The Project Gutenberg eBook of Paisagens da China e do Japão

This ebook is for the use of anyone anywhere in the United States and most other parts of the world at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this ebook or online at www.gutenberg.org. If you are not located in the United States, you will have to check the laws of the country where you are located before using this eBook.

Title: Paisagens da China e do Japão

Author: Wenceslau de Moraes

Release date: May 20, 2008 [eBook #25537]
Most recently updated: July 26, 2015

Language: Portuguese

Credits: Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal)).

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK PAISAGENS DA CHINA E DO JAPÃO ***

Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Maio 2008)




PAISAGENS DA CHINA E DO JAPÃO




WENCESLAU DE MORAES


Paisagens
da
China e do Japão










LISBOA
livraria editora
VIUVA TAVARES CARDOSO
5, Largo de Camões, 6

1906





LISBOA

Typ. de Francisco Luiz Gonçalves
80, Rua do Alecrim, 82

1906







A Camillo Pessanha e João Vasco


Nos baldões da vida bohemia, na confusa successão dos dias e das scenas, acontece que os factos, as coisas, os individuos, invocados pela pobre memoria exhausta, vão perdendo pouco a pouco as suas qualidades intensivas, as suas côres, os seus contornos, a sua feição propria, emancipando-se do real, como uma pagina de aguarella desmerece, solta e perdida no espaço e voando com as brisas; diluindo-se por fim n'uma emoção generica, vaga, indifinivel,―a saudade.―A essas duas grandes saudades, Camillo Pessanha e João Vasco, dedico hoje este livro.


Kobe, 10 de Abril de 1901.

Wenceslau de Moraes.





AS BORBOLETAS



a J. Moreira de Sá.


A lenda das borboletas.

São tão lindas, as borboletas! Quem as vê, que não lhes queira? ahi vagabundando pelo azul dos campos, razando as corollas frescas, amando-se, beijando-se, libertas da larva abjecta, como almas de amantes despidas da miseria terreal, a viajarem no infinito... São tão lindas, as borboletas!...

Mas na China são talvez mais lindas do que todas. É um deslumbramento surprehendel-as na quietação dos bosques, voejando aos pares, que se tocam, que se abraçam, e enfiando pelas sombras mysteriosas dos bambuaes, com as suas longas azas [2]palpitantes, lancioladas, em matizes maravilhosos, de negros avelludados, de azues meigos, de amarellos quentes, como se as loucas vestissem cabaias de setim, de sedas de alto preço...



Choc-In-Toi, a deliciosa Choc-In-Toi, habitava, ha longos seculos, uma pacifica aldeia do Yang-tsze-kiang, não longe do logar que hoje se diz Shanghae. Como fosse muito dada a estudos litterarios e as escolas do seu sexo não lhe satisfizessem a ambição, conseguiu que seus paes lhe permittissem o disfarçar-se em homem, e assim abalou, a ir frequentar a mais famosa universidade do imperio. Volveu ao lar apóz tres annos; volveu tão pura como fôra; da sua innocencia ha provas irrecusaveis. Para não divagar muito n'estas paginas, basta dizer a quem me queira ouvir, que um lenço de seda branca, que ella enterrara na lama em presença d'uma sua cunhada predisposta a vaticinar-lhe rudes lances, foi depois tirado sem uma só mancha e sem um só farpão, branco, puro, como a alma da donzella; e basta saber que as flôres da sua preferencia, que ella deixára no jardim, rogando aos deus Choc-In-Toi, a deliciosa Choc-In-Toi, habitava, ha longos seculos, uma pacifica aldeia do Yang-tsze-kiang, não longe do logar que hoje se diz Shanghae. Como fosse muito dada a estudos litterarios e as escolas do seu sexo não lhe satisfizessem a ambição, conseguiu que seus paes lhe permittissem o disfarçar-se em homem, e assim abalou, a ir frequentar a mais famosa universidade do imperio. Volveu ao lar apóz tres annos; volveu tão pura como fôra; da sua innocencia ha provas irrecusaveis. Para não divagar muito n'estas paginas, basta dizer a quem me queira ouvir, que um lenço de seda branca, que ella enterrara na lama em presença d'uma sua cunhada predisposta a vaticinar-lhe rudes lances, foi depois tirado sem uma só mancha e sem um só farpão, branco, puro, como a alma da donzella; e basta saber que as flôres da sua preferencia, que ella deixára no jardim, rogando aos deuses que as conservassem frescas como ella, assim se conservaram durante a longa ausencia, embora, como consta, a [3] cunhada as fosse regando com agua quente tirada da chaleira.



Durante os tres annos de seu estudo, um companheiro, por nome Leun-San-Pac, intimamente se lhe afeiçoou. Era o seu camarada inseparavel, o seu irmão; dormindo juntos, conversando juntos, estudando juntos, divagando, sonhando; e o lorpa do mocinho nunca se apercebeu que tinha a seu lado uma mulher.

Quando soou a hora das despedidas, cortava o coração vêr o rapaz, lamentando o futuro isolamento, a perda d'um amigo como aquelle. A moça consolava-o. A moça poisava-lhe nos hombros as suas mãos gentis, e exhortava-o a que se enchesse de coragem, a que se entregasse ao amor do estudo, té alcançar um alto grau de sapiencia.―«E depois, dizia-lhe ella entre soluços, e depois, se com saudade te recordares [4] ainda de mim, abala, vem vêr me á minha aldeia.»―E dava-lhe indicações precisas do logar. Despediram-se, entre choros.

A donzella esperou, esperou, esperou,―quem poderá descrever esse tormento? guardando da familia o seu segredo; e o moço não apparecia. Segundo os usos do paiz, os paes destinaram-lhe um marido; e ella, a desolada, escrava da obediencia filial, obediencia cega, indiscutivel, que é a base da vida inteira moral do povo china, inclinou-se, acceitou, sem que uma só queixa proferisse.

Tres dias decorridos depois do contracto nupcial, eis que chega á aldeia o pobre Leun-San-Pac; pobre, porque a desventura se lhe acerca; mas rico de erudição, de uma alma culta, e occupando um logar proeminente. Encontra o seu amigo, encontra o seu irmão; mas agora sem disfarces, na graça plena dos seus enlevos femininos, na gentil elegancia das vestes que lhe são proprias, e com grinaldas de flores na trança negra. De começo, este enigma, pouco a pouco explicado, confunde-o, desnortea-o; mas tudo se aclara; da amisade ao amor o salto é rapido. Oh! elle ama-a agora, elle ama-a de todas as forças do seu ser; e no olhar de fogo transluzem mil mysterios de adorações e de desejos!... É tarde. A palavra dada ao feliz noivo não se quebra. Os velhos [5] paes prezam mais do que tudo, a propria honra.

Elle parte; elle parte para um logar visinho, louco, com a alma embebida no fel dos desesperos. É ainda ella, a doce pomba obediente, que tenta consolal-o. Ella escreve-lhe; ella diz-lhe que a vida não é eterna; que a piedade filial arrasta-a a um consorcio que só lhe vaticina dores e prantos; mas que as almas são livres, emigram d'uns corpos para outros; encarnam-se n'outros seres; que elle socegue, aguarde outra existencia, para a qual ella lhe jura será a sua companheira, toda fidelidade e toda amor. Leun-San-Pac lê, faz um bolo d'essa carta, onde tão demoradamente poisara a mão da sua bella, e engole-o, e suffoca-se com elle, e exhala assim na solidão o ultimo suspiro. Um pouco além, sobre a montanha, se lhe elevou a sepultura.



Soam bategas festivas, estalejam nos ares fogos de gala, de alegria; e pela longa estrada em ziguezague, bordada aqui e alli de bambus e bananeiras, doirada pelo sol do meio dia, serpea em rutilantes theorias o monumental cortejo do noivado, caminho do lar feliz.

O estylo de ha mil annos é o mesmo estylo de [6] hoje. São os grandes balões, os estandartes, conduzidos por moços vestidos de vermelho. São os enxovaes primorosos, as cabaias, a collecção dos sapatinhos, tudo disposto nas liteiras luzentes dos esmaltes. São as colossaes peças de doçaria, castellos de assucar, dragões de assucar, coisas espantosas. São os porcos assados, loiros, deliciosos, espalmados sobre os taboleiros, com laços de fita nos focinhos. São as orchestras estridentes, de flautas, de rebecas. São as creanças ataviadas em setins, em allegorias de scenas de outros tempos, cavalgando alimarias pachorrentas. É finalmente a liteira da noiva, toda ella oiros, toda ella esmaltes, fechada como um cofre, furtando á vista dos curiosos o precioso fardo, Choc-In-Toi.



A noiva solicita do cortejo um curto desvio na sua marcha. A noiva, antes de entrar no lar e de [7] ser esposa e escrava, quer abeirar-se, além, d'aquella sepultura esquecida na montanha, e orar junto dos restos do que morreu por ella. Quem lhe recusaria tal licença? Eil-a que desce da liteira, nas suas cabaias deslumbrantes; e eil-a que se prostra, eil-a que beija a terra...

A terra abre-se então, carinhosa, mãe; a terra traga-a, chama-a a si, chama-a para junto dos ossos do seu querido. A comitiva pasma do milagre. As mãos avançam a detel-a; mas só logram colher um pedaço do vestido, que se rasga, e é tudo... O pedaço de seda, de mil matizes, transforma-se de subito n'uma borboleta de mil côres, que vôa das mãos rudes, e desapparece no azul, desapparece!... É desde aquella epocha que ha borboletas n'este mundo, tão lindas, tão cheias de matizes!...



Eu não lhes estou contando uma mentira, meus [8] amigos. Ainda hoje se vê a sepultura, esboroada pelos seculos, d'aquelles amorosos. E as esposas desprezadas alem vão em romaria, e d'aquella terra bemdita se suprem ás mãos cheias, e d'ella provam, e disfarçada com o arroz a ministram aos maridos. Consta que o estranho tempero, aquella terra, que em alguma coisa participa da essencia dos amantes que ali jazem para sempre, tem virtude comsigo, e é sempre efficaz em trazer ao bom caminho os mariolas, os maridos.




A ALFORRECA



a Henrique Carvalhosa.


Falla a lenda japoneza.

Antigamente―e quem sabe se ainda hoje!―no seio do oceano era o reino faustuoso dos dragões. Por longos annos, o senhor d'este reino, o dragão real, viveu celibatario, n'uma existencia descuidosa; e sabem só os deuses, e não nós, quantas noites de dissipação, em companhia de tartarugas e lagostas ligeiras de costumes, que lhe cantavam trovas ao som do shamicen e lhe iam servindo saké em ricas taças, quantas noites elle passou em travessas intimidades amorosas!...

Verdores, que passam breve. Um bello dia, resolveu [10] casar-se, o bom soberano. A noiva escolhida foi uma joven dragôasita, dezeseis annos apenas, adoravel, digna pelos seus mil encantos de ser a consorte feliz de tal senhor. Explendidas foram as bodas por essa occasião, segundo consta: sem já fallar na côrte intima, toda a bicharia aquatica, peixes, mariscos, molluscos, todos vieram processionalmente, em cardumes, em bellos kimonos de sedas encarnadas, offerecer seus respeitos e presentes; e foram, durante longos dias, estupendos regabofes, em danças, em musicas, em banquetes...



Mas nem os dragões escapam ás duras provações da existencia! Ainda bem um mez se não passára, quando a augusta soberana caiu doente; e taes cuidados inspirou desde logo o seu estado, que era uma lastima observar as trombas compungidas dos fidalgos, commentando [11] baixinho, em lamentações do seu officio, o triste caso. Reuniram-se os doutores em conferencia; fallaram muito, discutiram muito, sem chegarem a accordo, como sempre succede; consultaram-se abalisados alfarrabios de therapeutica; as barbatanas incançaveis rabiscaram um milhão de receitas milagrosas, e todas as tisanas se serviram. Baldado intento; a soberana extinguia-se; e afinal os focinhos dos sabios, n'um tregeito de piedade e desengano, tiveram de ser francos, de declarar que a sciencia―já n'aquella epoca se enchia a bocca com a sciencia―que a sciencia nada mais podia fazer, e que um angustioso desfecho era de esperar-se.



Do seu leito de enferma, de entre os futon, as fofas colchas de setim, agita as tremulas patinhas a rainha; chama junto de si o esposo, e diz-lhe estas palavras ao ouvido:―«Uma só coisa me salvará: arranquem o figado a um macaco vivo, e consintam que o devore; recuperarei a saude....»―O rei não poude reprimir um gesto de surpresa, quasi de enfado, e todo se lhe erriçou o bigode façanhudo:―«Um figado de macaco! estás louca, minha querida!...»―Ella promptamente retrucou:―«Louca, porquê? Vossa magestade esquece por ventura, [12] que nós, o grande povo dos dragões, no mar vivemos sempre; emquanto que os macacos, muito longe d'aqui, vivem na terra, nos bosques, entre as arvores, nutrindo-se de fructos... No figado do mono alguma coisa virá que participe d'esse mundo, tão diverso, tão outro; e essa particula estranha, senhor, me salvaria!...»―E a rainha, a quem as lagrimas acodem, prosegue n'um tom reprehensivo e lastimoso:―«Uma insignificancia, um nada, pedi, e esse nada vossa magestade me recusa. Julgava merecer-lhe mais affectos. Dispa-me d'estas pompas de soberana, não as quero; dê a corôa a outra esposa, mais digna, mais formosa; consinta que volva ao ninho carinhoso de meus paes...»―A voz suffoca-se em soluços, não pode mais proferir uma só queixa...

O rei dos dragões não queria passar, entre damas [13] por um dragão cruel; por demais conhecia elle os caprichos pueris do sexo fragil, mas perdoava-os complacentemente, por systema; e sobretudo adorava a esposa, cujas lagrimas desejaria poupar a todo o transe. Satisfaça-se pois o capricho da rainha. Mandou chamar a sua escrava mais fiel e dedicada, a alforreca, e disse-lhe o seguinte:―«Vou dar-te uma espinhosa tarefa, minha velha, mas confio na tua dedicação nunca mentida; preciso que emprehendas uma longa viagem, que nades até junto da terra, e alli convenças um macaco a vir comtigo a estes meus reinos; falla-lhe, para o resolveres, da magica belleza d'estes sitios, tão differentes dos seus, e da gentileza d'estes meus subditos felizes; mas o que eu realmente quero n'este caso, é que se arranque o figado das entranhas de tal mono, e se sirva como medicamento á tua joven ama, que, como de certo sabes, se acha em perigo de vida, a desditosa.»

[14] Lá vae, oceano fóra, vento em pôpa, a alforreca, emissaria obediente e ufanosa do encargo. Por aquelles tempos, a alforreca, como qualquer bicho das aguas, era um animal gracioso, de contornos esbeltos, com cabecinha, com olhinhos, com mãosinhas, e com a competente cauda titillante; e ficava-lhe tão bem o fato de marujo!... Lá vae, oceano fóra, olhar sereno e cogitador, rompendo a vigorosas braçadas a onda fria. Não tarda muito a abeirar-se do paiz onde vivem os macacos; por felicidade, um alem está, um lindo mono, saltando de ramo em ramo, dependurando-se das arvores que enraizam nos penedos e se debruçam sobre o mar.―«Bons dias, senhor macaco. Eu venho aqui expressamente para fallar-lhe d'um paiz longinquo, muito mais bello do que o seu; é elle situado alem das ondas e conhecido pelo reino dos dragões; alli, não ha estações, é eterna a amenidade do clima; alli, nas copas das arvores repolhudas, constantemente amanhecem avelludados fructos saborosos, é colhel-os, não ha outra tarefa; para cumulo do conforto, essas creaturas malfazejas, homens chamados, não pisam taes paragens. Se lhe agrada vir commigo, eu serei o seu guia; não tem mais que fazer do que saltar d'esse tronco para cima do meu lombo...» O macaco achou gracioso isso de ir vêr novos paizes. Vá lá[15] mais esta extravagancia á conta da bohemia simiesca.―«Ao largo, amiga!»―E lá foram os dois; porém, a meia travessia, pensou tardiamente o mono na temeridade do seu feito, expondo-se assim ao arbitrio d'um extrangeiro, e abandonando a sua patria. Decidiu-se emfim a perguntar:―«Que pensa você que vão fazer de mim na sua terra?»―A alforreca deveria agora ser discreta, encapotar as respostas em evasivas; mas oiçam lá o que ella deu em troco:―«Eu lhe digo: meu amo, rei dos dragões, ordena ao senhor macaco que arranque o proprio figado, o qual vae ser servido á nossa soberana, hoje enferma, e salval-a da morte.»―Então o mono, guardando para si os commentarios que o caso suggeria, disse cortêzmente, que era para elle uma alta honra e um esperado prazer, o assim tornar-se util a sua magestade; acrescentou, porem, que agora se lembrava de ter deixado o figado dependurado n'um tronco de arvore, aquelle mesmo castanheiro d'onde saltara para as costas da alforreca. Continuou discursando em linguagem fluente, de orador emerito, descendo [16] a explanações minuciosas; e explicou como o figado era uma coisa bastante pesada, embaraçosa, um quasi alforge de peregrino, um empecilho que elle costumava pôr de parte, durante o dia, para se entregar mais á vontade aos seus exercicios de acrobata; habitos de familia, já seu avô fazia o mesmo; e concluiu, que o melhor que tinham a fazer n'este momento, era voltarem para trás, e na arvore encontrariam o figado em questão.

Não pôz objecções a nadadora. Voltando á terra, o macaco saltou ao castanheiro com uma ligeireza nunca vista, nem mesmo entre macacos, acompanhando o pulo d'uma alegre careta e d'um gesto que traduzia o jubilo do bestunto, coisa que passou estranha á alforreca. Procurou entre as folhas o seu figado. Não o encontrou. Explicou então do alto, á alforreca, que provavelmente algum companheiro o levára para longe, o que o obrigava a mais demoradas pesquisas pelo bosque; no entretanto que fôsse ella contar o caso ao seu senhor, que devia estar ancioso por vêl-a chegar antes da noite.



Assim procedeu o bicho.

El-rei, que a esperava, e que a escutou, enraivecido por tamanha ingenuidade―para não lhe chamar [17] coisa mais feia,―mandou logo vir da maladia um bando dos seus mais soberbos samurais, e ordenou-lhes que malhassem no bicho á pancada, até cançarem. O castigo foi cumprido, e com esse vigor de braços de villões, que miram aos applausos do monarcha. É esta a razão porque a alforreca, hoje em dia, não tem pernas, nem cabeça, nem cauda, nem barbatanas: tanta pancada levou, que ficou reduzida a esta miseria, massa informe, um farrapo, um pedaço de gelatina, boiando despresivelmente á mercê do turbilhão das vagas.

Com respeito á soberana, reconsiderando no disparate do seu capricho, concluiu que o melhor que tinha a fazer era erguer-se da cama e pôr-se bôa; e assim fez, com grande pasmo dos doutores.



A historia da alforreca está contada, na sua simplicidade commovente. É veridica esta historia, como tudo que o povo relata de memoria; creia n'ella quem crê. Fica-se já sabendo no entretanto,―e é isto d'um proveitoso ensinamento,―que os japonezes tão prodigamente propensos ao perdão para tantos pecadilhos de alma e de costumes, castigam os patetas.

Diga-se francamente: esta desgraça da alforreca, [18] no paiz do sol nascente, era inevitavel; e o caso presta-se a interessantes commentarios, que eu vou resumir em poucas linhas. Os japonezes―povo de artistas―são os grandes amorosos da creação, da forma, da vida; ninguem como elles conhece os segredos da ave, do insecto, do reptil, do peixe, dos molluscos, do verme, de todos os seres da terra; a animalidade graciosa d'esses seres, estudada com percepções especiaes, que nos escapam, constitue o thema mil e mil vezes variado, dos seus primores de arte. Mas esse monstro, essa disformidade, essa alforreca que se apresenta como unica excepção da lei geral da gentileza da vida, e parece resumir em si o enfado inteiro d'um dia de mau humor do Omnipotente, devia ter deixado impressões tristes nos primeiros japonezes que a avistaram; e foi preciso arranjar logo uma explicação condigna do phenomeno, e é a que ficou descripta n'estas linhas.

É ainda interessante recordar de passagem a [19] approximação, pela desdita, da alforreca japoneza com a medusa mythologica da Grecia, não merecendo esta melhor tratamento dos deuses olympicos. Curiosa coincidencia!



O ANNO NOVO



a Feliciano do Rozario.


Temos festa hoje, aqui. Acaba o anno velho, começa o anno novo. Mas não vão imaginar que seja do anno novo de que rezam os nossos calendarios, a commemoração; tal commemoração, aqui, no fim do mundo, no seio d'esta colonia nostalgica, passa insipida, quasi sem alvoroços intimos de familia, limitada á troca banal―troca sem cedilha e com cedilha―de algumas duzias de bilhetes de visita, com as competentes boas-festas escriptas, da pragmatica. Trata-se do anno lunar que finda, do anno lunar que principia, o anno chinez emfim, a ampulheta que marca para o povo amarello as suas horas de existencia; [21] vamos entrar no anno XXII do reinado de sua magestade imperial celestial, Kuang-Su.





Temos festa hoje, aqui. A alma chineza manifesta-se, evidencea-se, domina, hoje; offusca, pela grande maioria dos rabichos, o pallido reflexo da civilisação do Occidente que logrou chegar a este Macau, a este exiguo penedo asiatico, onde Portugal implantou a sua bandeira.

Meia noite. Ao meu obscuro albergue, chega, de alem dos bazares, o ruido da bombardada amotinadora dos foguetes, e das mil e mil embarcações fundeadas no porto o clamor ovante das bategas, vibradas pelas mãos rudes das companhas. Que irá lá por esses bazares, a estas horas, santo Deus!... Eu não me arredo do meu canto. Bem sei que a febre das massas suggestiona, contamina todos. Bem sei que não se dorme hoje; que não ha chapéo de côco de amanuense ou kepi de militar, direi mesmo chapelinho de pellucia com laçarotes de setim e seu competente passaro empalhado, de menina, que não vá correr as viellas, perder-se na onda, confundir-se com os rabichos, gosar com elles. Mas está tanto frio, e as bagas de agua zurzem-me tão desapiedadamente [22] os vidros das janellas... E, peor do que isto, é o frio da alma, é a apathia enervante do meu espirito, é o sorriso amargo que me enruga os labios, provocado por esse mesmo jubilo do enxame, que aqui me retêem e me impedem de tambem ir galhofar.



Não, decididamente não serei da festa. Imagino-a d'aqui. Imagino essas ruas lamacentas, coalhadas de povo sujo, com as cabaias negras ensopadas dos chuvascos; e imagino os lumes tremeluzentes das lanternas de papel, accendendo nas poças, pelo reflexo... grandes labaredas ephemeras, ziguezagueando. As lojas estão escancaradas ao publico; fructos, flôres, doces, carniças, bonecos, coisas santas, estendem-se [23] pelos caminhos em prodigiosas theorias, em coloridos quasi estonteantes; e é comprar, e comprar já, porque não tarda em romper o glorioso dia de descanço, o unico na China em que o camponez, o artifice, o vendilhão, todos, cruzam os braços, não trabalham; e nem a peso de ouro se encontraria um linguado, uma caixa de phosphoros, qualquer infimo objecto nos mercados. As espeluncas de jogo, em galas desusadas, offerecem-se, tentam a onda; e até pelas ruas o taboleiro de azar se estende ao passeante. Que pechincha, se se apanha para a festa um accrescimo de peculio não esperado! O china adora o jogo―era preciso que elle adorasse alguma coisa!―mas hoje todos jogam, todos são chinas, e é isto um exemplo interessante da influencia suggestiva das grandes maiorias; a mão mais circumspecta de funccionario, a mão mais mimosa de dama (de nhônha, em dialecto vulgar d'esta colonia) avançam sem pejo, arriscam á sorte varia umas pratinhas...

Quando bate meia noite; quando, junto do altar dos penates, se curvaram em piedosas adorações milhares de cabeças agradecidas, e se queimaram papeis mysticos, e se accenderam pivetes odorificos; quando em plena rua um brado de alleluia os echos acordou; dirige-se então a onda humana para o lar, [24] já mercas feitas, já bolsas esvasiadas; e vae surgir um grande dia votado inteiro ao descanço, votado á glorificação dos deuses, cuja magnanima assistencia se exalta pelas graças concedidas e pelas graças que vão esperar-se!....

Mesquinha humanidade! como tu me entristeces, ó pobre humanidade, ó pobre familia minha, ainda mais nos teus regosijos e nas tuas esperanças, do que nos teus choros e nos teus desenganos!... Para este bando chinez com quem me encontro agora, que explosão de bençãos lhe estimula a sentimentalidade? que altos beneficios commemora? O bando abençoa a sua eterna existencia de miseria, a miseria passada, a presente e a que fatalmente vae seguir-se-lhe. Abençoa a labuta sem treguas, em busca do punhado de arroz de cada dia; ora exercida no lar immundo, sem sombra de conforto; ora exercida pelos campos, nas varzeas, nas collinas, no amanho da terra, sob a oppressão constante dos raios do sol que escalda, ou dos frios que paralysam; ora exercida nos barcos, que se cruzam na podridão dos estuarios, ou pairam sobre a onda adormecida durante as calmas torpidas, ou se desfazem no escarceo, quando os tufões rugem em furia. O bando abençôa a fatalidade da sua condição social, o problema espantoso, paradoxal, do seu feitio de ser, que em [25] todas as depravações, em todas as iniquidades imaginaveis, parece ir buscar as leis unicas por que se rege. O bando abençôa ainda as calamidades tremendas, que n'estes ultimos tempos, como uma maldição divina, teem pairado sobre a immensa patria:―nas provincias do sul, nos seus centros mais populosos, é a peste, a peste negra, roubando em cada lar um ou dois filhos, ou o pae, ou a mãe, ou mesmo todos juntos, e vestindo de lucto, de tristes roupas alvas, os parentes, e ameaçando estabelecer-se definitivamente, enraizar como uma arvore de peçonha, d'onde emanará a cada instante o veneno subtil, destruidor das turbas; e, para cumulo de infortunio e de descredito, um visinho, um povo irmão, o povo japonez, invade, vence e desbarata a China, morde e come pedaços do seu torrão sagrado, envergonha-a, offerece-a ao escarneo do mundo na miserrima condição da sua plebe e na opulenta infamia dos seus nobres, desprestigiada emfim, indefeza á cubiça das gentes, aos homens loiros da Europa, que não tardarão em vir espezinhal-a.―Embora! esqueçam-se hoje as miserias, vista-se o povo em gala, chovam bençãos sobre o anno que começa. E amanhã, decorridas algumas horas de folgança, recomecem, prosigam,―pouco importa!―os turvos dias de amargura, a fatalidade da existencia no antro, [26] a dura labuta no campo e no barco, a faina eterna, a orgia torpe dos maridos, a escravidão das esposas, a venda das filhas a quem mais der, os horrores da prostituição, as vergastadas nas creadinhas, as extorções dos mandarins, as torturas nos carceres, a morte lenta nos patibulos, a obra de destruição das epidemias e do opio, as humilhações perante o vencedor, as exigencias do Occidente, as arrogancias dos homens loiros...



Para o anno novo, tudo se prepara com antecedencia, em prodigiosa azafama; é para todos uma occupação incessante e desusada, durante as ultimas semanas do anno que vae findar. Lavam-se os covis, lavam-se as podres mobilias. É o pó d'um anno que se sacode, [27] é a lama d'um anno que se deita fóra, é o piolho e é a pulga d'um anno que se afogam na onda das barrelas; porque, durante os labores de cada dia, nunca a idéa de limpeza preoccupou os espiritos durante um só instante. Tudo é providencial neste mundo, ao que parece. Na chafurda typica d'estas povoações chinezas, tão frequentemente visitadas por todas as pragas―cholera, peste, lepra,―embebidas no lodo dos canaes, no ambiente das emanações dos estrumes pachorrentamente acogulados e dos despejos que apodrecem pelas ruas, custa a crêr como a gentalha pollula, e como os consorcios fructificam em ninhadas de garotos; e parece á gente que um sopro qualquer destruidor, de calamidade immensa, irá em breve prostrar esses enxames, sem que deixe de pé um só vivente nos albergues. Puro engano: as povoações eternizam-se. No parecer de alguns investigadores, que taes exotismos interessam, se os miasmas putridos convidam as epidemias a entrar e a vindimar providencialmente as muitas vidas que superabundam, estes mesmos miasmas, sobrecarregados de vapores de ammoniaco, de exhalações corrosivas de fermentos, se encarregam de ferir tambem mortalmente os virus morbidos, poupando o resto do povo. Chegamos ao facecioso paradoxo de [28] ser na China a immundicie o purificador por excellencia, um como que elixir de longa vida, indispensavel a todas as familias, feito da mais estupenda alchimia de dejectos.

Conceda-se pois, por excepção, a este bom povo celestial, o capricho de lavar uma vez cada anno o antro onde se abriga. Depois, é ver a faina de collar pelas paredes, pelas portas, pelas janellas, papeis de bella côr escarlate, com negras inscripções cabalisticas, que são votos de ventura e de riqueza, que são preces aos deuses. E chega a occasião de se adornarem os altares, de se irem comprar junquilhos em flor, que se dispõem em vasos gentis com agua e seixos alvos, e assim vão enfeitar os aposentos, levando o viço e o perfume, por um dia, aos negrumes das alcovas. No meio do complicado rito das usanças, algumas praticas enternecedoras, de ingenuidade primitiva, interessam o curioso. Reparem por exemplo nas enormes celhas expostas pelos mercados, onde enxames de pequeninos peixes negros, carpas [29] barbudas, estrebucham na gotta de agua do improvisado captiveiro; o povo compra-as, e vae lançal-as em seguida nas ribeiras, gosando na acção do resgate, por certo grata aos deuses, e que redundará em beneficios...



A PRIMAVERA



a Camillo Pessanha


Ha alguns dias, na cidade de Kobe,―poderia precisar o dia, e quasi a hora, se tamanho rigorismo me exigissem,―irrompeu a Primavera. Irrompeu: não ha sombra de exagero no vocabulo. Irrompeu, surgiu d'um pulo, fez explosão. N'este paiz do Sol Nascente, onde o sol, e com elle todas as grandes forças naturaes, são ainda uns selvagens―se [31] assim posso expressar-me―uns selvagens sem freio, sem noção das conveniencias, incapazes de se apresentarem de visita, de luvas e casaca, n'uma côrte qualquer da nossa Europa; n'este paiz do Sol Nascente, ia eu dizendo, a creação inteira apostou, parece, em offerecer em cada dia uma surpresa, toda ella exuberancias inauditas, espalhafatos unicos, repentismos nervosos, caprichos doidos, como se reunisse em si a quinta essencia da alma das creanças e a quinta essencia da alma das mulheres, a gargalhada, a troça, emfim, motejadora de tudo quanto é ordem, harmonia, contemporisadora lei das transições.

Hontem, foi um inverno duro, gelido, vestido apenas d'uma ampla tunica de neve. Hoje, d'um salto, o sol rompeu em quenturas amorosas, começaram de florir as arvores, e evolaram-se os insectos. Amanhã, será o estio torrido, em brazas, como nem na China, nem na Africa se sente. E assim corre o tempo, vôam as horas; cada instante é um meteoro; e aqui um tufão arranca os troncos, e alli a chuva torrencial inunda as varzeas, e alem um rio transborda do seu leito, e uma onda do largo afoga as aldeias, e uma convulsão subterranea abala o solo...

