SCENAS CONTEMPORANEAS.
SCENAS CONTEMPORANEAS
POR
CAMILLO CASTELLO-BRANCO.
2.ª EDIÇÃO.
PORTO:
EM CASA DE CRUZ COUTINHO―EDITOR,
Rua dos Caldeireiros
n.os
18 e 20.
1862.
Porto―TYPOGRAPHIA DE
ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA,
Rua da Cancella Velha n.º 62.
MORRER POR CAPRICHO.
I.
Os meus amigos, de certo, não sabem o que é
caçar coelhos na neve?
Não admira.
Imaginem-se em qualquer aldêa, nas visinhanças do
Marão. Olhem em redor de si, e contemplem o quadro que os
viajantes na Suissa lhes descrevem todos os dias, supposto que nunca
sahissem da sua terra.
A primeira impressão que recebem é a do assombro.
Leguas em roda, nem na terra nem no céo, se descobre uma
crista de rochedo, a frança d'uma arvore, a dobra d'uma
nuvem, que não seja branca, alvissima, desde um horisonte a
outro horisonte.
E, depois, ha ahi em toda essa natureza amortalhada um silencio
funebre. Não cantam as aves, não balam os
cordeiros, não silva o buzio de pegureiro,
não soam nas quebradas as campainhas da arreata de machos.
Se ouvis um rugido assobiado ao qual respondem outros, não
vos afasteis para longe da casa d'onde
presenceaes, com o coração confrangido, esta
scena.
É uma alcatéa de lobos, que descem famintos da
serra, e
[6]
serão capazes de vos hirem buscar á cozinha, onde
naturalmente tiritaes de frio, sentados ao pé do
tóro de carvalho.
Faço-vos esta recommendação porque
sois uns homens afeminados, que nunca sahistes dos salões,
dos botequins, dos theatros, e das praças. Aposto que se
desseis de face com um lobo, de garras arqueadas, e fauces inflammadas,
antes que o lobo vos désse o cordial abraço da
fome, já vós tinheis perdida
a sensibilidade, e consciencia da vida, e até o direito que
todo o homem tem de matar não só o seu
semelhante, mas até um lobo, em justa defeza!
Se eu podesse contar com o vosso animo, aconselhar-vos-hia, que em uma
d'essas manhãs de neve, com meio covado de altura nos
terrenos chãos, tomasseis um cajado, e, com duas finas
cadellas de coelho, fosseis dar na serra um passeio d'algumas horas.
O peor que podia succeder-vos era o desvio do caminho, que
só com muita pratica se acerta, e, quando mal vos
precatasseis, resvalar n'um abysmo de neve, onde nem as orelhas de
fóra dissessem ao passageiro que um moço, a todos
os respeitos excellente, fôra
alli absorvido por um sorvete dos que a natureza offerece aos amantes
de refrescos, com menos economia que o
Guichard.
Afóra este inconveniente, ainda ha o dos lobos, que muitas
vezes tomam conta das nossas cadellas, devoram-nas com uma
perfeição e rapidez fabulosas, e, quando Deus
quer, fazem dos nossos corpos um supplemento nutritivo ás
nossas cadellas, deixando-nos a alma por muito grande obsequio.
O terceiro percalço, affecto á caça do
coelho na neve, aconteceu-me a mim, ultimo dos mortaes, em 26 de
Dezembro de 1844.
É o que tereis a bondade de procurar saber no capitulo
seguinte.
[7]
II.
Fui convidado por alguns amigos a acompanhal-os á serra,
porque o sol refrangia-se em scintillas na neve, que parecia
desfazer-se em laminas de prata.
Fui muito contente da consideração que se me
dava, como caçador, porque, em verdade vos digo, atirei com
certeiro olho a perdizes e galinholas. Se nunca matei nenhuma, o que
tambem é verdade, deve-se á pessima polvora das
nossas fabricas. Em
compensação, matei muito melro e tordo nas
serdeiras, e consegui matar de noite uma coruja, africa que muitos
caçadores famosos de certo não fizeram. Eu fui um
grande homem antes de escrever folhetins! Deus perdôe a quem
me torceu a vocação! Eu podia, a estas horas, ser
um habil corredor de lebres, e assim tornei-me a lebre dos galgos
sociaes.
Estes galgos sociaes, meu leitor, se tu és um d'elles,
permitte-me dizer-te que tens o faro muito descaçado, e que
eu hei-de saltar por cima de ti, quando cuidares que me abocas. Se
não és galgo, sensato
amigo, aqui rasgo o diploma de tolo, que te concedi, sem te levar
direitos de mercê.
Agora, vai entrar a historia direitinha até ao fim.
III.
Subimos á esplanada da serra. Eramos seis. Dividimo-nos em
tres grupos, e combinamos em nos darmos signaes com tiros no caso de
nos perdermos encobertos pelo nevoeiro, que poderia de improviso
esconder-nos
[8]os
cabeços das serras, unicas balizas que nos serviam de guia.
Assim combinados, cada grupo, com dous cães, seguiu as
pégadas dos coelhos impressas de fresco na neve. Eram
muitos, e morriam á pancada, porque os pobresinhos alapados
debaixo das urzes, se fugiam, eram logo mordidos pelos cães;
se esperavam eram apanhados á mão. Alguns, mais
previdentes, tinham
emigrado para as fundas colheitas, formadas pelas sinuosidades
interiores dos penedos agglomerados. A estes perseguia-os o
furão, que eu levava no meu cacifo, desalapava-os, e os
cães, farejando as avenidas da colheita,
recebiam-os nos dentes, sacudiam-nos com o rancor do instincto, e
atiravam-nos mortos aos nossos pés.
Andamos assim uma hora, tão entretidos, tão
esquecidos do mundo, que nunca tão distrahida hora eu tive
na minha vida, a não ser aquellas em que durmo, e sonho que
hei-de tornar áquelles meus dias de candura, depois de lidar
muito com a innocencia d'estas angelicas creaturas, que vestiriam, por
innocentes, como Adão e Eva, se a serpente lhes
não dissesse que
andavam indecentes.
Ao cabo d'essa hora, toldou-se o ar, e cahiu uma segunda camada de
neve.
O meu companheiro quiz logo voltar sobre os seus vestigios, porque
(dizia elle) d'aqui a minutos as nossas pégadas
estarão cobertas, e não
saberemos caminhar para o nascente nem para o poente.
―Eu, por ora, não vou―lhe disse eu.
―Porque?
―Estou bem aqui. Acho muita poesia n'este quadro. Imagino que esta
chuva de neve se transforma em chuva de fogo... Este nevoeiro, que rola
em ondas aos nossos pés, e sobre a nossa cabeça,
afigura-se-me
o fumo do grande incendio no juizo final! Olha... não te
parece que o vento espalha já as cinzas d'uma grande
[9]cidade!
Não vês Sodoma lá em baixo
vomitando columnas de fumo?...
―Eu não vejo nada... Acho de muito mau gosto as tuas
visões... vamos embora...
―Vai tu... e quando encontrares os nossos companheiros, dá
um tiro, que eu lá vou ter. Estou bem aqui; não
me mudo por cousa nenhuma.
―Até logo.
IV.
E eu continuei a vêr as minhas visões.
Parece-me que, por esses tempos, fui poeta, muito poeta, em
elevações d'alma para cousas de
imaginação, que não era esta fria
imaginação, que
tenho hoje.
Absorvido no meu quadro do juizo final, que só uma phantasia
abrasada poderia dar-me, transfigurando a neve em fogo, ouvi um tiro, e
não fiz caso. Ouvi segundo, e senti um piedoso desdem por
aquelles homens, prosa vil, que não tiravam partido do
grandioso panorama, que a mão liberal da natureza
desenrolava diante de meus olhos absortos.
Não sabeis que o nevoeiro embriaga?
É uma verdade. A cabeça enfraquece; nos ouvidos
ha um zunido, que vos faz perder o rumo. Sentis uma
sensação desagradavel, semelhante á do
giro penoso em que a indigestão do vinho vos traz a
cabeça
vertiginosa.
Foi o que eu senti, quando me furtei ás minhas
contemplações improprias do tempo e do lugar.
Ergui-me, e não sabia já designar a
direcção que levára o meu companheiro,
nem o ponto onde se deram os tiros. Desfechei a minha clavina, mas a
humidade inutilisára a escorva. Os cães, que
poderiam
ensinar-me o caminho, tinham seguido o meu companheiro. Não
desanimei.
[10]
Tal direcção pareceu-me que deveria ser a melhor,
e segui-a. O nevoeiro deixava-me vêr apenas o
espaço que pisava. Atravessei a lombada da serra, e comecei
a descer. Escorreguei muitas vezes nos algares da encosta, e senti a
neve pela cintura. Gastei duas horas, tres, quatro, descendo, descendo,
sem encontrar uma
povoação. Conheci que estava perdido. A neve
augmentava. A noite aproximava-se, e nem um symptoma de vida!
Então, sim; tive medo, e imaginei que a minha sepultura, sem
solemnidade alguma, deveria encontral-a brevemente no estomago d'algum
lobo.
E, de mais a mais, eu tinha fome.
Todos os provimentos, que eu levava na minha rede, eram um
pedaço de brôa para o meu
furão. Reparti-o entre nós. O animalsinho comeu
com appetite, e pilhando-se solto, como o seu officio era desemlapar
coelhos, entrou na primeira lura que viu, e fez saltar fóra
um gato bravo, que espirrava diabolicamente por cima dos tojos coroados
de neve.
Nunca me esqueceram os espirros d'este gato bravo!
Continuei o meu caminho, sem esperanças de encontrar
pousada.
Escureceu.
Encostei-me, desalentado, a um castanheiro, e fiz da minha pobre
cabeça uma cabeça academica.
