz-me um tal disfarce, para que assim
podesse estudar-te bem os sentimentos; por sua ordem
e meu aprazimento pessoal, serei a tua esposa,
se me queres; mil annos viveremos sempre juntos,
sempre jovens, sempre felizes, no palacio do dragão,
sob o azul das aguas...»
Lá seguem os dois pelo mar fóra. Urashima empunha
a esparrela da pôpa, maneja-a com denodo,
dá-lhe―podera não!―forças herculeas
a ancia de
chegar; a princeza poisa no outro remo as mãos
franzinas, e vae sorrindo ao companheiro. E vão
remando, e vão remando, sem que a fadiga os aquebrante,
até que finalmente o barco alcança o porto
desejado, e já de longe o palacio se desenha, em
arcarias, em grimpas, em mirantes recortados.
Que encanto! que prodigio! nem mesmo a phantasia
ousára imaginar tantos primores!... As paredes
do palacio são de renda de coral; as arvores
do jardim têem por folhas, esmeraldas, e fructificam
em perolas e rubis; as escamas dos peixes são de
prata, os olhos de diamantes, as caudas dos dragões,
de oiro lavrado...
[233]
Então, toda a bicharia do oceano acode á praia,
vestindo
kimonos de cerimonia, e vem
saudar os
noivos viajantes. Após os cumprimentos e os discursos
laudatorios que prescreve a etiqueta em casos
taes, a princeza, seguida do cortejo, entra em
palacio; gorazes e toninhas seguram-lhe a cauda do
vestido; poisa nas fofas esteiras, de uma meticulosa
limpeza indescriptivel, as plantas alvas dos seus pésinhos
deliciosos; descança n'um salão que mais lhe
apraz, pela delicia dos adornos e pela paizagem
que se avista, e a seu lado offerece um logar ao
companheiro. As tartarugas, os peixes, as lagostas,
os dragões, a turba em fim dos escravos jubilosos,
corre a prostrar-se em frente da princeza; e de
joelhos, barbatanas erguidas em offertorio, começa
servindo em taças preciosas o branco arroz cosido,
os licôres, os fructos, os manjares.
Urashima extasia-se diante do que é seu, bem
seu, pois que é de sua esposa. Durante tres annos
assim vivem, sempre juntos, sempre felizes, sem
enfados, sem nuvens de tristeza no céo dos seus
amores; ora na paz da esteira, no enlevo das mãos
que se entrelaçam, dos olhos humidos que se fitam,
das palavras em segredo que se trocam, das almas
enamoradas que se dão; ora perscrutando os mysterios
do oceano, em excursões pachorrentas pelas
[234]
florestas das algas viajantes, por onde a vida aquatica,
de plantas, de animaes, se multiplica em maravilhas
que a ninguem é dado conhecer; ora em
longos passeios pelos jardins, onde as arvores não
cessam de vestir-se de ramos de esmeraldas, vergando
ao pendor das perolas e rubis.
Tres annos decorridos. Um dia porém Urashima
acerca-se da esposa e diz-lhe pouco mais ou menos
o seguinte:―que a adora e se sente ditoso, mas
cresce-lhe o desejo de ir vêr a sua aldeia, o velho
pae, a doce mãe, os irmãos, os antigos
companheiros
de trabalho; e promette voltar após curta
visita.―Então,
pela primeira vez sem duvida, uma ligeira
nuvem de tristeza, um vago presentimento angustioso,
turvaram o olhar sereno da princeza.―«Vae,
diz-lhe; vae, Urashima, porque assim o desejas, embora
bem me pese, pois imagino que vaes expôr-te
a grandes riscos; leva comtigo este pequeno cofre,
que alguma coisa contém que te pertence; sirva-te
elle de lembrança de quem muito te quer; mas nunca
o abrirás, pois se o fizesses, estarias perdido, e nunca
mais voltarias a esta mansão do nosso amor...»
E partiu, e abordou o solo patrio...
[235]
O que quer que era de bem estranho se passára
durante a ausencia de Urashima. Aonde
estava a sua
aldeia? aonde se erguia a cabana de seus
paes?
A mesma praia loira, os mesmos penedos carcomidos,
os mesmos cerros sobrepondo-se, alli lhe appareciam,
bem taes como os deixára, na fria impassibilidade
das coisas immutaveis; mas os povoados
offereciam outro aspecto, os campos outro amanho;
mas as arvores, que lhe haviam dado abrigo e sombra,
e de que tão bem se recordava, erguiam apenas
troncos seccos, algumas, porque outras já nem
mesmo existiam,
e outras
arvores medravam
[236]
n'outros sitios, projectando outras sombras,
fructificando em outros fructos. Aonde fôra a sua
aldeia, surgia agora um pinheiral. Reconheceu o
mesmo arroio, que serpeava junto ao lar; e ainda
agora a agua crystalina ia correndo, e sussurrante,
como dantes; mas agora deserto, faltando o grupo
galhofeiro das
musumés
que tinham por costume ir
alli lavar a roupa, entre ellas as suas tres irmans,
kimonos arregaçados,
pernas núas, braços nús, lidando,
palestrando e rindo umas com as outras.
Ao longo do areal iam então seguindo dois sujeitos.