O europeu, o pobre europeu das paizagens serenas, soffre os choques d'esta natureza, por demais subversiva [32] para o seu espirito triste, meditativo e attribulado. Offerece-se-lhe um de dois caminhos a seguir: ou communga na vida japoneza, inicia-se nos seus segredos intimos, ama-a nas suas modalidades, e assim a existencia se lhe gasta, se consome rapida, esgazeada em admirações, doidejando em vertigens; ou se retrae, se isola, odeia a natureza que não comprehende, odeia o exilio, vive de saudades da patria, entre as quatro paredes do seu lar, ou dos clubs cosmopolitas da colonia forasteira. Não é preciso mais para justificar o tique de loucura, facilmente perceptivel, da enorme maioria d'estes expatriados, homens e mulheres, após curta residencia no paiz japonez.





Ora pois,―dada esta concisa explicação á gente incredula,―ha alguns dias, na cidade de Kobe, irrompeu a Primavera.

Pela noite velha, fóra chegando uma brisa como que amorosa, acariciadora, perfumada. No silencio das trevas, as carpas acordaram, n'um charco fronteiro ao meu albergue; e estrabuchavam, e produziam desusados ruidos, saltando fora d'agua, ardendo em cios, endemoninhadas. Quando rompeu o dia, e appareceu o sol, não se descreve o enlevo do bafo [33] morno, embalsamado, genesiaco, que enchia o espaço. O ceu tinha azues novos; cirros de paz pairavam nas alturas. A paizagem esverdeára; esverdeára da herva nova, que surgia, e das arvores velhas, que se coloriam. A nossa observação educa-se n'este meio em especialidades de minucia, abundando por toda a parte, em campos e jardins, as coniferas, de todas as fórmas, de todas as grandezas; estas arvores nunca se desfolham, mas no inverno descoloram-se, empallidecem como mulheres chloroticas, chegam a lembrar enfermos, chegam a lembrar coisas mortas; depois, a primavera excita-lhes a seiva, um verde intenso assoma-lhes ás folhas, a vida recomeça, doida, vão desabrochar flores em fúria!...

Já as ameixieiras se apresentam em galas de florescencia; os negros troncos rugosos e lavrados pela lepra dos lichens, sem uma folha sequer, cobrem-se agora de bastas cabelleiras, alvas ou rosadas, feitas de mil e mil florinhas presas aos galhos por minusculos penduculos. Vistas de longe, nos sitios onde abundam, fazem lembrar uma floresta de arvores seccas, envolvidas pelo fumo e pelas chammas d'uma queimada devoradora. Em breve serão os pecegueiros a florirem. Depois as cerejeiras. Depois as pereiras. Todas as arvores. Todas em apotheoses de [34] coloridos. Chalaça tudo, em todo o caso―estas arvores não dão fructos, não dão ameixas, não dão pecegos, não dão cerejas, não dão peras; ou, se os dão, não prestam. Esgotam os ardores da seiva na superabundancia das petalas das flores enormes, enormes como nunca se viram em outra parte; contribuem, em meras orgias de cores, para a incrivel hilaridade do scenario, para a supina gargalhada primaveral; nada mais. Servem de pretexto para os mil motivos de debandada para os campos, d'estes bons japonezes, cabaça ao hombro, musumé ao lado, alma descuidosa aberta aos esplendores.



São estas florescencias paradoxaes, tão caracteristicas do solo nipponico, que encaminham a cada momento o pincel indigena para requintes de matizes [35] que a esthetica occidental não comprehende; ellas que inspiram aos artistas esses tão frequentes fundos de paizagem salpicados de brancos e vermelhos, a reminiscencia do instante em que as flores se desfolharam e cairam do alto, n'um chuveiro de petalas.

De parceria com as arvores, são as hervas, as plantas, os arbustos, que se vestem de folhas e se enfeitam de flores. Já ao longo dos muros espreitam, por entre as pedras, as violetas silvestres; e o solo vae vicejar de musgos, fetos, de relvas, de bambus e de humildes gramineas; e matizar-se de brancos, de azues, de amarellos, de escarlates, de roxos, de mil côres, de mil flores sem nome, apenas conhecidas dos insectos, que são botanicos emeritos e sabem de cór e salteado onde as corollas lhes offerecem os manjares mais capitosos. Já desabrocham os junquilhos, as camelias. Vão desabrochar a wistaria, as azaleas, os lirios, os iris, os narcisos, os convolvulos, as peonias, a legião vegetal.





As ameixieiras, por aqui pelas cercanias de Kobe, vão vêr-se ao pittoresco oiteiro de Okamoto, ou a Suma, no dominio d'um templo famoso. Os pecegueiros vão vêr-se a Momoyama, em Osaka, que as [36] florinhas côr de rosa incendeiam por curtos dias. As cerejeiras, particularmente queridas dos japonezes, vão vêr-se a um ou dois templos em Osaka; ou á formosissima collina de Arashiyama, em Kioto, marginando a ribeira de Hozukawa, caudalosa e rumorejante; ou, no mesmo Kioto, ao parque de Maruiyama, onde uma só arvore, a vetusta cerejeira da noite de Guion, de delicados ramos em pendor, tem merecido os enthusiasmos e as estrophes de não sei quantas gerações de amorosos e de poetas, que junto d'ella poisam, dia ou noite, embevecidos no extasis do espectaculo; ou ainda a Yoshino, o logar por excellencia preferido, sitio montanhoso e agreste, de difficil accesso, mas por isto mesmo frequentado pelos grandes fanaticos da natureza em pompas; Yoshino, com a sua sentida lenda d'um monarcha fugitivo, e com o peregrino enlevo das suas mil―conta justa, affirmam,―das suas mil cerejeiras, muitas vezes macrobias, offerecendo aqui, acolá, além, n'um valle, sobre uma ponte, á borda d'um precipicio, as scenas mais surprehendentes, mais arrebatadoras, parecendo as arvores em flor, flocos de nuvens brancas a rasarem a relva da paizagem. A wistaria, o fugi, vê-se em Nara, a velha cidade classica; os ramos trepadores enrolando-se em torno dos troncos das chryptomerias gigantes, e os longos cachos [37] brancos e os longos cachos roxos pendentes ao capricho das brisas.

Romarias indescriptiveis de graça pagã, de vida exuberante, estas romarias, reunindo se ao quadro bello da natureza, de uma magestade commovente e estonteadora, a kermesse hilariante do povo em festa. Barracas embandeiradas expondo mil artigos; poisos improvisados para a refeição frugal; os homens em bandos a folgarem; as creanças aos saltos, ás gargalhadas, vestidas a primor, de sedas de mil tons; mulheres de todas as condições, graves mamans deliciosas, meninas recatadas em mimos de flor de estufa, petulantes cantadeiras das ruas, camponezas em roupas escarlates, gueshas em requintes de luxo e de encantos, [38] ovantes como idolos, todas ellas comesticos, todas ellas aromas, todas ellas sedas rojantes, todas ellas mimicas e requebros, espanto-sas.... Ao recolher da festa, a onda humana é curiosissima: cada qual empunhando uma haste florida, cada qual com seu embrulho para o presente de estylo aos amigos que não foram; as mulheres commentando as scenas em gestos e em risinhos; as creanças abarrotando de fructas e de bolos, cançadas, somnolentas, rabujando; os homens em galhofa, pouco firmes, com as frontes e as palpebras encarnadas, que é como se lhes accusa o peccadilho de terem bebido um pouco mais do que convinha...

N'esta contemplação dos scenarios está a alma do indigena. Eu vou reproduzir-lhes uma local, que ha dias appareceu n'um jornal da terra, e que define bem a gentil puerilidade pantheista d'esta gente unica:―«em Himeji já se deu fé este anno de duas flores de cerejeira...» duas, é sobretudo delicioso!... O homem do Occidente pensa, o japonez vê; eis a enorme distincção que os separa. O prazer dos olhos é a alegre preocupação de todos; vive-se no presente, para gosar do momento de hoje, para sorrir ás coisas; e pode ser que seja esta a maneira mais coherente do ser humano prestar culto aos seus deuses, ao Creador, que lhe impoz na terra uma missão.


[39]



N'aquella primeira manhã primaveral, debandaram dos bosques mais cedo, em magotes alegres, em serenos vôos altos em busca de aventuras, chocarreando, atirando aos ventos as suas gargalhadas de mofa, os corvos, nos quaes tão bem encaixa, sem eu saber porque, o nome japonez, de karuçu. A pardalada papeava amores, e safava-se resolutamente dos povoados em demanda dos campos. Uma borboleta amarella,―ia apostar que a primeira da estação,―atravessou n'um vôo o meu jardim. Sobre cada flôr poisava um bicho, mosca, ou abelha, ou vespa, ou besoiro, ou moscardo, vindos não sei como, por feitiço, pois havia longos mezes que ninguem lhes punha a vista em cima; e não tarda que chegue a immensa corja alada, cigarras, gafanhotos, mariposas, mosquitos, tira-olhos, os pandigos do ar, todos bulicio, côres e vida!... Pelos corregos, pelas regueiras, ao longo das ruas e caminhos, surdiam pela vez primeira das tocas os sapos, rouquejando; e dois a dois, graves... mas não estou agora para contar-lhes o que faziam nas regueiras e nos corregos, os sapos, graves, dois a dois...

Nos rostos da gente, suggestionada, embriagada em aromas, pintava-se uma alegria nova, uma recrudescencia [40] de actividade animal. As raparigas passavam mais lepidas, em kimonos alegres, claros, descalças sobre os sóccos pela primeira vez depois do inverno, os seus pés muito brancos, muito mimosos, após o recatado abrigo durante os mezes frios. Encontrei além, n'aquella esquina, uma musumé, que vendia ovos, e um vendilhão ambulante de cestos e vassouras; haviam poisado no chão a sua industria, conversavam em segredo, mas com intensa vivacidade de expressão; elle agarrava-a pelos pulsos, brutalmente; e ella, a rir, a julgar pelo brilho dos olhos e pelo rostinho alvoroçado de desejos... dava-se-lhe, em promessas.





Pois foi n'aquelle dia, que eu, em vez de ir divagar pelos campos, como os pardaes,―já não digo: (ir vender cestos e vassouras) pelas ruas...―que eu me engravatei cuidadamente e fui bater á porta d'um amigo. Tratava-se d'uma festa de creanças, o que é dizer, d'uma estopada para adultos. Effectivamente, exhibia-se, em frente d'uma duzia de meninos e de outra duzia de pessoas circumspectas, um graphophone americano; graphophone, ou coisa parecida; um phone qualquer em todo o caso; que isto de phones, para quem cursou aulas de physica [41] ha perto de trinta annos, é de uma complicação tal, que nunca a gente chega, por mais que se applique, a fallar com segurança do assumpto.

Mal lhes posso agora traduzir a dolorosissima impressão, que a festa me deixou. Ratice minha, sem duvida. Introduzia-se n'uma caixa um cylindro apropriado para o caso e dava-se corda ao instrumento... mas a quem estou ensinando o padre-nosso!... Então, um americano fanhoso, imbirrante, assim com ares de bebedo e ademanes de exhibidor de saltimbancos, a ponto de se lhe presumir a casaca no fio e cheia de nodoas e a gravata branca em uso ha mais de seis semanas, fallava ao publico, annunciava a casa constructora em Nova York, e o que em seguida iria ouvir-se. Eram cançonetas chulas, solos de flauta, estrondos de orchestra, devaneios em viola, discursos grotescos; e tudo aquillo, e as vozes do publico que ria, que vociferava, que dava palmas, que pedia bis, creanças berrando, damas mal suffocando o riso, cavalheiros atirando chufas, tudo aquillo, distinctamente, saía da caixa enfeitiçada e enchia a sala onde me achava, como se uma multidão de patuscos, vindos da America, vindos do inferno, a tivesse invadido de surpresa.

Mas que tristeza immensa!... Como eu amaldiçoava, n'aquella hora, estas invenções da epocha, [42] estes engenhos surprehendentes, monstruosos, que vem zombar da vida, e assassinar arte, enlevos fugaces que passam, reminiscencias, saudades, tudo o que é doce ao espirito... porque,―affirmo-o tanto quanto as palavras me podem traduzir o pensamento,―porque, no fim de contas, ficou-me uma desconsoladora noção de desprestigio da existencia, e de troça ás leis do mundo, á lei da successão dos factos no tempo; e vi em pensamento um bando de velhinhos alchimistas largarem as retortas, por um momento, e virem bradar á creação, fitando o ceu ás gargalhadas:―«não tenhas imposturas, sabemos tanto, fazemos tanto como tu!...»―Já não bastava a photographia, esta artimanha irreverente, que vae implicar com os ausentes, com os defuntos, com o mundo distante, dando-nos em troca da sentida recordação, que guardavamos, o phantasma, em contornos, do que fugiu dos nossos olhos. Agora é o graphophone, que eterniza os sons, a voz dos de longe, a voz dos que morreram. Morte, ausencia, já não tem razão de existir nos diccionarios. Para o caso a que me refiro, cá continua o americano imbirrante a vomitar os seus discursos, os musicos a tocarem, os cantores a cantarem, o publico a rir, a chorar, a applaudir, a chalaçar. Passaram-se assim as scenas ha dois annos, ha cinco annos, ha dez annos. [43] Estará a estas horas o americano morto, coisa de alguma bebedeira mais forte, que o prostou? a creança, que chorava, dormirá tambem n'um tumulo, coitadita? a dama, que ria, estará doida, n'um asylo? o homem, que applaudia, n'um carcere, cumprindo uma sentença? Nada importa. A machina chama-os, reune-os, ressuscita-os, renova-os para a pandiga d'um momento da existencia; o passado é presente; e a machina agita-os, empurra-os para o interior das nossas casas, para nos divertirmos á custa d'elles mesmos...





Primavera? ia eu pensando com os meus botões. Primavera? ri a natureza? florescem as arvores? cantam amores os passaros? é uma realidade? Ah! talvez não, que hoje, a um phenomeno substitue-se quasi sempre uma industria; e espectaculos do Pae do Ceu fôram já quasi todos supprimidos, porque iam aborrecendo a humanidade... Cada dia que passa, regista cem descobertas, tendente cada qual a apagar do nosso espirito a lenda do mysterio, do incomprehensivel. A vida, o mundo reduzem-se a machinas, a engenhos mais ou menos complicados. Doce Primavera, que me enfeitiça? Troça. Aqui anda machina, apostára! Quem me assegura, que [44] isto não foi primavera servida a meus avós ha mais de um seculo, gravada n'um cylindro, e impingida depois como nova, de quando em quando, aos patetas, que a applaudem?...





E a proposito da Primavera que irrompia, duas palavras sobre outra Primavera, que morria, ahi pela mesma epocha.

Não haverá ninguem, imagino, que, tendo passado em Kobe, não conheça Nunobiki, a cascata. É que o sitio, pela sua fama merecida, é o passeio obrigado de todos os que chegam, embora se demorem duas horas. Não ha conductor de carro, guia de viajeiros, um qualquer alcoviteiro que ande á cata de gente que desembarca dos paquetes, que se esqueça de indicar, como primeira diversão, a ida á queda de agua. Lá vão todos. Lá fui eu, uma vez, como viajeiro: e muitas vezes, depois, como residente, residente em ocios, attrahido pelos scenarios apraziveis. Lá em riba, muito em riba da montanha, e salpicada de espumas [45] e acalentada em rumorejos, na penumbra do ermo apertado entre penedos a prumo, cobertos de ramaria silvestre, era a casa de chá, a cháya tradicional, offerecendo repoiso por alguns minutos e uma bebida ao forasteiro extasiado, sem fallar nos sorrisos, nas mesuras, que prodigalizavam largamente as raparigas que alli olhavam pela venda. Ha alguns annos, disseram-me, eram tres as raparigas, tres irmans,―as tres graças;―mas eu conheci só duas, tendo casado a outra com um titular europeu, conforme ouvi. Eu conheci só duas: O-Tane San, a Senhora Semente, e O-Haru San, a Senhora Primavera. Como se fica presumindo, eram as japonezas mais populares de Kobe inteiro; das quaes, talvez não erre, acreditando que os muitos milhares de forasteiros, que n'estes ultimos seis annos visitaram o Japão, guardam uma reminiscencia, uma saudade... Duas fadas dos bosques, a enfeitiçarem os incautos? Não tanto: quando muito, duas sereias de agua doce, simplesmente meigas, simplesmente gentis, vendendo graciosamente uma chavena de chá, sem assucar, á moda japoneza, e dando de graça um sorriso, tão doce, que tirava ao chá o travor proprio, mesmo para o paladar mais exigente. Eu preferia á Semente, a Primavera. Era mais fresca,―fresca como o seu lindo nome,―e mais avelludado [46] o olhar negro, e mais esmerada nos kimonos de seda e na curva em azas de borboleta dos cabellos. Com ella palestrava, com ella ria, ria sobretudo, que o riso é a linguagem mais em uso n'esta terra; e, tomando-lhe das mãos, perguntava-lhe quem fôra o delicado, inglez, russo, coreano, hottentote, que lhe offerecêra aquelle annel com uma saphira, que enfiava tão bem no seu dedo côr de rosa...

Pois muito bem. Sabe-se que em materia de progresso material o Japão anda a galope. Lembraram-se ha pouco estes senhores de constituir uma empreza para a distribuição da agua aos domicilios, em Kobe. A idea não é nova: já Yokohama, Osaka, Nagazaki e certamente outros centros, gosam de instituições da mesma especie. O que é lastima,―se vale a pena a gente prender-se em ninharias,―é que assim, alcançado pelo turbilhão reformador, que vae dando cabo de todo o pittoresco d'este povo, tenda a desapparecer o poço... o poço classico dos velhos tempos, com a borda circular talhada n'uma só pedra, o alpendre gracioso sustido por dois madeiros, os baldes suspensos das duas pontas da corda de cairo, que enfia no tosco gorne central; estabelecido em plena cosinha domestica, ou a um canto do jardim, ou n'uma vereda accessivel a um bando de visinhos; e cerca as [47] vasilhas de uso, celhas, escudellas, colheres, da mais graciosa e original tanoaria, de que as creadas, meias-nuas, se vão servindo nas lavagens, demorando-as para alongar tagarelices, proprias do sexo e ainda mais das japonezas; eis o poço, correspondendo a um quadro muito caracteristico da vida intima; o poço, que os adoraveis pinceis dos mestres da pintura se compraziam em reproduzir mil vezes, emaranhando-os na rama das trepadeiras, das asagao, cujas bellas campanulas de côres variadas abrem com o nascer do sol e fenecem logo após...

Para o caso de Kobe, dirigiram-se logo desde o inicio as picaretas e as enxadas para a montanha de Nunobiki, onde a agua jorrava em manancial sem fim; e, á força de braços e de dynamite, no intuito de encaminhar a torrente aos reservatorios da empreza, fez-se um desbarato tal, abatendo as arvores, cortando as rochas, cavando a terra, que todo o enlevo do sitio desappareceu, a paisagem tornou-se em ruinas. Rigorosamente fallando, a cascata acabava de existir. A cháya, tal como a gente a conhecêra no seu rustico pittoresco, forçada pelas escavações a mudar de poiso, acabava de existir. E as raparigas? logicamente, tinham de desapparecer tambem. Com effeito, a Semente casou com um japonez e safou-se... e faço votos para que o [48] seu nome lhe seja de bom agoiro, dispondo os fados a concederem aos conjuges uma prole feliz e numerosa; e a Primavera morreu; morreu, por mofina coincidencia, quando a outra Primavera ia renascer, dar viço e flôres ás arvores, não ás da cascata, mercê da nova empreza. Morreu tisica; a sua cascata, onde nascêra, onde vivêra vinte annos, com a sua eterna penumbra crepuscular, com as suas rochas eternamente gottejantes, com o seu ambiente eternamente humido, roêra-lhe os pulmões...

Pobre Primavera... Mas não morreu talvez, pensem bem n'isto que lhes digo; embora ninguem mais lograsse vel-a, embora as amigas tivessem acompanhado ao cemiterio o seu corpinho inerte... O seu retrato já corre mundo, em photographia, [49] vendido pelas lojas, perpetuando-lhe o rostinho. E nada mais possivel do que o facto de andar ganhando cobres pelas feiras, hoje, amanhã, d'aqui a quarenta annos, um sujeito qualquer ajoujado com um graphophone, um phone qualquer americano... Estão imaginando a patuscada:―Cylindro apropriado; dá-se corda... A plebe ouve pouco mais ou menos o seguinte:―«Grande companhia de graphophones de Nova-York e de Paris! Scena da famosa cascata de Nunobiki, no Japão!»―E a plebe continua de ouvir: é agora o murmurio continuo, soluçante, de agua despenhando-se de rocha em rocha; trina um passaro vagabundo; um francez bate as palmas, pede cerveja; um inglez pede whisky; um nipponico pede chá; a vóz da Senhora Primavera vibra distincta, fresca, doce; Primavera desfaz-se em desculpas, em risinhos, diz que já vae, não tarda; mas o inglez tem pressa, renova o seu pedido com azedume: e o instrumento é então perfeito―oh, maravilhas da sciencia!―que se ouve até o ciciar d'um beijo, que é naturalmente do francez...

1899.



NILGUYO



Mukashi, mukasi (nos velhos tempos, nos velhos tempos, como diriam estes bons japonezes, e conforme reza a lenda, interpretada pelo Nihon no Mukashibanashi (Antigas Legendas do Japão), viveu um homem, um simples, de indole bondosa, de quem se poderia dizer que passára a mocidade em desejos de matrimonio; mas como desejos e realização d'elles são duas coisas mui differentes, attingiu o pobre a meia idade sem ter levado a effeito essa firma...―commercial não é talvez o termo proprio,―em todo o caso essa firma a dois parceiros, que partilham entre si, da vida, alegrias e tristezas.

[51] As alegrias d'elle consistiam principalmente em entregar-se á pesca, pesca á linha durante os longos ocios; tristezas, sentia-as sobretudo, mais mordentes, ao recolher á noite a casa, derreado, cambaleando de somno e de fadiga, sem encontrar uma alma companheira que lhe sorrisse á porta, e em saudações o convidasse a entrar, nem mãos prestimosas que lhe tomassem do peixe e o amanhassem, e fossem depois leval-o ao fogo do brazeiro. Em toda a parte, e especialmente no Japão, estes sentimentos intimos d'alma,―jubilos de pescador á linha e desalentos de solteiro,―são bem justificaveis. Com effeito, para um temperamento vagabundo e impressionavel aos enlevos da paizagem, como se dá com todo o japonez, quantos encantos não vão proporcionando a linha e o anzol, induzindo-nos sem esforço a longos passeios de bohemio, penedos e praias fóra, contornando margens ziguezagueantes de ribeiras e enseadas, em face dos scenarios serenos, todos verde, frescuras, espelhos de aguas e murmurios... e como as horas vôam, acocorado o corpo sobre a rocha, a mão ora affeita, ora prendendo o isco, ora demorando-se em commovente espectactiva, ora colhendo o peixe a estrebuchar; e o espirito voando, como as horas, alheio ao officio, deliciando-se em sonhos, viajando no reino das chimeras... Mas á noite, após [52] um dia inteiro de labuta, é que o corpo se doe e falham os joelhos; e deve então saber tão bem chegar a gente ao lar de esteiras e papel, e vir á entrada ajoelhar-se em cortezias a figura gentil d'uma esposinha fresca, envolvida em sedas e perfumes, com as mãositas rosadas em posição submissa, as mãositas tão habeis em córarem nas brazas as trutas saborosas...

Ora, um bello dia, o nosso homem, de quem a tradição não tomou conta do nome, achava-se pescando segundo o seu costume, bambu em punho, e meditando ao mesmo tempo sobre o seu desconsolo e desolada sorte, quando... zaz! um grande safanão na linha lhe fez logo imaginar que alguma coisa fóra do commum viera de colher. Por pouco se lhe não vão, linha, e anzol, e peixe ao mesmo tempo; então, com muitas manhas que são proprias da arte, poz-se a cançar a presa, já alongando o braço e deixando-a debater-se a seu capricho, já aproveitando o repoiso para traze-la á praia; até que emfim, azado o instante, puxou com força, e veio cair-lhe o peixe aos pés.

O peixe? o peixão!... Era uma Ninguyo, uma sereia; nem mais nem menos; face de mulher, d'uma rara formosura, e um enorme corpo ventrudo, alongado, escamoso, agitando barbatanas e terminando [53] em amplo rabo, que então desesperadamente estremecia. Face de mulher de uma rara formosura,―disse-o eu, e não me engano:―esse contorno doce de oval, de urizanegao, de pevide de melão, tão querido em esthetica japoneza; os bastos cabellos negros fluctuando em coma; a tez de jaspe; os olhinhos de velludo; a boquinha escarlate. Mas chorava, a sereia, em contracções de angustia; chorava certamente pela dôr, pois lhe rasgava a carne o traiçoeiro anzol; e ainda mais talvez pela vergonha de vêr-se assim arrebatada do seu meio habitual, expiando um peccado de lambarice, indefeza, nua deante d'um estrangeiro!...





O pescador porém era d'uma indole bondosa, como ficou notado um pouco atraz; e vae-se agora ver como o provou. Comprehende-se, é claro, o seu primeiro espanto: o homem punha as mãos sobre a cabeça, a esbugalhar os olhos, e gaguejava não sei que exclamações... Podera não! Acalmado, sacou cautelosamente o anzol da bella face em sangue; e tomando nas mãos o estranho ser, poz-se a scismar maduramente sobre o caso. Ora, ia pensando, se elle fosse correr as feiras todas, as festas dos mil e [54] mil templos do paiz; e alinhando a sua barraca com as outras, onde se exhibem salamandras, crocodilos, creanças sem pés e sem mãos, cães sabios e muitas outras coisas, que abundantissima chuva de sapecas lhe não cahiria em cima, quer dizer, dentro das mangas do kimono!...―"Meus senhores, entrem todos! Quem não tem cabeça, não paga nada! Ora aqui está uma sereia authentica..."―e já ia estudando o discurso que faria, soberbo, dominador, impondo-se á plebe embasbacada. Ou então, outra ideia: se elle comesse a carne da sereia, cosinhadinha, feita em postas... e sabem todos que a carne da sereia tem virtude de conservar perpetuas a vida e a juventude a quem d'ella provou... Mas a sua indole bondosa revoltou-se afinal contra a lembrança de reter n'uma tina, em exposição, ou peor ainda, de levar á degolla aquelle pobre bicho, que sobre as suas mãos se lamentava e desfazia em prantos, como se fôra uma pessoa; contemplou-o ainda, longamente; e com um nobre gesto e decidido esforço, atirou a sereia ás vagas, d'onde viera, e onde mergulhou e desappareceu sem mais cerimonias, após um acenar de rabo, que poderia ser um adeus, um adeus e um agradecimento.

O nosso pescador voltou á sua faina. Consta que, n'aquelle dia memoravel, o cabaz se lhe encheu de [55] uma espantosa quantidade de tudo que o mar dá. Á tarde, tornando a casa ajoujado com a carga, bailava-lhe nos labios um sorriso, que provinha da boa pesca que fizera, e tambem da boa acção que praticara.



Quando pela noite, na cosinha, mangas do kimono arregaçadas até acima dos sovacos, avental sobre as pernas, celha ao lado, se dispunha a preparar a sua ceia, ouviu que de fóra, e junto á porta, uma fallinha mansa lhe ia dizendo:―"Dá licença! dá licença?"...―Corre o homem a abrir a corrediça, ainda com a faca da cosinha, e um carapau na dextra adunca; e á luz frouxa d'um luar de quarto minguante, poude distinguir um vulto de mulher em nada extraordinario, porém doce e cortez, que lhe confessou ser uma viajante extraviada do caminho, sem casa e sem abrigo, e lhe pedia poisada só para [56] aquella noite.―«Entre depressa, menina, acode-lhe o sujeito, e venha partilhar do pouco que aqui tenho».―Então, dando-lhe entrada, conduzindo-a ao aposento das visitas, fel-a descançar sobre a esteira, e junto do brazeiro, foi-lhe servido o chá tradicional.―«Muito obrigada.»―O homem rogou-lhe seguidamente que esperasse pela ceia, uma ceia de peixe por signal, que elle ia amanhar sem perda de um minuto.―«Permitte-me que eu ganhe o direito ao meu quinhão, ajudando-o n'essa lida?»―Disse que não redondamente, que nunca consentiria que os seus hospedes trabalhassem na cosinha. Em replicas e treplicas, a rapariga assegurou-lhe que passara a vida toda, além, da banda do oceano (talvez filha de gente embarcadiça? pescadora?) e que ella conhecia as melhores receitas de cosinhar o peixe, no que até muitas vezes, por passatempo, se occupava; e tanto ella teimou,―sabem todos o que são teimas de mulheres!―que sempre foi levando a sua ávante.

O que é certo, é que nunca o pobre solteirão se lambera com tão deliciosas petisqueiras. Comeu a sua dose, repetiu, pediu terceira vez; e dizia, a chuchar ainda as cabeças dos ruivos, que a pena que lhe ficava, era de não lhe ser servida uma ceia egual, todas as noites. A companheira observou então modestamente, a meias fallas, que lhe parecia não ir [57] além dos seus poderes, um tal desejo; e instada a explicar melhor a sua phrase, accrescentou que era solteira, sem parentes, sem lar... Comprehendida finalmente, o remate de tão feliz encontro foi ella consentir em ser a esposa do sujeito.

Antes, porém, impôz as suas condições.―«Danna, meu dono, eu tenho, como disse, passado a vida pelo mar, e não posso prescindir do meu banho de agua salgada ao menos uma vez cada semana; consente-me isto?»―Elle acenou que sim.―«E jura-me (agora vão ouvir os pudores da pequerrucha...) que me deixará banhar em paz, sem seguir-me, e sem sequer espreitar-me?»―Elle jurou que sim; e deu-se por feliz (já se ia babando pela moça, o maganão!) de, por tão pouco preço, ver-se possuidor de tal thesoiro.

Casaram. Bodas de estrondo; e viveram ditosos durante longos mezes. O peixe, o prato querido dos nipponicos, foi sêmpre excellentemente preparado pela esposa, activa, intelligente, a rir-se sempre. O pargo, em fatias cruas regadas com molhos excitantes, era divino! As enguias com arroz, uma delicia! O caldinho de ameijoas, superfino! As trutas assadas sobre o lume, sem egual! E até uma certa caldeirada, assim como quem diz á moda do Algarve, era de estalo, sem favor! E o marido tornava-se [58] anafado e luzidio, a testemunhar a toda a gente, pelo volume e pelas banhas, que alguem olhava por elle com disvelo...





Mas o banho? Melhor fôra não fallarmos n'elle...

Ai que pandega que era esse tal banho!... Ella passava a manhã inteira preparando-o, afinando o appetite, podia-se dizer; e no banho se quedava horas esquecidas, pela tarde. Depois, ajoelhada sobre a esteira, espelhinho em frente, e em torno os cofresinhos mysteriosos, era a interminavel tarefa de fazer-se bella, ora branqueando as faces, ora avermelhando os labios, ora compondo o penteado. O esposo chegára mesmo a esta conclusão não muito lisongeira:―que a companheira mais queria á agua salgada do que a elle;―mas perdoava-lhe,―outros ha que bem menos innocentes caprichos vão perdoando...―e nunca a sombra sequer d'um arrependimento viera turvar a paz do seu viver.