Pensei muito, estabeleci varios raciocinios, que conspiraram em
provar-me, que, perto d'alli, devia existir uma
povoação, por isso que os
castanheiros, campos, e paredes eram indicios de aldêa
proxima. N'este comenos, ouvi um mugido de boi, e em seguida uma
sineta, que tocava ás «Ave-Marias.»
Aquellas tres badaladas ergueram a Deus o meu espirito reconhecido.
Orei com a devoção dos
dezoito annos. Não vos digo mais nada a este respeito,
porque me não entenderieis. Sois excellentes pessoas para
devorar
[11]
um romance em dez volumes; mas não lerieis, sem abrir tres
vezes a bocca, uma pagina de sentimentos embalsamados do aroma do
céo, que o poeta não deve nunca profanar,
misturando-os a frioleiras d'uma historia, ao alcance de todas as
capacidades.
Eu creio que entre vós ha entendimentos muito finos,
paladares muito apurados no sabor do bello,
corações muito brandos para
emoções suaves. Creio que sim; mas o melhor
é fazer de conta que os não ha.
V.
Minutos depois, achava-me n'uma povoação, onde
nunca estivera. Encontrei uma velha que castigava um porco, rebelde
á invocação de sua ama,
com uma roca.
Perguntei-lhe que povo era aquelle.
―Alpedrinha―disse ella.
Ora, Alpedrinha distava duas leguas e meia de minha casa. Era
necessario pernoitar alli. Perguntei á dita velha onde
morava o parocho. Mostrou-me a casa. Pedi gasalhado ao reverendo, que
n'esse momento voltava da igreja. Disse-me que subisse. Quiz saber quem
eu era, e tratou-me delicadamente, quando lhe citei um medico, pessoa
de minha familia.
O snr. padre Joaquim era um padre admiravel. Tinha maneiras da
côrte. Vestia com muita limpeza. Fallava com prodigiosa
correcção, e offerecia aos
seus hospedes aguardente e biscoutos, tudo do melhor, e servido em bons
crystaes e polida salva de prata.
Momentos depois que eu chegára, apeou á porta do
meu sympathico sacerdote um cavalleiro, ainda moço, muito
pallido e magro, com chapéo hespanhol, faxa vermelha, e
botas d'agua.
Era um estudante de Coimbra, que voltava doente
[12] para
sua casa, e costumava pernoitar em Alpedrinha, com aquella familia.
A primeira pergunta do academico foi esta:
―Como está a snr.
a D. Amelia?
―O mesmo...―respondeu padre Joaquim.
―E seu mano? Tem vindo a casa?
―Não senhor: desde que foi delegado para * * *, ha tres
mezes, não voltou....
Eu estava ancioso por conhecer a snr.
a D.
Amelia, porque
até ao momento em que o estudante chegou, suppunha eu que
toda a familia do parocho se limitaria a alguma ama, e alguns
pequenitos, que, de ordinario, são afilhados do padre.
Depois das perguntas do meu illustre companheiro de hospedagem, fiquei
sabendo que n'aquella casa existia uma snr.
a D.
Amelia, e um senhor
delegado de * * *.
Padre Joaquim contou ao academico as minhas aventuras de
caçador; disse-lhe que me tinha achado muito fino
(referia-se naturalmente á magresa), e fez a apologia dos
meus olhos, que, naturalmente, revelavam uma extraordinaria esperteza,
espiritualisados pelo espirito de vinho, que o sacerdote me injectou
nas veias marasmadas pelo frio.
Conversei com o academico. Perguntei-lhe muitas cousas de Coimbra:
quantos canellões soffria um calouro; o calculo aproximado
dos puxões de orelhas; a solemnidade indecente de certo vaso
na cabeça.... &c.
&c.
O academico respondia-me com muito agrado, e offerecia-se para meu
protector em Coimbra, no anno seguinte, que devia ser o da minha
partida.
VI.
―Snr. Valladares―disse o padre ao estudante―minha
[13]cunhada ergueu-se
da cama para vir comprimental-o...
―É uma grande consideração, que eu
lhe não mereço; mas a delicadeza da snr.
a
D.
Amelia é
sempre um severo preceito que ella se impõe.
Fallou bem.
N'isto, entrou uma senhora, com um ar de tanta nobreza, que me pareceu
uma cousa nova. Eu não conhecia assim nenhuma. Era alta,
muito magra no rosto, mas muito bella nos olhos, nos labios, nos
cabellos, em tudo se via tanta formosura, tanto donaire, um senhoril
tão estreme do vulgo, que eu, creança e poeta,
senti-me tão acanhado como o mais boçal dos
pastores de
cabras d'aquella freguezia.
―Como passou, snr. Valladares?―perguntou ella com voz tremula,
tossindo a cada palavra, e aconchegando da face a golla de veludo da
sua capa.
―Sempre doente, minha senhora... Por não poder mais,
recolho-me a casa...
―Eu bem lhe disse que não fosse... v. s.
a
teimou, agora
já sabe que os conselhos d'uma mulher não
são sempre pieguices...
―E os de v. exc.
a nunca poderão
sêl-o... E a
snr.
a D. Amelia como está?
―D'este modo que vê... Tossindo sempre, sempre mal, sem
descanço d'este lado, que me parece que já
não vive, se não para matar o resto
de vida que tenho...
D. Amelia indicava o coração.
―Porque não dá um passeio até
Lisboa?―tornou o academico.
―Isso lhe tenho eu dito todos os dias―atalhou o padre.
―De que me serve Lisboa?
―São ares patrios, minha senhora. Talvez o contacto do
coração com as suas amigas de collegio...
[14] ―Eu já
não tenho coração
para contacto com amigas nem inimigas, snr. Valladares...
―O que v. exc.
a tem é uma
ardentissima
imaginação, alma de poeta, que só tem
a sensibilidade do que é triste, e não sabe tirar
recursos da
esperança...
―Esperança!...―murmurou ella com um triste sorriso, e
voltando-se para mim, perguntou-me:
―Já sei que este senhor esteve em risco de passar uma noite
divertida com os lobos...
―É verdade, minha senhora; mas a Providencia encaminhou-me
ao paraizo, depois de me ter mostrado o inferno.
―Ora ahi tem uma resposta d'um moço, que seria pena
comerem-no os lobos!...―disse o padre, desafiando um gracioso sorriso
de Amelia.
―Ha-de dizer ao seu parente medico que me salve da sepultura assim
como nós esta noite o salvaremos de ser victima dos
lobos―disse-me ella, apertando affectuosamente a mão de
Valladares, em despedida, porque a tosse exasperava-se cada vez mais.
Esta rapida apparição impressionou-me muito.
Queria fazer mil perguntas; mas eu não tinha a quem. O padre
e o estudante fallaram em assumptos, que me não interessavam
nada. O que eu queria era a vida, a historia, os soffrimentos, a poesia
d'aquella mulher. Eu tinha lido, dias antes, não sei que
romance, onde vira uma mulher assim...
Appareceu um taboleiro com a cêa. O abbade fez o prato de D.
Amelia. Era uma aza de gallinha, que elle mesmo lhe serviu.
Valladares tambem comeu do pucaro da doente. Eu, com o abbade, entramos
corajosamente n'um coelho guisado, cuja retaguarda cortamos com um
excellente caldo verde, e lourejantes castanhas assadas com manteiga.
No fim, demos graças a Deus.
O padre, segundo o seu costume, foi sentar-se á
[15]cabeceira de sua
cunhada. Eu e Valladares entramos n'um quarto commum.
VII.
O academico tinha uma physionomia franca e insinuante. Conversava
comigo sem desdenhosa superioridade. Familiarisamo-nos depressa, como
dous futuros companheiros de casa em Coimbra.
Eu fui um grande fallador, n'aquella idade, em que pensava menos. O meu
recente amigo sympathisou com a minha garrula eloquencia, e dava
signaes de desenfado, quando naturalmente devêra querer
dormir, depois de uma fatigante jornada, em dia de neve.
Eu não era rapaz que, por delicadeza, calasse a minha
curiosidade a respeito de D. Amelia.
―O senhor faz-me o favor de me dizer uma cousa?―disse eu.
―Que é? quantas horas são?... são
10... quer dormir?
―Não, senhor: queria saber quem é esta snr.
a
D.
Amelia?
―É cunhada do padre, e casada com um sujeito, delegado em
* * *.
―Isso já eu sabia... pouco mais ou menos.
―Então sabe tanto como eu...
―Mas é d'aqui d'esta aldêa esta senhora? Creio
que ouvi dizer que era de Lisboa.
―É verdade... nasceu em Lisboa...
―E como veio parar aqui n'este matagal? Naturalmente perdeu-se, como
eu, na serra, por causa da neve, e veio cá bater, e
cá ficou! Pois eu dou-lhe a
minha palavra de honra, que apenas vir luzir o buraco, retiro-me sem
mais ceremonias d'este delicioso covil de cabras.
[16]
O meu amigo ria-se. Estava disposto a achar-me graça, e o
leitor póde tambem rir-se, se lhe
aprouver.
E acrescentou ao sorriso:
―Parece-lhe impossivel que a tal senhora viesse de Lisboa para aqui
sem ser impellida por um acaso?
―De certo... Já não admira que ella tenha tosse
de tisica... O que me espanta é ella viver, se cá
está desde hontem!... Quando veio ella?
―Ha dous annos.
―Então é eterna... ou santa. Hei-de dizer que
encontrei esta martyr a uma minha tia, que é capaz de jurar
que a viu fazer milagres...
―O menino é sarcastico! Se o não visse
tão inclinado a rir-se de cousas serias, contava-lhe uma
historia triste...
―E eu gosto muito de historias tristes... Verá que me
não rio, quando me dizem alguma cousa que me toque o
sentimento. A minha familia chama-me poeta; os visinhos chamam-me tolo;
não sei bem o que sou; mas o que não sou
é insensivel...