Urashima alcança-os e interpella-os:―«Bons
dias; fazem favor de me dizer onde é agora a casa
da familia de Urashima?»―Pensaram, consultaram-se,
coçaram a cabeça, buscando
recordar-se.―«Urashima,
Urashima... Urashima, o pescador? tem
graça tal pergunta: ha já quatrocentos annos pelo
menos, como contam, se afogou elle quando pescava
no seu barco, pois nunca mais appareceu; o
seu pae, a sua mãe, os seus irmãos, os filhos dos
seus irmãos, dormem todos além no cemiterio, ha
muito tempo; a cabana que procura, apodreceu antes
de nossos avós serem nascidos, nem o pó d'ella
sequer existe por aqui...»
Então, como um relampago que acode subitamente
pela noite, a illuminar a estrada, uma idéa
[237]
acudiu de subito ao pensamento de Urashima, a
allumiar-lhe o espirito. Elle alli estava, volvido á
patria, poisando os pés descalços no areal da sua
querida aldeia, relanceando as curvas da paizagem
em que por tantos annos a vista se poisara, e a
recordação
lhe gravára para sempre na memoria.
O palacio do deus do mar, no abysmo das ondas,
com as suas paredes de renda de coral, com os
seus pomares de folhas de esmeraldas e fructos de
perolas e rubis, e os seus peixes de escamas prateadas
e olhos de brilhantes, e os seus dragões de
caudas de oiro fino, não pertencia á terra, era
do
mundo dos prodigios, regia-se pelas leis do encantamento;
um dia, dos seus dias, valia por muitos
annos, dos nossos annos; e assim, sem que Urashima
o suppozesse, seculos sobre seculos haviam
passado sobre a terra, matando, destruindo, transformando,
arrastando as coisas e os individuos á
fatalidade dos destinos, ao aniquilamento, ao pó, ao
nada, surgindo das ruinas outros aspectos e outros
seres...
O antigo pescador sentiu o calafrio da sua soledade;
e o disparate anachronico da situação em que
[238]
se via, incutiu-lhe no animo não sei que horrivel
oppressão de angustia e de pavor. Patria? sim, a
mesma areia inerte e os mesmos monstros de granito;
mais nada. Aldeia, amigos, aspectos familiares
da sua mocidade, nada havia; outras aldeias,
outros aspectos, outra gente, e para esta o nome de
Urashima entrava já na lenda. Em nada o captivava
aquella terra. O anceio de fugir, de volver ao esplendor
do seu palacio, acudiu-lhe então, dominador;
e a imagem das mil graças da princeza multiplicava-lhe
o desejo de abandonar para sempre o solo onde
nascera. Lançou um olhar de adeus ao cemiterio,
esse no mesmo poiso ainda, mas mais vasto e mais
povoado de freguezes; e ia partir, deixar em paz a
aldeia morta...
Antes porém lembrou-se de abrir o cofre que
recebera da princeza. Porque? Talvez leviandade,
talvez mofino séstro, que tantas vezes guia o homem
a seguir pelo caminho prohibido... Do cofre aberto,
que continha nada menos do que a essencia dos
longos annos corridos, e ao mesmo tempo descontados
na existencia de Urashima, escapou-se e pairou
no espaço uma ligeira nuvem esbranquiçada.
Chamado á razão, ao sentimento da desobediencia
em que incorrera, e ao medo de um desastre, Urashima
correu sobre essa nuvem, desvairado, e bradou-lhe
[239]
que parasse. Era tarde. De prompto, as
proprias forças lhe faltaram, e a voz se lhe extinguiu;
a nuvem envolvia-o; a nuvem transportava-o ao seu
justo logar nas paginas do tempo, fazia-o galgar de
um pulo a grande barreira que o afastava dos seus
contemporaneos; as leis da terra tinham pressa em
corrigir erro tamanho... Repentinamente, os cabellos,
a barba, branquejaram como linho, sulcou-se
o rosto em rugas, estalou a pelle do corpo, os ossos
romperam para fóra, as costas dobraram-se n'um
arco, viu-se como um macrobio não sei quantas
vezes secular, como um esqueleto em férias, fugido
do sepulcro, faltou-lhe o ar, faltou-lhe a luz, morreu,
caiu, desfez-se em pó, desfez-se em nada...
1900.
INDICE
|
Pag. |
As Borboletas |
1 |
A Alforreca |
9 |
O Anno novo |
20 |
A Primavera |
30 |
Nilguyo |
50 |
O Cavallo Branco de
Nanko |
62 |
A primeira formiga |
78 |
Os Diabos e os
velhos |
90 |
Pan-Man-Chen |
98 |
A Caricatura no
Japão |
107 |
Dois Cemiterios
Japonezes |
134 |
O Espelho de
Matsuyama |
153 |
Amôres |
164 |
Um pintor de gatos |
171 |
Impressões
rapidas |
181 |
Issumboshi |
213 |
O Pescador Urashima |
229 |
Livraria Editora VIUVA TAVARES CARDOSO
5, Largo de Camões, 6―Lisboa
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Notas:
[1] Official
da marinha morto em 25 de outubro de 1902.
Vivia, quando o auctor lhe consagrava este capitulo.
[2] Os
desenhos que illustram este conto são
originaes do
proprio W. de Moraes.
Lista de erros corrigidos
Aqui
encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
As figuras podem não estar no sítio original.
Algumas foram movidas para que os parágrafos não
fossem cortados.