Uma bella tarde,―tarde de banho por signal―chegou o homem a casa, e, como se diz em portuguez... cheio de fome.―«Tardará muito para a ceia? resmungava. Irá o banho em meio ou em principio?» A esposa, é claro, achava-se invisivel, e com a portinha fechada a sete chaves; mas casas japonezas [59] são casas de papel, e uma fenda, um rasgão, convida-nos a enfiar os olhos para dentro. O caso é que elle espreitou. Surpresa! Horror!... Não é uma mulher, mas uma sereia, que se banhava, melhor dizendo―que nadava, em demoradas circumvoluções de regalo ao longo da tina, agitando mansamente o rabo e as barbatanas, e cantarolando baixinho canções do mar, canções das praias...

Pobre marido!―«Ah! canta-me assim, exclamou elle, canta-me assim, grande mostrengo!... Agora percebo eu as tuas habilidades em lidar com peixes,―lidas com os teus parentes, grande mostrengo!...―Melhor fôra, sem duvida, que eu nunca te conhecesse em tal estado, em tal nudez; mas, feito o mal, quer-me parecer que nunca mais poderei tragar com appetite os teus guisados, intrujona...»

A porta, abriu-se então e appareceu a esposa. Chorava, cahiam-lhe as lagrimas a punhos; chorava mas digna, resignada, lia-se-lhe no olhar uma resolução fatal. Fallou assim, ajoelhando:―«Danna, meu dono, foi a sua benevolencia para mim, um dia, extrema, tirando-me das aguas, podendo fazer da minha vida o que quizesse, e salvando-m'a. Trouxe-me aqui um dever de gratidão: julguei com a minha presença poder amenisar a sua soledade, servindo-o como escrava. Deu-me o nome de esposa. [60] A minha gratidão será eterna. No entretanto, acabando de ver-me assim na minha forma verdadeira, um bicho, um monstro que mette medo a toda a gente, comprehendo que a missão que tomei chegou ao termo. Estala-me o coração, mas pouco importa!... Danna, meu dono, adeus. Do ceu lhe chovam bençãos...»―E correu para a praia e desappareceu nas ondas.

Pobre marido!... Por um acto inpensado, perdeu para sempre uma companheira carinhosa; e, como das nupcias com a sereia lhe resultava o dom de longa vida, foi longa a sua viuvez, e longo o seu martyrio...

A fabula, segundo observa, e com criterio, o auctor japonez que consultei a tal respeito, offerece duas lições de alta moral. Uma é esta: a mulher que pretenda conservar um bom marido, deve captival-o pela barriga, isto é, pelo esmero do seu repasto; parecendo averiguado que o estomago é o orgão mais sensivel, e porventura o mais grato, do homem, o rei da creação. A outra lição é a seguinte: o marido que deseje manter a harmonia do seu lar, nunca interfira na toilette intima da consorte; porque, isto de damas,―com sua licença,―todas lá têem o seu rabo, ou escama, ou barbatana, coisa emfim que melhor é não seja conhecida, em [61] proveito dos dois, e em conformidade com o codigo inedito do amor, capitulo Illusões, artigo... esqueceu-me agora o artigo, meus senhores.


1899.




O CAVALLO BRANCO DE NANKO


A Carlos Campos


Isto aconteceu ha cerca de mil annos, em terras japonezas: um cavallo, que o grande artista Kanaoka desenhára n'um biombo do templo de Ninnadji, perto de Kioto, era uma tão bella creação, cheia de verdade e palpitante de vida, que todas as noites se escapava do papel para ir galopar pelos campos em roda, culturas fóra, devastando a esmo as sementeiras; e o caso dava-se, claramente, com magno espanto e raiva dos camponios, que o perseguiam á pedrada. Estes camponios, impressionados pelas fórmas incomparaveis do animal, persuadiram-se por fim de que elle não podia ser outro senão o [63] cavallo de Kanaoka; e a persuação converteu-se um dia em certeza absoluta, quando viram na pintura as patas do travesso, humidas ainda da lama fresca dos [64] caminhos. Sem mais cerimonias, arremetteram contra a tela e esfuracaram-lhe os olhos; e consta que nunca mais houve queixas de estragos nas fazendas.



Ainda outro cavallo de Kanaoka, que era mestre no genero, cavallo desenhado n'uma parede interior do palacio imperial, tinha o vezo de ir devorar pelos jardins as flores tenras do açafrão; e só cessou a brincadeira quando alguem se lembrou de retocar a obra, amarrando o patife á parede com um pedaço de corda pintada para o effeito.





Ora bem. De muitas maravilhas é sem duvida capaz a mão inspirada d'um artista!... Esses dois cavallos de Kanaoka, nascidos d'uma gotta de tinta e de algumas curvas humoristicas de pincel, mas em todo o caso ungidos do sopro sublime do eximio mestre, animavam-se por momentos, soltavam-se da tela, e ahi iam elles!... Felizes bohemios eram e felizes tempos eram. Arte creadora, arte radiosa das epochas passadas, porque não vaes tu regendo, ainda e sempre, os destinos de todas as coisas d'este mundo?...

N'estes dias que correm, deslavados e tristes, [65] mesmo no Japão, e não cessando de divagar no mesmo assumpto de cavallos, confesso francamente a quem me lêr, que nada me mortifica tanto como o espectaculo dos cavallos sagrados dos templos shintoistas. Ora aqui estão umas cavalgaduras bem authenticas, bem vivas, bem reaes, de carne e osso; e que, se fossem lidas em coisas de arte antiga nacional―mas não são,―por certo muito invejariam as simples creações no papel da mão de Kanaoka. N'este paiz japonez, onde parece que os seres, homens e bichos, nasceram e vivem n'um banho perenne de sorrisos, mais desoladora se afigura ainda a condição dos pobres brutos, que um dia inspiraram estas linhas melancholicas que escrevo.



Se pretendo ser de certo modo comprehendido nas divagações que vão seguir-se―e é obvio que pretendo,―convem que me detenha um pouco, fallando de templos shintoistas em geral. O shintoismo, da palavra shinto (a estrada dos deuses), é a crença primitiva, patriarchal, das epochas remotas no Japão; e conservada até hoje, a despeito da grande propaganda de Buddha que se fez e se faz, é ainda a religião nacional, a religião do Estado. O shintoismo é a adoração pelo sol, pelo Imperador seu filho, por todas as forças da creação, pelas divindades protectoras, pelos genios, pelos nobres, [66] pelos heroes e pelos sabios. O templo de shinto é o recinto consagrado a uma d'essas invocações. Distingue-se antes de tudo pelo torii, o grande arco de pedra ou de madeira avisinhando do logar, e como que indicando o caminho ao peregrino. Torii quer dizer descanço dos passaros; e assim ficamos já com uma noção primeira e delicadissima na essencia, aprendendo que no campo sagrado tudo é paz, tudo é remanso, pois que até aos pardaes, cançados dos vôos doidos que fizeram á aventura, se offerece um poleiro protector onde descancem. Ao torii succedem-se [67] o amplo portal e o vasto espaço murado; e lá dentro, symbolos, alfaias d'uma religião toda de amor, são a paisagem graciosa, os jardins verdes, os bosques frescos, as rochas musgosas, os lagos quietos; aqui é a cisterna destinada ás abluções preliminares dos crentes; alli são as monumentaes lanternas de granito, esverdeadas pelos annos; além o nicho escarlate votado a Inari, raposa, Deus do arroz, não sei que mais, em todo o caso coisa muito santa; depois as construcções ligeiras, de madeira nua, dispersas, e onde em dias festivos as donzellas do culto dançam ao som de estranhos ritornellos, ou silenciosos officiantes abençoam as multidões, agitando sobre as cabeças reverentes um penacho de papel branco, emblema de pureza.

Nos templos mais faustuosos, não faltará outro accessorio: o nicho garrido, a pequenina estrebaria, onde o cavallo sagrado mastiga eternamente a insipida palha do seu officio. O deus, ou genio do [68] templo, tem o seu cavallo de estado; é justo. É geralmente um cavallito albino, de pello branco e olho azul celeste, talvez porque se ligue uma certa idéa de candura a tal enfermidade. O deus serve-se d'elle como entende; alguem, a quem pergunto informações do cargo, diz-me que é o Ó tsukae mono... assim como quem diz: o nobre moço de recados. Admittamos pois que faz em regra os recados do deus, o que é já muito, e um alto mister, e por isso é sagrado e tem honras de santo; e em lances difficeis, mais distinctos serão ainda os seus serviços. Ardeu ha mezes um dos mais famosos templos do Japão, em Yamada; não sei que coisas do culto foram depois encontradas ao abrigo e longe do sinistro;―foi o cavallo que as transportou para lá.―É voz do povo que em Osaka, em dois templos de shinto, desappareceram os cavallos quando rebentou a ultima guerra com a China;―está-se mesmo a perceber que as almas d'esses deuses montaram nos ginetes para irem aos campos do inimigo, abençoar as tropas de Nippon.―Taes casos, porém, são raros, são rarissimos, n'esta epocha positivista, tão escassa de milagres; e os cavallos brancos sagrados vivem e morrem amarrados á mangedoira, passeando uma só vez em cada anno, no dia da festa do templo, encorporados então triumphalmente á procissão, que [69] percorre as ruas da cidade. É o encerro absoluto, é a constante immobilidade tediosa, sem mesmo as furtivas escapadelas dos cavallos pintados de Kanaoka. A palha abunda-lhes; acercam-se d'elles as creanças e as mulheres, que os adoram, e compram á velha, que por alli está cerca do estabulo, montinhos de feijões cozidos, que offerecem sobre as palmas das mãos rosadas, aos focinhos nostalgicos dos rocins.





Eu conheço uns poucos d'esses brutos, mas tenho mais intimas relações com o de Nanko, um templo aqui em Kobe, celebre, dedicado á memoria de Kusunoki Masashige, que foi um nobre guerreiro e patriota.

No amplo santuario do templo estabeleceu-se uma feira permanente, dia e noite, mas principalmente de noite, atractiva e frequentada por passeantes e devotos. A vida inteira japoneza passa, perpassa aqui; quem já folheou os albuns de desenho de Hokusai, e n'elles se interessou, deve depois votar horas inteira No amplo santuario do templo estabeleceu-se uma feira permanente, dia e noite, mas principalmente de noite, atractiva e frequentada por passeantes e devotos. A vida inteira japoneza passa, perpassa aqui; quem já folheou os albuns de desenho de Hokusai, e n'elles se interessou, deve depois votar horas inteiras a esta historia viva e flagrante do povo de Nippon; e assim completar, quanto possivel, a noção que haja formado d'este povo, um dos [70] mais interessantes, e o mais sympathico talvez, do mundo inteiro.



A gente afflue de toda a parte, d'aqui, d'alli, d'alem... Junto ao portal, condensa-se o formigueiro humano, em centenas, em legiões de cabecinhas; a pouco e pouco, sedas roçando sedas, risos correspondendo a risos, vae-se entrando, ao som d'um continuo ruido de sóccos e sandalias, que se arrastam pelo lagedo resonante. Na escuridão da noite, o recinto define-se a principio como um negrume [71] vago, complicado de sombras de arvoredo, cheio de gente e de myriades de luzinhas bruxoleantes. Depois os olhos habituam-se. Vae por ahi fóra, direitinha ao templo, a grande rua principal, bordada de arvores varias, lageada; pelos lados espraia-se o labyrintho das passagens, por entre os alinhamentos das barracas, das tendas, das quitandas, armadas de improviso, estiradas pelo chão; e é, á luz frouxa das lampadas, a exposição phantastica das côres, chispando em disparates como n'um campo immenso de kaleidoscopo, correspondendo ás mil industrias que se estendem... Roupas, perfumarias, livrinhos, bocetas, charões, porcellanas, cachimbos, ferramentas, utensilios domesticos, bolos, brinquedos, flores, plantas, tudo: a industria inteira do Japão, se condensa, coalha em museu. Alem algumas chayas vendem refrescos; as creadinhas convidam a turba a que se acerque. Mais longe, são os theatros populares, um cobre por entrada:―cães sabios, athletas, abortos, serpentes, panoramas;―ou a sala do hanashi, da palestra, onde um patusco entretem os freguezes, contando-lhes historias. N'um espaço mais livre, um sujeito com um graphophone, um dentista, um inventor de remedios milagrosos, discursam, explicam, prophetizam.



O formigueiro humano ondula, alastra se, sem [72] designio, á aventura. As sociedades occidentaes nada nos offerecem de parecido. Isto, aqui, é a multidão, sem pressas, sem gritos, sem exasperos, tal como nol a apresentam todas as grandes tribus do Oriente; é o cardume de gente, retida na praça publica como o sargaço em mares tranquillos; aqui, quadro requintadamente gentil e sorridente, inconfundivel, mas que ainda nos recorda as agglomerações da plebe nos templos de Cantão ou nos bazares de Aden, ou do Cairo; e, subindo nos tempos e retrogradando em espirito vinte seculos, quasi nos desdobra aspectos vividos, embora fugidios, da Jerusalem biblica, nos seus magotes de homens vestidos de tunicas [73] rojantes, vagueando, palestrando de manso, alongando os braços nús em gestos calmos e solemnes.

Querer inventariar os typos, fôra insania,―é a massa inteira popular despreoccupada, risonha, gosando de viver.―Passam familias,―o pae, a mãe, um filho preso ao seio e os outros pela mão;―ranchos de soldados e ranchos de marujos; ranchos de raparigas; moços, alguns indo caminho do bairro dos prazeres, Fukuwara, que está perto; peregrinos; mendigos; vadios; larapios; extrangeiros. Os garotos assopram nas trombetas que compraram, ou mordem em bolos ou em fructos. Aquella musumé fresca, vestida apenas do seu kimono de verão, azul e branco, já vae de volta; e leva dependurada das mãositas uma gaiola em miniatura, cheia de reluzentes pyrilampos. Uma velha rejubila com o vaso de bellos lirios que mercou. É aqui em Nanko, no mercado especial das plantas, que se revela bem o mimo d'esta gente em jardinagem,―delicados arbustos, havendo merecido longos disvelos de cultura, selecção graciosa de florescencias;―e é de ver-se o afan na escolha, o brilho dos olhitos cubiçosos, dos grupos em roda da exposição dos pinheirinhos, das cerejeiras, dos bambus, dos chrysanthemos, dos lirios, da wisteria.―O espirito simples, o desejo facil de contentar, a puerilidade quasi infantil, estampa-se [74] em todos esses rostos, e dom gentil da mão industriosa, resalta de todos os artigos. Quem tiver duas moedas de cobre na bolsinha―e todos as terão,―póde comprar um objecto de arte; compra-o sem duvida, e no jubilo da face transparece a alegria plena d'uma alma satisfeita. D'essa manifesta innocencia de sentimentos, d'essa psychologia alheia de complicações e de tormentos, deve em rigor deprehender-se uma superioridade de raça, uma animalidade esplendida e exhuberante, muito distanciando-se da vibratilidade morbida das raças exhaustas do Ocidente; e é isto que vagamente se adivinha na esbelteza dos vultos que vão passando, na flexibilidade harmonica das curvas, no jogo pathetico da mimica, na confiança serena com que o pé dominador poisa no chão. Feliz povo! Feliz povo de hontem, de hoje, e possivelmente de amanhã... Não é outra a conclusão sincera do nosso exame passageiro.





No entretanto, a um canto, no estabulo garrido, boceja o cavallo branco sagrado de Kusunoki Masashige. Por velha sympathia, procuro-o sempre, e passo quasi horas inteiras, a vêl-o, a namoral-o. [75] Quantos annos terá de sacerdocio? Dez annos? Quinze annos?... Não lhe despertam zanga nem prazer as minhas visitas repetidas. Cabeça baixa, o olho azul mortiço, parece nada querer, nada sentir, nada soffrer e nada desejar. É quasi de papelão, á força de insipidez, o garranito. Ao burburinho, á luz, ás côres, ás musicas distantes, é insensivel. Ao bello verde do arvoredo é insensivel; pelos modos, não se recorda já das paizagens por onde espinoteou... O seu olho azul-celeste, vitreo, provavelmente myope, relancea com a mesma apathica frieza, as mil scenas do acaso; á gente que o encara,―ralé da praça publica, garotos, cavalheiros, acaso um general, acaso um conde, acaso um inglez de nobres pergaminhos,―vota a mesma indifferença irreverente que ás moscas importunas que poisam, por enxames, sem que o commovam, na mucosa descorada da sua pobre focinheira. Só uma vez, presumo, o vi enternecido: relinchava uma egua algures, longe sem duvida; levemente se lhe agitaram as orelhas, como se uma vaga reminiscencia, penso eu, pelo bestunto lhe corrêra; e pareceu-me então vêr o seu olho azul-celeste arrazar-se de lagrimas, pareceu-me... Ás vezes, avança de bom grado a lingua, a ir lamber as mãos das raparigas; por capricho talvez, e por habito, porque são aquellas mãos que costumam offerecer-lhe, [76]como obulo piedoso, os feijões cosidos comprados á velhita que por ali anda, proximo do estabulo...

Eis todo o seu romance.





E mais nada. Disse tudo. Se alguem, por mais curioso, quizer ainda arrancar-me o segredo d'esta minha estranha sympathia pelos cavallos sagrados dos templos de shinto,―tanto mais estranha sympathia, quanto é certo que não me accusa a consciencia de jámais ter pertencido a qualquer sociedade protectora de animaes,―aqui lhe offereço, a esse alguem, a seguinte estupenda confidencia. No Japão, se não erra o meu juizo, só os cavallos dos templos são tristes. Elles, e eu. Ha entre nós mysteriosas analogias; não gracejo. Após longos estudos da propria carcassa, acabo de concluir―imaginem o quê!...―que tambem sou albino. Não pela anomalia congenita da falta de pigmento corante da pelle, dos cabellos e dos olhos, concordo; albino psychico porem―não sei se me faço perceber...―albino na alma dolente, na vibratilidade exangue, na apathia da vida, após os mil baldões da sorte, e desfeita no [77] ar a ultima bola de sabão das minhas illusões. Do meu poiso, que comparo sem grande esforço ao estabulo de Nanko, assisto ao contorno das scenas e ao perpassar da turba; mas alheado de tudo, e esquecido até das saudades da paizagem serena onde vivi os meus primeiros annos. Alvoroços de affectos? amores? fazem favor de me dizer para onde fugiram essas chimeras aladas da minha pobre juventude?... Quando muito, como o cavallo de Nanko, mas ainda mais desinteressado do que elle, porque me sinto naturalmente excluido do quinhãosito de feijões que pode seduzil-o, quando muito, se deviso essas musumés, com as suas mãositas muito alvas, muito mimosas, tenho por essas mãos, vagas ternuras: aqui, n'este meio onde me vejo, são-me ellas o emblema dos carinhos do sexo delicado; e incutem no meu espirito uma noção de paz possivel,―aqui, algures, não sei onde,―no lar da familia, quando abençoado pelos fados...


1899.




A PRIMEIRA FORMIGA



A Sebastião Garcez.


Á parte esta dedicatoria especial, é ás formigas e aos sabios―Deus não permitta que ellas, ou que elles, tomem a mal o parallelo―que eu offereço as revelações que vão seguir-se, nas quaes se explica, após longos preambulos, como é que a primeira formiga veiu ao mundo.

Quando na China, pela era do imperador Tai-Sun, as terras andavam divididas pelas mãos de muitos monarchas irrequietos, envolvidos em continuas batalhas e baralhas, deu-se um caso no ceu, digno de particular ensinamento. Acontecia que uma certa deusa do Olympo―Lei-San era o seu nome―nunca [79] em demorados arrebiques, em meticulosas pinturas de cutis, das ia dar o seu (passeio pelas nuvens, imagino) sem se esmerar sobrancelhas e dos labios. Pieguices do sexo, desculpaveis, e até de certo modo meritorias; mas o caso motivou, certo dia, um risinho malicioso da sua serva mais querida, e ainda por cima este commento pouco respeitoso:―«A deusa tem pelos modos algum defeito no seu rosto, e cuida de escondel-o á força de cosmeticos...»―Vão lá chasquear impunemente dos encantos d'uma dama! e quando ella fôr divina... É certo que tão cheia de cholera ficou a divindade, que vestiu a deliquente d'uma pelle diabo que encontrou a geito, pelle horrivel, cara azul, ruiva a guedelha, dois dentes curvos surdindo da bocca para fóra, e mãos e pés disformes; e assim, n'esse bonito estado, a escorraçou do ceu, aos [80] beliscões, e a enviou ao mundo em expiação. Chamava-se Tchong-Mou-In, a penitente.





Tai-Sun, empenhado em pellejas, e mortificado por innumeras derrotas, teve uma noite um sonho radioso, difficil de explicar. Consultado sobre o caso um lettrado favorito, anão por signal e muito feio, mas um poço de sciencia, elle disse ao soberano, após magnos processos de magia, que o sonho revelava que os deuses lhe haviam destinado certa dama por esposa, forte de genio e habilissima na guerra, a quem mais tarde se deveria a salvação do estado.

O anão dispunha-se a proseguir, depois de curta pausa; mas não quiz mais ouvir o imperador; e eil-o cavalgando o ginete dos cortejos, em pompas de comitiva festival, dirigindo-se para onde vivia a sua bella, conforme as indicações do anãosinho. Atravessa povoados, galga montanhas, desce valles; vôa, não corre, sua magestade; vôa nas azas da esperança, pula-lhe o coração em mil anhelos; e assim foi dar com Tchong-Mou-In.

Imagina-se a scena. Não ha palavras que descrevam [81] o desapontamento do monarcha. Tremulo de indignação, rompeu logo em iras e em blasphemias; pela mente, passaram-lhe de subito processos de torturas a exercer; e d'um gesto esporeou a alimaria, no intuito de regressar ao seu palacio. Ah! mas o soberano não contava que a dama, que a principio o recebera com doces humildades de etiqueta, que a dama, expulsa embora do ceu e do convivio dos seus deuses, ainda d'elles auferia benevolentes protecções. A dama, n'um esgar provocante da sua face azul, arreganhando os dentes e estendendo solemne a mão papuda, conteve d'um aceno suggestivo a furia do cavallo, e vomitou ao cavalheiro, severos vaticinios. Gritou-lhe que havia de casar com ella, se não quizesse alli ficar eternamente quedo; gritou-lhe que havia de recebel-a como imperatriz, e que ao seu braço de mulher, astuto e vigoroso todavia, teria de confiar altas emprezas. Emfim, para encurtar razões, e apressar o fim da historia, direi que o imperador desfez-se em cortezias e desculpas, venceu-lhe o asco e o medo, e tudo prometteu. Não tardou que aquelle monstro feminino lhe entrasse pela casa, rude e plebeu, endiabrado, dispensando cerimonias, transportando ella propria ás costas o enxoval―dois cabazes, uma thesoira, um espelho, um pente, uma vassoura, uma bacia de lavar o rosto,―utensilios [82] que, desde então até hoje, como que ficaram consagrados, symbolisando do lar domestico o nucleo indispensavel.





Tres mezes, consta, esteve o imperador alheio á convivencia da esposa, prolongando-lhe por esta forma uma castidade fastidiosa, com que ella provavelmente, não contava. Paciencia. Por vezes, na fria intimidade dos salões, procurou desprestigial-a aos olhos dos vassallos. Diz-se que um dia, reunidas a esposa e a concubina favorita, uma aposta se fez, sobre qual das duas, em escripta, mais habil se mostrava; e para isto se combinou contar quantos caracteres eram ellas capazes de escrever no tempo necessario para arder de um pivete perfumado, que alguem foi collocar sobre uma urna proxima. Do lado da favorita, cuja cultura litteraria é primorosa, estão o imperador (o basbaque!) e dois validos; do lado da soberana, apostam tres lettrados, e um d'elles é o anão. Eil-a, a amante, interessada vivamente no certamen, toda olhos, toda attenção, toda adoraveis fernesis dos seus bellos dedinhos côr de leite, que empunham o fino pincel, e correm febrilmente sobre o papel que lhe trouxeram. A soberana, o mostrengo [83] segredam, por piedade, decida-se a escrever...»―A bruta não os escuta. (perdôe-se-me o qualificativo que me occorre), face azul pousada nas manapulas, dedos disformes enfiando pela trunfa ruiva, olho impassivel e matreiro, relanceia, aparvalhada e immovel, a scena, e os espectadores. Sobresaltam-se os lettrados, que adivinham, n'uma eminente surriada, o desprestigio proprio no conceito do monarcha.―«Senhora, Repetem se, multiplicam-se as instancias; até que finalmente, attendendo a tantas supplicas, diz ella:―«Vão buscar aos meus aposentos um pincel.»―Voam escudeiros, volvem breve:―«Não se encontra, Senhora!»―Ella indica que está junto d'um armario. Os vassallos replicam:―«Perdão, não está; o que está é uma vassoura...»―Então berra a soberana:―«Pois é isso [84] mesmo, seus patetas!»―E tomando da vassoura, e ensopando-a n'uma mixordia de tinta, de que mandou encher a bacia que trouxera no enxoval, isto quando o pivete ia chegando já ao termo, com a vassoura lambusou um enorme papel, d'um gesto apenas; e por milagre,―que só assim se explica tal portento―appareceram nitidos, sublimes, mil e mil caracteres da mais adoravel forma caligraphica.





Na guerra, dirigindo ella mesma, em pessoa, a turba dos guerreiros, foi colhendo victorias e engrandecendo os seus dominios. Nos ardis, um primor.





Uma vez, convidados, imperatriz e imperador, para um banquete de monarchas, com os quaes andavam de guerrea porfiosa, um dos nobres apresentou aos convivas um enorme macaco que possuia, mono astuto nos seus modos de selvagem, e eximio n'um jogo então em moda, semelhante ao gamão dos nossos tempos.―«Senhora, ides jogar tres partidas [85] com este mono; se a ultima ganhardes, são vossas, nossas terras; se a perderdes... percebeis-me?»―Trava-se o jogo em que a imperatriz não era forte, pouco affeita a prendas de salão, e sendo notorio que nos ceus, onde passara a juventude, o jogo é prohibido. Coragem!... Primeira partida: ganha o mono. Segunda partida: ganha o mono. Tchong Mou-In desfalece em intimas angustias, julga-se perdida, quando então se lembra de invocar os deuses. A sua divina ama, que nunca a abandonára, despede do ceu um aviso visivel só para ella:―Toma este fructo; esconde-o na manga da cabaia, de modo que apenas o macaco dê fé d'elle, e joga resoluta.―Terceira partida: o mono dando vista do acepipe, banana ou coisa parecida, estremece de desejos; o trazeiro, onde parece residir a alma dos macacos, pula-lhe em sobresaltos, em anhelos, sobre o assento da cadeira; e com a dentuça arreganhada, o olho em braza, em arco as espessas sobrancelhas, o bestunto por certo desvairado, balbucia gritinhos repetidos―eh, eh! eh, eh!―que irritam os convivas. A mãosita felpuda ainda vae mexendo as pedras, por habito, por dever, mas sem arte, sem intuito; e a razão foge-lhe, abandona-o―tão imperativa é a lambarice n'estes figurões da fauna comica!―E perde a partida decisiva!

[86] Um parenthesis na historia. Dizia-me ha dias um companheiro de desterro, dos raros com quem logro palestrar:―Ora vêja você quantos macacos ha por este mundo, de gravata, e casaca, e rosa na carcella, quando não é uma commenda, astutos no gamão e n'outras prendas varias, quasi attingindo as alturas da audacia e do triumpho; n'um momento fatal, uma banana qualquer, mostrada a geito, desnortea-os, allucina-os, aniquilla-os... E que, por mais que façam, são macacos, embora a cauda se não vêja, de certo occulta nas ceroulas, e ninguem ha que possa purgal-os, expurgal-os, do sangue dos avós...





Continuo.

Uma das mais bellas façanhas que illustram a gloriosa mulher, se mulher é, de quem me occupo, é a seguinte. Travava-se então renhida a lucta pelas armas, entre varios soberanos, já com enfado de vencedores e de vencidos. Tai-Sun ia levando a melhor nas investidas. Eis que os reis desbaratados, unidos em conluio, julgam ir pôr termo a tão irritante situação, e muito em seu proveito, propondo ao imperador um curioso problema.―Não nos façaes a guerra. Aqui tendes uma perola, arrancada [87] d'um annel; notae que tem dois furos esta perola, communicando entre si interiormente por um labyrintho de nove canaesinhos; se conseguis apresental-a enfiada n'uma linha, juramos-vos a paz e a entrega por inteiro de tudo que hoje é nosso.

Irra! Em que apuros se viu o bom soberano em caso tão difficil!... Os conselheiros ficaram-se calados, macambuzios, e nada aconselharam. Foi então impingindo esta questão á esposa, elle, que a não beijava, nem lhe queria, mas que em assumptos escabrosos só n'ella tinha fé. Tchong-Mou-In recolhe-se, implora os deuses. A sua divina ama envia-lhe então do ceu uma formiga, a primeira formiga que veiu a este mundo; e manda a verdade que se diga que essa formiga prehistorica era um nadinha differente das formigas contemporaneas, menos esbelta nas formas, mais bojuda. Tchong-Mou-In comprehende o precioso auxilio: ata uma linha a meio corpo do bichinho, leva-o assim junto da perola, junto d'um dos seus furos, por onde se vê forçado a enfiar, não tardando que surda pelo outro, arrastando a competente linha atraz de si. É a gloria!...

E não reparam hoje na delicadeza da formiga, leve a cintura, como a cintura d'uma dama espartilhada? D'antes não era assim. Consigna-se o facto como indicando ainda ás gerações presentes uma [88] maravilhosa herança atavica, a impressão do nó com que a linha se prendia e apertava a primeira formiga, a formiga lendaria, a mãe de todas as formigas que hoje passeiam sobre a terra.





Nada mais sobre o insecto. Poucas palavras apenas pelo que respeita á soberana. Lei-San, a sua divina protectora, perdoou-lhe finalmente o passado sorriso de motejo, que valia uma injuria; despiu-a da pelle monstruosa que lhe dera, por expiação do seu peccado, restituiu-lhe a peregrina belleza que lhe era propria... O imperador, antes que a consorte volvesse aos seus labores divinos, poude vêl-a, e por longos annos, no completo esplendor dos seus enlevos. O imperador, que já lhe tributava incondicional veneração, graças aos seus prodigios, que tanta ventura lhe trouxeram, e prosperidade ao imperio, poude então tambem amal-a, amal-a [89] apaixonadamente, embevecido em tanta graça, em tanta formosura. Imagine quem quizer como áquelles amorosos as horas iriam correndo encantadoras, na serenidade mysteriosa do palacio, cingido por muralhas de marmore, e rodeado de jardins, e no afan de festejarem aquella lua de mel, tardia embora, que lhes apparecia no horisonte!...

1899.




OS DIABOS E OS VELHOS



A Nuno Queriol


Falla a lenda japoneza.

Era uma vez um velho, que tinha um enorme lobinho sobre a cara, na face por signal. Certo dia, achava-se elle na montanha, a cortar lenha―era esta a sua humilde profissão,―quando o surprehendeu uma terrivel tempestade, chuva a potes, ventania desabalada, o raio faiscando nas alturas; tão terrivel, que se viu obrigado a ficar por aquelles sitios e a buscar um abrigo para a noite. Abrigo, na floresta, era difficil problema; um grande tronco de arvore, escavado pelos seculos, offereceu-lhe a unica guarida.