Vê... já não tenho vontade de
gracejar... Conte-me agora a historia, que eu prometto contar-lhe outra
que me fez chorar, porque é uma passagem tão
infeliz, que, se eu
fizesse novellas, escrevia uma.
―Talvez as escreva no futuro...
―Eu?... Deixe-se d'isso... O meu mestre de logica diz que eu sou um
alarve, e o de rhetoria já me mandou ser aprendiz de
alfaiate... Não tenho habilidade nenhuma. O meu gosto
é lêr os sonetos do abbade de Jazente, e as
quintilhas do Nicolau Tolentino. Não sei mais nada, nem
quero saber... Vamos á historia, sim?
―Então aproxime-se de mim, que eu quero fallar baixo. Mas,
antes de mais nada, promette não contar a ninguem o que vou
dizer-lhe?
―Pois é segredo!
[17] ―É.
―Prometto...
―Pois ahi vai.
VIII.
―Esta senhora viveu em Lisboa até aos dezeseis annos. Hoje
o mais que póde ter são vinte e dous.
―Só?! Eu calculava trinta e tantos
bons, como diz minha tia, quando
quer fazer todas as pessoas mais velhas que ella.
―Pois deixemos lá sua tia, que deve ser, pouco mais ou
menos, como todas as tias... Vamos com a nossa historia, e depressa,
senão adormeço, e o
meu curioso amigo perde a occasião de saber quem
é a
snr.
a D. Amelia...
―Isso de modo nenhum―atalhei eu com sobresalto―Prometto
não interromper a historia.
―Pois bem. O pai d'esta senhora morreu em Lisboa, e o conselho de
familia deliberou que a orphã viesse para a provincia, onde
tinha tios, e o seu patrimonio em quintas.
Quando appareceu em * * *, os rapazes fizeram-lhe montaria, e
disputaram
a primazia no namoro. D. Amelia não aceitava, nem repellia a
côrte de nenhum.
Tinha o mesmo riso para todos, e fallava a todos com a mesma
delicadeza.
Havia alli um rapaz que não frequentava a sociedade de
Amelia, porque não frequentava sociedade nenhuma.
Fôra educado em Genova, viera de lá aos quinze
annos, vivera no Porto até aos vinte e cinco, e quando
recolheu á provincia, d'onde sahira de tres annos, com a sua
familia que emigrára em 1828, ninguem o conhecia, e elle
mesmo não queria conhecer ninguem.
[18]
Chamavam-lhe celebre, exquisito, excentrico, orgulhoso, impostor, e
não sei que muitas outras lisonjas do charco de certos
espiritos, que não podem sahir da pequena esphera de lama,
que a natureza lhes deu por homenagem.
D. Amelia viu este rapaz n'um cemiterio: leu um epitaphio que elle
mandára abrir na sepultura de seu pai que o
deixára em Genova no collegio, e viera morrer em 1836
á patria: comprimentou-o de passagem, respondendo a um
distincto cortejo do melancolico poeta; e parece que, desde esse
encontro, Amelia transfigurou-se para todos os homens, deu que pensar
á sua familia, queria todos os dias visitar o cemiterio, e
retirava quasi sempre mais triste, porque muito raras vezes encontrou
alli o invisivel extravagante da opinião publica.
―Como se chamava elle? Eu conheço alguns rapazes de * * *
que foram meus condiscipulos em logica.
―Não é nenhum dos seus condiscipulos.
Já lhe disse que este sujeito veio do Porto para a
provincia, com vinte e tantos annos pelo menos. O seu appellido
é Côrte-Real, conhece?
―Nada, não conheço; mas ouço fallar
todos os dias n'esse rapaz.
―Que ouve dizer?
―Que está em Lisboa, doudo, no hospital...
―O senhor afiança-me isso? Ha que tempo endoudeceu?
―Ha dous ou tres mezes...
―Quem lh'o disse?
―Um medico, meu parente, que o mandou conduzir para a enfermaria dos
doudos.
O academico fez-me signal de silencio, e mandou-me ouvir.
―Não ouve?―disse elle.
―Ouço... é alguem que soluça...
―É ella...
[19] ―D. Amelia?
―Sim... Ouviu a nossa conversa... Tem ouvidos de tisica...
―É admiravel!... Pois o quarto d'ella não
é longe d'este?
―Passam-se tres quartos, mas os repartimentos são de
tabique, e eu não me lembrei de tal...
Calemo-nos...
―E a historia?... Falle mais baixo, que ella não
ouvirá mais nada...
―Agora, é impossivel... Aquelles soluços
transtornaram-me a cabeça... Deite-se, e
ámanhã
fallaremos antes de nos despedirmos...
IX.
Á cabeceira do meu leito, estava um volume das
Viagens de Cyro, e o quinto volume
d'uma
Miscellanea curiosa e
proveitosa, onde encontrei uma longa poesia
a
D. Ignez de Castro, que me fez
dormir até ás 8 horas da manhã.
O meu companheiro, quando abri os olhos, estava sentado na cama, e
escrevendo nas paginas d'uma carteira.
―O senhor está a fazer versos?―perguntei eu.
―Adevinhou.
―Faz favor de recitar, se não é segredo!
―Recito: olhe lá se entende:
Eras um anjo? Se o eras
Que torvo facho do inferno
Te queimou as azas? Diz:
Porque, tão cedo, infeliz
Cahes no
abysmo eterno!... eterno!
[20] ―Entendeu?
―Não, senhor.
―Veja se entende agora:
Eras pura, quando lagrimas
Tu me déste,
e me pediste...
Tu choraste aqui, choravas...
Mas porque? prophetisavas
Este abysmo em que cahiste?
―Entendeu?
―Nada... Ora diga-me os versos tem alguma cousa com a historia que
ficou suspensa?
―Não, senhor; pertencem a outra, que nasceu aqui n'esta
casa, e que é toda minha...
―Esta casa parece-me uma casa de novella... Estou a vêr se
aqui arranjo tambem alguma historia para contar a minha tia, que
está resando o quadragesimo responso a Santo Antonio por
minha causa, se é que
já me não resou por alma... Então o
senhor
não conta ao menos a primeira historia completa?
―Hei-de contar.
―Quando? Eu vou-me embora logo.
―Não vai. Já aqui esteve o padre, e disse que
não sahiriamos d'aqui hoje, porque augmentou de noite a
neve.
―Deixal-a; mas a minha familia, se eu não
appareço, nem dou parte de mim, julga-me morto, e
é capaz de me fazer officio de corpo ausente.
―Não se assuste, que o padre hontem á noite
mesmo fez partir para a sua aldêa um criado com a certeza de
que o senhor ficava vivo, e mais o seu furão.
―A proposito, sabe se já dariam de almoçar ao
meu furão.
―É natural que sim... Ahi vem o snr. abbade;
[21]perguntemos-lhe...
Snr. padre Joaquim, pergunta alli o nosso amigo se o
furão ja almoçou.
―Comeu quatro ovos, e está agora brincando com minha
cunhada, que é muito amiga de bichos.
―E como passou ella?―perguntou Valladares.
―Penso que melhor... Ergueu-se muito cedo: a creada disse que a vira
chorar toda a noite; mas agora fui, com grande espanto meu, encontral-a
com o furão no regaço, a sorrir-se como quem
é muito
creança e muito feliz... Sabe o senhor que...
Não sei bem o que o padre disse ao ouvido do estudante.
Desconfio, pela resposta, que o resto do segredo era o receio de que
ella endoudecesse.
Tudo isto, apurava-me o desejo de saber o que era a demencia de
Côrte-Real, e a tisica de Amelia.
X.
Almoçamos.
D. Amelia esteve comnosco alguns minutos, ouvindo não sei
que palavras a meia voz, do meu amigo, inintelligiveis para mim,
supposto que ahi se fallasse duas ou tres vezes n'uma D. Miquelina.
Tudo mysterios!
O padre foi dizer missa. D. Amelia foi com elle. Fiquei com Valladares,
tremendo de frio, ao pé d'uma bacia de brazas. O attencioso
levita teve a delicadeza de nos não convidar a participarmos
da sua missa, que n'aquelle dia, com tal frio, faria hereges espiritos
devotos.
―Ahi vai agora a continuação da historia―disse
o academico, engulindo o fumo de quatro cigarros successivos―A familia
d'esta senhora é muito realista, muito fanatica, arde em
odio contra os impios, que são todos, menos os sectarios de
D. Miguel, e alguns, senão todos, de D.
Sebastião. A familia de Côrte-Real
é
[22]
ultra-liberal, odeia os realistas com aquelle odio saturado na
emigração, e não admitte honra,
intelligencia, nem merecimento em homem que não fosse capaz
de cortar as orelhas a um miguelista, se elle estiver por isso.
Já vê que as duas familias detestam-se. De parte a
parte no momento em que as relações de Amelia com
Côrte-Real fossem percebidas, imagine o meu amigo que
não hiria!
―Então elles namoravam-se?
―Pois eu não lhe disse já que sim?
―Não, senhor: disse-me que Amelia passeava repetidas vezes
no cemiterio para vêl-o, mas que
não o via muitas vezes. Eu queria saber como se
encontraram... porque... desejo saber como é que a gente
póde sahir d'um encontro d'esses!... Não ha muito
que me vi entalado com um d'esses encontros... Eu tinha o recado na
ponta da lingua, e, quando vi a mocetona, que não era cousa
de atarantar um estudante de logica, pegou-se-me a lingua ao
céo da bocca, como diz
não sei que poeta...
vox faucibus
hoesit... Que lhe disse elle quando a viu?
―Isso é que eu não sei, porque não
ouvi. O que sei é que se fallavam por cartas, e entretiveram
assim relações seis mezes. Por fim, descobre-se o
namoro. Côrte-Real fallava da rua para a janella com Amelia:
um tio d'ella é avisado; espera-o no pateo, com a porta
fechada, e, quando elle principia a dizer bellas cousas, o tal bruto
abre a porta, e descarrega-lhe quatro bordoadas, que o pozeram
fóra do combate. No dia seguinte, mandou-lhe a casa a capa,
o chapéo, e uma clavina, que fôra tres vezes
batida á queima roupa do tal varredor de feiras.
―E depois?
―D. Amelia, duas horas depois, foi mandada entrar n'uma liteira, e
conduzida a casa d'este padre.
―Para que?
[23] ―Para ninguem
saber o seu destino, em quanto vinha de Lisboa, onde
ella tinha o conselho de familia, uma ordem para ser recolhida a um
convento.
―E Côrte-Real que fez?
―Curou as feridas da cabeça, e indagou o destino de Amelia.
Como o não soube, cahiu n'uma melancolia profunda, teve
accessos de loucura, e, pelo que o senhor me disse, está
hoje no hospital de Rilhafolles.
―E Amelia casou-se?
―Pois no casamento é que está o interessante da
historia.
Quinze dias depois da sua vinda para aqui, chegou de Coimbra o
irmão do padre. Parece que sentiu por Amelia o que era muito
natural que sentisse. Amou-a, mas não ousou declarar-se,
porque sabia os precedentes, que a trouxeram a esta casa. Ella, por si,
tractava-o com a fria delicadeza da indifferença,
até ao
momento, em que recebeu de uma sua tia a noticia de que viera ordem do
conselho de familia para ser conduzida a Lisboa, e lá
recolhida em um convento.
Lida a carta, Amelia offereceu-se como esposa do bacharel. O imprudente
sem mais nem menos, aceitou a offerta. Alcançou do arcebispo
dispensa de banhos e consentimento do tutor: o irmão, sem
consultar a philosophia, a religião, e a consciencia,
casou-os. Na tarde do dia das bodas, chegou a liteira que devia levar a
orphã a Lisboa. Amelia apresentou-se a seu tio com um
desdenhoso sorriso, e disse: «Não tenho duvida
nenhuma em hir para Lisboa, e para um convento, mas é
necessario que meu marido vá comigo.»
―Seu marido!―exclamou o tio estupefacto.
[24]
XII.
―Dias depois, esta victima dos seus caprichos, cahiu doente. O medico
capitulou-lhe a enfermidade de tisica no primeiro grau. O marido
arrependeu-se muito cedo. Ella não se arrependeu, porque
sabia que dava um passo que devia matal-a. E, com effeito,
está alli... está morta...
...Ahi vem ella e o padre... Fallemos d'outra cousa...
CONCLUSÃO.
Um anno depois, em Coimbra, dizia-me Valladares:
―Olha que tive carta do abbade de Alpedrinha. D. Amelia morreu, e as
suas ultimas palavras ao marido foram estas:
morro
por capricho.
UMA PAIXÃO BEM
EMPREGADA.
UMA PAIXÃO BEM EMPREGADA.
I.
O meu amigo Valladares, em uma tarde formosa, passeando comigo no
Penedo da
Saudade, sentou-se, accendeu um cigarro com
perfeição academica,
abriu a carteira, e recitou-me os versos, que, um anno antes, me
recitára em Alpedrinha.
―Lembras-te?―disse elle.
―Perfeitamente. Prometteste contar-me então uma historia.
―Vou cumprir a promessa.
―E disseste que o teu conto prendia muito com aquella casa.
―Disse, e vaes vêr porque. Olha que eu não vou
fazer estilo. Prepara-te para uma narração
simples, e clara. Não pertenço á
escóla dos nossos lapidarios de palavras, que nos dizem em
estilo de Corneille as scenas comicas de Moliere. A minha historia, se
tal nome lhe cabe, é uma tragedia com muitas scenas de
farça. Ainda que me não vejas rir, tens a
liberdade da gargalhada. Ahi vai:
[28]
Em 1843 fui á feira do Santo Antonio a Villa-Real. Encontrei
ahi uma familia que mora uma legua distante de minha casa. Compunha-se
d'uma senhora idosa, que era mãi d'um cavalheiro, e este
cavalheiro era pai d'uma bonita mulher, que teria dezoito annos. Gostei
d'ella, ou antes confirmei a sympathia que ella me tinha presa desde
que a vi, pela primeira vez, dous annos antes, n'umas ferias grandes.
Não lhe disse quasi nada. Eu era rapaz de dezoito annos, e,
aos dezoito annos, um moço d'aldêa tem o
coração
acanhado, e córa facilmente, quando encontra os olhos d'uma
mulher, supposto que os veja constantemente em sonhos. A rapariga
chamava-se Miquelina; isto não faz ao caso; mas sempre te
digo que nunca suppuz poder pronunciar este nome sem lagrimas... O que
é o tempo!...
Combinamos partir juntos de Villa-Real. Não recordo na minha
vida um dia mais feliz do que o dia da nossa partida! A familiaridade
animava-me a dizer algumas palavras d'aquellas que nunca exprimem
senão a sombra do sentimento. Miquelina corava, mas nem por
isso sustinha as redeas do cavallo para esperar a avó e o
pai, que vinham alguns passos distantes.
Teriamos andado legua e meia, quando o macho em que vinha montada a
velha tomou susto d'um tiro, que se deu ao lado da estrada, recuou, e
deu em terra com a pobre senhora. Acudimos todos.
Encontramos-lhe uma fractura profunda na cabeça, e uma perna
quebrada. Perguntamos se d'alli perto haveria uma casa onde nos
recolhessemos. Encaminharam-nos a Alpedrinha, e a casa era a do padre
onde me encontraste.
O acolhimento que nos deram foi excellente. Encontrei ahi o
irmão do abbade que era meu contemporaneo em Coimbra. Os
facultativos disseram que era impossivel continuar jornada, e ahi
ficamos vinte dias.
N'este espaço de tempo, sonhei a felicidade, por
[29]que
hoje sei que não existe a realidade d'esses sonhos. Fui
muito feliz, senti-me poeta, idealisei á sombra de Miquelina
cousas e pessoas que nunca tiveram senão materia vilissima
para as aspirações do poeta. Em
fim, meu caro, cheguei a recuperar a fé perdida nas cousas
da Providencia, porque me parecia impossivel tanta felicidade sem
consentimento especial da Providencia.
Disse a Miquelina tudo que humanamente póde dizer-se.
Traduzi-lhe em palavras os extasis, que as não tinham.
Interessei-a na comprehensão da minha alma, e arranquei-lhe
uma palavra, que mil vezes lhe morrera nos labios, como queimada pelo
ardor do pejo. Quando ella me disse «amo-o» se
não endoudeci
de contentamento, é porque a
disposição do meu cerebro
é invulneravel aos golpes da demencia. Hoje rio-me d'isto, e
tu, se te não ris, agouro-te que não
poderás dizer o mesmo a respeito da tua cabeça,
passados alguns annos.
―Porque?
―Porque das duas uma: ou doudo, ou cynico. Tomar a serio a sociedade
é endoudecer. Viver com ella em boa paz é
escarnecel-a. Ou doudo ou cynico.
Não enlouqueci; mas depravei-me. Este escarneo, que
indistinctamente voto a tudo, é a
negação da piedade
para todas as dôres nobres, e a do odio para todos os
prazeres infames. Não me espanta nada. Aperto a
mão do mais corrupto, e a do mais virtuoso com a mesma
graça. Recebo todos os desaforos como factos consumados.
Não dou dez reis pela virtude dos missionarios do
Japão, nem daria cinco de volta se elles me trocassem a sua
fé pela minha illustrada impiedade. Eu e elles somos bons,
ou maus: como quizerem. Eu acho que todos somos excellentes filhos de
Deus, e Deus, que nos conserva, lá sabe a razão
porque o faz...
―Tu não sentes o que dizes...
―Estás a brincar comigo!... Pois não sinto o que
digo?! Tu não vês o que está dentro
d'este homem,
[30]nem
pódes ainda ajustar á face do cadaver a
mascara que o retrate...
―Mas é possivel ser-se o que tu és?!
―Se é!... Se me não tivesses interrompido,
já sabias a razão porque o sou... Nada de
interrupções... Se começo a divagar,
digo diabruras, perco-me em abstracções, que te
hão-de parecer
pretenciosas, e lá vai a historia...
―Palavra, que não te interrompo...
―Quando sahimos de Alpedrinha, as minhas intimidades com Miquelina
eram já suspeitas ao pai, que não se entremettia
paternalmente no negocio. Sabes que eu tenho uma soffrivel casa, e
Miquelina não era muito mais rica. Era possivel, e
até vantajoso um casamento. Murmurou-se n'este assumpto em
casa do padre, e eu fui consultado por elle.
Isto arrefeceu-me um pouco. Não queria que me viessem
tão cedo direitos ao materialismo. A pequena,
porém, não tinha culpa. Eram cousas da velha, que
quebrára a perna, mas ficára com a alma inteira
para seguir o recto caminho, a logica implacavel do namoro, banhos,
casamento, filhos, aborrecimento, barrete de dormir, catarrho,
cangalhas no nariz, e rheumatismo.
Eu amava verdadeiramente Miquelina. Instado pelas perguntas do
officioso abbade, respondi que me casaria um anno depois, porque
não queria dar tal passo sem o consentimento d'um tio, que
fôra receber ao Brazil uma herança, que viria
augmentar consideravelmente a minha casa.
Ficamos n'isto.