No seu posto, agachado e sem poder dormir, foi o [91] velho passando tristes horas. Alta noite, principiou a dar razão d'um estranho vozear, longe a principio, mas pouco a pouco avisinhando-se-lhe―«Olá, resmungou, tanta gente por aqui, e eu que contava achar-me só?...»―E pôz-se a espreitar, curiosamente, sem sombra de receio.

O que o velho então viu, muito a custo, á luz fugidia dos relampagos, mal póde imaginar-se. Uma numerosa sociedade approximava-se; mas nunca ao velho apparecera tão estranha sociedade como aquella. Era um bando immenso de patuscos, de diabos incontestavelmente, medonhos nos aspectos: uns, encarnados, vestidos de kimonos verdes; outros, negros, vestidos de kimonos encarnados; a um faltava [92] um olho; a outros o nariz; alguns não tinham bocca. Pozeram-se a accender uma fogueira enorme, com palha, com folhas, com cavacos que encontraram; e as chammas sinistramente os patentearam. Acocorados em torno da fogueira, em duas filas, bebendo saké em amigavel reinação, pareciam mesmo gente, os taes demonios. A vasilha ia passando á roda, de garra em garra, entre os convivas; e tantas voltas deu, e renovada tantas vezes foi, que jâ não tinham conto as bebedeiras. Um dos mais jovens assistentes ergueu-se como poude, e começou uma cantiga, dançando ao mesmo tempo; os outros imitaram-n'o. Era então extremamente emocionante a vista da paizagem: a fogueira, ateada pelas rajadas successivas, alastrava-se e subia, furiosa, até ás nuvens, em turbilhões de fumo e labaredas, e ia alumiando diabolicamente a scena inteira―ramarias de bambus e de pinheiros, profundezas de bosques, penedos gottejantes, torrentes espumosas, e ainda a turba immensa dos diabos esbravejando em mimicas atrozes―Uns rodopiaram em vertiginosas piruetas; outros iam gravemente alçando a perna e ensaiando minuetes; outros, immoveis, ou antes querendo assim quedar-se, ondulavam em bordos grotescos de borrachos; e de colina em colina os echos repetiam os torvos descantes em falsete, de mistura com [93] as lamentações das arvores açoitadas pelo vento, e a salva de artilharia dos trovões. Berrava uma vóz esganiçada: «Que grande reinação! mas bem quizera vêr mais alguma novidade!...»―





Mettido no seu esconderijo, o rachador de lenha passou por todos os tormentos que o espanto, o susto e o desamparo juntos produzem no animo d'um velho. Por fim, passadas horas, ia já folgando na festa―ou não fosse elle japonez!―e tal poder teve sobre elle a bambochata, que lhe venceu escrupulos e temores, e o levou a esta resolução formal.―«Matem-me embora estes diabos, se quizerem, mas pretendo tambem ir pandigar!»―Surdindo então da tóca, barrete enfiado até ás orelhas, machadinha suspensa da cintura, ei-lo a reunir-se á malta, a dar as boas-noites e a ensaiar passos de dança. Foi agora a vez de se espantarem os demonios; mas tão comico era o velho, no seu pobre corpinho corcovado, avançando em meneios, e recuando após, e virando-se para a direita em cortezias, e voltando-se para a esquerda em reverencias, e traçando no ar, com o pé descalço, estupendas parabolas coreographicas, que [94]desataram todos em risóta, gritando:―«Viva o velho! muito bem! que bem dança o velho!»―E proseguiram depois, n'este proposito:―«Queremos que tomes sempre parte em nossas festas, por seres mui reinadio; mas, como póde acontecer que não pretendas voltar mais, vaes deixar-nos um penhor de que acederás a este convite.»―



Consultaram-se entre si, e decidiram da consulta, extrahir-lhe o lobinho; muita gente do povo, é notorio, [95] considera este achaque como um valioso talisman para ser-se afortunado. Eil-os pois, olhos attentos, braços nús, dedos palpando, lancetas e tenazes em acção; e o velho estendido sobre o solo, um segura-lhe uma perna, um outro a outra, outro prende-lhe os braços, outro delicadamente ampara-lhe a cabeça; e sairam-se do caso com limpeza, não causando a menor dôr ao paciente. Depois, fôram guardar o lobinho n'um estojo.

Quando, sereno já o tempo, rompeu a madrugada, uma bella madrugada côr de rosa, e os pardaes começaram a papear nas ramarias, desappareceu então a malta dos demonios. O velho desceu á sua aldeia. Entrou em casa muito contente, ainda um tanto estonteado da bebida, sem o lobinho é claro, com a sua face muito lisa, sem o minimo defeito. O caso maravilhou com razão a companheira, e a gente conhecida. Ia-se servindo o chá pela familia e pelos curiosos que accorriam, sobre a esteira, junto do brazeiro; e era uma chuva de exclamações e de perguntas, que obrigaram o velho a explicar, nos seus detalhes surprehendentes, as peripecias da estranha noite que passára na montanha.


[96]



Ora, havia entre os visinhos presentes um outro velho, que tinha um enorme lobinho sobre a cara, na face esquerda por signal. Muito calado, assim com ares de não prestar ouvidos á palestra, ia em mente, o finorio, retendo todas as minucias. Não partilhando das crendices da gentalha, pelo contrario, desejoso de vêr-se livre do tortulho, ia já estudando a maneira de entregar-se nas mãos de tão sabios curandeiros. Eil-o pois, por uma noite escura, caminho da montanha; seguidamente, eil-o abrigado sob o mesmo tronco de arvore, á espreita dos diabos. Não faltaram. Começou a bambochata,―risota, dança, vinho.―Juntou-se então aos demonios, a medo, um outro figurão.―«Olá, cá está de novo o velho! voltou, e vem dançar!»―Dançou, effectivamente, e sem ser muito rogado; mas era um desastrado; e tão mal desempenhou o seu papel, tão falto de geito e de pilheria, que os demonios, tomando-o sempre pelo conviva primitivo, zangaram-se e disseram-lhe:―«Enganaste-nos, brejeiro! és um grande desgeitoso; devolvemos-te o penhor que nos deixaste e aconselhamos-te a que não pises [97] mais este logar.»―Um da chusma foi buscar o lobinho, e zaz! pespegou com elle na face direita do sujeito. Saira de casa com um, e voltou com dois, um lobinho em cada face. Pode imaginar-se o desapontamento do sujeito e a hilaridade dos visinhos. Parece que, na aldeia, durante semanas e semanas, paralysou todo o trabalho; os velhos, as velhas, as raparigas, os garotos, não faziam senão rir, rir a bandeiras despregadas,―e o caso não era para menos!―

1899.




PAU-MAN-CHEN


A Antonio Baldaque da Silva.


Scena domestica. Lá está o meu cosinheiro a bater cabeça, como se diz n'este Macau; lá está elle rezando aos seus deuses protectores. Que lhe preste! Acabou de me roubar nas contas, como bom chinez que é, serenamente aggressivo em tudo ao europeu; e passou a entregar-se a esta outra occupação não menos meritoria.

Sendo seus os aposentos inferiores, é ali rei, ou pelo menos mandarim; faz o que quer. Os altares aos deuses anicham-se pelas paredes, aos cantos do sobrado, sobre as mesas; e até junto ao fogão, onde se guisa o meu jantar, se presta culto a supinas divindades. [99] Mysteriosos ritos. São papeis encarnados, contendo cabalisticos dizeres; são figuras de horriveis monstros, coloridas pelas tintas mais surprehendentes, nas disposições mais grotescas, despertando quasi o riso, despertando quasi o medo, a quem não vive em graça em tal Olympo. Alli o cosinheiro, em humildes genuflexões de crente, vem depôr suas offertas, minhas offertas, pois sou eu que pago a festa,―offertas de laranjas, de doces, de chá, de porco assado e de outras iguarias.―Alli ardem lumes mysticos; e frequentemente, pela noite, como agora, se queimam pivetes, cirios rubros, rezinas e papeis, de tudo emanando um fumo atróz, que invade em torvelino a casa toda, que chega sem respeito ao sitio onde me encontro, e me soffoca. Paciencia! Paciencia é o unico codigo de conducta para o aventureiro que escolheu para exilio um canto exotico, longe, muito longe do torrão onde nasceu, e no qual a civilisação disparatada, a feição [100] propria das gentes com quem lida, hão-de fatalmente apresentar-se, dominantes.

Os deuses, com quem por assim dizer vivo em contacto, e a cuja sublime protecção, posto que indirectamente, me confio, são muitos, um enxame. É todo o Olympo buddhista e o inteiro mytho primitivo, amalgamados em crendices; legiões de espiritos. Naturalmente, ha uns mais preferidos, que se invocam no lar com mais piedoso amor; n'este numero, segundo informações recentes que colhi, deve contar-se Pau-Man-Chen; e é a sua historia maravilhosa que me proponho narrar, como puder.





O deus Pau-Man-Chen, venerado em todo o immenso imperio, tem uma face branca e tem uma face preta. Na China não ha effectivamente ninguem que não o adore, que não lhe preste no altar domestico, o culto merecido; a elle, que tudo sabe e tudo pode, que possue a sciencia do bem e a sciencia do mal, que com um olho contempla os ceus e as grandes coisas puras, e com o outro mira O deus Pau-Man-Chen, venerado em todo o immenso imperio, tem uma face branca e tem uma face preta. Na China não ha effectivamente ninguem que não o adore, que não lhe preste no altar domestico, o culto merecido; a elle, que tudo sabe e tudo pode, que possue a sciencia do bem e a sciencia do mal, que com um olho contempla os ceus e as grandes coisas puras, e com o outro mira a terra profunda até aos antros lobregos dos demonios, adevinha-lhes os maleficos designos. O deus Pau-Man-Chen [101] tem uma face branca e tem outra face preta...





Ha não sei quantos mil annos, morreu não sei aonde, uma mulher casada. O marido, não resta duvida, procedeu segundo o ritual do estylo, e mandou depositar o caixão n'um solitario templo. Mal imaginava elle que a defunta seguia gravida no esquife; e mal imaginava que o menino, que se occultava no seu ventre, ia votado a altos destinos...





Foi por aquella epocha, n'uma mercearia do sitio, que começou sendo notado, com justo sobresalto do dono da quitanda, o caso que vou expôr. Fazia-se sem novidade a venda, dia a dia; mas, quando pela manhã se dava balanço ás contas e ao dinheiro, encontrava-se sempre, de mistura com o monte das sapecas, dois d'esses papelitos amarellos, com a competente mancha prateada, que são nada menos do que a moeda corrente entre as almas do outro mundo, nas suas transacções... Era prova clarissima [102] de que andava por alli coisa sobrenatural,―bruxaria, visita de phantasmas, ou outro mysterio parecido.―Estudou-se o caso attentamente e com bem justificaveis ancias de terror; observaram-se os freguezes, um por um. Chegou-se por fim á conclusão de que, em tal enigma, andava por certo envolvido aquelle vulto de mulher de maneiras suspeitosas, trazendo uma creança no regaço, e chegando-se todas as noites ao balcão para comprar um bolo, que offerecia ao pequerrucho. Aos cobres, que largava das mãos lividas, cadavericas, não havia nada que dizer-se; eram excellentes; mas quem ignora que de noite todos os bruxedos são possiveis, e é a luz fraca do dia que seguidamente os desmascara?... O patrão (os tendeiros do mundo inteiro, e desde seculos sem conto, são homens de raro engenho), o patrão, certa noite, conseguiu sem ser sentido, atar um longo fio á ponta da cabaia da fregueza; e quando ella se ausentou, pôz-se a largar o fio, á medida dos seus passos. No dia seguinte, facilmente o finorio percorreu a linha de trajecto da [103] mysteriosa caminheira; e foi assim esbarrar, no termo do passeio, com o caixão da defunta, de que atraz se fez mensão. Do caso, sem detenças, correu a dar parte ao viuvo, de quem era conhecido.

Acercam-se o viuvo e um bando de curiosos, do esquife, e abrem-n'o, ao pasmo de todos. Scena extranha! Sobre os farrapos descoloridos, humidos, fetidos, pasto de vermes,―quem já, dos que me lêem, poisou os olhos no espectaculo d'uma tumba escancarada?―lá está estendida a esposa, e lá está um menino. Vivo? sim. Viva? viva parece, d'uma existencia sobrenatural embora; mas como ninguem d'ella cuidasse, alli ficou jazendo para sempre. As attenções, os carinhos, convergem para o menino; o pae estende-lhe os braços, arranca-o á desolação d'aquelle leito, chama-o á vida, á sociedade, ao mundo.





A lenda popular completa esta curiosa historia pela maneira que vae vêr-se. A defunta, alli amortalhada, alli estendida sobre as tabuas, foi mãe, não sei por que milagre―não se discutem milagres.―O resto explica-se melhor: o mysterio psychico da maternidade, isso que nas mães se patenteia como uma [104]força immensa, sem limites no affecto, sem barreiras nos zelos, capaz de todos os arrojos, poude aninhar-se n'aquelle corpo inerte, e imprimir vontade áquelle feixe de ossos. Aos primeiros vagidos da creança, o cadaver pôz-se a contemplar os proprios seios murchos, pendentes, vazios de seiva, roïdos pelos bichos. O cadaver moveu-se então, galvanisado pelo amor―qualquer cadaver de mãe, n'aquellas condições, faria o mesmo;―começou a dar pontapés no impossivel; partiu a murros as paredes do seu carcere; e apertando de encontro aos ossos o filhito, e embrulhando-se discretamente na mortalha, foi a correr comprar um bolo á venda proxima. A creança assim foi medrando, passando os dias n'aquelle estranho berço. Foi por isso que ficou com uma face branca, a que voltava para a luz e para o ceu, e com uma face preta, a que poisava na sombra, de encontro á terra negra. De então lhe veio o duplo condão de conhecer o bem e de conhecer o [105] mal, de vêr com um olho os deuses, e com um olho os demonios. Pelo correr dos annos, foi mandarim de modestos logarejos, pois lhe sobrava asco pelas riquezas, pelo fausto e pelos altos cargos. Os nobres senhores, o proprio imperador que muito o honrava, tremiam do seu juizo. Lia nas consciencias e lia nos destinos. Distinguia na turba os humildes, os bons, os opprimidos; e tambem os impostores, os verdugos, os infames. Premiava as virtudes, azorragava os vicios. Os desmandos da côrte, a rapina dos ministros, os mexericos das concubinas, fôram por elle desmascarados e punidos. Assim viveu por longos tempos este grotesco e sublime figurão; assim passou por todo o imperio, para gloria da China e para consolação dos offendidos. O povo punha de parte os labores e vinha prostrar-se em saudações á borda das estradas, ao vêl-o atravessar cidades e campinas, galgar os montes e descer os valles, sempre incansavel, seguindo a largos passos, como se fosse um [106] procurador atarefado com demandas. Fluctuava-lhe ao vento a longa cabaia esfarrapada, suja de lama e de poeira dos caminhos; a mão adunca brandia um baculo nodoso; as pupillas chammejavam iracundas; o corpo ossudo definia-se, na magestade façanhuda dos gestos arrogantes, nos compridos bigodes de asiatico, pendentes como franjas, na barba aberta em leque, chegando-lhe á barriga, e na disformidade do rosto pintado a duas côres, branca uma face e outra face preta. Um bello dia safou-se d'este mundo; mas lá anda no outro, certamente, espreitando cá para baixo, e não largando de mão o seu fadario.

1899




A CARICATURA NO JAPÃO



a Camillo Pessanha e João Vasco.


Grande coisa, meus senhores, é ter engenho!.. Eu não me gabo muito d'esta prenda, confesso-o francamente; mas tive ha pouco azo de julgar pela propria consciencia―mercê d'um rasgo excepcional do meu bestunto―quanto vale uma boa idea; e conclui que a felicidade humana seria coisa facil, se uma impulsão sagaz do espirito fôsse guiando sempre os nossos passos n'este mundo. E assim fica satisfatoriamente justificada, penso eu, a exclamação com que enceto estas divagações, escriptas por uma noite fria de janeiro, no meu gabinete silencioso, na cidade de Kobe, no Japão.

[108] Vamos ao facto. Ah, pobre espirito enferrujado pelos azedumes da existencia, gasto pela longa fricção das coisas e dos homens, soffrendo pela dôr do passado, pela insipidez do presente e pelas tristes promessas do futuro! como tu, meu pobre espirito, cahiras na quasi insania, consciente, e por isso mesmo mais penosa, d'aquelles para quem, por mal dos seus peccados, a vida se vae tornando toda um immenso enfado... Morbidez de temperamento? incompetencia ingenita para a lucta? fadiga, após os mil baldões da sorte? pouco importa; não vale a pena agora desenredar esta meada. Passava, e passo ainda, longas horas do dia junto da minha secretaria; é este o meu officio. Alguem, que entrasse, via-me grave, correcto, rodeado de livros e papeis, e até, presumo,―perdôem-me a vaidade―talvez me atribuisse uns certos ares de sabio, em cuja mente magnos problemas se iam sublimando. Só, bem só, entre quatro paredes discretas, desfallecia; o olhar vago fixava-se no nada, todo o meu ser se inutilizava, perdia-se em abstracções, desinteressado da realidade, de mim mesmo, morto,―porque ha para alguns uma morte percursora d'aquella que roe na tumba a febra e põe a nú os ossos brancos do esqueleto.―E vae então, um bello dia, achando-me casualmente n'um bazar de Osaka, compro uma [109] figurinha de barro da deusa O Fuku-san, que colloquei sobre a mesma secretaria referida.

Ora aqui está, no fim de contas, em que consiste o meu rasgo genial; e vou dizer porquê. O barro é trabalhado por dedos tam amorosos de artista,―um obscurissimo artista certamente;―a pasta impregnou-se com tanta obediencia da feição predominante da alma japoneza,―naturalismo humoristico, caricatural;―que a deusasinha patusca que aqui tenho a meu lado, uma bugiganga de tres pollegadas de altura, quanto muito, é toda ella uma gargalhada viva, supina, radiosa!... Acontece que a tristeza, borboleta negra das trevas, foge espavorida da minha convivencia; poiso os olhos na deusa, e desato a rir perdidamente; e assim me tornei o homem mais divertido d'este mundo.





Antes de ir mais longe na palestra, justo é que me detenha e diga em poucas phrases quem é O Fuku-san. Divindade popular, patrona da boa fortuna e da alegria, representa na genesis japonica um papel de subida importancia incontestavel. Izagani e Izanami, os deuses iniciaes e creadores, formaram o Japão e [110] tiveram por filha, Amaterasu, a deusa do sol, e outros filhos, todos com maravilhosos attributos. Amaterasu residia no ceu, alumiando a terra; delicioso officio; mas tamanhas affrontas soffreu de um seu irmão, o deus da lua por signal, que se amuou e decidiu esconder-se, escolhendo para retiro uma caverna, aonde se metteu, vedando a entrada com uma enorme pedra; a terra, é obvio, achou-se ás escuras de repente. Os deuses, apavorados,―o caso não era para menos,―recolheram-se em conselho, e resolveram o seguinte, depois de larga discussão: fôram postar-se todos bem junto da caverna; Takadjira, o deus de enormes braços, ficou junto da entrada, fazendo sentinella; O Fuku-san, a mais divertida das patuscas, poz-se a cantar modinhas; ou, quando não cantava, tocava n'uma gaita de bambu; ou, quando não tocava, bailava minuetes, acompanhando a dança de mil tregeitos faceciosos. Tanta pilheria teve a figurona, que a deusa Amaterasu, no seu antro, começou a interessar-se na galhofa, a rir ás furtadellas,―ou não fosse ella japoneza!―e arredou um pouco, para o lado, o pedregulho, alongou um nada a cabecita para fóra, e assim se pôz a gozar melhor da brincadeira. Então Takadjira, n'um relance―zás!―caiu-lhe em cima, lançou-lhe os longos braços ao pescoço, puxou-a para si, foi á força [111] poisal-a no seu throno... e a terra de novo continuou a ser alumiada pelo sol!

A arte popular veste a deusa O Fuku-san em bellos trajos da côrte, dos velhos tempos, setins rojantes, brancos e escarlates, e molda-a nos ultra-comicos contornos d'uma japonezita enormemente obesa, toda ella refolhos de gordura, banhas de pescoço, de collo, de seios, de barriga, redondezas pasmosas de quadris, e mãos e pés papudos. A cara, a immensa caraça, de lua cheia, é um poema completo de monstruosidade triumphal e hilariante: faces prodigiosamente bochechudas, caiadas de cosmeticos; um narizito que mal se vê, rombo, abatatado, como que calcado para dentro, a golpes de martello; á fronte curta e estreita, de imbecil, collam-se dois bandós de cabellos de azeviche; fôram rapadas á navalha as sobrancelhas, segundo o uso classico; os olhinhos piscos, matreiros e gaiatos, reluzem pelas fendas estreitas das palpebras carnudas; e a bocca, a boquinha, em forma de cereja, acarminada, sorri em curvas, em prégas, em covinhas impagaveis... Mas não ha palavras que descrevam, nem de longe, a expressão de toda a figurinha―porque vae alem da nossa comprehensão de occidentaes,―no que d'ella irradia de jocosidade perenne, de beatifico comprazimento, de vagos tiques de inconsciencia [112] infantil, de imbecilidade, de malicia, de perversão; um indefinivel conjuncto de não sei que de imminentemente pueril, satanico e grotesco, todavia gracioso, que é no fim de contas uma das feições mais caracteristicas e mais emocionantes da arte inteira japoneza.





Ensina-se nos livros que por meados do nosso seculo XII, o pintor Kakuyu, que era bonzo buddhista, iniciou no Japão a pintura caricatural. Pois seja assim; concedo ao frade o merito de ter traduzido pelo pincel, por vez primeira, o humorismo d'esta gente. Mas tal humorismo, como feição moral, nasceu com o mesmo povo, é-lhe um fector do sentimento; e cada japonez é, e foi, e será, um caricaturista. Quando se estuda a lenda indigena japoneza, no vasto reportorio das suas fabulas, que eu penso representarem [113] sempre o mais remoto documento do feitio estetico, da individualidade psychica, d'uma qualquer grande familia humana, depara-se na scena com a mais curiosa fauna fallante―macacos, caranguejos, raposas, alforrecas, ratazanas e outros varios bichos;―no apologo grego, por exemplo, os brutos são doutores, discursam como philosophos e como moralistas; no apologo japonez, menos profundo, mas talvez mais incisivo, a bicharia contenta-se em mascarar-se vestindo kimonos e enfiando as patas nas sandalias, faz caretas, galhofa, dança e ri, em desenvolturas caricaturaes da mais desopilante troça a todos os ridiculos.

Quando as artes se desenvolvem e nacionalisam, e attingem uma feição independente, inconfundivel, a caricatura, como que traduzindo uma recordação da lenda, vem desempenhar um papel importantissimo, não só na pintura, mas nas multiplices affirmações do engenho―esculptura, ornamentação da porcellana, da faiança, dos charões, dos bronzes, em tudo.―Graças ao pincel e graças ao buril, as rãs decidem-se a vir tocar guitarra para a rua; os pardaes offerecem banquetes aos seus intimos, servidos em porcellanas primorosas; desfila um cortejo de rapozas, levando a noiva, a rapozinha, ao noivo feliz, que a espera no seu lar; pelo dorso de Hotei, [114] deus da bondade, vão trepando os garotos, e um mais atrevido vae poisar-se-lhe em cima da careca; os guerreiros cobrem os rostos com mascaras de um comico façanhudo indescriptivel. Hokusai, o grande mestre da escola vulgar em pintura, delicia-se em desenhar cegonhas d'um só traço repentino, maravilhosos gatafunhos, palpitantes de observação e de verdade; no seu album dedicado ao Fuji-yama, a montanha sagrada, contorna-a vista atravez de uma rede, que um pescador tira do mar; e atravez de uma teia de aranha; e entre o A das pernas nuas d'um operario tanoeiro, que do alto de uma dorna ajusta á força de malho as aduellas; e reflectida no chá da taça que um esfarrapado mendigo leva á bocca. Hokusai, em 1804, durante certa festividade n'um templo, manda estender no solo uma folha de papel de cerca de duzentos metros quadrados de grandeza; vem mais um barril com agua, outro barril com tinta preta, uns oitenta litros d'ella, e mais duas enormes vassouras e tres vassouras mais pequenas; entra o mestre, empunha uma vassoura embebida na tinta, traça sobre o papel curvas gigantes; no fim de alguns minutos termina a sua obra, que só é comprehendida quando alguns dos milhares dos assistentes se lembram de galgar ao telhado do templo: a distancia e do alto, o immenso [115] quadro representa um admiravel busto de Daruma, o grande apostolo buddhista. Por aquella mesma epocha, Hokusai pintava sobre um bago de arroz um grupo de aves, encantador, mas só distincto com a ajuda de uma lupa.

É esta caricatura, melhor será talvez dizer―este humorismo, que o japonez exerce com habilidade unica, magistralmente, prodigiosamente; é por ella, é por elle, pelo segredo dos exaggeros, pelo arrojo da execução, que alcança intenções flagrantes no traço, uma alma quasi na paizagem, um conceito na arvore, no ramo em flôr, no simples contorno de um rochedo... Na pintura japoneza, por exemplo, um pargo, um caranguejo, uma lagosta, o figurão zoologico mais lorpa que possa imaginar-se, vivem na tela, isto é, accusam uma vontade, uma intenção, um sentimento, como a fome, como o medo, como o cio. Não se diga que [116] é a fiel reproducção do modelo que dá isto,―a photographia d'um caranguejo não palpitaria de vida;―é pelo contrario o exaggero propositado de certas linhas, o exercicio de uma arte mysteriosa, que naturalmente se inspira no perfeito conhecimento estructural e sentimental do bicho, animalizando de certo modo o artista e humanizando o bruto, e permittindo caprichos descommunaes que o observador não descrimina, que o levam a exclamar, não sei por que remotas reminiscencias ancestraes de subito recordadas:―«aquelle linguado acha-se triste... aquelle camarão arde em ciumes... aquella lombriga está-se a rir...―»



O humorismo japonez não se limita ás artes; divulga-se nos costumes do povo, nos seus habitos; quando nos intromettemos na intimidade indigena, ainda o espectaculo de inesperados disparates, de [117] requintadas extravagancias, vem ferir a nossa pupilla e prolongar-nos o espanto. Eu não pretendo escrever aqui um tratado dos exotismos d'esta gente, aponto ao acaso alguns dos que me occorrem.

Pois não são disparatadas, caricaturaes, estas mangas prodigiosamente amplas dos vestidos, e na propria fazenda a estupenda polychromia dos matizes? E estas peanhas de madeira, á laia de calçado, onde se poisam os pés nús dos japonezes? E estes penteados enormes das mulheres, transformando-lhes as cabeças em estupendos monumentos ambulantes? E o obi, a cinta de seda que cinge as ancas da musumé em voltas sobrepostas e rematadas n'um laço colossal? E o costume das casadas, quando em signal de desapêgo ás vaidades d'este mundo, se desfeam rapando as sobrancelhas á navalha, e envernizando de preto a fila dos dentinhos? A casa de papel, o jardim de Lilliput, a vida passada de joelhos sobre [118] a esteira, a refeição servida em taçasinhas e apprehendida nas pontas dos pausinhos, a arte domestica da preparação do chá e dos ramos de flores, a dança, a musica, a cama improvisada a um canto com duas colchas de seda e uma boceta de charão por travesseiro, as mil saudações trocadas entre duas pessoas que se encontram, todos os aspectos da vida indigena emfim, intimos, sociaes, brincadeira, como se o japonez tivesse vindo ao mundo para se rir de tudo são surprezas, extravagancias, excepções unicas, simples pretextos para em que se occupa, e para se rir de si primeiro do que de tudo... Chega-se sem muita difficuldade a comprehender porque, nas relações de convivio de um para outro, de preferencia á palavra, de preferencia ao gesto, uma maneira ha mais eloquente de traduzir o pensamento:―a gargalhada!...





O proprio japonez é uma caricatura. Não se espantem da asserção os que tiverem a pachorra de me ir lendo; eu hei de ainda provar que o proprio deus dos japonezes, o sublime creador do Dai-Nippon, formou n'um estado de alma galhofeiro esta terra, sem systema, sem programma estudado e sem [119] pressas; sem pressas certamente, recreando-se nos comicos caprichos que a phantasia lhe ditava e a mão omnipotente ia executando, ferramenta do officio em acção, escopro ou broxa, afeiçoando, retocando, caricaturizando, o que do chaos ia surdindo á flôr das aguas. Depois, concluida a obra, devia ter soltado uma gargalhada retumbante!...

Ora desde remotas eras até hoje, pratica-se no Japão um exercicio de lucta, um sport (como se diz agora) muito em voga, e do especial agrado d'esta gente; é o espectaculo favorito durante determinadas epochas do anno. Limita-se no campo um espaço com esteiras e bambus, e ao centro dispõe-se uma pequena elevação em forma circular; içam-se galhardetes e bandeiras, rufa o tambor, e o povo afflue por centenas de curiosos, compra o seu bilhete e toma poiso; dois homens, quasi nús, combatem corpo a corpo, como na arena grega, até que um d'elles derruba o companheiro e é proclamado vencedor. [120] Estes luctadores de profissão são escolhidos d'entre os gigantes, d'entre os athletas, e é na provincia de Tosa que especialmente se recrutam. Não são homens, são caricaturas de homens, são monstros, enormes, valendo cada um em peso e em dimensões por seis japonezitos ordinarios. Não se imagina, nem podem descrever-se, as caras, os carões de taes sujeitos; são mascaras disformes, caraças imberbes, olhinhos ferinos repuchados para a testa, queixada vigorosa e dentuça arreganhada, orelha polpuda e ampla, trunfa hirta e espessa, e um risinho estranho, sarcastico, mistura de riso de creança e de riso de demonio; nem ha palavras que expliquem a amplidão dos vultos, a obesidade das carnes, o braço roliço quasi feminino, os seios erectos, o enorme ventre impando, lenta a marcha e ondulante, de urso da Siberia em liberdade. Asseguram estudiosos que estes monstros de Tosa são os ultimos restos, preciosos modelos vivos, da raça prehistorica japoneza... Pode assim ser; no japonezito de hoje, embora geralmente franzino, miudinho, delicado, não repugna acreditar que alguma coisa haja de commum com os luctadores de Tosa: como que laivos de familia, a vaga semelhança com um avô... a não querermos mais longe ainda ir procurar-lhe affinidades, n'um remoto parentesco [121] com a deusa O-Fuku-san, que continua a rir-se para mim, e eu a rir-me para ella...

Relanceêmos a chusma, nos theatros, nas feiras, nas romarias, nos bazares? Pode dizer-se, em geral, que o typo do japonez, da sua femea, e mais accentuadamente ainda nos obesos, ou nos magros, ou nos anões, ou nos albinos, ou nos côxos, ou nos corcundas, ou nos leprosos, ou nos que têem um lobinho, ou nos que têem o nariz roido, em todos aquelles em fim em que um defeito, uma tara, sobresae, é caricatural supinamente, comico a ponto de nos fazer morrer de rir ás gargalhadas!... Ah, maganões! vocês, quando nos deram as imagens dos seus deuses, dos seus genios do lar: uns pansudos, como odres; outros esqueleticos, macrabos; uns pachorrentamente joviaes, outros terriveis, despedindo raios sobre a terra; vocês retrataram-se a si mesmos, segurando com uma das mãos o pincel e com a outra o espelhinho onde se viam, maganões!... Especialisando, [122] da multidão das ruas, essa figurinha em miniatura que tão irresistivelmente captiva as attenções do estrangeiro, toda ella matizes, perfumes, frescura, gentileza, a figurinha da musumé, da rapariga, podemos ainda definil-a como uma caricatura, a caricatura mais travessa, a chimera humana mais deliciosa, em que jámais olhos de viajante se poisaram!...

Profundar o enygma do feitio moral da tribu é impossivel. Apenas conhecemos vagamente que a vida intima desliza serena e pueril, sem ralhos, sem exasperos, em culturas de arbustos, em contemplações dos astros, em banhos quentes, em esmeros junto do espelho, em brinquedos com as creanças, em debandadas pelos campos, em libações de chá, em jantarinhos de arroz e fatias de nabos em salmoira, em sonecas tranquillas debaixo do verde mosquiteiro protector... Mas d'esta mesma gente expludem tambem por vezes os grandes dramas: crudelissimos assassinios, por cegueira de ciumes; suicidios duplos, por desespero de amor,―elle e ella cingidos n'um derradeiro abraço;―e essa horrivel sede de sangue, o homem transformado em fera, trucidando tudo vivo que encontra, estado de loucura conhecido entre os estrangeiros do Oriente pela denominação de amock, palavra malaia ou javaneza.


[123]



A tribu parece ter sido feita de encommenda para o paiz exotico que lhe foi dado em patrimonio. Percorrendo-o, estudando-o nos aspectos, melhor se comprehende a indole estetica do povo, a alma nacional, com as suas delicadezas, com as suas graciosidades, com os seus caprichos, com os seus disparates; manifestações multiplices de um caracter particularissimo de origem, mas no qual a influencia muito especial do meio laborou tambem intensamente.

Comparando os aspectos normaes, comezinhos, que se desdobram por este mundo fóra, com outros aspectos excepcionaes, em contraste flagrante com a disposição commum das coisas, pergunto eu se o termo―disparate,―se o termo―caricatura,―são permittidos, julgando a obra da omnipotente creação? Haverá, por exemplo, um ilheo disparatado, um pinheiro caricatural? Se permittidos são, se ha tal ilheo, se ha tal pinheiro, então não se pode imaginar coisa mais disparatada, mais caricatural, do que este archipelago, já disparatado de nascença, emergindo a pique e como por encanto, do seio das aguas mais profundas do oceano, tenue, rendilhado como [124] uma joia em filigrana, convulsionado a todos os momentos por mysteriosas commoções vulcanicas, zurzido por tremendos cyclones, invadido por vezes pelas ondas enormes do Pacifico, caprichosa chimera geologica emfim, que pode ámanhã desapparecer no abysmo, sem que por tal se espantem muito os sabios!... Tal é o imperio do Japão.

A paisagem extravagante, inverosimil, inacreditavel, das porcellanas e charões, hoje divulgada em toda a parte, é com effeito a paizagem real d'este Japão. Collinas, penedias, verdes planices, lagos, cascatas, torrentes espumantes, ribeiras dormentes, valles profundos, mares interiores salpicados de ilhas e rochedos, tudo reduzido a miniaturas graciosissimas, reunido em grupos incongruentes e projectado em fundos de ceu estupendamente coloridos, eis o que os olhos abrangem n'um relance.

Demorêmo-nos nos detalhes. As coniferas (algumas [125] especies enormes) vestem as encostas, trepam pelas ribanceiras acima, até irem coroar os ultimos pincaros das serras. Aqui, um bosque de bambus gigantes, cuja sombra eterna e cuja paz soturna dão allucinações áquelle que se aventura em devassar o seu mysterio. Alli, outro bosque, de bordos, de momiji; em novembro, a sua tenue folhagem digitada passa do verde claro ao escarlate; o scenario adquire assim deliciosos exotismos ultra-terrestres, como se a gente se achasse de repente pisando o solo de Marte ou de Saturno. A semente do acaso caiu sobre uma pedra á flôr das aguas; germinou o pinheiro, a rede das raizes abraça-se ao granito, e ergue-se desamparado o tronco, torcido, contorcido pelos annos e pelas intemperies, reflectindo no espelho glauco a sua eterna cabelleira de verdura; ha arvores, enobrecidas ou pela vetustez ou pela forma estranha, celebres como heroes, que são visitadas por uma multidão de peregrinos. As ameixieiras, as cerejeiras, abundam; pela primavera, cobrem-se de florescencias pasmosas, luxuriantes, como nunca se viu em parte alguma; mas não dão fructo, as trapaceiras.

Nos jardins, continua a flora exotica, desconhecida. Trepa, por onde pode, a asagao; e abre á alvorada, por curtas horas, as suas frescas campanulas, [126] de qualquer côr, porque as variedades não se contam, são milhares. Desabrocha a peonia, enorme, paradoxal. E enfileiram as chrysanthemas, a flôr nacional, sob tendas que as abrigam do sol, podendo lembrar cortezãs em exposição nos bairros de prazer, pela extravagancia das côres e dos feitios, que recordam a confusão polychroma dos vestidos e dos penteados das mulheres; mas que realmente se assemelham a enormes actineas, monstros dos mares, multiplicando-se em mil tentaculos contorcidos, brancos, amarellos, rosados ou sanguineos.

Agora a fauna. Pelo espaço, negrejam bandos de corvos, os karasu, escarninhos, voando e rindo ás gargalhadas. Enormes borboletas pretas, nunca vistas, sugam as corollas. De dia, de noite, é incessante o ruido das cigarras, dos grilos, de outros bichos. Noites ha, pelo estio, junto ás ribeiras, em que uma chuva de fogo, de pyrilampos aos myriades, motiva festas ruidosas. Nos lagos dos jardins vagueam peixes de oiro, com os olhos a estoirarem, com as caudas esfarrapadas e rojantes, como se fôssem longos capotes de mendigos. Junto da casa de papel toma o sol, cantarola o gallo anão, do tamanho d'uma pomba; e á porta assoma o gato indigena, esqueletico, rabugento, sem rabo... porque todos os gatos no Japão nascem sem rabo; ou [127] é o cão que ladra, o chin, verdadeira caricatura de cão, com os olhos esbogalhados a saltarem-lhe das orbitas, sem nariz, a cauda em pluma, parente degenerado de qualquer monstro de epochas remotas, hoje extincto.





De sorte que todo este Nippon,―arte, povo, paizagem, planta e bicho,―é uma deliciosa mascarada. Como fazer sentir isto a quem o não conhece, depois de ter escripto o que escrevi, e de concluir que nada escrevi do que me vae no pensamento? Olhem: fixem um espelho espherico, ou cylindrico; o aspecto das formas reflectidas é uma interminavel surpreza hilariante, de caretas supinas, de linhas torturadas; pois tal é o aspecto do Japão...


[128]



Todos sabem como a caricatura, pelo desenho e pela escripta, exerce nas sociedades uma influencia decisiva. A pintura e o livro humoristicos subjugam a attenção e imperam no espirito com intensidades unicas, alheias ás outras formas de arte. Porque? Fôra difficil explical-o aqui. É certo que a ironia, na obra creada, faz mais do que crear: estigmatiza um defeito, aponta um ridiculo, sublinha uma virtude. As coisas triviaes, taes como as conhecemos, passam desapercebidas ou esquecem brevemente; o exaggero, pelo contrario, fica, grava-se a estylete na memoria. Viu-se hoje um bom retrato d'um sujeito, de Balzac, de Bonaparte, se quizermos; amanhã nada restará no pensamento; mas, se foi relanceada a caricatura, fica a summula cá dentro, uma reminiscencia pertinaz do traço phisionomico (e mais do que isso) do individuo. Seja como fôr e por que fôr, é hoje indiscutivel que a caricatura representa um meio altamente poderoso de impressionar os homens Todos sabem como a caricatura, pelo desenho e pela escripta, exerce nas sociedades uma influencia decisiva. A pintura e o livro humoristicos subjugam a attenção e imperam no espirito com intensidades unicas, alheias ás outras formas de arte. Porque? Fôra difficil explical-o aqui. É certo que a ironia, na obra creada, faz mais do que crear: estigmatiza um defeito, aponta um ridiculo, sublinha uma virtude. As coisas triviaes, taes como as conhecemos, passam desapercebidas ou esquecem brevemente; o exaggero, pelo contrario, fica, grava-se a estylete na memoria. Viu-se hoje um bom retrato d'um sujeito, de Balzac, de Bonaparte, se quizermos; amanhã nada restará no pensamento; mas, se foi relanceada a caricatura, fica a summula cá dentro, uma reminiscencia pertinaz do traço phisionomico (e mais do que isso) do individuo. Seja como fôr e por que fôr, é hoje indiscutivel que a caricatura representa um meio altamente poderoso de impressionar os homens; estude-se-lhe os effeitos, por exemplo, na polemica dos principios, onde ella vale pela mais possante picareta demolidora das instituições, [129] dos thronos e das crenças, rasgando a estrada nova por onde investem os partidos avançados.

Estando isto assente, imaginem agora um paquete, despejando em qualquer caes japonez um bando de loiros estrangeiros. Elles todos, os lorpas, têem nos rostos essa feição anodina das cabeças, que é uma das formas de belleza mais frequentes nas raças europeas; e a julgar pelo olho azul, de porcellana, sem expressão, sem alma, póde admittir-se que lá dentro da casca não ha senão pevides em guisa de miolos.

Mãos rudes, vermelhas, cabelludas, pés enormes;―estigmas de um temperamento avesso a coisas de arte e a todas as delicadezas do sentir.―Emparelham pelas manifestações do gosto: vestidos todos de alvadio, côco no cocuruto da cabeça, sapatos amarellos e ramosinho na carcela. Como entidades prestantes, embora talvez não prestem para nada, [130] uns são sabios, outros são navegadores, outros são diplomatas, outros possuem manhas maravilhosas de balcão; mas―coitados!―em todos se acoberta o microbio desvastador, oriundo dos grandes centros, nascidos da podridão da descrença, do egoismo, da inveja, da cubiça e da misanthropia; e na face e nos gestos alguma coisa já assoma do mal de que enfermaram. Alguns dão o braço a outros sujeitos sem bigode, com grandes mãos vermelhas igualmente, e enormes pés calçando sapatos amarellos; usam bengala, collarinho alto de bretanha, gravata, tunicas em forma de campanula, uma alcofa á cabeça, cheia de hervas, de aves e de fitas:―são as damas―.

Os pobres forasteiros vêem-se assim de improviso e de surpreza no meio exotico entre todos, requintadamente artistico, caricatural e sorridente, que é todo este Japão. Dominados pelos aspectos, allucinados pela iniciação imposta, riem tambem, e julgam tambem sentir a graciosidade indigena e a gentileza dos scenarios. Eil-os que cruzam as estradas e os trilhos das montanhas, seguem em caravanas numerosas a visitar os logares celebres, encorporam-se nas romarias, entram nos templos e entram nos theatros, bebem chá japonez, e até, burlescamente ajoelhados, engolem o arroz cosido e [131] deliciam-se no peixe cru que as creadinhas vão servindo.

Oh, a paisagem japoneza! Como ella é encantadora e fresca, estranha, paradisiaca!... e como aqui o pensamento se dilata, n'um longo divagar sereno e amoroso, tão distincto das preocupações sombrias que alem, na Europa, azedam a existencia!... Mas não sei quê da alma asiatica, subtilmente motejador e sarcastico, subtilmente intolerante, paira aqui, emana da coloração e da forma das coisas, do grito dos animaes, do gesto e voz da gente; não se define, mas existe, hostilisando em tudo o pobre intruso. É como que uma exhortação continua e impertinente do Buddha e dos deuses tutelares, murmurada a todos os instantes:―«Vae-te, volta á terra dos loiros; contempla os teus deuses, visita os teus templos, recrea-te nos teus salões, bebe o teu whisky e soda; mas deixa em paz este solo, que não é teu, que te detesta; e onde, [132] para assimilares a harmonia da creação e o sentimento nacional, precisas de uma fluidez de espirito e de uma serenidade de consciencia, que te faltam!...»―

Cedo ou tarde, ámanhã, em dois mezes, em dois annos, o homem loiro enfastia-se, compenetra-se da fatalidade dos destinos, que crearam o Japão para os japonezes. Uns desertam, e fazem n'isso muito bem; outros ficam. Nos que ficam, o desgosto pela terra do exilio enraiza, alastra como uma lepra corrosiva.

O desgosto, nas mulheres, crystallisa brevemente em odio, um odio desesperado, sem treguas; explicavel pela maior vibratilidade dos nervos no sexo, pela vida ociosa, e tambem, e principalmente, pelo penoso confronto com a mulher indigena, cujo fresco perfil e requintado tacto femenil são uma provocação terrivel aos seus meritos. A mascarada eterna japoneza, a despreocupação, [133] o riso chronico, os traços caricaturaes de todos e de tudo, os dichotes zombeteiros dos gaiatos,―«ijin, ijin!» estrangeiro, estrangeiro!―tudo irrita, bellisca redunda por fim n'um supplicio insuportavel, que nêm respeita o lar, entrando mesmo pelas janellas dentro como um exame de mosquitos. Triste lar, tantas vezes!... Junto da familia do sr. Fulano, seja qual for a sua nacionalidade e situação, contae como provavel um hospede permanente,―o aborrecimento.―A embriaguez, a dissipação, a quebra fraudulenta, o roubo, o suicidio, o adulterio, o assassinio, todos os desmandos de uma sociedade incongruente, succedem-se nas pequenas colonias europeas do Japão com uma triste frequencia, eloquentissima!...

1900.




DOIS CEMITERIOS JAPONEZES



A V. Almeida d'Eça


Pelos fins de dezembro, em vesperas de Natal e de Anno-Bom, encontrei-me um bello dia, sem bem saber porque, vagabundeando no cemiterio dos europeus em Kobe, o velho. O velho, porque ha um cemiterio novo que se estreou ha pouco tempo, e onde até agora se reuniu coisa de meia duzia de inquilinos; está este situado longe da cidade, n'um declive de collina, amplo, com bellos horisontes em redor. O velho, de acanhadas dimensões, enchera-se de moradores em uns trinta annos de exercicio, e foi por tal razão posto de parte.

O velho cemiterio fica em plena cidade, para as [135] bandas de oeste e cerca dos edificios da alfandega, quando começa um bairro sujo, de fabricas, de armazens, que povôa uma misera ralé de carregadores e de mendigos. Encerrado entre as altas paredes de tijolo vermelho de enormes depositos de mercadorias, sem outro horisonte, com pouco ar, com pouca luz, humido e ermo, é bem triste este canto; até, se não me illudo, os vetustos pinheiros que o arborisam, testemunham pelo verde escuro e estorcimentos convulsos das ramadas, alguma coisa da desolação que aqui impera sobre tudo.





[136]



Hoje, que é um domingo, acolá, a curtos passos, sobre a relva do parque publico, a chusma dos caixeiros―inglezes, americanos, allemães,―a chusma cosmopolita, em mangas de camisa, sem chapeu, berra, corre, esbraceja, espernea, joga o tennis, o fout-ball. Mais alem, pelas ruas de trafego indigena, presumo magna enchente, bazares em festa, povo em barda, entre japonezes e estrangeiros. D'estes ultimos, são especialmente as damas que mais se alvoroçam com a proximidade do christmas day, e que afanosamente percorrem a cidade, em carruagens, em jinrikshas, a pé―a pés... e que pés!...―enfiando pelas lojas, mercadejando bonecas, quinquilherias, guloseimas, as mil e mil frivolidades que vão constituir os fructos d'essas estupendas arvores de Natal, préstes a surgirem nos salões. Pobre natal! N'estes paizes exoticos, de ganho e de aventura, as festas particulares da familia europea perdem em regra a sua feição de severidade tocante e amorosa, para se transformarem n'um simples sport, irritante, massador,―fallo por mim,―mero pretexto para ostentações, dissipações [137] e mexericos, a caterva de todos os symptomas da morbidez do exilio. Para o povo japonez, o impulso é bem outro: o dia de anno novo é a festa principal de cada anno, a unica para muitos; religiosa, emocionando a alma indigena, levando a turba aos templos a dar graças aos deuses pelas prosperidades realizadas, e a implorar novas fortunas: intima, de familia, preceituando o doce dever das saudações aos parentes e aos amigos; ninguem trabalha, veste-se fato novo, enfeitam-se os altares e a casa toda; por isto, com louvavel antecipação se compram nos bazares os pequeninos nadas que vão ornar o lar, e os bolos de arroz, e o córte de fazenda, e a flôr para o cabello, coisas de que não prescinde a mais modesta familia de lavrador ou de operario, n'aquelle dia abençoado.





No sitio onde me encontro a quietação é plena, em contraste com o que palpita lá por fóra. É positivo que os mortos não festejam o Natal... nem eu tam pouco, poderia accrescentar, desde mui largos annos de bohemia, sem lar e sem familia. Pesa aqui, no cemiterio, mais duramente por certo do que em outro logar, a aspereza de um triste dia de [138] inverno, sem sol, sombrio e humido; paira no ar uma poeira levissima de neve, que mal se vê, mas fere o rosto como picadas de alfinetes; de quando em quando, uma rajada fresca sacode a rama dos pinheiros, corta o silencio então um vago murmurio de folhagem,―da folhagem sem duvida, mas que acaso poderia parecer o palrear dolente dos mortos uns com os outros, de cova para cova...―

Vou vagueando, com passos e em espirito. Estou só, ou quasi só; ha pouco dei fé, por entre as sepulturas, de uma velha japoneza, guarda do cemiterio, que ia apanhando do chão alguns cavacos. Vou lendo os epitaphios, estudando a botanica tumular nos arbustos plantados e nos musgos espontaneos, lançando um olhar condoïdo ás corôas murchas, que aqui e ali se encostam ao marmore das lapidas, pobres corôas queimadas pelo sol, rasgadas pelo vento, roïdas pelos vermes, polluidas pelo pó, e em pó se desfazendo... N'este gremio [139] de mortos abundam os padres e os missionarios de todas as seitas e de todos os paizes; varios pilotos dos mares do Japão, capitães, tripulantes de barcos; gente de negocio; e a mais uns pobres nomes obscuros de mulheres e de creanças, sem titulos nem historia. Aqui deparo agora com um nome de portuguez, Felisberto da Cunha, da Figueira, que morreu com quarenta annos, e a esposa (uma japoneza) lhe mandou erigir o mausuleo.





De trilha em trilha e de tumulo em tumulo, eis-me em frente do monumento tumular dos marinheiros francezes assassinados em Sakai. Lugubre historia; e aqui, n'este Japão da grande hospitalidade e da notoria cortezia, impressiona por estranha e quasi inverosimil. Pois foi bem verdadeira. Ha mais de trinta annos, por um dia de março, uma lancha a vapor da corveta Dupleix aguardava na praia de Sakai a volta de alguns officiaes, que haviam descido á terra e seguido para Osaka; passa casualmente um troço de tropas do Mikado, samurais da provincia de Tosa; e sem provocação, sem um leve pretexto, fazem fogo sobre os marinheiros, matam onze. São os onze tumulos d'estes martyres, [140] d'estes miseros camaradas (porque eu sou como elles marinheiro), que agora contemplo.

Sobre tres degraus de pedra alça-se uma alta cruz; e aos lados, cinco por banda, e o aspirante á frente, como se estivessem na tolda da corveta em formatura, estão os onze corpos, estão as onze lages, aquelles desfeitos em pó seguramente, estas ennegrecidas pelo tempo e pela lepra dos lichens resequidos... pois não se esqueça que ha mais de trinta invernos vae durando a triste formatura. Sobre a cruz leio o seguinte:―«À la memoire des onze marins de Dupleix, massacrés à Sakai le 8 mars 1868. Requiescant in pace.»―Massacrés! massacrados! Como isto é destonante n'este solo, no Dai-Nippon das paizagens amorosas e do sorriso perenne nos rostos dos que passam!...

Vou lendo seguidamente as inscripções dos tumulos:―«Ci git Guillon, Charles Pierre, aspirant de 1ère classe, agé de 22 ans. Priez pour lui.―Ci git Boulard, Vincent, matelot de 3ème classe, agé de 21 ans. Priez pour lui.―Ci git Nonail, Jean Mathurin, matelot de 3eme classe, agé de 25 ans. Priez pour lui.―Ci git Condette, François Désire, matelot de 3ème classe, agé de 24 ans. Priez pour lui.―Ci git Lemeur, Gabriel Jacques Marie, quart.r m.tre de manoeuv.re de 1ere classe, agé de 29 ans. [141] Priez pour lui.―Ci git Savie, Jacques, matelot de 3eme classe, agé 23 ans. Priez pour lui.―Ci git Humet, Arséne Florimont, matelot de 3eme classe, agé de 24 ans. Priez pour lui.―Ci git Langenais, Auguste Louis, matelot de 3eme classe, agé de 22 ans. Priez pour lui.―Ci git Bobes, Lazare Marie, matelot de 3eme classe, agé de 22 ans. Priez pour lui.―Ci git Modest, Pierre Marie, matelot de 2e classe, agé de 26 ans. Priez pour lui.―Ci git Grunenberger, Victor, ouvrier chaufeur de 3eme classe, agé de 24 ans. Priez pour lui.»―A ladainha é longa, como vêem; e bem commovedora, quando se attenta nas idades. Onze rapazes; quadra de illusões, de amores, de esperanças. O mais velho do grupo teria hoje os seus sessenta e dois annos, se fosse vivo; de sorte que todos estes pobres moços poderiam muito bem gozar ainda agora da doce alegria de viver, se o destino lhes fosse menos duro: o aspirante vestiria provavelmente a sua farda de capitão de mar e guerra, chapada de veneras; e os marujos estariam talvez com a sua baixa, na aldeia patria, em descanço, a vêrem o mar por um oculo, rodeados de filhos e de netos... Ah! barbara cafila de soldados japonezes!...

A gente póde recompôr em pensamento a scena da praia de Sakai. Uns bellos loiros, rosados como [142] pecegos, robustos como jovens Hercules. Riem, brincam, cantam, pisando a fôfa areia. É um bando de irmãos, todos da mesma idade, tratando-se por tu, passando de mão em mão a bolsa de tabaco, e até de bocca para bocca o cachimbo de gesso fumegante.―«Olha, Jacques! Repara, Gabriel!»―E batem palmadas nas costas uns dos outros, e brilham-lhes as pupillas gaiatas e sagazes, apontando, em grandes gestos rudes, para os recortes estranhos da paisagem, para os contorcidos pinheiros que rendilham o horisonte, para as ameixeeiras em pasmosas florescencias, para as casinhas de madeira e de papel, para as musumés em sedas, seductoras... exoticos, captivantes aspectos de um paiz maravilhoso, que abre agora as suas portas á curiosidade do mundo occidental, deslumbrando a imaginação juvenil d'estes pobres francezes, habituados á monotonia do azul das longas viagens fadigosas. Consta que os garotitos de Sakai iam affluindo á praia, e quedavam-se em volta dos marujos, bocca aberta, espantados dos seus modos, do uniforme, das suas feições de raça branca; e que estes com as creanças partilharam algum pão das suas provisões. De repente, surde de algures um bando petulante, irrequieto, multicôr pelas bandeiras desfraldadas e pelas sedas das cabaias, e reluzente pelas armas que [143] empunha; são samurais do imperio; o quadro é deveras interessante; os marujitos, surpresos e attentos, são todos olhos... olhos que em breve se cerram, quando os corpos caem inertes sobre a areia, após uma descarga de metralha... Ah! barbara cafila de soldados japonezes!...



No meu espirito vagabundo, depois da ferocissima scena de matança, é agora a sorte d'estes samurais que relembro, e me commove. Commovem-me assassinos? Sim; os annos fôram correndo sobre os factos e esfriaram os rancores. Póde hoje memorar-se, sem asco, com sympathia, mesmo nos seus transes sanguinarios, a breve lucta de resistencia que o velho Nippon feudal, [144] embevecido na sua lenda prestigiosa, manteve contra aquelles que vinham despertal-o do seu sonho; e para o bando de Sakai, soldados todos, pertencendo á nobre casta dos guerreiros, seria realmente excepção estranha se não fulgurassem no seu animo, remindo-os do opprobrio, as virtudes da casta―a extrema dedicação aos chefes, o sacrificio de si proprios pela patria, e o amor por essa patria guindado á intensidade de paixão, mais alto ainda, aos paroxismos do delirio.―

A historia plenamente nos explica o odio que a massa dos guerreiros ia nutrindo então pelos estranhos. O shogun, generalissimo do imperador, com residencia em Yedo, assignára por conta propria tratados de amisade e de commercio com a America e com a Europa, e os estrangeiros, em Yokohama, pisavam já afoitamente o solo japonez. O shogun violava por este modo o dogma sagrado do imperio, que era o isolamento absoluto, a exclusão do homem do Occidente, o desdenhoso desinteresse pelo mundo, o goso eterno e sem partilha, deliciosamente egoista, do paiz maravilhoso que os deuses haviam legado ao povo eleito. Quando a noticia do insolito desacato chegou até Kioto, a cidade santa, onde vivia a côrte, em torno do Soberano, a mais accesa colera explodiu, e todas as energias se ligaram [145] para humilhar o shogun e varrer para sempre da patria os teimosos intrusos.―«Morte aos barbaros!»―foi o grito do soberano, da côrte, dos senhores feudaes.―«Morte aos barbaros!»―foi o credo que incutiram ás legiões á pressa reunidas, que corriam a expulsar, a massacrar, a exterminar, os estrangeiros. O shogun, supremo em mando até então, estava perdido, debaixo de seus pés tremia a terra, rugia o vulcão politico que em breve ia esmagal-o; mas, pela fatalidade dos tempos, as energias e as cubiças dos intrusos haviam de vencer, de impôr os seus designios; e a rhetorica dos diplomatas, prudentemente sublinhada pela metralha dos canhões, tinha de ser ouvida. Os dias iam passando, e o solemne decreto de exterminio não podia ser cumprido; apenas, de quando em quando, um ou outro samurai lograva decepar alguma cabeça loira de inglez, merecendo dos seus chefes fartos applausos pelo feito. Cedo, bem cedo, os vultos dirigentes comprehenderam que a lucta era impossivel, que o mysterio nipponico findára; e o Japão foi descerrando pouco a pouco as suas portas, entrando em negociacões com os diplomatas estrangeiros, não já pela iniciativa incompetente do shogun, mas pela propria iniciativa do soberano. O shogun, por inutil, foi deposto; como se não conformasse com a vontade [146] imperial, travou-se dura lucta, foi batido e retirou para Yedo. Estes acontecimentos succediam-se em tropel; a grande maioria da nação não podia aprecial-os, e menos presumir das vistas do soberano; a grande maioria da nação ia odiando o shogun e repetindo o seu credo―«Morte aos barbaros!»―sem se aperceber que a situação mudára, que a côrte já tratava com as potencias, e que a aggressão aos europeus, havia pouco meritoria, era agora condemnada e prejudicava fortemente a marcha da politica imperial.





Foi assim que os soldados de Sakai, massacrando os marinheiros francezes que encontravam, julgavam ter cumprido um dever grato ao soberano e util para a patria. Illudiam-se. A resposta ás energicas reclamações das auctoridades francezas foi a condemnação á morte de todos os culpados, que eram vinte. Como guerreiros, não bandidos, foi-lhes concedido como graça o hara-kiri, isto é, a morte honrosa, devendo cada qual rasgar a propria carne a punhaladas.

Foi escolhido para a cerimonia Myokokuji, um [147] templo de Sakai, e em 16 de março teve logar o supplicio. Passou-se então um espectaculo tremendo, não de tristeza, antes uma festa de sangue, de morte, que excede a comprehensão dos homens europeus. Enchia o recinto do templo a multidão dos officiaes do imperio, das auctoridades francezas, das testemunhas, dos amigos, dos bonzos, dos curiosos, vistosa em côres, em bellos uniformes, em garbo e fidalguia; e, um por um, por seu turno, veio apparecendo cada condemnado, todo vestido de lucto, de alvas vestes, ajoelhou no solo, curvou-se em reverencias, saudou a multidão, recebeu solemnemente o curto sabre de etiqueta, cravou-o até aos copos nas entranhas, rasgou as carnes com mão firme, tingiram-se as vestes de escarlate, jorrou o sangue sob uma urna proxima, a fronte crispou-se pela dôr, a côr fugiu da tez, o corpo pendeu inerte, para a frente...

[148] Minamura Inokichi Minamoto no Motoaki, de vinte e cinco annos, escreveu no seu ultimo momento de vida uma curta poesia, que era assim:―«Condemnam me; não discuto a minha morte; servirá ella de pretexto á justiça do futuro, que decidirá se, para honra da patria, devem ser expulsos os barbaros.»―Nishimura Saheji Minamoto no Ujiatsu, de vinte e quatro annos, escreveu o seguinte:―«Não me pesa o morrer, a vida passa como o orvalho desapparece com o vento; uma coisa me afflige:―o futuro da patria»―Ikegami Iasakichi Fujiwara no Mitsunori, de trinta e oito annos, escreveu o seguinte:―«É preciso alumiar o espirito da nação; para isto abandono o corpo ao meu paiz;»―este, quando as entranhas lhe caíram, fez menção de atiral-as á cara dos francezes. Oishi Jinkichi Fujiwara no Yoshinobu, de trinta e oito annos, escreveu o seguinte:―«Façamos hoje o sacrificio da vida, com o maior respeito, pois somos todos filhos d'este paiz dos deuses.»―Sugimoto Shirogora Minamoto no Yoshinaga, de trinta e quatro annos, escreveu o seguinte:―«Sinto o coração feliz pela agonia que soffro, ao dar a vida pela patria;» este, por um gesto respeitoso, offereceu as entranhas aos francezes. Katsugase Saburoku Taira no Ioshihaya, de vinte e oito annos, escreveu [149] o seguinte:―«Ninguem póde abalar no animo d'um samurai o sentimento que tributa ao seu senhor.»―Iamamoto Tetsusuka Minamoto no Toshiwo, de vinte e oito annos, escreveu o seguinte:―«Muitos condemnam a alma do samurai; pensarão de outro modo aquelles que bem a conhecem.»―Morishita Mokichi Fujiwara no Shigemasa, de trinta e nove annos, escreveu o seguinte:―«Abramos o caminho aos ignorantes, a fim de alumiar o mundo.»―Kitashiro Kensuke Minamoto no Katayoshi, de trinta e seis annos, escreveu o seguinte:―«Para legar o seu nome á posteridade ha um meio: o sacrificio da vida.»―Inada Kwannoyo Fujiwara no Norashige, de vinte e oito annos, escreveu o seguinte:―«Os japonezes não temem de perder a vida; tambem a cerejeira, rainha das arvores pelas suas flôres, perde um dia essas flôres.»―Yanagase Tsuneshichi Fujiwara no Yoshiyoshi, de vinte e seis annos, escreveu o seguinte:―«Sacrifiquemos aqui as nossas vidas, e mostremos aos estrangeiros o que vale a nobre coragem japoneza.»―Contando bem, são onze já. Parou aqui a scena, porque o commandante do Dupleix, notando já onze mortos para expiação dos onze crimes, deu-se por satisfeito, pediu que cessasse aquelle espectaculo assombroso. Dos samurais perdoados, um suicidou-se em breve [150] trecho, dando de barato a graça pela honra de morrer com os seus; os outros dispersaram-se; vive um ainda hoje, presumo que em Nagoya, um interessante velhinho, que reconta de bom grado as peripecias d'aquelle horrivel drama.