Tres vezes por semana, durante os dous mezes de ferias, visitei
Miquelina, e revalidei os meus votos, porque esta paixão
não era das que fogem quanto mais
faceis se aproximam. A minha Beatriz parecia-me boa de
coração, ajuizada de cabeça, fina de
espirito, e em
[31]quanto
á cara, ao corpo, e ao donaire... dir-te-hei que as
seducções eram tantas, e tão a
proposito que nunca tive occasião de me sentir de uma
illusão
desvanecida. Vim para Coimbra. A nossa despedida foi pathetica.
Beijei-lhe a testa pela primeira vez. Comprimi-a ao
coração com o enthusiasmo do primeiro
abraço. Recebi da sua mão tremula, como prenda, o
lenço com que enxugára as lagrimas, e retirei-me
com o
coração partido, mas vaidoso de
esperanças, que a saudade me dourava no meu lindo futuro.
Logo que aqui cheguei, escrevi-lhe. Imagina o que eu lhe diria! Eram
vinte folhas de papel, escriptas em todas as estalagens onde pernoitei,
e fechadas com uma especie de hymno de lagrimas, em que se me foi tudo
o que a minha alma podia dar de superior áquillo que todos
os homens sabem dizer n'uma carta de namoro.
Respondeu-me. A sua carta era simples, mas os toques eram
verdadeiros... pareciam-no... via-se alli a mulher que escreve a
primeira carta, o coração
timido que balbucia os sons d'uma selvagem innocencia, que é
a felicidade do homem que primeiro os tira do
coração d'uma virgem.
Tres mezes assim. Tres mezes d'uma vida phantastica. Ancias insaciaveis
das suas cartas. Tristezas dôces quando me faltavam n'um
correio. Zangas sem odio, se o coração de
tão longe a criminava
de ingrata. Tres mezes assim... e no fim de tres mezes... adevinha o
que aconteceu...
―Eu sei cá... morreu?
―Não.
―Veio cá ter comtigo?
―Não.
―Abandonou-te?
―Abandonou.
―Isso é incrivel!
[32] ―Acredita. Agora
adevinha por quem eu fui preferido.
―Eu só te conheço a ti na tua terra...
―Imaginas que algum dandy a requestou de modo que a fragil creatura
succumbiu ás
seducções invenciveis?
―Só assim.
―Ora adeus! Tu não adevinhas, porque não sabes
nada de mulheres...
―Foi o pai que a forçou a casar-se com algum brasileiro
muito rico?...
―Tambem não...
―Diz lá isso, que estou impaciente...
―Pois lá vai: a minha querida Miquelina, o meu anjo que
corava se o meu halito lhe roçava nas faces, a minha
pudibunda Virginia que recebeu o meu primeiro beijo a tremer, a minha
mimosa sensitiva que parecia resequir-se á mingoa dos meus
carinhos... sempre queres que te diga?
―Pois então?
―A minha promettida esposa... fugiu com um... digo?
―Acaba, homem!
―Com um lacaio da casa!... Ólá! não
fiques assim atordoado! Rite, como eu...
―Isto é inconcebivel!... E depois?
―Depois... que queres que eu te diga?
―Que fim teve essa mulher?
―Foi agarrada por ordem do pai, e o lacaio morreu arcabusado
summariamente para não dar que fazer á
justiça.
―E ella... vive?
―Creio que sim.
―Na companhia da familia?
―Não... Tu não me disseste que viras no Porto...
Fiquemos aqui...
[33] ―Isso de modo
nenhum... Has-de concluir...
―Pois sim... que importa!... Não me disseste que viste no
Porto uma meretriz que revelava uma boa educação,
e não queria dizer d'onde
era, nem como viera áquella vida?...
―Disse... mas não se chamava Miquelina...
―Isso não faz nada ao caso... Rosa, ou Miquelina,
é a mesma... é a minha promettida esposa,
é o anjo dos meus primeiros amores, é a pomba
alvissima da innocencia que encontrei em Alpedrinha... É
ella... Basta... É noite... Vou fazer monte, e depois, se te
quizeres embriagar comigo, vamos ao
Paço do
Conde, e beberemos á saude da exc.
ma
Miquelina Alpoim e Malafaia, victima d'uma paixão pelo
infeliz lacaio, que desceu ao tumulo... das illustres victimas.
Já sabes como se faz um cynico? A esses parvos, que por ahi
andam a gaguejar um scepticismo que cheira a cueiros, dá-lhe
com uma palmatoria.
E não tornou a fallar-me n'esta mulher.
DE ABYSMO EM ABYSMO.
Eu é que não podia satisfazer a minha curiosidade
com a descosida revelação de Valladares.
Muitas vezes acalorei a questão do cynismo, applicando-a a
Miquelina; mas este nome enfurecia-o de tal modo, que as nossas
relações estiveram a
romper-se, e reataram-se com a condição de eu
nunca lhe tocar
ligeiramente em semelhante assumpto.
Sujeitei-me; mas, na primeira occasião prosperada pelo
acaso, alcancei esclarecimentos, que illucidam a
degradação da pobre mulher.
Em 1848, Miquelina vivia ainda no Porto. A sua vida já a
sabem. Como veio ella tão abaixo?
Foi assim:
Alguns dias depois da fuga vergonhosa com o defunto lacaio, Miquelina
foi conduzida a Lisboa. A avó, que pôde sobreviver
ao golpe, quiz salvar a neta da colera do filho. Este
ausentára-se para Chaves, no momento em que a filha
entrára em casa. De lá, escrevendo
á mãi, dizia-lhe que désse
á infame algum destino, porque, em quanto a sua
presença envergonhasse aquella casa, nunca elle tornaria
alli.
[36]
D'aquella familia estava em Lisboa um magistrado, tio materno de
Miquelina. Foi este o encarregado de recebêl-a durante alguns
mezes na sua casa.
Não se passaram muitos dias, sem que Miquelina revelasse os
seus instinctos. Namorava escandalosamente um homem, sem nome, que
frequentava as janellas d'um alfaiate, que morava em frente.
O magistrado suspeitou, e prohibiu-lhe o uso das janellas. O homem,
que, por força, havia de ter um nome, e poderia muito bem
chamar-se José Maria,
não era tão escasso de meios que não
comprasse um
creado da casa. O creado era o intermedio da correspondencia, menos da
ultima carta, surprehendida pelo magistrado. Esta carta authorisava
José Maria a empregar a
força judicial para tirar de casa Miquelina. N'esse mesmo
dia, a perigosa «donzella» foi mudada para casa de
um
general, cunhado de seu tio.
O general era solteiro, homem de cincoenta e tantos annos bem
conservados, admirador das boas mulheres, e vigoroso ainda para
não desmentir o culto, quando se lhe pedissem provas
praticas das theorias um pouco irrisorias na sua idade.
Tinha comsigo duas irmãs, mais novas, que,
mutatis mutandis, professavam as
idêas do
irmão.
Dito isto, vê-se que a casa, onde Miquelina foi reclusa, era
um viveiro de moral.
Foi bem recebida, e até muito bem aconselhada. As
irmãs do general fallavam muito da virtude, e da honra. Quem
as não conhecesse, acrescentaria duas martyres ineditas
ás onze mil virgens conhecidas, de que Byron duvidou, e eu
não me sinto muito propenso a acreditar, nem o meu amigo
Valladares.
O José Maria não sei que fim levou. Seria algum
d'esses quatro que em 1845 se precipitaram dos «Arcos das
Aguas-livres!?» Se foi, não andou bem, porque fez
as cousas de modo que ninguem falla d'elle. Os
[37]Werthers
sabem escolher as
occasiões, senão... é melhor
deixarem-se morrer de tedio, que é a morte que me espera a
mim, e a ti, leitor, no fim d'este livro, se não morreres no
meio.
O general namorou Miquelina. Namorando-a, seduziu-a. Seduzindo-a,
abriu-lhe a outra meia porta da corrupção.
Porque foi assim que as cousas se passaram:
Miquelina affeiçoou-se ao general, como se
affeiçoára a Valladares, ao lacaio, e ao
José Maria. Trazia o cunho da
perdição! Era uma d'estas
desgraçadas que a gente vê cahir, cahir, cahir a
despeito de todos os estorvos! Que Deus, ou que demonio imprime o
movimento n'estas machinas, sem coração nem
cabeça? Não se sabe! A verdade é que
eu sinto vontade de
chorar essas victimas cegas d'um destino barbaro, e tenho furias de
blasphemo quando me dizem que Deus se entremette nas cousas d'este
mundo... Vamos adiante, senão atiro a penna fóra,
e rasgo o papel...
Ora já vedes que o general era um devasso, e a pobre menina
deve merecer-vos uma pouca de compaixão, se eu vos
afianço que o amou, até ao ciume.
Disseram-lhe um dia que uma mulher de capote e lenço
entrára no quarto do general, que era ao
rez da rua. Miquelina estava doente de cama. Ergueu-se com febre,
vestiu-se precipitadamente, desceu as escadas cambaleando de fraqueza,
escutou á porta do traidor, e ouviu risadas, e palavras
obscenas.
Era noite, quando isto se passava.
As irmãs do general deram pela falta da hospeda, e desceram
a procurar o irmão. Miquelina, quando as sentiu, na
incerteza do que devia responder-lhes, fugiu. Fugindo, achou-se n'uma
rua que não conhecia, atravessou umas poucas, chegou a uma
praça onde encontrou umas mulheres esfarrapadas que a
tractaram por tu, e fugiu até deparar as escadas d'uma
igreja,
[38]onde um
soldado lhe veio dizer
palavras desconhecidas.
Fugiu ainda; mas a desgraça corria a par d'ella.
O frio da noite, e a febre do coração
aniquilaram-na. Sentou-se n'um portal, e desmaiou. Uma patrulha deu-lhe
com a ponta do pé, e a desgraçada
não respondeu. Tomaram-na como bebeda, e foram seu caminho.
Outra patrulha sacudiu-lhe a cabeça pelos cabellos.