Os onze samurais foram alli mesmo enterrados, no cemiterio, junto ao templo. Ainda ha pouco lá estive. O templo é um placido retiro de sombra e de silencio, tam velho, que ha alguns mezes um rijo vendaval quasi o desfez em pó.

Os peregrinos visitam primeiro um jardim interior, onde uma arvore sagrada, um enorme sagueiro, occupa o espaço todo, lançando em volta as suas palmas verdes. A lenda dá-lhe mui longos annos de existencia, e reza que ha quasi quatro seculos o shogun Nobunaga tanto se agradou d'aquella arvore, que mandou arrancal-a e transportar para um dos seus jardins; mas tanto se mirrava o sagueiro, e tanto se lamentava noite e dia, que não houve remedio senão trazel-o de novo ao velho poiso.

Do jardim, passa-se ao pequeno cemiterio. As sepulturas, apresentando a fórma de cubos de granito, aconchegam-se, agrupam-se n'uma intimidade commovente; por entre as pedras, tufam e florescem as azaleas e verdejam os musgos, e mãos piedosas [151] vêem depôr ramos de flôres e de verdura. Entre estas sepulturas contam-se as dos onze samurais. Mais adeante, as urnas de charão que serviram ao supplicio, alinham-se n'um altar, e ainda se distinguem manchas negras, do sangue derramado.





Como eu dizia ha pouco, os annos passaram sobre os factos e esfriaram os rancores. N'estes dois cemiterios, de Kobe e de Sakai, nem já existe sequer o pó dos ossos, existem só legendas. Em Kobe, as onze sepulturas evocam no espirito esse periodo de frenesi da Europa, de curiosidade, de cubiça, em face da morna inercia d'este canto do mundo; e as esquadras que o devassam, que o visam com os canhões; e os diplomatas que intrigam, que teimam, conduzindo o finalmente, á força, ao convivio das nações; e, como peripecias infimas, quasi olvidadas e não pesando na marcha progressiva dos negocios, o sacrificio inglorio de alguns humildes obreiros d'essa empreza... Em Sakai, as onze sepulturas rememoram a desesperada resistencia d'uma tribu feliz, contra aquelles que vinham arrancal-a [152] aos seus sonhos amorosos, rasgar-lhe a lenda e a crença, e bradar-lhe que ser-se assim ditoso, já não é permittido. Pobres mortos! abraço com um mesmo olhar d'alma, enternecido, as vinte e duas campas...

1900.






O ESPELHO DE MATSUYAMA



Ás Filhas de Carlos Campos


Viveu ha muito tempo no Japão um feliz casal de gente rustica, modelo de virtudes conjugaes; eram elles, os dois, e uma filhinha, o seu encanto. O povo varreu já da memoria os nomes d'essa gente; não admira, quando se pense que tantos seculos passaram. Indica-se apenas o logar, Matsuyama, que quer dizer Montanha dos pinheiros, na provincia de Echigo. Esta ligeira indicação basta para que imaginemos o scenario: serranias, pinheiraes, succedendo-se a serranias, pinheiraes; a terra, a rocha, fôfas de musgos, de fetos, de herva brava; covôes, precipicios, cachoeiras, por onde a agua golfa, espuma e [154] rumoreja; pios de corvos e hymnos de cigarras; raros caminhos serpeando, calcados pelas sandalias dos que passam; e aqui, e alem, alguma humilde cabana de aldeões, de barro e colmo, aonde a vida intima, após as horas de labuta, desliza em longos repousos sobre a esteira, em simplicidades primitivas, em face da grande paz da scena agreste, e do azul sem fim dos largos horisontes. N'uma d'essas cabanas vivia o casal a que alludi.



Ora, aconteceu uma vez que negocios muito graves chamaram o marido á faustuosa cidade, á capital de todo o imperio. Figure-se o alvoroço e o reboliço na choupana. Em coisas de viagem, a experiencia da esposa resumia-se ao trilho que seguíra raras vezes, [155] em duas horas de caminho, do seu lar ao logarejo mais visinho. Alanceavam-n'a agora varios sustos, acudiam-lhe ao espirito não sei que perigos e trabalhos, maleficios dos genios das florestas, mil revezes a que se ia expôr o companheiro... Por outro lado, envaidava-se com a idéa de ser elle o primeiro do logar que ia vêr por seus olhos a mansão da côrte e do soberano, e contemplar as grandes maravilhas que lá por certo havia. Ella ficava; ella tinha a sua pequerrucha e o cuidado do lar; e, embora mordida de saudades, devia resignar-se aos deveres do seu mister, e aos anceios d'aquella dura ausencia.

E que terna que foi a despedida!... Beijos e abraços não se deram, porque os japonezes não dão nem beijos nem abraços; lagrimas não correram, porque os japonezes nunca choram; mas fôram tantas as mesuras e tantos os sorrisos, e tam longa a ultima palestra, elle promettendo voltar breve, ella prodigalisando mil conselhos, que era mesmo um regalo contemplar casal tam meigo e tam feliz!...

E lá foi o marido.





Passaram-se semanas e semanas; para encurtar razões, annuncia-se agora o regresso do Passaram-se semanas e semanas; para encurtar razões, annuncia-se agora o regresso do sujeito. É [156]vêl-a então, a cirandeira, ora varrendo, ora lavando ora arrumando, dispondo a choça em festa para a ditosa hora da chegada. É a pequenita certamente que mais cuidados lhe merece: o kimonosinho de crepe de seda preciosa, a faixa da cintura, a flôr para o cabello, tudo novo, tudo fresco, tudo lindo, se põe de parte, se examina; e os dedos finos da maman, em curvas adoraveis, saltam, vôam, aqui alizam pregas, alli compõem laços, com habilidades unicas, prodigiosas; convem saber que não ha mãos mais bonitas e mais destras do que as mãos das japonezas, nem mães mais carinhosas do que estas mamans do Dai-Nippon. Ella propria, a maman, tambem cuida de si, não se furta aos adornos, não por arte talvez, por instincto [157] do sexo; e eil-a enfiando os pés nús em grandes soccos novos, de charão negro e luzente, e estreando um kimono catita, azul e branco. E lá vão ellas, as duas, certo dia, trilhos fóra, tic-tac, tic-tac, ao encontro do homem.





Ai, que jubilos, ao toparem com elle são e salvo, todo chibante, bamboleando-se no seu passo vagaroso, para mais prolongar tam doce transe!...―«Bons dias, senhor marido! Bons dias, senhor meu pae!»―e os corpos agaxam-se em mesuras, e as cabecitas vão quasi tocar o chão do campo. E como a pequerrucha bate as palmas, e se lhe accendem os olhitos, quando elle logo alli lhe quer vasar no regaço a caixa de bonecos que comprára, carretas de madeira, raposas de pellucia, uma viola, minusculos apparelhos de cosinha e muitas outras maravilhas!... Elle promette entreter dias inteiros, só com a narração do que seus olhos viram: theatros regorgitando de musumés, vestidas como deusas; principes em comitivas resplendentes, passeando em liteiras de charão, e o povo prostrado a adoral-os pelas ruas; serenatas nos rios, barcos vogando a transbordarem [158] de mulheres e enfeitados com balões, gemem as cordas das violas e estalejam nos ares foguetes de mil côres; templos gigantes e enormes sinos badalando; palacios cheios de luxo; jardins cheios de flôres; e por toda a parte a immensa multidão, de velhos, de rapazes, de meninos, feliz, risonha, pachorrenta; e a immensa industria dos bazares, charões, oiros, sedas, porcellanas, adornos sem conta nem medida, tudo digno de ir adornar mansões de fadas, no mundo das chimeras!...

O marido passou depois ás mãositas da esposa, tremulas de emoção, um bello cofre de madeira branca, cuidadosamente fechado, e disse-lhe isto:―«Não me esqueci de ti, como estás vendo; trago-te uma coisa muito linda, que tu de certo não conheces, um espelho, um kagami, como lhe chamam na cidade.»―Ella então, abrindo o cofre, observou a offerta; era um grande disco de metal, com o seu cabo, tendo uma face prateada, com relevos de folhagem de bambu e vôos de cegonhas, e a outra face limpida e brilhante como um puro crystal.

É bom saber-se que, sendo a industria do vidro recentissima no Japão, só ha mui pouco tempo aqui se conheceram os espelhinhos reles da industria occidental; nos velhos tempos, os espelhos do paiz eram metalicos, de preciosa liga e artistico trabalho, [159] objectos caros excluidos, do lar dos aldeões; de sorte que é presumivel, dada a simplicidade de alma da pobre gente rustica de então, que as bellas ignorassem que eram bellas, por nem no espelho da agua das ribeiras se mirarem. Mas vamos nós á historia, excluindo divagações que pouco interessam.

Dizia o marido á companheira:―«Olha bem para a face brilhante d'este espelho e conta-me o que vês.»―Ella era toda olhos, toda surpresas, toda extasis; e respondeu por fim que via o rosto de uma mulher muito gentil, com um oval de enfeitiçar, comuns olhinhos negros muito doces, com uma rubra boquinha de cubiça. Disse mais que essa mulher não cessava de fital-a; e se ria, a mulher ria; e se fallava, os labios da mulher acompanhavam-n'a no gesto; e, para cumulo de estranheza, vestia um kimono azul e branco, igual ao seu, que ella trazia... O marido sorria-se, já com uns ares de doutor, que da viagem lhe provinham; e foi benevolamente convencendo-a de que essa mulher era ella mesma, e que o espelho, por um mysterio que elle não sabia explicar, apenas reproduzia a sua imagem, os seus encantos proprios; lá na cidade, muitas raparigas possuiam espelhos como aquelle, e n'elles se viam e reviam, ora compondo as voltas do cabello, ora pintando os labios de escarlate, ora por mero passatempo [160] de se acharem bonitas, as garridas. A esposa ficou então louquinha com o presente; e... diga-se toda a verdade: cheia de orgulho de si mesma, por se vêr tam catita, tam fresca, apetecivel. Fôram semanas e semanas votadas a esse enlevo, a mirar-se, a namorar-se―quem não lhe relevará essa vaidade?―até que finalmente convenceu-se de que um espelho era joia preciosa de mais para servir todos os dias, alli na choça núa, na solidão dos bosques; assim se explica o caso de ter elle ido parar dentro de uma gaveta, esquecido de mistura com as velhas reliquias da familia.





E vão passando os dias, os mezes e os annos. A felicidade bafeja constantemente aquelle lar. A grande alegria do casal é a filha, que cresce em mimos, tornando-se a verdadeira imagem da maman, e como ella submissa, e como ella affectuosa, e como ella activa na labuta. Vaidades de mulher, que tanto prejudicam no futuro as raparigas, não as tinha; e deve aqui prestar-se inteiro applauso á previdencia da maman, que em lembrança dos seus caprichos de outro tempo, passageiros, nunca á [161] mocinha confiou o espelho, velha joia sem uso, esquecida na gaveta.





E vão passando os dias, os mezes e os annos. Muitos annos. A mãe, uma velhinha com a alvura da neve por côr dos seus cabellos, jaz prostrada na cama, sem forças, moribunda; a filha, junto d'ella, multiplica-se em cuidados, anima a triste enferma.

 A custo, diz a velha:―«Sinto que morro, vae-me fugindo a luz dos olhos. Vou deixar-te, e o nosso velho amigo. É isto que me pesa; cheguei a persuadir-me de que este nosso bem não tinha fim. Por ti, tam só que ficas, receio muito, filha: o mundo é um grande mar, cheio de escolhos e de perigos...»―E deteve-se e pôz-se a meditar por muito tempo, passando pela fronte os dedos descarnados; então, um pensamento lhe acudiu, uma d'essas travessuras de velha que só redundam para o bem, e proseguiu [162] d'esta maneira:―«Olha, tenho uma idéa: toma este espelho, este objecto milagroso que veio de muito longe; e jura-me que uma vez em cada dia e uma vez em cada noite, o irás vêr. Eu te apparecerei então, no mesmo espelho; e assim, na minha companhia, terás mais animo na vida, mais força nas angustias, mais tento com as indecisões da juventude e com os males que te rodeem.»―E a filha jurou isto; e a velha deixou-se morrer serenamente, resignada, sorrindo á paizagem verde, sorrindo ao sol festivo, que investia em faixas de ouro pela casa...





A musumé cumpriu attentamente o juramento. Por esta forma percorreu a via da existencia, tranquilla, sempre assistida pela mãe, que nunca cessou de apparecer-lhe, quando, nas mãos piedosas sustinha o espelho milagroso. Não era da moribunda, livida, prostrada em agonia, desfallecendo pouco a pouco, a doce apparição; era a maman gentil, de outros tempos, cheia de louçanias e sorrisos. Achava-se com ella n'um placido convivio sem reservas, com ella palestrava, a ella confiava os seus segredos, os seus sobresaltos de donzella; e n'aquella face pura bebia conforto e recompensas.

[163] O velho algumas vezes surprehendeu a filha com o espelho entre as mãos, sorrindo, murmurando singellas confidencias. Pareceu-lhe estranho o caso; e ia um bello dia notar-lhe o disparate, quando a moça lhe fez uma pergunta, por onde avaliou a chimera amorosa com que ella ia embalando o pensamento.―«Repare, senhor meu pae: não vê no espelho a minha mãe?...»―O que o velho via claramente, era a imagem da filha, que alli tinha junto de si em carne e osso,―e que carne! e que osso!―palpitante de vida e gentileza... mas julgou mais prudente conserval-a sob o prestigio da illusão; e, franzindo muito o rosto, de rude pergaminho, sem que se percebesse se ria ou se chorava, ou se ria e chorava ao mesmo tempo, fez côro com ella, assegurando que sim, que via a santa mãe, e tam bella, e tam fresca, como no dia do noivado...

1900.


AMÔRES...



A J. Godinho De Campos


Uma impressão de Macau.

O que faria aquelle bando de leprosos, que a policia da colonia surprehendeu e agarrou? O que faria aquelle bando de leprosos, além no meio do rio, sobre um miseravel barco, pela noite velha, tenO que faria aquelle bando de leprosos, que a policia da colonia surprehendeu e agarrou? O que faria aquelle bando de leprosos, além no meio do rio, sobre um miseravel barco, pela noite velha, tenebrosa e fria, ora pairando e deslisando ao grado da corrente, [165] ora remando manso, de margem para margem, em vigia?...

Elles eram uns ossudos filhos das aldeias, dando-nos de longe uma impressão de robustez de musculos, de gente affeita á enxada e á vida de lavoira. Vistos de perto, resaltava horrivelmente o ferrete de peçonha do seu sangue; eram indiscriptiveis seres inuteis, abjectos, quasi sem mãos, quasi sem pés, porque os dedos lhes iam caindo podres aos pedaços; rostos medonhos lavrados pelo mal, sem narizes, com os beiços roidos, com as faces chagadas; ainda mais sinistros pela infamia estampada nas feições e nos olhares, denunciando perversidades de alma de infimo quilate, por certo derivadas da suprema degradação do seu viver. Vestiam farrapos immundos, sem fórma definida e sem côr reconhecivel; e escondiam as frontes, talvez envergonhadas, sob as abas enormes dos chapeus de rota, em uso nas aldeias.

Pescavam? por aquellas horas da noite e n'aquelle paradeiro, não era admissivel esta supposição; nem no misero barco, onde se amontoavam alguns trapos, se deu fé de anzoes ou de outras artes de pescar.

Mendigavam? menos possivel ainda que assim fosse. A taes horas, dormem todos, incluindo os [166] mendigos. O rio dormia, silencioso, lugubre pelo aspecto das suas aguas negras, dos cascos alterosos das grandes lórchas juntas em magotes, desenhando-se vagamente junto ás margens os barquitos em cardumes, presos ás varas de bambú encravadas no lodo. Apenas de espaço a espaço algum raro tanka atravessava d'um lado para outro, chape-chape, remos movidos lentamente pelas mãos das raparigas somnarentas, fartas da lida do dia,―coisa de ir levar ao seu albergue algum retardatario, de volta do jogo ou das orgias.―Não era dos nocturnos viajeiros, e menos dos pobres tankareiras, que o bando de leprosos lograria um punhado de sapecas, que compensasse o esforço da vigilia. Nem a sua miseria, realmente, era tal, que os levasse a tão duros extremos. É certo que o leproso se encontra excluido dos povoados. Em paragens mais rusticas, matam-n'o á pedrada, se o encontram; em Macau, porém, a brandura dos costumes regeita em regra esta medida, tenha embora o miseravel de viver pelos esteiros, em barcos podres, ou sobre os lodos, escondido das gentes como um bicho peçonhento. No entretanto, o esteiro fornece-lhe peixes vis, e caranguejos, e molluscos, e vermes; os cäes vadios encontram de quando em quando, nos despejos, um punhado de arroz cosido, e o leproso [167] tambem o encontra, como elles. Na altivez da sua pasmosa abjecção, o leproso não vem expôr-se ao asco, ao opprobrio; sorri ao mundo com desdem, acoita-se no antro, come immundicies, bebe agua pôdre; e os fados são-lhe bastante complacentes em geral, para matal-os da molestia antes que arrebentem pela fome...





Averiguou-se finalmente o que fazia aquelle bando de leprosos.

Aquelles infimos párias passavam a existencia isoladamente, cioso cada qual do seu covil, dos seus farrapos, devorando sem partilha o que o acaso lhe offerecia nos enxurros. Conheciam-se certamente, pela visinhança dos antros, sobre a mesma vasa que se alastra na margem fronteira á de Macau, e a fatalidade commum estabelecia de direito affinidades, allianças tacitas de tribu, entre elles; mas, como não carecessem uns dos outros para soffrerem, para odiarem a natureza creadora, para jazerem no ninho da trapagem, para morrerem, não se procuravam. Na imaginação immersa em trevas de cada um, rustica, pouco elastica, e [168]cultivada em ascos, em maldições, em misanthropias rancorosas, nunca por certo passara a phantasia de vir insinuar-se na turba, partilhar das suas distracções, relancear os festins, percorrer os bazares, invadir os templos e os theatros. Mas na torva e lenta elaboração do pensamento, durante os longos dias, os longos mezes, os longos annos de isolamento e de ocio, um desejo se fôra pouco a pouco avolumando, definindo, convertido finalmente em tortura, amargurando como uma dôr constante e implacavel:―era a mulher, o desejo, a tortura da mulher.―Prazeres do mundo não se queriam, nem mesmo se lhes imaginavam os feitiços; era-se superior a essa chimera. Mas, no ambiente acariciador da vida, em presença das arvores fructificando, das flores perfumadas, dos animaes requestando-se, os hymnos da terra, da creação em galas, do amor dos sexos, vinham tambem echoar n'aquelles cerebros, electrisar aquelles nervos; a visão da mulher, durante as mornas monotonias sem termo, aparecia como [169] um apetite crescente, como uma fome de carne; e os miseraveis, allucinados pela obsecação de todos os momentos, estremeciam, erguiam-se de subito do seu leito de trapos, arquejantes, o sangue a escaldar-lhes as frontes, o olhar em fogo...

Então, tacitamente, impôz-se a cada qual a necessidade de fraternisar com o seu visinho, de agremiar-se em bando. A união faz a força. Procuraram-se, intenderam-se. Medonhos conciliabulos se passaram, a coberto das trevas, pelas noites longas, sobre os lodos. Segredava-se, aventurava-se um plano, discutia-se. Os olhos fuzilavam como raios, a phrase rouca golfava dos labios, eloquente, persuasiva, os membros disformes erguiam-se na sombra em gestos tragicos. E assim se escolheu o barco menos podre, se nomeou a companha, o capitão, se esperou por uma noite mais escura, azada aos seus intentos. Assim tiveram inicio e proseguiram os estranhos cruzeiros, á aventura. Eil-os, o bando immundo dos gafados, á capa, pairando ou remando a medo, de manso, de manso, silenciosamente, e prescrutando as trevas. Se ia passando algum tanka, os ouvidos subtis e os olhos experimentados, estudavam, presumiam, adivinhavam. Quando era chegado o bom momento, então,―oh delirio supremo!―n'um impeto de remadas e desejos, o barco voava, [170] dava a abordagem, os milhafres caiam sobre as victimas indefesas. Habeis no ataque, com as mãos sem dedos suffocavam os gritos das mulheres, a murros, ou premindo; n'um relance, pelo faro, distinguiam das velhas as moças, apartavam dos ossos duros a carne fofa e tenra; e com fome de hyenas, as boccas pestilentas comiam, devoravam com beijos as pobres raparigas, que em vão se debatiam na lucta tremenda d'uns instantes...

Após, o barco dos leprosos seguia serenamente a atracar á margem chineza, e elles dispersavam, mudos, quasi felizes, indifferentes por momentos ao prurido das chagas; e semanas depois reuniam-se novamente. No tanka, as moças ficavam-se chorando, arrepelando-se de horror, de desespero, de vergonha por sua mofina sorte; e tanto mais mofina, que é assim, por um beijo, segundo a voz do povo, que a lepra se propaga, se multiplica de corpo para corpo.

1900.



UM PINTOR DE GATOS



a D. Miguel de Mello.[1]


Era uma vez, em mui remotos tempos, uma familia de boa gente lavradora, vivendo em certa aldeia do Japão. Marido, mulher e um rancho de filhos; gente pobre, é claro; e ajunte-se que a mui ardua fadiga se dava o camponez, para que não faltasse em cada dia, a cada uma das vorazes boquinhas dos garotos, a tigela de arroz [172] do almoço e do jantar. O mais velho dos rapazes, já aos quatorze annos, robusto quasi como um homem, começava a ajudar o pae, nas varzeas e nos campos, o pobre pae, a quem as forças minguavam; e os outros, cada um conforme a sua idade, iam fazendo tambem o que podiam; até a irman pequena,―uma migalha de gente, coitadita!―lá ia alliviando a atarefada mãe na lida do casebre.

Só o mais novo dos rapazes em nada se empregava que prestasse; era um inutil; não que elle fôsse falto de juizo; pelo contrario, excedia em esperteza qualquer dos irmãos ou das irmans; mas era enfezadito, debil de musculo; e bem cedo os paes se convenceram de que aquelles braços tenros não haviam nascido para a enxada.―«Faça-se d'elle um bonzo»,―combinaram; e foi n'esta intenção que um bello dia decidiram leval-o ao templo do logar, e á presença do velho sacerdote, que era como quem diz―o prior d'aquella freguezia.―O pae fallou e expoz a questão, em quanto que a mãe approvava com a cabeça; o reverendo, que em breve trecho descobrira rara sagacidade na creança, consentiu em tomal-a por pupillo, pensando talvez intimamente que alli o acaso lhe trazia um digno successor, quando a hora lhe chegasse de despedir-se d'este mundo.

E ficou tudo resolvido.


[173]



O noviço mostrou-se, desde os primeiros dias, submisso, intelligente e piedoso; e tambem―valha a verdade―não lhe iam mal a rude tunica amarella e a cabecita rapada á navalha, de preceito; mas como não ha formosa sem senão, segundo um proverbio portuguez (e a philosophia dos proverbios se applica á humanidade inteira), tinha um defeito o rapazito: pintar gatos. Expliquemos o caso, que é curioso: nas horas de sueto ou nas horas de estudo, no templo, na cella, no jardim, em toda a parte onde estivesse, punha-se a pintar gatos; e tão bem os pintava,―faça-se-lhe justiça n'este ponto,―que nenhum pintor até então pintou gatos melhor do que o fradinho. As paginas dos livros sagrados do convento, as paredes, os biombos, os pilares, as arvores, os rochedos,―forte mania de creança!―tudo servia, tudo era tela para exercer a sua pecha. Por onde elle passava, por onde se quedasse dois minutos, era logo a successão interminavel de desenhos, eram as curvas caprichosas dos travessos felinos, de todos os tamanhos, em todas as posturas, creio que até enjaneirados, os olhos redondos, esbrazeando as [174] duas orelhas espetadas, o côtosito alçado e petulante (os gatos japonezes não têem rabo), a garra atrevida posta em guarda... Está-se a adivinhar com que azedume o reverendo acolhia taes desmandos; vezes sem conto reprehendeu o artista (como por ironia lhe chamava), tentando dissuadil-o d'aquella triste balda, que nem lhe permittia estudar com attenção os velhos alfarrabios do buddhismo, de tam necessaria sciencia ao seu santo mister. Intento inutil: não por maldade, por instincto, quanto mais lhe prohibiam a proeza, mais ia pintando gatos o teimoso. Até que finalmente, em certa occasião, o reverendo perdeu de todo a paciencia e gritou ao moço incorregivel:―«Vae-te embora! Foge da minha vista!... Bom padre, nunca serás seguramente; serás talvez um bom pintor.»―A [175] ordem era terminante. Foi facil ao mocinho entrouxar os seus poucos haveres, pôz a trouxinha ás costas, e fez uma mesura ao padre mestre.





Eil-o na rua, escorraçado, em bem angustiosas condições. Que fazer? Tremeu de voltar ao lar domestico, onde o pae, mui certamente, o puniria da sua teimosia. Lembrou-se então que a quatro leguas de distancia havia uma outra aldeia, com um templo cheio de bonsos, e para lá se encaminhou, disposto a pedir abrigo e protecção aos padres. Era notorio que o tal templo desde alguns mezes se achava abandonado, por n'elle ter entrado um demonio, um espirito malfazejo, como tantos que abundavam então pelo Japão; muitos guerreiros animosos se tinham decidido a ir lá dentro, mas nem um só voltou; porem estas noticias, que iam ja apavorando aldeias e cidades em redor, nunca haviam chegado aos ouvidos do pequeno.

Era já noite escura quando alcançou a aldeia; o povo dormia nas choupanas; ao fundo da rua principal, e sobre um dorso de collina, de entre a rama das mattas erguia-se o templo magestoso, e uma [176] luz interior bruxoleava, luz de esperança para a misera creança. Luz de esperança parecia: mas o povo bem a tinha por feiticeira do diabo, que assim manhosamente ia attrahindo algum caminheiro solitario em busca de poisada. Bate ao portal uma primeira vez, bate segunda vez, bate terceira, sem que ninguem acuda ao chamamento. Por fim percebe que basta empurral-o para abril-o; e então, por um leve impulso dos seus braços, achou livre o ingresso, e assim entrou, largando dos pés nús as suas sandalias poeirentas.

Nos aposentos interiores ardia uma lampada com effeito; mas nem um bonzo só, de tantos que alli deviam estar, apparecia. Julgou que tinham ido dar o seu passeio e que em breve voltariam, e resolveu esperal-os. O tempo ia passando, e os seus olhos curiosos de garoto entretinham-se em devassar o aspecto do sitio onde se achava. Notou com espanto que abundava o lixo, e pelo tecto as aranhas iam tecendo sem cerimonia as suas longas teias; era estranho que, sendo em regra os templos, mimos de limpeza e de cuidados, aquelle se encontrasse em tal desleixo, como se fôsse coisa abandonada. É que, provavelmente, aos santos bonzos faltava o auxilio d'um acolyto, a quem, como de praxe, cabe o dever de todas as manhãs lavar, varrer [177] e sacudir o pó, arte exercida no Japão com especial disvelo; e concluiu logicamente que bom acolhimento lhe fariam, no proprio interesse da communidade.

Agora o rapazito, proseguindo no exame, fixa o olhar n'um movel que o captiva, que é um grande biombo que tem em sua frente, com as duas faces brancas; passára-lhe na mente o irresistivel desejo de encher aquellas faces de gatos, de cem gatos, de mil gatos, lindos, felpudos, assanhados, com as bigodeiras hirtas e os olhos chammejantes; e uma subita alegria illuminava-lhe o rosto sonhador... Pensado e resolvido. Cerca encontrou a classica escrivaninha japoneza,―a caixa com os pinceis, com a gota de agua n'um deposito metalico, com o pedaço de tinta negra e com a loisa onde esta se prepara.―Mãos á obra. O pincel voava em curvas humoristicas; a mãosinha inspirada corria, pullava de alto a baixo, ponto aqui, rabisco alli, traduzindo a impressão propria com habilidades prodigiosas. Assim fôram apparecendo, sobre aquella tela improvisada, ranchos e ranchos de gatos adoraveis; e tantos gatos desenhou, e tantas horas correram, sem que os bonzos voltassem do passeio, que o pobre garotito sentiu-se de repente cheio de somno e de fadiga; n'um cubiculo contiguo se recolheu e se fechou; [178] estendeu-se sobre a esteira, e em breve adormeceu.





Lá pela noite velha, um barulho inaudito, como se uma terrivel lucta se travasse entre mysteriosos combatentes, despertou a creança. Os gritos, os gemidos, o ruido dos corpos que caiam, vinham de perto, do aposento visinho onde estivera; tremiam as paredes, o chão, a casa toda; a pelleja durou até á madrugada. Como elle soffria de pavor! Caido sobre a esteira, immovel, parecia coisa morta, sustendo o proprio folego, para que a sua presença não fôsse presentida...

Já com a manhã clara e sol bem alto, ergueu-se então, e animou-se a espreitar um pouco para fóra, por uma fenda da parede. [179] Foi medonho o que viu. No chão grandes poças de sangue se alastravam; e mesmo ao meio da casa, jazia morta, esphacelada, uma enorme ratazana,―maior do que uma vacca!... Mas quem matára o monstro, se ninguem parecia ter entrado? Reparou por acaso no biombo, onde horas antes pintára tantos gatos; lá os viu, mas com os focinhos lambusados de sangue e as patinhas igualmente; eram elles que tinham dado cabo do demonio...





O mocinho tornou-se, com o correr do tempo, um grande artista. Ainda hoje se ademiram muitos gatos pintados pelo seu pincel inimitavel.





O chronista de quem extrahi esta legenda, nada conclue, como moralidade, da historia que narrou. Concluirei eu o que bem me parecer, se m'o permittem. Em primeiro logar, pouco propenso a crêr em coisas do diabo, embora mesmo no Japão, concluo que, se a rata do convento era tam grande, é que a despensa se achava provida com um [180] enorme arsenal de gulodices; o que, a despeito de tanto que se diz dos frades de outras terras, dos frades portuguezes por exemplo, faz honra á sobridade de habitos dos maganos, pois não consta que jamais os presuntos e a marmellada de reserva nutrissem uma rata lambareira até attingir igual tamanho. Concluo ao mesmo tempo, humilhado, confundido, que os pintores do meu paiz estão bem longe do traço creador dos pintores do Dai-Nippon. Por ultimo (e talvez esta final conclusão seja a mais util), vejo que ás vezes as nossas qualidades, de que os outros se riem e escarnecem, são as que mais nos valem n'este mundo.

1901.




IMPRESSÕES RAPIDAS



a S. Peres Rodrigues.


Era uma noite de luar do mez de abril, esplendida. Eu seguia pelo caminho de Suwayama, na parte mais elevada da cidade. De um lado alinham-se as casinhas japonezas, entre ellas as mais famosas chayas de Kobe, Tokiwa e outras, onde os japonezes vêem folgar; do outro lado, é a rampa ingreme, coberta de pinheiros, e sóbe a collina inculta, em corcovas accidentadas, onde assenta um templo notavel.