Miquelina gemeu, abriu os olhos, e pediu erguendo as mãos
que a deixassem morrer. Estava perto do hospital de S. José.
Os soldados pediram soccorro ao proximo corpo da guarda, e mandaram-na
para lá.
No hospital, deram-lhe uma cama na enfermaria... não sabemos
que enfermaria; mas parece que o facultativo, na visita de
manhã, mandou retirar a mulher para um quarto particular,
pago á sua custa.
Que foi o que ella disse ao medico? Nada. Seria n'elle um arrojo de
caridade? Não. «Pois
não tens uma palavra boa para explicar uma
acção
nobre?» Nobilissimos leitores, deixai-me suppôr que
sois melhores pessoas que o medico. O que elle queria era uma creada,
com as feições de Miquelina. As despezas da cura,
além de ficarem encontradas no seu ordenado, seriam
pequenas. Uma febre benigna não resistiria ao tratamento de
oito dias.
Mas, ao setimo, Miquelina fugiu do hospital, favorecida pela
enfermeira, em cuja casa foi residir.
Desde esse dia, chamou-se Rosa.
―Que bonita rapariga é aquella que está em casa
da A * * * na calçada do Duque?
―É uma rapariga da provincia, pela pronuncia: chama-se
Rosa, mas não diz d'onde é, nem quem a trouxe
alli.
―Parece bem educada!
―Parece... e não é desbocada... Não
tem ainda
[39]a
consciencia do seu officio...
É necessario que perverta a linguagem, se quizer
celebrisar-se...
―De quem fallam vossês?―disse um terceiro, que, na
Praça do Rocio, veio associar-se ao grupo.
―D'aquella Rosa, que tu denominaste um
cherubim
precipitado na tua poesia.
―E é...
―É!... pois tu sabes a vida d'ella?
―Sei...
―Contas?
―Não...
Este terceiro era Valladares.
Teve elle coragem de vêl-a face a face?
Não teve: entrou alli com uma mascara na terça
feira de Entrudo.
Conheceu-o ella? Conheceu: porque no dia immediato desappareceu de
Lisboa.
É por isso que eu a vi no Porto em 1848...
O general é hoje conde. O menos torpe dos florões
da sua corôa é este... Foi
honrado e hospitaleiro!...
Valladares embriaga-se todos os dias, e não póde
assim viver muitos mais, porque já não sente no
paladar o acido do cognac.
E Miquelina?
Ha mais de seis annos que os estudantes da escóla
medico-cirurgica do Porto a retalharam fibra a fibra com os seus
escalpellos observadores.
Já vêdes que morreu no hospital, e foi em
pedaços atirada ao monturo da santa casa, depois de se
prestar, como cadaver, ás lucubrações
da
anatomia.
Podeis não acreditar tudo, ou parte d'isto... Olhai,
porém, que vos não dei aqui a verdade descarnada
como ella é no conto melindroso, que vos contei. Escondi-vos
metade.
AVENTURAS D'UM BOTICARIO
D'ALDÊA.
AVENTURAS D'UM BOTICARIO D'ALDÊA.
O snr. Manoel Pires, pharmaceutico approvado por outro pharmaceutico
que não foi approvado em parte nenhuma, estabeleceu a sua
botica n'uma aldêa do concelho de Carrazedo de Monte Negro. O
seu laboratorio chimico era um fogareiro e uma retorta de vidro,
emendada no collo por um cylindro de lata. A sua livraria era o
Medico lusitano, in folio; uma
Pharmacopeia, edição de 1700; e um pequeno volume
intitulado―
Segredos da natureza. Os
lotes, que eram seis, continham
garrafões de barro vidrado, atapulhados de hervas, que
tinham o merecimento chronologico de serem contemporaneas dos
garrafões. Afóra isto, não sei que
liquidos verdes e amarellos e azues variegavam um dos lotes, que, pelos
modos, continha os remedios heroicos, como oleo de amendoas
dôces, extracto d'amoras,
solimão, e oleo de mamona.
Com tantos elementos não admirava nada que o snr. Manoel
Pires fosse um sabio, não digo consumado,
[44]intelligencia
d'alguns cirurgiões
d'aquella redondeza.
Apenas estabelecido, este filho bastardo de Hypocrates honrou as cinzas
de seu pai fazendo a cura radical d'uma espinhela cahida na pessoa da
snr.
a Therezinha da Fonte. Este triumpho da
pharmacia sobre a
espinhela elevou o snr. Pires, não direi até
ás
columnas do
Zacuto, mas
até onde podiam leval-o as suas
aspirações de mestre Manoel Pires, como
respeitosamente lhe chamavam os seus numerosos freguezes.
Um segundo triumpho veio consolidar a reputação
adquirida no primeiro. A cura d'uma
ostrução, que
eu não sei o que é, e outra d'umas almorreimas
renitentes, não deixou nada a desejar por aquelles
arredores.
O snr. Manoel Pires soube tirar partido dos dotes que a Providencia lhe
cedêra. Relacionou-se com o parocho, com o regedor, com o
juiz de paz, e associou-se assim a um triumvirato, que decidia dos
destinos da freguezia. E o que elles não fizessem dez leguas
em redor ninguem o faria. Uma vez ouvi eu dizer ao tio Antonio da
Pôça que o sobredito juiz de paz se
correspondia com os
governos de
Lisboa.
Não posso abonar na sua integra a verdade do dito; mas
não será
sem fundamento a cousa, attendendo á importancia d'um juiz
de paz, quando se tracta de fazer um deputado.
O boticario era uma figura incapaz das honras anatomicas do romance.
Tinha a cara vermelha como um molho de beterrabas. Os rofegos das
bochechas cahiam-lhe em fórma de sanefas sobre os
collarinhos engommados com pós de batata.
As ventas eram dous vulcões que resfolegavam lavas de
simonte; e, não sei porque analogia estupenda, os dentes
acavallados simulavam uma Herculanum em miniatura, um
destroço de pilastras e ogivas e capiteis.
Como quer que fosse, o snr. Manoel Pires, aos quarenta annos, contava
quarenta conquistas das melhores
[45]raparigas
da freguezia. E, honra
lhe seja feita, não deu nunca pasto nos soalheiros, nem
consta que désse o menor escandalo. Lá como elle
fazia as cousas, e a felicidade dos seus triumphos, vai o leitor
ajuizar, se, em desconto dos seus peccados, quizer lêr uma
pagina altamente dramatica da biographia do nosso amigo.
Manoel Pires foi chamado um dia para curar uma dôr de
reins na pessoa da
tia Maria do Eiró. Não é necessario
dizer que a molestia obedeceu. Na mesma casa curou da
triz o tio João,
e por fim talhou o
bicho com
perfeição e felicidade á Mariquinhas,
rapariga d'uma vez, e cousa de pôr a cara a um lado a mais de
quatro
Antonys de sócos que lhe
andavam por lá a regougar
palavras de ternura.
O leitor não saberá o que é talhar o
bicho, e eu, realmente lhe digo, que não consultei o
diccionario das sciencias medicas. Fiquemos com a nossa ignorancia; e
eu faço sinceros votos porque nos não seja
preciso nunca talhar o bicho.
O caso é que o mestre Manoel Pires fallou ao
coração da rapariga, e fez-lhe vibrar todas as
cordas da viola de alma. Não sei se a moçoila viu
archanjos, serafins, e brizas, e raios de lua a pratear lagos d'anil. O
que eu sei é que a boa da rapariga achava que eram pouco os
olhos da cara para vêr o snr. Manoel Pires, que, diga-se a
verdade, não era sceptico, nem carpia tristezas por deshoras
ao som do murmurar saudoso do sujo regato que lhe passava á
porta.
Felizmente para elle, o dono da casa foi atacado d'um
estalecidio que lhe cahiu nos
bofes, segundo a opinião do boticario, e a cura demorada
d'esta
séria enfermidade proporcionou aos ternos amantes
occasiões ditosas de se trocarem palavrinhas de
pôrem o
coração em maré-cheia de poesia chula.
O dialogo, que mais concorreu para a solução
final, foi incontestavelmente o seguinte:
[46]
Elle.―O deus Cupido
fez dos olhos
de vm.
ce duas settas, que trespassaram o meu
coração.
Ella.―E as palavras
de vm.
ce,
como o outro que diz, são palavrinhas de mel a que
não
regeste meu sensivel peito.
Elle.―Eu bem queria
dizer a
vm.
ce as ternuras do meu
coração, e as
congeminencias do meu
pensamento. vm.
ce é mais bonita que
Venus, e Cupido
é o deus do amor que me derrete aos pés de
vm.
ce
Ella.―Pois se
vm.
ce me tem
amor para o bom fim o deve ter, que quem mal anda mal acaba, como o
outro que diz.
Elle.―O fim para que
eu fallei a
vm.
ce só eu o sei; e a troco d'esse
negocio faz mingoa
fallarmos outra vez.
Ella.―Quando
vm.
ce quizer, e
Deus o faça para bem, que lá eu querer-lhe isso
quero eu, assim Deus me ajude, e o bicho me torne se assim
não é. Uma rapariga que tem seus
cretos
não deve de perdel-os, e vm.
ce bem
entende as cousas que
é sabio e homem de cabeça, por muitos annos e
bês.
Elle.―E vm.
ce
que
os conte.
Ora pois; o que se ha-de fazer ao tarde faça-se ao cedo. Se
vm.
ce me der duas palavrinhas esta noite,
ouvirá da minha
bocca as affectiveis ternuras do meu
amante
coração, onde o deus Cupido cravou as mais duras
settas.
Ella.―Pois se
vm.
ce promette
de ter toda áquella de... sim, dizia eu, se vm.
ce
promette de ter toda áquella... sim... como diz
lá o ditado...
Elle.―Pelo deus
Cupido lhe
prometto a vm.
ce de lhe não
pôr a minha
mão, nem palavra
lhe direi que seja escontra a honra de vm.
ce.
A resistencia da rapariga era impossivel! Quando a eloquencia, assim
inspirada do intimo da alma, regorgita em jorros nos labios d'um
amante, é certo o triumpho. O amor é realmente o
galvanismo dos estupidos,
[47]d'esses
cadaveres moraes, que se
levantam do tumulo da intelligencia, e cantam lerias n'um
alamiré celeste!
Não nos recordamos de ter lido em romances francezes um
dialogo tão fertil d'imagens, tão vibrante de
affectos, tão digno, em fim, de ser copiado na carteira
d'estes obtusos amadores das salas, para os quaes não ha
assumpto, se lhes falharem as reminiscencias do borda d'agua.
Manoel Pires retirou-se com os acicates do seu deus Cupido cravados
n'alma, e foi, a toda a pressa, aviar duas tisanas, e quatro causticos
para a numerosa clinica que o esperava. Sem
exageração, este
pharmaceutico era uma pilula de Holloway viva! Resumia todas as
virtudes da revalenta arabica. Logo que o anjo da guarda,
[1]
não podesse salvar o enfermo das
aggressões mephiticas do espirito mau, Manoel Pires, anjo
sublime do charlatanismo, com dedo inspirado, apontava a enfermidade,
quer na bocca do
estamago, quer nos
bofes quer nos
miolos! Este homem despresava a
nomenclatura de Bichat, de Soares Franco, e de tantos outros creadores
de nomes barbaros que não fazem nada á saude do
cidadão. Honra lhe seja feita!
O nosso homem, aviadas as receitas, tirou do bolso uma cousa enorme de
cobre defumado; levantou as camadas de metal, que guardavam
não sei que pythonissa magica, e, por fim de contas, era um
relogio, cujo involucro suppria á farta uma bacia de
semicupios.
Eram 8 horas. Na aldêa é esta a hora dos amantes.
Manoel Pires enfiou as suas meias de lã até
á cintura, calçou os sapatos confidentes de mil
emprezas semelhantes, dobrou galhardamente o seu pau de carvalho
ferrado de amarello, e partiu.
Ás 8 e um quarto, estava Manoel Pires no quinteiro da
Mariquinhas, esperando-a, com a anciedade propria da sua
organisação nervosa. Maus fados
quizeram
[48]que
n'aquella
noite, e a taes horas, andasse fóra de casa o tio
João do Eiró. A rapariga entendeu que
devia esconder em casa o seu boticario, em quanto o pai não
recolhesse. Quiz primeiro sumil-o na córte das vaccas, mas
lembrou-se que o pai, antes de deitar-se, costumava hir afagar a sua
vacca castanha, pela qual na feira dos 8 rejeitára sete
moedas e um quarto! Metteu-o, depois, na loja da egua, mas a bestinha,
egoista e ciumosa da manjadoura, não comprehendeu que o snr.
Manoel Pires era um racional, e jogou-lhe uma parelha de couces, que
por um tris o não remetteu á
galeria posthuma dos pharmaceuticos illustres. Introduziu-o no curral
dos carneiros, mas a entrada do infeliz amante foi recebida com uma
escaramuça de marradas, como se um lobo cerval os
surprehendesse. Ultimamente, Mariquinhas, melhor avisada, levou o seu
paciente amante para a cozinha, levantou um
alçapão,
fêl-o descer uma escada, e, quando descia mansamente o fatal
alçapão, entrava o pai.
―Que fazes tu ahi, rapariga?―bradou elle.
Mariquinhas atrapalhou-se, e coçou a cabeça com
ambas as mãos.
Deve saber-se que o tio João desconfiava que a filha, quando
podia, lhe roubava das caixas o seu sacco de milho, que vendia para
comprar, á surrelfa, o seu cordãosinho de ouro.
Na loja, onde o boticario desceu, estavam as caixas do milho, e
não ha nada mais natural que a
irritação do velho, quando apanhou a rapariga em
flagrante delicto.
―Onde está a chave d'este alçapão,
rapariga? interpellou o tio João no mesmo
diapasão.
―A chave tem-na vm.
ce
O homem entrou no seu quarto, proximo da cozinha, e veio com a chave,
resmungando:
―Ora deixa-te estar, que não has-de cá tornar
po'lo vêso, minha cabra de não sei que diga!
[49]
Fechou o alçapão, e foi-se deitar.
A loja não tinha outra sahida. O boticario, por tanto,
achava-se n'uma posição falsa, diz o
leitor. Elle sabia lá o que eram
posições falsas! O
que elle fez primeiro foi apalpar. Encontrou uma caixa, e disse
lá comsigo: «no chão não me
deito eu.»
Continuou fleugmaticamente a fazer o seu juizo critico do local em que
se achava, e esbarrou com o nariz n'um presunto. Não
obstante, o snr. Manoel Pires tirou uma segunda conclusão:
«de fome não morro eu.» Mais adiante
esbarrou n'uma pipa, e teve a pachorra de lhe tocar com os
nós dos dedos para vêr se estava cheia. E o
caso é que estava! Manoel Pires era um onagro de felicidade!
«Deixa correr o mundo!...» disse elle, e estirou-se
francamente sobre a caixa á espera d'um somno regalado.
Passára-se uma hora, e o boticario, começando a
pensar seriamente na sua situação, teve momentos
de Napoleão na ilha de Santa Helena! Applicou o ouvido, e
nem um sussurro ouviu na cozinha. Sentiu frio, por que em Dezembro
não é facil aquecer o corpo no
fogão do amor. Deu alguns passos maquinaes, buscando uma
sahida qualquer, e encontrou um albardão.
«Valha-nos ao menos isto,» disse elle, e pegou do
albardão,
collocou-o convenientemente sobre si, e tornou-se a deitar.
Agora fallemos das colicas de Mariquinhas.
Como sabem, o pai deitou-se, e a rapariga recolheu-se ao seu quarto,
já que não posso dizer ao seu palheiro. Alma de
pedreneira, ferida pelo fuzil do amor, a moçoila
não atinava com a maneira de
pôr no olho da rua o seu querido pharmaceutico. Inspirada
pelo derradeiro esforço da sua dôr sublime,
lembrou-se de
pôr em execução um plano digno de
melhor sorte.
O pai resonava profundamente, Maria, pé ante pé,
entrou-lhe no quarto e sahiu com as calças, em cujo bolso
estava a chave. Judith não sahiu mais contente da tenda de
Holofernes!
[50]
Abriu o alçapão com subtileza, mas, no momento em
que o levantava, os gonzos rangeram, e o lavrador, que sonhava com um
sacco de milho que lhe emigrava das tulhas, saltou abaixo da cama,
gritando: «ó
rapariga!»
Não se diz, em linguagem portugueza, sem um conhecimento
profundo dos classicos, a
atrapalhação da cachôpa! O tio
João procurou as calças,
e não as achou, mas o caso urgia. Mesmo em camisa
(
proh
pudor!) saltou do quarto para a cozinha,
já quando a filha se esgueirava, escada abaixo, para o
quinteiro.
O tio João, contra todas as leis da decencia, foi atraz de
sua filha, e filou-a pelo gasnete:
―O que hias tu fazer á loja, Maria?
―Raios me parta (disse ella a chorar) se eu hia á caixa do
pão ou dos feijões!
―Então a que hias tu lá, diabo?
―Assim me Deus salve, em como lhe não tirei nem um graeiro
da caixa...
O tio João sentiu frio, e reconheceu que a brisa gelada da
noite lhe soprava nas pernas. Tornou para a cozinha, e foi direito ao
alçapão; mas... ai
d'elle!... o alçapão estava aberto, e o honrado
chefe de
familia resvalou com todo o peso da sua bestialidade até
á loja.
Manoel Pires soltou um urro de surpreza, que já
não foi ouvido pelo João do Eiró, que
desmaiára.
Maria, ainda no quinteiro em postura de Dido lastimosa, ouviu um ruido,
mas suppoz que era o cahir do alçapão. Atravessou
a cozinha,
amaldiçoando a sua sorte, e metteu-se no seu quarto a pensar
no desenlace d'aquella tragedia.
A tia Maria do Eiró, acordando, não achou na cama
o seu velho, e sentiu ciumes, pela primeira vez na sua vida. Chamou com
voz do intimo, tres vezes, o seu João, e como ninguem lhe
respondesse, a mulher começou a vestir-se, enfiando
responsos a Santo Antonio,
[51]de
mistura com
não sei quantas pragas, que ella rogava ao sumidouro das
suas sócas.
E a filha, cosida com as mantas, nem uma palavra!
A tia Maria accendeu a candêa, e foi direita á
cozinha, que era o ponto convergente de todas as
operações
d'aquelle drama. Viu o alçapão aberto, e
não tinha ainda reconcentrado em si todo o horror d'aquella
fatalidade, quando ouviu um gemido surdo que vinha lá
debaixo. A pobre mulher lembrou-se que estava roubada! Abre a janella e
grita desentoadamente «aqui d'el-rei
ladrões!» A visinhança alarmou-se, e
pouco depois os 60 fogos d'aquella aldêa agglomeravam-se no
quinteiro do tio João do Eiró.
Os mais destemidos rapazes da aldêa desceram á
loja, e encontraram o pobre velho com a cabeça aberta por
dous lados, e não sei quantas costellas desmanchadas. Reinou
o silencio do mysterio! Ninguem conjecturava a causa d'aquelle estranho
successo, quando um dos que farejavam os recantos da loja, descobre um
pé por debaixo d'um albardão! Levantou-se uma
gritaria infernal: até que o mais resoluto, afastando o
albardão, soltou um brado terrivel d'espanto:
―O senhor mestre Manoel Pires!