Nas chayas, segundo o costume, havia festa. As corrediças de papel estavam fechadas; mas a luz interior coava-se para fóra vivamente, desenhando [182] alguns vultos dos convivas em sombrinhas deliciosas; eram os vultos d'elles, dos amigos reunidos, certamente banqueteando-se sobre a esteira, e eram os vultos d'ellas, das gueshas, que lhes iriam vasando o vinho nas taçasinhas de fina porcellana, e cantando balladas ao som do shamicen. Musica, cantigas, gargalhadas, chegavam-me aos ouvidos n'um vago sussurro de alegria.

Na minha frente iam seguindo uns cinco sujeitos europeus, gente de distincta sociedade, a julgar pelo esmero do trajo e da linguagem, e pelo aroma dos soberbos charutos que fumavam. Iam fallando inglez. Dois discutiam finança:―o Japão atravessava uma crise economica terrivel; os cofres do governo, segundo as apparencias, exhauriam-se; o trafego em marasmo; duas grandes fabricas de Osaka, constava, suspendiam o trabalho...―Os tres outros palestravam de politica:―primeiro foi o Transvaal, e fez-se a conta de quantos boers haviam já caido sob o chuveiro das balas inglezas; depois saltou-se ao Extremo-Oriente; a Russia ameaçava o imperio japonez; apparecesse um pretexto, o mais leve, o mais futil, e era a guerra; discutiam-se as probabilidades da victoria, presumiam-se os estragos, o numero de victimas no primeiro embate das esquadras...―Teriam talvez muita razão, todos os [183] cinco; mas ia-me parecendo aquella gente um bando de mochos agoirentos, folgando com a ruina, dando-se bem com o fetido dos mortos. Para elles não nascera, imaginava eu, aquella lua esplendida, que ia alumiando o espaço todo e espargindo sobre a terra uma chuva de prata; nem era para elles que os pinheiros de Suwayama se enchiam agora de rebentos viçosos; nem para os seus pulmões que o ar vinha oloroso de florescencias multiplices, distantes. Suppunha-os, coitados, dyspepticos, biliosos, misanthropos, perseguidos nos fofos leitos por cruciantes pesadelos.

N'aquelle ponto, as gueshas de Suwayama entoavam uma cantiga popular, que assim começa:―«Haru wa, ureshiki...»―cujas primeiras estrophes se podem traduzir, pouco bem, por estas duas quadras:


Na primavera, enlevae-vos
Nas cerejeiras em flor.
No v'rão, folgae nas ribeiras,
Quando se abraza em calor.

No outono, vêde a folhagem,
Toda escarlate, voando.
No inverno, espreite-se a neve,
Bebendo vinho e cantando.


[184]



Quando eu escrevi a Primavera, e a offereci a um delicado amigo, prometti a mim mesmo, e creio que tambem a elle prometti, completar com pachorra e vagar, os aspectos das estações, aos quaes o tempo, o sol, a cor do ceu, n'este paiz deslumbrante de scenarios, imprimem mais intensivamente, mais emotivamente do que em outro logar, feições differentes e imprevistas. Por preguiça ou outras causas, não cumpri a promessa, com o que,―valha a verdade,―nada se perdeu que falta faça; mas, succedendo agora que tenho de reunir em volume umas impressões dispersas, que intitulei Paizagens, pareceu-me indispensavel, por um melindre de consciencia litteraria, voltar ao assumpto, concluil-o. Pede-me pressa um editor bondoso. Tomo o negocio de empreitada; reuno as ligeiras notas soltas que encontro em esquecidos papeis velhos.

Antes assim. Impressões do acaso, apontamentos rapidos, vão-me parecendo preferiveis a um longo estudo que intentasse das mutações de scena que hoje, amanhã, meus olhos relanceam; e não perco o ensejo, por natural intuito de desculpar-me perante [185] quem me lêr, de traduzir aqui uma deliciosa pagina de um livro francez, tambem sobre o Japão, escripto ha poucos annos.―«As circumstancias concorrem mais para a inspiração, do que todos os esforços do homem, e a experiencia quotidiana é a grande instigadora das imaginações. Vêde em litteratura: de ordinario, tanto mais breve é um trabalho, ou, se é extenso, tanto mais é feito de pedaços, de fragmentos escriptos primitivamente ao acaso dos tempos, tanto melhor elle é; um longo livro de historia, um longo romance, um longo tratado de philosophia ou de moral, jamais valerão um conjuncto de memorias, uma curta novella, um jornal intimo ou um caderno de pensamentos, e jamais um poeta epico alcançará o viço de vida que dá ao improviso feliz tamanho encanto; porventura, o homem sensato deveria decidir-se a não publicar senão volumes de paginas destacadas.»

Pretendo ser sensato uma vez na minha vida.





Verão.

Um calor de fornalha. Na Africa, na China, não é mais suffocante. O enervamento é enorme. Desfalece-se de preguiça, de langor.

[186] No entretanto, é no estio que o Japão alcança a sua genuina feição typica, pela natureza e pelo povo, descripta pela lenda, pintada pela arte e como os estranhos a imaginam.

A terra é toda verde. Crescem as mattas, trepa a herva, viceja o mar de arroz nas varzeas alagadas. Nos jardins, floresce a asagao, a caprichosa trepadeira, cujas flores, as frescas campanulas de todas as cores imaginaveis, duram o espaço de uma madrugada; nas aguas, floresce o lotus.

O vestuario attinge a maior simplicidade; um unico kimono de algodão azul e branco, amarrado na cintura, é tudo... e ás vezes nem é tanto. O europeu, quando ainda estranho ao meio, encara então surpreso este Japão nu ou quasi nu, passeando sem cerimonia as suas pernas, os seus braços, os seus collos, os seus seios e ainda mais,―exposição paradoxal de grotescos e de encantos...

A casa, durante o dia, tambem se despe; despe-se das suas paredes de papel, ficam o telhado e quatro ripas; patenteam-se aos olhos de toda a gente, o lar, a vida intima.

É a epocha das peregrinações, das excursões aos templos, aos logares frescos, onde ha brisas, onde ha sombras, onde ha aguas. Trepa-se ao Fujiyama, a montanha sagrada. Busca-se o abrigo de [187] um pinheiro, para petiscar, para folgar em companhia; e os corpos estendem-se na relva, como repetis. As musumés vão molhar os pésitos nas areias das praias, para colherem algas e mariscos. As ribeiras convidam: n'umas, entre juncos, é a caça nocturna aos pyrilampos; n'outras,―o Sunsidagawa em Tokio, o Iodogawa em Osaka,―em noites calmas, é a flotilha immensa dos barcos de prazer, todos elles sanefas multicores, lanternas, balões, galhardetes, harmonias de instrumentos, festins, rapazes, raparigas, amores...





[188]



Outono.

Em novembro floresce a chrysanthema, a flor heraldica. Estupenda coisa. Não me parece flor; antes um monstro, com a sua enorme cabelleira de mil petalas, contorcidas como tentaculos de um polypo, em colorações indefiniveis. Alinhadas nos jardins, sob tendas de abrigo, as chrysanthemas lembram mulheres, lembram-me cortezãs de Ioshiwara, quando ellas vestem os ricos mantos polychromos, quando ellas enfeitam os cabellos com diademas de espavento, e vêem postar-se em filas, princezas pompejantes do vicio, encantadoras e perversas...

No outono, a folhagem do arvoredo perde naturalmente o verde, e cobre-se das cores mais vivas e mais estranhas, o amarello, o vermelho, o roxo, em cambiantes varios. A paizagem offerece então um luxo de tintas innarravel; momentaneo, porque as brisas vêem breve despir os troncos, e juncar de folhas mortas os campos e os caminhos. A delicada arvore que aqui chamam momiji, de graciosas folhas digitadas, torna-se toda em purpura, como em fogo; ao abrigo da sua rama ardente acolhe-se o povo, em [189] magotes, que vem rir, que vem beber, que vem folgar, arrebatado pela scena, que é sem rival em maravilhas.





O inverno.

Mas ha inverno no Japão? Julgo que sim, pois gela a agua nos charcos e ribeiros, cae profusa a neve, alvejam no horisonte as serras, como embrulhadas em lençoes. No entretanto, ainda ao sol de dezembro desabrocha a chrysanthema, e já em janeiro as ameixeeiras, nuas de folhas, começam a florir. Seja pois um inverno de flores. É certo que essa grande desolação das longas invernias dos climas temperados é desconhecida em solo japonez. A paizagem é sempre alegre; o ceu é sempre azul; os pinheiros, que são as arvores que mais abundam, sempre verdes. Se então se prolongam mais as palestras em roda do brazeiro, chegando os deditos ao calor, tomando chá, o povo não cessa de affluir aos theatros, aos bazares, aos templos, ao abrigo da sua rama ardente acolhe-se o povo, em [190] aos jardins; apenas, por cuidado ou garridismo, as Musumés cobrem com um manto de delicada cor as cabecinhas petulantes, deixando vêr do rosto apenas uma nesga da fronte e os olhos negros, humidos de amor e de mysterio... deve ser antes garridismo, pois ficam d'este modo mais seductoras do que nunca.

A neve, que constitue uma calamidade em tantas regiões, entra aqui no rol das coisas deleitosas. Tanto é assim, que as mulheres, cujos nomes são sempre mimosos como ellas, lembrando flores ou outras gentilezas, se apropriam do termo com frequencia:―Yuki-San, a Senhora Neve, ou com mais cortezia, Ó Yuki-San, a Nobre Senhora Neve, é nome muito em uso. A nevada, sem que prejudique o povo na vida e no conforto, vem branquear as serranias, os campos e as estradas, esplendida apothéose de alvuras e purezas; rendilha as arvores de crystalinos ornamentos, ostentando-se como uma florescencia immensa, uniforme, que brotasse dos restolhos, da herva, dos bambus, dos cedros, dos pinheiros; sobre [191] os telhados das casas e dos templos, sobre os dorsos das grandes raposas de granito que d'estes se avisinham, sobre as lanternas de pedra dos jardins, demora-se em fofos floccos, que dão ás coisas proximas, realces seductores; por onde a agua corre e se despenha, o frio congela as gottas, adormece-as, transforma-as em recortadas estalactites, que um raio de sol mais quente virá em breve desfazer.



No vocabulario japonez, tam amorosamente naturalista, ha um termo de que agora me recordo, que não tem, como muitos, synonimo em linguas europeas; é yukimi. Yukimi quer dizer:―excursão ou banquete preparado para ir vêr cair a neve.―Nas [192] chayas, em certos sitios pittorescos, exemplo―as collinas de Kioto,―combinam-se reuniões; vêem os rapazes, vêem as gueshas com as guitarras, começa a festa ruidosa, interrompida a espaços pela contemplação muda do espectaculo que se offerece; no entretanto, a neve vae caindo n'uma chuva continua de folhepos, ligeiramente sussurante, de um ruge-ruge de sedas que arrastassem, vestindo o solo, as arvores, o colmo das choupanas, poisando mesmo nos vestidos e nas mãos brancas como a neve das moças irriquietas...





Outro assumpto: a historia da arte.

No Japão, não ha nem houve nunca, sabios; é medida, penso eu, de hygiene nacional, consequencia de antigos habitos de limpeza das creadas, que os sacodem do solo como sacodem as teias de aranha das paredes. No respeitante a historia, é evidente que o officio de historiador, com a secura e a frieza que lhe suppomos inherentes, não existe. A historia japoneza é feita pelo povo, incluindo a collaboração preciosa das velhas, das raparigas, dos garotos; emana das tradições, da lenda e da intuição [193] sentimental das massas. Recorda por este facto os evangelhos biblicos, escriptos pelos rudes discipulos de Christo, pobres e simples pescadores alheios ao convivio dos classicos, sem sciencia e sem arte, mas abrazados em poesia, em crenças, em amor. Na historia japoneza, palpita, como nas paginas da Biblia, a alma da tribu, propensa, pela tendencia geral da gente rustica, ao milagre, á maravilha, ao inverosimil; convindo apenas não esquecer que o japonez, menos idealista do que o hebreu, não vae mui alto no mundo das chimeras, voeja terra a terra, aprazendo-se em entretecer de graciosas fabulações as aventuras dos seus homens illustres. A historia da arte, para este povo feito todo de artistas, sempre sob o arrebatamento das bellezas naturaes do seu paiz, é um dos capitulos preferidos, por onde mais rodopia sem freio a phantasia; e é d'este capitulo da arte que eu destaco algumas graciosas lendas que se seguem.





O bonzo Chyo Densu, que viveu pela primeira metade do nosso seculo XV, foi um grande pintor em coisas religiosas.

[194] Sendo noviço n'um templo da Kioto, Tofukuji, conta-se que já se dava á pintura com paixão, incorrendo por esta fórma no desagrado do superior Daidô, que o ia asperamente reprehendendo. Certo dia, acabava elle de pintar um retrato de Buddha, quando sente passos de Daidô, que se approxima do seu poiso; rapidamente, esconde o desenho entre os joelhos; o vulto entra na cella, esbrugando as suas contas, resmungando; do resplandor do deus subito irradiam chammas de apothéose, que innundam de luz a casa toda; a falta do noviço estava assim conhecida; mas tambem perdoada, pois Daidô humilhou-se a este avizo do céo, e nunca mais atormentou o seu discipulo.

Já no fim da existencia, dignou-se uma vez o Shogun recompensal-o dos seus muitos serviços, dizendo-lhe que pedisse o que quizesse.―De nada careço n'este mundo, retorquiu Chyo Densu, tendo em cada dia um kimono lavado para vestir e uma tijela com arroz; só vos supplico, senhor, que por vossa ordem terminante sejam cortadas cerces todas [195] as cerejeiras do jardim d'este templo, para que de futuro se não torne um logar de folia e desacato.»―Foi-lhe o desejo satisfeito; e em Tofukuji, ainda até hoje, nem um só pé de cerejeira floresce.





Tadahira, do nosso seculo X, pintou certo dia um cuco sobre o panno de um leque. Tam perfeito era o cuco, tam inspirado de verdade foi o pincel que o desenhou, que em todas as vezes que alguem abria o leque, o cuco, assim exposto á luz do dia e á paizagem, acordava, soltava o pio habitual dos cucos. Maravilha!...





Maruyama Okio, nome moderno, pois é do seculo XVIII, foi pintor muito celebre, a ultima gloria talvez da escola classica, convencional, mas cheio de amoroso realismo nas suas concepções. Um seu cliente fizera-lhe encommenda de desenhar um urso bravo. O consciencioso Okio pede a certo aldeão do seu conhecimento que o avise de quando algum appareça pela serra; o aviso vem ligeiro, pois abundam [196] taes bichos no Japão, e eil o que parte, com a tinta, com os pinceis e com o mais de que carece. Levado pelos campos, depara com o animal dormindo junto a uma arvore. Mãos á obra, e em curto espaço conclue o seu trabalho e se retira; mas dentro em pouco rasgava a tela, desgostoso, depois de a ter mostrado a um caçador de officio, em ursos entendido, o qual lhe observou que achava bello o quadro, mas falho de verdade após um exame attento, pois não traduzia a imagem a vaga ondulação que é propria ao arfar do corpo que respira. O melhor da passagem foi ter, annos corridos, contado o aldeão ao bom Okio que o tal urso da serra se quedava dias e dias junto á arvore; até que se deu fé, entre curiosos, que o bicho não dormia, mas se achava alli caido morto...


[197]



Sonhou um dia o Shogun, Generalissimo do imperio, que um padre lhe apparecia e lhe dizia estas palavras:―«Eu sou o defunto superior do templo de Kurama; e rogo-vos, senhor, que ordeneis a Kano Motonoba de pintar o meu retrato, para ser collocado no templo onde passei meus longos dias de existencia.»―Acordando, mandou chamar o grande artista, fez-lhe a encommenda, e soube então que elle tivera igual visão durante a mesma noite.

O peor é que Kano não conhecera o reverendo, nem lhe constava que existisse um só retrato para modelo. A tarefa era ingrata. O pintor passou então dias sem conto, tendo na frente a tela nua, pincel em punho e tinta preparada, immovel, perplexo, desesperado de jamais poder realisar o seu intento. Foi em um d'aquelles dias que uma aranha desceu do alto do tecto lentamente até poisar na tela, onde teceu a sua teia, que era nada menos que o esboço do frade a traços rapidos; Kano limitou-se a completar a obra em seus faceis detalhes.

Outra difficuldade se levanta: Kano desenhára [198] um retrato gigante, em uma grande tela, não reflectindo a principio que nunca poderia conseguir que passasse pela porta do seu modesto albergue. Quando concluido e como o problema se apresentasse irresoluvel, eis sopra de repente uma rajada em furia, que deita a terra uma parede do albergue, e leva em triumpho, pelos ares, o primoroso quadro até ao templo de Kurama, onde até hoje está, e os visitantes o admiram.



Sesshiu, um nome glorioso entre a pleiade dos pintores do Dai-Nippon, entrára como noviço aos treze annos no templo de Hofukuji. Sabe-se que, durante a sua aprendizagem, mais se applicava á arte do que ás praticas devotas. Uma vez, por uma offensa d'este genero, foi posto em penitencia junto a uma columna do templo, durante longas horas, com as mãos atraz das costas, fortemente amarradas. Quando o superior vinha soltal-o,―imagine-se o espanto do sujeito!―eis que surde de junto dos pés do pobre moço um bando de ratinhos, que [199] se escapam espavoridos pela casa. Qual era a explicação de tam estupendo caso? Eu lhes conto: o penitente, choroso e inactivo, fôra entretendo o tempo a pintar sobre o sobrado poeirento aquelles galantes animaes, servindo-se das proprias lagrimas como tinta, e do dedo grande do pé nu, como pincel; logicamente, os ratos salvavam das iras do velhote as preciosas vidas com que o artista acabava de dotal-os.





Esta é uma velha lenda classica da religião de Shinto.

O templo shintoista de Shimo-Gamo, em Kioto, é dedicado á deusa Tamayeri-hime. Esta menina, antes de dar pretexto aos fieis para ser adorada, achava-se uma vez dedilhando sentidas melodias na guitarra, á beira do rio Seminogarva, quando avistou boiando á tona de agua uma feicha vermelha, encimada de lindas pennas de certa ave das selvas. Colheu-a e levou-a para casa, collocando-a junto do seu leito. Acto continuo, succedeu a maravilha de dar á luz um filho. Seus paes, descrentes de artes milagrosas, e a despeito dos mil protestos de innocencia que ella lhes fez, singelamente, [200] não acreditaram no milagre, accusando-a da falta que mais póde envergonhar uma mulher honesta.

Passados annos, Taketsumi-no-Mikoto, o pae da desolada, resolveu aclarar este mysterio. Em tal designio, offereceu um banquete a todos os visinhos; e quando estavam todos reunidos, dirigindo-se ao neto, e entregando-lhe uma taça cheia de saké, que é o vinho do paiz, disse-lhe isto.―«Leva-a a teu pae»―A creança, obedecendo, saiu para a rua e poz-se a contemplar o céo, e ia murmurando uma oração; de subito, transforma-se n'um raio, que corisca, subindo ás regiões celestes, acompanhado pela mãe, para a qual começou assim a glorificação.





Encontrei-me, em pleno dia, n'um luxuoso bairro indigena, que me disseram chamar-se a Cidade-Nocturna, pois só com a noite acorda, e só na noite vive, deslumbrante de galas, de lumes, de harmonias, de povo alegre que transita, para cair em repouso ao alvorecer da madrugada.

Áquella hora, a estranha cidade, esbrazeando a um sol de intensidades tropicaes, do mez de Agosto, modorrava; torpida quietação; raros vultos se [201] viam,―mendigos, vadios, párias da vida,―cosidos com as nesgas de sombra dos edificios e das arvores que ajardinam ao centro as avenidas.

Fixei casualmente a attenção n'um edificio mais pomposo, de vastas dimensões, todo de madeira nova, alto de quatro ou cinco andares, rodeado de varandas, d'onde pendiam a arejar ricas colchas de seda e mantos de matiz; não sei que caravançará de mysteriosos habitos, aquelle, silencioso tambem áquella hora, mas dando de si a idéa de conter nos seus arcanos uma legião do moradores.

Ao centro d'este edificio erguia-se em triumpho [202] um amplo portal, de madeiras lustrosas; seguia-se-lhe um vestibulo; depois alguns degraus de escada, acharoados; e ao fundo, muito ao fundo, havia passadiças cobertas de esteiras muito limpas, corrediças entreabertas patenteando, n'uma meia penumbra, confusos verdes de jardim.

Junto ao portal, dois moços de serviço, quasi nus, dormiam sobre um banco, como dois cães de guarda cançados da vigilia. Notei que vultos de mulher, de quando em quando, passavam, perpassavam, longe, no ultimo plano; languidas, vagarosas, com os penteados desfeitos, arrastando amplas tunicas de seda estampadas de entrelaçamentos de flôres. Uma d'ellas, por desenfado, avançou té ao portal, ergueu os braços alto, enfiou os alvos dedos de ociosa pela juba negra dos cabellos; e assim, n'aquella posição, poz-se a fitar o azul do céo que uma ave cruzava em vôo rapido. Gentilissima, esplendida no vestido, miudas fórmas graciosas, da côr do jaspe os pés descalços em habito de humildade, e um olhar de dezoito annos quando muito, pueril, coando a expressão intima de um ser affeito á passibilidade e inconsciente das coisas d'este mundo. De dentro, uma voz de velha, azeda e imperativa, chamou-a pelo nome:―«Mitsu-Riyo!»―E eu fui seguindo o meu caminho, acordando de subito [203] para um enternecimento doloroso, que me é peculiar em presença de certos relances da existencia, um pequenino nada ás vezes, confuso e passageiro... Mitsu-Riyo quer dizer, litteralmente:―Mel que se offerece―a quem? á turba, a toda a gente.





No Japão, uma vez em cada anno é a festa das meninas, e uma outra vez em cada anno é a festa dos rapazes.

Na primeira, como de justiça, e em attenção ao sexo, tudo se passa entre a familia, de paredes a dentro; e o profano nada logra devassar dos jubilos d'aquellas presumidas, vestidinhas com mil esmeros e attenções, em extasis em frente do altar que se arma em casa em honra d'ellas, aonde se dispõe, além de coisas santas, a collecção de bonecas e brinquedos, a [204] serie em miniatura do espelho, da caixa de costura, do brazeiro, das chavenas, da chaleira, de tudo mais onde mais tarde os seus dedos mimosos poisarão, no placido exercicio dos seus deveres de esposa e mãe por sua vez.

A festa dos rapazes é publica, ostensiva. É certo que no lar se agrupam os trophéos de armas e allegorias de guerreiros, e brinquedos condizentes com a turbulencia innata nos garotos; mas no que mais se empenha o cuidado da familia é n'um curioso emblema que enfeita a cidade inteira, offerecendo aos passeantes um estranho quadro de festa e alegria. Cada qual que tem filhos―e quem ha que os não tenha?―espeta a prumo ao pé da sua casa uma vara de bambu de grande comprimento, tendo amarrado na ponta um enorme peixe de papel, soberbamente pintado de negro ou de vermelho, escamudo, com ampla cauda e esbogalhados olhos; cada qual amarra um peixe, ou dois, ou tres, ou quatro, conforme o numero de filhos; e ha casaes tam abençoados dos deuses e tam cumpridores do seu dever, que amarram sete peixes, oito peixes, um cardume!...

Qualquer curioso em coisas de estatistica poderia, sobre uma eminencia da cidade, registar pelo numero dos peixes o numero de filhos varões [205] n'aquelle sitio; mais ainda: os ventres benemeritos que mais soldados dão ao exercito imperial.

Ha uma lenda adoravel n'esta usança. Os peixes figuram carpas, no Japão abundantissimas; a carpa, sabe-se, vive nos rios, e apraz-se teimando a nadar contra a corrente, subindo da fóz té ás origens; aquelles peixes de papel, enfunados pelas brisas fuscas que reinam em geral n'aquella epocha, que é em maio, perfilando-se contra o vento, dão uma perfeita imagem do phenomeno. Assim o homem, no curso da existencia, deve adquirir a rude teimosia de resistir, de passar para além da corrente dos revezes, dos desalentos, das intrigas, té alcançar o lago bonançoso da paz da consciencia e da abastança ganhas com o seu trabalho intelligente. A festa é ao mesmo tempo um aviso aos tenros nipponicos de agora, ranhosos, rabujentos, dependurados da teta maternal, ou, mais crescidos, caçando as cigarras poisadas sobre as arvores, lambendo doçarias e soletrando o i-ro-ha pelas escolas, mas que amanhã constituirão a massa activa e dirigente d'esta tribu inchada de orgulhos patrioticos, e abrazada em ambição.


[206]



Se um dia me sobrarem ocios e pachorra juntamente, hei-de ainda escrever um longo capitulo inspirado na mulher japoneza, tal como eu a comprehendo, ou antes, tal como a não comprehendo. Não agora. Agora intento apenas fallar d'ella em breves phrases, ao capricho das rapidas idéas que me occorrem.

Qual é o seu destino? O enlevo do lar. Seria pois, como quem diz, um canario cantador, gentil e inutil, saltitante, papeando ao sol e enchendo a casa toda de alegria, se não se devesse incluir em tal enlevo, dois meritos ainda: o delicado instincto da ordem, da limpeza, e um fundo de carinho maternal, tam amoroso, que talvez não tenha egual no mundo inteiro. De sorte que, sem missão activa propriamente, parece vir ao mundo destinada a uma doce passibilidade feita de cuidados e sorrisos, para tornar feliz o esposo, e preparar para a vida um outro homem, o seu filho. Sem iniciativa propria no ramerrão da existencia quotidiana, simples nos habitos, nas occupações e nos desejos, a sua condição mantem-lhe, e mesmo lhe exaggera, os attributos peculiares do sexo,―delicadezas phisicas fixadas no requinte, e um discorrer ingenuo de creança.

[207] É uma escrava do homem? É difficil dizel-o, n'este mundo, que é todo escravidão. Sim, será talvez; e recorda-se este velho preceito de moral, ainda não esquecido:―«Obedece a teu pae, mais tarde a teu marido, mais tarde a teu filho primogenito.»―No entretanto, bem chimericas algumas devem ser as que supportam... pois para que lhes servem a ellas, as musumés, o sorriso perenne dos labios, o mimo dos gestos, das feições, do garridismo do seu trajo, a alma de graças que têem nas pontas dos dedinhos, que tudo aformoseam onde tocam, senão para trazerem submisso ao jugo dos seus desejos e caprichos o bruto seu senhor (porque os homens são brutos em todo o planeta) e folgarem como princezinhas voluntarias?... Que se julgam felizes, ellas, esta Senhora Ameixeeira, esta Senhora Crysanthemo, esta Senhora Primavera, não ha duvida, concluindo por este mesmo sorriso dos labios frescos durante todo o dia―e possivelmente toda a noite―pela alegria fervilhante dos olhitos, pela serena ondulação da mimica, já surprehendendo-as nos mil misteres caseiros, já pela rua, caminho dos bazares, dos templos, dos theatros, dos campos floridos...

É certo todavia que uma grande dissemilhança afasta a mulher japoneza, da mulher occidental, pelo [208] menos d'aquella que a importação despeja dos paquetes e vem pisar a terra de Nippon; a ponto, persuado-me, que um sabio zoologo qualquer, que descesse do planeta Marte a estas paragens, jamais ousaria classifical-as como exemplares da mesma fauna.

Vede esta femeasita minuscula, toda ella pieguices de roupas e maneiras, fragil, sem musculos, com mãos e pulsos de creança, impropria para o esforço e para a lucta; passa a vida de joelhos, sobre macias almofadas, brincando com bonecas como se fôssem filhos seus, ou brincando com seus filhos como se fôssem as bonecas; se sae de casa, vae arrastando os pésitos em passos indecisos, preguiçosos, borboleta bohemia, sem rumo e sem intento; sabe cuidar dos seus cabellos, pintar a bocca de escarlate, dedilhar no shamicen, compôr ramos de flôres, servir o chá nipponico, lêr historias de raposas fabulosas e de macacos legendarios...

[209] Agora comparae esta chimera humana com as rudes viageiras que o mar aqui arroja, bravos exemplares do feminismo em moda, fontes de musculos, de animo atrevido, usando monoculo, bengala e collarinho; deixam ás amas os filhos, se é que os têem, para correrem as cidades a passos de gigante, ou, mais velozes ainda, manejando com mão firme a bicycleta; umas são jornalistas, outras são missionarias, outras são medicas, outras são sabias, outras são coisa nenhuma. Não ha comparação possivel entre as duas. A europea offusca a japoneza pelos seus meritos triumphantes. A esta, humilde e timida, só restaria acaso uma desforra:―era entreabrir o kimono de seda na parte junto ao peito, patentear lhe o par de maminhas brancas e roliças, com os bicos côr de rosa macerados pelos dentinhos do garoto que lhe brinca no collo, nu em pêlo...





Uma amavel senhora, cujas cartas vem de quando em quando amenizar a solidão do meu viver, dizia-me ainda ha pouco coisa parecida com o seguinte, a proposito de dois livros que escrevi (que ella leu, a bondosa), e da subsequente prolongada preguiça [210] litteraria em que fiquei:―«Você deu ao publico as suas illusões; o publico espera agora as suas desillusões.»―Não sei ao certo o que então lhe retorqui; mas eis o que me occorre responder-lhe, ao escrever a ultima pagina d'este livro:

Vá de barato que a gente publique as suas illusões; melhor fôra calar-se, todavia. Mas para as desillusões não ha, supponho eu, publicidade ademissivel; soffrem-se no silencio intimo, e manda o orgulho proprio, além de outros motivos, que a gente as não divulgue. No entretanto, para o paiz japonez, com o qual ia especialmente contender a gentil observação que referi,―um nadinha maliciosa, querendo aparentar estimulo apenas ás minhas actividades em lethargo,―para o paiz japonez, devo confessar que me encontro ainda no periodo do enlevo e dos feitiços. Não ha terra, que eu conheça,―e tantas tenho conhecido!―mais deslumbrante do que esta nos aspectos; não ha povo mais interessante do que este, pelo feitio moral, pelos costumes, pela alma artistica; não ha mulheres mais mimosas do que estas musumés; e não ha no mundo inteiro gente mais feliz do que esta gente japoneza; é dizer tudo. O que o tempo e a experiencia me têem dado a conhecer, é a convicção profunda da incompatibilidade absoluta entre tudo isto e o europeu; [211] o Japão é dos japonezes e só dos japonezes, o europeu, como um pingo de azeite dentro de agua; conserva-se aqui sempre isolado, não se assimilla ao meio. Porquê? por dissemelhanças irreconciliaveis do sentir, da educação, dos habitos, por essa invencivel barreira que se define em tres palavras, a―differença de raças.

Minha senhora: para poder assim synthetisar-se um sentimento como eu acabo de fazer, para adivinhar o encanto no que nos é vedado, para dizer que é grato o aroma de um ramalhete de flôres que nos mostrassem dentro de uma redoma de crystal, não é fácil tarefa; tem de elevar-se a alma a um extremo altruismo estetico, paradoxal até, não por virtude nem sciencia, mas derivado de condições tristes da vida, e quando se é já tam pobre em esperanças e desejos, que o individuo rasteja como um pária moral, alheio a tudo.

[212]Tal pária, n'um ponto, n'um só ponto, é grande como um Deus: vê o mundo do alto, parecem-lhe os homens formigueiros, segue com a vista as formigas nas batalhas, nas labutas, nos cuidados e nos prazeres; em tal estado de desinteresse e independencia, custa pouco então apontar com o dedo para a tribu que mais bem dotada parece na partilha das graças, dizer―é esta, o Dai-Nippon.

Deixe-me pois guardar, para guardar alguma coisa, as illusões d'este paiz... e a sua estima, e esta não é uma illusão.

1901




ISSUMBOSHI[2]

(CONTO JAPONEZ)



a A. A. Ferreira d'Almeida.


Ha mui remotas eras, dois velhos esposos residiam na provincia de Settsu, em Naniwa, como então se chamava a cidade de Osaka. Eram os dois sósinhos; nunca tiveram filhos, posto que ardentemente os desejassem. Ora, a prole é a grande preoccupação da familia japoneza; considera-se mesmo incompleta e quasi ignominiosa a existencia d'aquelle que a não teve, e assim se vê privado de legar o seu nome, e os encargos do culto devido aos ascendentes, ao natural herdeiro de taes honras, restando-lhe apenas o triste expediente da adopção de um filho estranho, que, com a herança do appellido de familia, assuma os encargos da supposta primogenitude.

[214] ―Um filho... um filho ao menos, fôsse elle embora um aleijado, um monstro, uma migalha de gente, com o tamanho de um dedo por estatura... mas um filho!...―tal o thema constante, durante longos annos, das mais gratas esperanças do casal a que me referi. Quando, pelas rugas nos rostos e pela alvura dos cabellos, os bons velhos concluiram que não mais lhes era dado confiar na iniciativa propria, elevaram então o pensamento aos deuses, como dispensadores que são de todos os milagres; encaminhando de preferencia a sua devoção para o glorioso Myojin, que é a divindade venerada no celebre templo de Sumyoshi, a curta distancia de Naniwa. Quasi todas as manhãs elles se dirigiam em piedosa romaria, juntos, cada qual arrimado ao seu bordão, pois já as pernas lhes vergavam ao peso dos [215] invernos; e era então um espectaculo deveras commovente, e supinamente grotesco ao mesmo tempo, que fazia correr lagrimas e estalejar risadas á gente que passava, o d'aquelles dois decrepitos, cheios de uncção e abrazados em fé, erguendo ao céo as pobres mãos escarnadas, e implorando o deus para que lhes desse um filho, fôsse elle como fôsse, fôsse elle uma migalha de gente, do tamanho de um dedo por estatura!...





Ora, succedeu que tendo assim decorrido varios annos, o deus de Sumyoshi se apiedou por fim de tantas supplicas dos velhos, e lhes appareceu um dia para lhes proferir estas palavras:―«Faço-vos a vontade, bons caturras, haveis de ter um filho.»―Os dois pularam de contentes, como se póde imaginar; galhofando, batendo palmadas amigaveis nas costas um do outro, voltaram para o albergue. Não tardou muito que a velha sentisse com alvoroço os primeiros remoques que prenunciam gravidez; e finalizados nove mezes dava á luz uma creança, um menino...

Caspité!... Mas reparem agora no ponto mais surprehendente da aventura: o menino, lindo como [216] os amores, tinha a estatura de um boneco, como esses de porcellana que se usa collocar nos jardins liliputianos, contidos n'um vaso ou n'uma caixa, muito do agrado da gente japoneza. O espanto dos paes foi grande, e a decepção tambem; mas em verdade não havia motivo de queixa contra o deus, que concedêra o que se lhe rogára,―um filho, com o tamanho de um dedo por estatura.―Era assim.



Issumboshi foi o nome que deram ao menino, isto é, traduzindo litteralmente em portuguez: o Cavalheiro Pollegada. As chronicas não rezam se foi amamentado a biberon, ou se o mirrado seio maternal entumeceu de subito e se offereceu solicito aos labios do garoto. O que é facto é que Issumboshi foi medrando em graças e em esperteza; não porém em tamanho; e quando tinha os seus dez annos era tal como viera a este mundo. Esta gentil disformidade trouxe o enfado ao lar e até um certo azedume [217] mal contido contra as suppostas bondades do deus de Sumyoshi. O escarneo era espontaneo nas boccas dos visinhos; os gaiatos do sitio apraziam-se em zombarias d'esta ordem:―«Lá está o anão comendo arroz! lá vae a ervilha passear!»―Emfim, para encurtar razões, direi apenas que chegou um momento em que Issumboshi se tornou insupportavel a seus paes, vergonha viva do casal, sem prestimo presente, e sem que se lhe suppozesse utilidade possivel no futuro.





Certo dia decidiram os velhos, embora lhes pezasse, pôl-o fóra de casa, abandonal-o ao acaso da fortuna. Foi chamado o menino á presença do pae, que lhe expôz os motivos da sua resolução, e lhe apontou de um gesto o caminho da rua.―«Sim, papá, partirei sem demora, retorquiu, resignado e submisso; mas faça-me favor de dar-me antes uma agulha d'aquellas de que a maman se serve para coser os seus kimonos.»―Perguntou o pae para que? e foi-lhe respondido que era para usar d'ella como um sabre, muito proporcionado ao seu tamanho. Depois pediu á mãe uma tigela de madeira, d'aquellas que se empregam em servir o caldo ás [218] refeições, e mais um d'esses pausinhos que se chammam hashi, com o comprimento de um palmo, substituindo na mesa japoneza o garfo e a colher. Perguntou a mãe para que? e foi-lhe respondido que, para a longa viagem que ia emprehender, a tigela seria o barco, o hashi seria o remo, tudo proporcionado ao seu tamanho.

Em posse dos utensilios que alcançára da munificencia de seus paes, Issumboshi fez-lhe uma rasgada reverencia e desappareceu de casa.





Eil-o só, o pobre abandonado, entregue ao seu arbitrio, dispondo como haveres de uma tigela, de um palito e de uma agulha, collocando esta á cinta, á laia de catana, com uma palhinha por bainha!... Que fazer? Para onde ir?... Corria cerca o Iodogawa, o extenso rio lodoso e calmo que tem suas origens no famoso lago Biwa, desce a Kyoto, atravessa Naniwa, e vae perder-se no oceano. Que fazer? Para onde ir?―«Ir a Kyoto, pensou comsigo o anãosinho, á capital do Imperio (então não era Tokyo a capital), á residencia do Soberano, aonde muitas coisas curiosas deve haver, dignas de vêr-se...»―E abalou.

[219] Seria impossivel relatar as peripecias da viagem, os mil perigos affrontados por tão exiguo barco, que uma simples casca de laranja, boiando á tona de agua, já punha em risco de naufragio. Issumboshi ia perguntando aos pescadores o caminho para Kyoto; se refrescava o vento, abrigava-se junto da estacaria das pontesinhas que galgavam de uma margem do rio para a outra margem; pelas noites escuras, ou quando a fadiga o affligia, encalhava o seu barco junto á terra, por entre a maranha dos limos e das plantas aquaticas; e foi assim, com mais de trinta dias de derrota, que abordou uma manhã á famosa capital do paiz do Sol Nascente.





Eil-o em terra, bamboleando-se, folgando com o chão firme, com as palestras da turba, com o cheiro das tabernas, como effectivamente succede aos marinheiros após longos dias de cruzeiro, enfadados [220] de balanço, de isolamento, de carne salgada e de bolacha. Issumboshi, pouco maior que um escaravelho, passava despercebido por entre os muitos passeantes; assim poude furtar-se a commentarios zombeteiros e percorrer tranquillamente as ruas da cidade, embasbacando-se em face dos aspectos grandiosos que aos seus olhitos sagazes se iam offerecendo. Por fim, eil-o acercando-se da mais sumptuosa residencia em que os mesmos olhitos jamais tinham poisado; era alli que vivia um grande personagem, o principe Sanjo-no-Saishó, primeiro ministro na côrte do soberano. Entra Issumboshi resolutamente no amplo pateo da entrada, e informa os serviçaes de que pretende fallar ao senhor de tal dominio. Deu-se então o comico incidente de estar sua alteza muito cerca e de acudir, á porta, attrahido pela maviosa voz do visitante; como ninguem visse porém, ia de novo recolher-se, resmungando que teria [221] jurado achar-se alli um estranho em conversas com a gente de serviço; mas um derradeiro olhar pesquisador revelou-lhe, quasi occulto por detraz dos seus tamancos, que estavam junto á entrada conforme o uso do paiz, o curioso figurão que conhecemos.―«Oh! exclamou, eras tu, minusculo vivente que ainda ha pouco proferias o meu nome?»―O rapaz, polidamente, assegurou que sim, que era elle proprio.―«E que me queres então?»―Issumboshi expôz a sua procedencia, os seus titulos e as tristes condições em que se via; e concluiu rogando que lhe desse agasalho, e o admittisse ao seu serviço.―«Pois sim, fica comnosco, respondeu sua alteza, após ligeira reflexão; tu és sem duvida, continuou, o homem mais pequeno que tem apparecido n'este mundo, e a tua historia uma das mais commovedoras que conheço; não quero perder o léo de possuir tamanha galanteria, praticando ao mesmo tempo um acto meritorio, protegendo-te.»





Embora tam infimo em grandeza, o Cavalheiro Pollegada soube mostrar-se utilisavel em tudo em que o occuparam. Dentro em pouco, tornou-se querido da familia, o brinquedo, o passatempo predilecto [222] para matar enfados, dos quaes ninguem se livra, e menos ainda os ricos, sempre ociosos em seus palacios de regalo. Ko-Haru, a filha do fidalgo, a mais gentil donzella de Kyoto (que é a terra das mulheres mais gentis de todo o Imperio), especialmente lhe votou as suas sympathias, impondo-lhe o dever―dulcissimo dever!―de acompanhal-a por toda a parte onde ella fôsse, qual rato sabio que seguisse a dona em seus passeios...

Entre os dois, a formosa musumé e a migalha de gente, passaram-se então graciosas scenas, as mais tocantes que póde imaginar-se, se imaginaveis são... Era um enlevo vêl-o, sempre vestidinho de guerreiro, a primor, com roupas de setim que ella pelos proprios dedos habilidosos lhe bordava, e lhe cosia, privando de carinhos as suas bonecas favoritas; e Issumboshi, muito compenetrado do seu papel de pagem, nunca largando o sabre da cintura, arrogava-se uns taes ares marciaes, tão petulantes, que a gente morria de rir, ao [223] avistal-o!... Se chovia, ou se a excursão se prolongava, Ka-Haru tomava nas mãos alvas de neve o seu pequeno companheiro, aconchegando-o ao collo, ou aquecendo-o ao seio. Issumboshi, é bem de crêr, possuia, como todo o ser humano possue, um coração, embora reduzido ás proporções de uma cabeça de alfinete, mas pulsando de gratidão e de ternura. Aquella convivencia escravisou-lhe a alma. Uma dedicação immensa, uns zelos infinitos, um desejo constante de agradar á sua nobre ama, taes fôram os sentimentos dominantes no animo do pygmeu. A sua disformidade permittia-lhe delicadezas, que aos outros mortaes eram vedadas... (oh, mysterio psychologico de todos os namorados d'este mundo! quantos de vós, que lêdes estas linhas, invejareis a sorte de Issumboshi!...) Quando, pelas noites calidas de agosto, Ko-Haru se aprazia em estender-se sobre a relva dos jardins, Issumboshi, vencido tambem pela fadiga, poisava e adormecia sobre um dos pés nus de sua ama, como em leito de marmore de alvuras resplendentes. Uma vez, caiu dos labios frescos da donzella uma petala de magnolia, em que por distracção os dentinhos se entretinham mordicando: Issumboshi comeu-a; e durante um dia inteiro não se serviu de outro alimento, assegurando com verdade que aquelle lhe bastava...


[224]



Aconteceu um dia dirigir-se Ko-Haru ao templo de Kiyomizu-no-Kwannon (Kwannon é a deusa buddhista da piedade), a fim de praticar as suas devoções; como sempre, o anão acompanhava-a. Ora, de volta, quando ambos desciam o ultimo degrau da ampla escadaria que dá accesso ao templo, dois demonios surdiram de improviso das proximas balseiras, horriveis de figura, herculeos, colossaes, cuidando sem detenças de raptar a linda peregrina. Ko-Haru desfaz-se em pranto e quasi desfallece. Issumboshi retira a espada da bainha (a agulha que a mãe lhe dera n'outros tempos), perfila-se em frente dos demonios e brada-lhes assim:―«Vis temerarios, que commetteis a magna offensa de perturbar em seus passeios piedosos a princeza Sanjó! sabei que se um de vós, com um só dedo lhe tocar, commigo se ha de haver! e, tão certo como ser eu Issumboshi, assim este meu sabre lhe rasgará a entranha!...»―Consta que os diabretes se pozeram a rir, arreganhando os dentes; e um dos dois, mais fallador, dignou-se responder com uma vóz de trovão que fez afugentar das arvores os pardaes, em [225] cinco leguas ao redor:―«Acalma a tua furia, infimo insecto; não percebes acaso que a lucta contra nós é-te defeza? para encurtar razões e não seres importuno, vaes vêr o que te faço...»―Levantou-o do solo, mui delicadamente, com as pontas dos dedos, e enguliu-o...

Pareceu a Ko-Haru fugir-lhe a ultima esperança de salvar-se. Illudia-se. Em plenas trevas, escorregando pela guela babujenta do monstro, e penetrando na enorme rotunda da barriga, o anãosinho empunhou o sabre a duas mãos e foi espicaçando ao acaso, para a frente, para a direita, para a esquerda, o ventre, a fressura, os intestinos; o diabo sentiu-se de repente incommodado, soffreu ancias atrozes, vomitou o jantar e Issumboshi de novo appareceu á luz do dia. O outro monstro tentou em seguida igual ardil, devorando o pygmeu; d'esta vez Issumboshi subiu-lhe para o nariz, em cujas fossas sanguineas e felpudas recomeçou esgrimindo, a ponto de produzir tal comichão, [226] que o diabo espirrou, salvando-se o inimigo pelos ares. Foi então que os demonios se encheram de pavor, convencidos de que tinham em frente de si um ente extraordinario, posto que de tão desprezivel apparencia; e deitaram a fugir...

Muito bem. Agora o heroe cuida de acalmar a desolada dama, convence-a da ausencia do perigo e faz-lhe vêr que são horas de seguir para palacio, onde de certo o pae a espera com anciedade. Ko-Haru vae partir; antes porém testemunha ao pagem a sua muita gratidão, promettendo contar á familia o succedido, para que chovam justas recompensas sobre o seu donodado salvador.





Partiram com effeito. Eis que, a curta distancia, Ko-Haru encontra no caminho um utensilio alli abandonado, o pequenino martello milagroso de que os demonios e os deuses se utilisam, certamente esquecido pelos monstros na ancia de safarem-se. Tomou-o pressurosa. Perguntou o companheiro o que era aquillo; e, como ella lhe exposesse que bastava brandil-o para a gente realisar os seus desejos, e que elle proprio, se algum desejo tinha, lh'o [227] dissesse, que logo lhe seria satisfeito, Issumboshi berrou, no auge da commoção e da esperança:―«Altura! Altura! Altura»―Ko-Haru não percebeu o que elle queria. Elle então, mais prolixo, explicou que queria a altura de si proprio, crescer em tamanho, tornar-se um homem como todos os homens d'este mundo. O milagre, a um gesto da musumé, realisou-se. Issumboshi attingiu n'um momento as regulares proporções de um guapo mocetão; ao lado da princeza, quem se pozesse a vêr aquelle par, diria-os feitos um para o outro, de encommenda...



Chegaram ao palacio. A admiração foi grande; mas não sei o que mais commentarios mereceu, se as peripecias da princeza, rematadas com tão feliz epilogo, se o milagre do martello na pessoa de Issumboshi. Logo alli se lhe mudou o nome, para outro nome apropriado; recebeu [228] do seu nobre protector mil recompensas, mais tarde do soberano mui fartas honrarias, subindo aos mais altos cargos publicos; mas a mais doce recompensa que aqui se lhe póde assignalar foi tornar-se o esposo querido de Ko-Haru, que elle amava, do fundo da alma, desde o primeiro dia que lhe foi dado contemplal-a...

Kobe, março de 1902.




O PESCADOR URASHIMA



a Joaquim Costa


Viveu em remotos tempos, n'um logarejo da costa do Japão, Urashima, um moço pescador. D'este simples, pouco ia tagarelando a visinhança:―que tinha um coração propenso ao bem, e que em destreza ninguem o igualava, tratando-se de artes de linhas e de anzoes;―nada mais, mas já não era pequeno o elogio.

Ora, um bello dia, saiu elle a pescar, sósinho no seu barco. E que pescou Urashima d'essa feita? Oh! a sorte sorria-lhe em tal hora... pescou uma enorme tartaruga, com a casca espessa e dura, a cabecita rugosa, denunciando assim a grande vetustez; [230] é notorio que as tartarugas vivem muito; vivem mil annos, no Japão.

Era um opiparo jantar que o acaso offerecia ao pobre pescador, pouco mimoso de acepipes; jantar, ceia e almoço, e mais ainda, fóra os lucros que a casca lhe trouxesse; mas o moço poz-se a scismar na crueldade que ia commetter, roubando assim talvez longos seculos de vida áquelle bruto, fadado pela sorte ao goso da existencia, durante gerações e gerações da tribu humana; e lembrou-se da mãe, da santa velha que tantas vezes lhe ensinava a ser caritativo com os brutos indefezos... É certo que as mãos abandonaram a presa, n'um largo gesto de bondade; e a tartaruga, volvendo á agua sem se fazer rogada, lepida mergulhou no azul e se safou das vistas.



Fazia então tanto calor!... Era um d'esses dias abrazadores de agosto, embebidos de [231] paz, de luz, de torpidos affluvios. Além, a aldeia quedava-se na sésta, amodorrava, jazia em aniquilamento absoluto; apenas, sobre as arvores, cantavam as cigarras, doidas de cio, estonteadas... Interrompera-se nos campos a faina da lavoira; nas choças escancaradas, patenteavam-se os corpos nús, estendidos em repoiso, adormecidos, banhados em suor. E Urashima, no seu barco, vencido tambem pelos ardores d'aquella hora, largou das mãos os remos e as linhas, encostou-se á bancada e adormeceu.

No entretanto, eis que surge das aguas um vulto feminino, encantador. O episodio, que a tradição do povo foi retendo até aos nossos dias, póde agora reconstituir-se em pensamento. Sobre o convez do esquife, poisa esse vulto, essa fada adoravel de feitiços, envolta em roupas carmezins, solto o cabello ás brisas e corôada a fronte com o diadema de oiro, que é apanagio das princezas; estende o braço de neve para o adormecido, toca-lhe na fronte com as pontas dos dedos delicados, e diz-lhe de manso estas palavras:―«Acorda, Urashima, escuta-me; eu vou contar-te quem eu sou; sou a filha do deus do oceano immenso, habito com meu pae o palacio do dragão, no seio das ondas; a tartaruga, que ainda ha pouco colheste e restituiste á liberdade, era eu propria; [232] meu pae impoz-me um tal disfarce, para que assim podesse estudar-te bem os sentimentos; por sua ordem e meu aprazimento pessoal, serei a tua esposa, se me queres; mil annos viveremos sempre juntos, sempre jovens, sempre felizes, no palacio do dragão, sob o azul das aguas...»





Lá seguem os dois pelo mar fóra. Urashima empunha a esparrela da pôpa, maneja-a com denodo, dá-lhe―podera não!―forças herculeas a ancia de chegar; a princeza poisa no outro remo as mãos franzinas, e vae sorrindo ao companheiro. E vão remando, e vão remando, sem que a fadiga os aquebrante, até que finalmente o barco alcança o porto desejado, e já de longe o palacio se desenha, em arcarias, em grimpas, em mirantes recortados.

Que encanto! que prodigio! nem mesmo a phantasia ousára imaginar tantos primores!... As paredes do palacio são de renda de coral; as arvores do jardim têem por folhas, esmeraldas, e fructificam em perolas e rubis; as escamas dos peixes são de prata, os olhos de diamantes, as caudas dos dragões, de oiro lavrado...

[233] Então, toda a bicharia do oceano acode á praia, vestindo kimonos de cerimonia, e vem saudar os noivos viajantes. Após os cumprimentos e os discursos laudatorios que prescreve a etiqueta em casos taes, a princeza, seguida do cortejo, entra em palacio; gorazes e toninhas seguram-lhe a cauda do vestido; poisa nas fofas esteiras, de uma meticulosa limpeza indescriptivel, as plantas alvas dos seus pésinhos deliciosos; descança n'um salão que mais lhe apraz, pela delicia dos adornos e pela paizagem que se avista, e a seu lado offerece um logar ao companheiro. As tartarugas, os peixes, as lagostas, os dragões, a turba em fim dos escravos jubilosos, corre a prostrar-se em frente da princeza; e de joelhos, barbatanas erguidas em offertorio, começa servindo em taças preciosas o branco arroz cosido, os licôres, os fructos, os manjares.

Urashima extasia-se diante do que é seu, bem seu, pois que é de sua esposa. Durante tres annos assim vivem, sempre juntos, sempre felizes, sem enfados, sem nuvens de tristeza no céo dos seus amores; ora na paz da esteira, no enlevo das mãos que se entrelaçam, dos olhos humidos que se fitam, das palavras em segredo que se trocam, das almas enamoradas que se dão; ora perscrutando os mysterios do oceano, em excursões pachorrentas pelas [234] florestas das algas viajantes, por onde a vida aquatica, de plantas, de animaes, se multiplica em maravilhas que a ninguem é dado conhecer; ora em longos passeios pelos jardins, onde as arvores não cessam de vestir-se de ramos de esmeraldas, vergando ao pendor das perolas e rubis.





Tres annos decorridos. Um dia porém Urashima acerca-se da esposa e diz-lhe pouco mais ou menos o seguinte:―que a adora e se sente ditoso, mas cresce-lhe o desejo de ir vêr a sua aldeia, o velho pae, a doce mãe, os irmãos, os antigos companheiros de trabalho; e promette voltar após curta visita.―Então, pela primeira vez sem duvida, uma ligeira nuvem de tristeza, um vago presentimento angustioso, turvaram o olhar sereno da princeza.―«Vae, diz-lhe; vae, Urashima, porque assim o desejas, embora bem me pese, pois imagino que vaes expôr-te a grandes riscos; leva comtigo este pequeno cofre, que alguma coisa contém que te pertence; sirva-te elle de lembrança de quem muito te quer; mas nunca o abrirás, pois se o fizesses, estarias perdido, e nunca mais voltarias a esta mansão do nosso amor...»

E partiu, e abordou o solo patrio...


[235]



O que quer que era de bem estranho se passára durante a ausencia de Urashima. Aonde estava a sua aldeia? aonde se erguia a cabana de seus paes? A mesma praia loira, os mesmos penedos carcomidos, os mesmos cerros sobrepondo-se, alli lhe appareciam, bem taes como os deixára, na fria impassibilidade das coisas immutaveis; mas os povoados offereciam outro aspecto, os campos outro amanho; mas as arvores, que lhe haviam dado abrigo e sombra, e de que tão bem se recordava, erguiam apenas troncos seccos, algumas, porque outras já nem mesmo existiam, e outras arvores medravam [236] n'outros sitios, projectando outras sombras, fructificando em outros fructos. Aonde fôra a sua aldeia, surgia agora um pinheiral. Reconheceu o mesmo arroio, que serpeava junto ao lar; e ainda agora a agua crystalina ia correndo, e sussurrante, como dantes; mas agora deserto, faltando o grupo galhofeiro das musumés que tinham por costume ir alli lavar a roupa, entre ellas as suas tres irmans, kimonos arregaçados, pernas núas, braços nús, lidando, palestrando e rindo umas com as outras.

Ao longo do areal iam então seguindo dois sujeitos. Urashima alcança-os e interpella-os:―«Bons dias; fazem favor de me dizer onde é agora a casa da familia de Urashima?»―Pensaram, consultaram-se, coçaram a cabeça, buscando recordar-se.―«Urashima, Urashima... Urashima, o pescador? tem graça tal pergunta: ha já quatrocentos annos pelo menos, como contam, se afogou elle quando pescava no seu barco, pois nunca mais appareceu; o seu pae, a sua mãe, os seus irmãos, os filhos dos seus irmãos, dormem todos além no cemiterio, ha muito tempo; a cabana que procura, apodreceu antes de nossos avós serem nascidos, nem o pó d'ella sequer existe por aqui...»

Então, como um relampago que acode subitamente pela noite, a illuminar a estrada, uma idéa [237] acudiu de subito ao pensamento de Urashima, a allumiar-lhe o espirito. Elle alli estava, volvido á patria, poisando os pés descalços no areal da sua querida aldeia, relanceando as curvas da paizagem em que por tantos annos a vista se poisara, e a recordação lhe gravára para sempre na memoria. O palacio do deus do mar, no abysmo das ondas, com as suas paredes de renda de coral, com os seus pomares de folhas de esmeraldas e fructos de perolas e rubis, e os seus peixes de escamas prateadas e olhos de brilhantes, e os seus dragões de caudas de oiro fino, não pertencia á terra, era do mundo dos prodigios, regia-se pelas leis do encantamento; um dia, dos seus dias, valia por muitos annos, dos nossos annos; e assim, sem que Urashima o suppozesse, seculos sobre seculos haviam passado sobre a terra, matando, destruindo, transformando, arrastando as coisas e os individuos á fatalidade dos destinos, ao aniquilamento, ao pó, ao nada, surgindo das ruinas outros aspectos e outros seres...





O antigo pescador sentiu o calafrio da sua soledade; e o disparate anachronico da situação em que [238] se via, incutiu-lhe no animo não sei que horrivel oppressão de angustia e de pavor. Patria? sim, a mesma areia inerte e os mesmos monstros de granito; mais nada. Aldeia, amigos, aspectos familiares da sua mocidade, nada havia; outras aldeias, outros aspectos, outra gente, e para esta o nome de Urashima entrava já na lenda. Em nada o captivava aquella terra. O anceio de fugir, de volver ao esplendor do seu palacio, acudiu-lhe então, dominador; e a imagem das mil graças da princeza multiplicava-lhe o desejo de abandonar para sempre o solo onde nascera. Lançou um olhar de adeus ao cemiterio, esse no mesmo poiso ainda, mas mais vasto e mais povoado de freguezes; e ia partir, deixar em paz a aldeia morta...

Antes porém lembrou-se de abrir o cofre que recebera da princeza. Porque? Talvez leviandade, talvez mofino séstro, que tantas vezes guia o homem a seguir pelo caminho prohibido... Do cofre aberto, que continha nada menos do que a essencia dos longos annos corridos, e ao mesmo tempo descontados na existencia de Urashima, escapou-se e pairou no espaço uma ligeira nuvem esbranquiçada. Chamado á razão, ao sentimento da desobediencia em que incorrera, e ao medo de um desastre, Urashima correu sobre essa nuvem, desvairado, e bradou-lhe [239] que parasse. Era tarde. De prompto, as proprias forças lhe faltaram, e a voz se lhe extinguiu; a nuvem envolvia-o; a nuvem transportava-o ao seu justo logar nas paginas do tempo, fazia-o galgar de um pulo a grande barreira que o afastava dos seus contemporaneos; as leis da terra tinham pressa em corrigir erro tamanho... Repentinamente, os cabellos, a barba, branquejaram como linho, sulcou-se o rosto em rugas, estalou a pelle do corpo, os ossos romperam para fóra, as costas dobraram-se n'um arco, viu-se como um macrobio não sei quantas vezes secular, como um esqueleto em férias, fugido do sepulcro, faltou-lhe o ar, faltou-lhe a luz, morreu, caiu, desfez-se em pó, desfez-se em nada...

1900.




INDICE





Pag.
As Borboletas 1
A Alforreca 9
O Anno novo 20
A Primavera 30
Nilguyo 50
O Cavallo Branco de Nanko 62
A primeira formiga 78
Os Diabos e os velhos 90
Pan-Man-Chen 98
A Caricatura no Japão 107
Dois Cemiterios Japonezes 134
O Espelho de Matsuyama 153
Amôres 164
Um pintor de gatos 171
Impressões rapidas 181
Issumboshi 213
O Pescador Urashima 229




Livraria Editora VIUVA TAVARES CARDOSO
5, Largo de Camões, 6―Lisboa



Ultimas publicações:


O TIO JOÃO GIL Chronica d'aldeia por Barros Lobo (Francisco) 1 volume, 800 réis

O CONDE DE S. PAULO Romance original, por Mauricia C. de Figueiredo, 1 vol., 800 rs.

NA RUSSIA Aspectos da guerra e da revolução. Narrativa historica e anecdotica por Eduardo de Noronha, 1 vol. com 107 gravuras, 800 rs.

OS BRAVOS DO MINDELLO romance historico, por Faustino da Fonseca. 1 vol., 600 rs.

O ANNO PARLAMENTAR―1905―A sessão―A questão dos tabacos, por João Costa, 1 volume, 800 rs.

A RUA DO OIRO romance lisboeta, por Alfredo Mesquita, 1 volume, 600 rs.

POSTA-RESTANTE Cartas a toda a gente, por João Chagas, 1 volume, 600 rs.

NO BRASIL uma epopéa maritima, romance historico da actualidade. illustrado com cincoenta photogravuras, por Eduardo de Noronha. 1 vol, 800 rs.

VAMIRÉ romance dos tempos primitivos, traduzido de J. H. Rosny por Candido de Figueiredo, 1 vol, 300 rs.

A ANNA DE CASTRO OSORIO


ÁS MULHERES PORTUGUESAS 1 volume, 600 rs.

ANECDOTAS DE REIS, PRINCIPES e outras personagens extrangeiras. Extraidas compiladas e prefaciadas por Faustino da Fonseca, 1 volume, 500 rs.

JOAQUIM DE ARAUJO


O "FREI LUIZ DE SOUZA" de Garrett. Notas, com um prefacio de T. Braga, 1 vol. illustrado, 400 rs.

TERRA VIRGEM Romance original por Cesar Porto, 1 volume 800 rs.

ALBERTO CAMPOS


O LIVRO DE UM JORNALISTA Sciencia, politica, moral, religião, coordenação e notas de Zuzarte de Mendonça. 1 volume, 500 rs.

AS ALEGRES CANÇÕES DO NORTE por Alberto Pimentel, 1 v., 600 rs.





Notas:

[1] Official da marinha morto em 25 de outubro de 1902. Vivia, quando o auctor lhe consagrava este capitulo.

[2] Os desenhos que illustram este conto são originaes do proprio W. de Moraes.




Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 25 n'estas ... n'estes
#pág. 49 whisyk ... whisky
#pág. 68 difflceis ... difficeis
#pág. 69 focinho snostalgicos ... focinhos nostalgicos
#pág. 76 offereco ... offereço
#pág. 79 tempelos ... tem pelos
#pág. 81 entrasae ... entrasse
#pág. 92 diabolidamente ... diabolicamente
#pág. 111 niconsciencia ... inconsciencia
#pág. 130 vermelha s ... vermelhas
#pág. 150 sumarais ... samurais
#pág. 174 At que ... Até que
#pág. 208 fabulossa ... fabulosas
#pág. 209 ?ontes ... fontes
#pág. 219 encahlava ... encalhava
#pág. 223 queaquelle ... que aquelle
#pág. 227 a palacio ... ao palacio
#pág. 235 rante ... durante


As figuras podem não estar no sítio original.
Algumas foram movidas para que os parágrafos não fossem cortados.