Hão-de ter visto nos dramas descabellados um encapotado, que
é necessariamente um rei, mostrar a cara, e petrificar uma
sucia de perseguidores, que o atacam. Pois tal foi o effeito que o
boticario produziu na chusma de valentões de fouce
roçadoura, que o
cercavam.
O tio João, tornando a si, foi direito ao boticario para
agradecer-lhe a promptidão com que viera cural-o. Mas a tia
Maria poz tudo em pratos límpos: contou tudo a seu marido,
que a
escutava com cara de parvo, segundo convinha em semelhante conflicto.
Mestre Manoel Pires hia ser apregoado ladrão, por
[52]
que a sua importancia, passado o
momento da surpreza, começava a soffrer uma grande baixa na
opinião
dos lavradores.
Mas o seu caracter repellia tamanha affronta! A hora solemne d'uma
honrosa satisfação estava
chegada. O pharmaceutico, superando com a sua voz o ruido da turba
conspirada, disse:
―Chamem cá a Mariquinhas que essa é que sabe do
negocio como elle é.
O Pedro da Eira, apaixonado de Mariquinhas, vendo, com olhos d'amante,
o segredo da cousa, quiz logo alli partir a cabeça do seu
rival.
―Oh su alma do diabo!... exclamou elle.
Contiveram-no. O snr. João do Eiró chamou a
filha. A pobre rapariga era uma cascata de lagrimas. Veio a muito
custo, cuidando que era então a
sua
fim, como ella depois disse.
A sua apparição impoz ás
multidões um respeitavel silencio.
Mestre Manoel Pires fallou assim, com ar de inspirado, e o
braço direito em attitude prophetica:
―Esta rapariga é minha mulher, se m'a derem. Eu vim aqui a
troco d'ella. Em bom panno cahe uma nodoa. Mal remediado é
mal acabado.
Ámanhã se Deus quizer lêem-se os
banhos, e não ha nada mais a
fazer aqui!
A Mariquinhas ficou com cara de tola, e não cabia n'um sino.
Os paes, d'esses não se falla. Mestre Manoel era o casamento
mais vantajoso da freguezia. Endireitou as costellas ao sogro, bebeu
á saude da boa companhia, e casou com grande prestito, onde
não faltou o juiz de paz, que teve de mais a mais o prazer
de pendurar n'esse fausto dia o habito de Christo na casaca. Nas bodas
celebres para sempre, nos annaes de Carrazedo de Monte-Negro,
comeram-se dez cabritos assados com o competente arroz de forn
A Mariquinhas ficou com cara de tola, e não cabia n'um sino.
Os paes, d'esses não se falla. Mestre Manoel era o casamento
mais vantajoso da freguezia. Endireitou as costellas ao sogro, bebeu
á saude da boa companhia, e casou com grande prestito, onde
não faltou o juiz de paz, que teve de mais a mais o prazer
de pendurar n'esse fausto dia o habito de Christo na casaca. Nas bodas
celebres para sempre, nos annaes de Carrazedo de Monte-Negro,
comeram-se dez cabritos assados com o competente arroz de forno.
[53]
Já lá vão cinco annos.
Mestre Manoel Pires espera ser deputado com um governo apreciador do
verdadeiro talento; e a senhora Mariquinhas Pires já este
anno veio a banhos de mar, e viu por ahi baronezas, que lhe despertaram
o louvavel desejo de o ser.
COUSAS QUE SÓ
EU SEI.
COUSAS QUE SÓ EU SEI.
I.
Na ultima noite do carnaval, que foi justamente aos 8 dias do mez de
Fevereiro, do corrente anno
[2]
pelas 9 horas e meia da noite entrava no
theatro de S. João, d'esta heroica, e muito nobre e sempre
leal cidade, um dominó de setim.
Déra elle os dous primeiros passos no pavimento da
platêa, quando um outro dominó de velludo preto
veio collocar-se-lhe frente a frente, n'uma
contemplação immovel.
O primeiro demorou-se um pouco a medir as alturas do seu admirador, e
virou-lhe as costas com indifferença natural.
O segundo, momentos depois, apparecia ao lado do primeiro, com a mesma
attenção, com a mesma
penetração de vista.
D'esta vez o dominó-setim aventurou uma pergunta
[58]
n'aquelle desgracioso falsete, que
todos nós conhecemos:
―Não quer mais do que isso?
―Do
qu'isso!...―respondeu um
mascara que passava por casualidade, esganiçando-se n'uma
risada que raspava o tympano.―
Olha do
qu'isso!... Já vejo que és
pulha!...
E retirou-se repetindo―
do qu'isso... do
qu'isso...
Mas o dominó-setim não soffreu, ao que parecia, a
menor contrariedade com este charivari. E o dominó-velludo
nem se quer acompanhou com os olhos o imprudente que viera
embaraçar-lhe uma resposta digna da pergunta, fosse ella
qual fosse.
O
setim (fique assim conhecido para
evitarmos palavras, e tempo que é um preciosissimo cabedal)
o
setim, d'esta vez, encarou com mais
alguma reflexão o
velludo. Conjecturou
supposições fugitivas, que se destruiam
mutuamente. O
velludo era
forçosamente uma mulher. A pequenez do corpo, cuja
flexibilidade o dominó não encobria; a delicadeza
da mão, que protestava
contra o ardil mentiroso d'uma luva larga; a ponta de verniz, que um
descuido, no lançar do pé,
denunciára debaixo da fimbria
do velludo, este complexo de attributos, quasi nunca reunidos em um
homem, captaram as serias attenções do outro,
que,
incontestavelmente, era um homem.
―Quem quer que sejas, (disse o setim) não te gabo o gosto!
Tomára eu saber o que vês em mim, que tanta
impressão te faz!
―Nada―respondeu o velludo.
―Então, deixa-me, ou diz-me alguma cousa ainda que seja uma
semsaboria, mais eloquente que o teu silencio.
―Não te quero embrutecer. Sei que tens muito espirito, e
seria um crime de leso-carnaval, se te dissesse alguma d'essas
graças salobras, capazes de fazer
[59]
calar para todo o sempre um Demosthenes
de dominó.
O
setim mudou de opinião
a respeito do seu perseguidor. E não admira que o recebesse
com rudeza no principio, porque, em Portugal, um dominó em
corpo de mulher, que passeia «sosinha» n'um
theatro, permitte umas suspeitas que não abonam as virtudes
do dominó, nem lisongeam a vaidade de quem lhe recebe o
conhecimento. Mas a mulher em quem recahe semelhante hypothese
não conhece Demosthenes, nem diz
leso-carnaval, nem aguça
a phrase com o adjectivo
salobras.
O setim arrependeu-se da aspereza com que recebera os attenciosos
olhares d'aquella incognita, que principiava a fazer-se valer como tudo
aquillo que apenas se conhece por uma face boa. O
setim
juraria, pelo menos, que aquella mulher não era estupida. E,
seja dito sem tenção offensiva, já
não
era insignificante a descoberta, porque é mais facil
descobrir um mundo novo que uma mulher illustrada. É mais
facil ser Christovão
Colombo que Emilio Girardin.
O
setim, ouvida a resposta do
velludo, offereceu-lhe o
braço, e gostou da boa vontade com que lhe foi recebido.
―Conheço (diz elle), que o teu contacto me espiritualisa,
bello dominó...
―
Bello, me chamas tu!...
É realmente uma leviandade que te não faz
honra!... Se eu levantasse esta sanefa de sêda, que me faz
bonita, ficavas como aquelle poeta hespanhol que soltou uma
exclamação
de terror na presença d'um nariz... que nariz não
seria, santo Deus!... Não sabes essa historia?
―Não, meu anjo!
―
Meu anjo!... que graça!
Pois eu t'a conto. Como o poeta se chama não sei, nem me
importa. Imagina tu que és um poeta, phantastico como
Lamartine, vulcanico como Byron, sonhador como Mac-Pherson, e
[60]voluptuoso como
Voltaire aos 60 annos.
Imagina que o tedio d'esta vida chilra que se vive no Porto te obrigou
a deixar no teu quarto a pythonissa descabellada das tuas
inspirações, e vieste por aqui dentro a
procurar um passatempo n'estes passatempos alvares d'um baile de
carnaval. Imagina que encontravas uma mulher extraordinaria de
espirito, um anjo de eloquencia, um demonio de epygramma, em fim, uma
d'estas creações miraculosas que fazem rebentar
uma chamma improvisa no coração mais de
gêlo, e de lama, e
de toucinho sem nervo. Ris? Achas nova a expressão,
não
é assim? Um coração de toucinho
parece-te uma offensa ao bom
senso anatomico, não é verdade? Pois, meu caro
dominó; ha corações de toucinho
estreme. São
os corações, que reçumam oleo em
certas caras estupidas... por exemplo... olha este homem redondo, que
aqui está, com as palpebras em quatro refêgos, com
os olhos vermelhos como os d'um coelho morto, com o queixo inferior
pendente, e o labio escarlate e vidrado como o bordo d'uma pingadeira,
orvalhada de banha de porco... Esta cara não te parece um
grande rijão?
Não crês que este baboso tenha um
coração de toucinho?
―Creio, creio; mas falla mais baixo que o desgraçado
está a gemer debaixo do teu escalpello...
―És tolo, meu cavalheiro! Elle entende-me lá!...
É verdade, ahi vai a historia do
hespanhol, que tenho que fazer...
―Então queres deixar-me?
―E tu?... queres que eu te deixe?
―Palavra d'honra que não! se me deixas, retiro-me...
―És muito amavel, meu querido Carlos...
―Conheces-me?!
―Essa pergunta é ociosa. Não és tu
Carlos!
―Já fallaste comigo na tua voz natural?
―Não; mas começo a fallar agora.
[61]
E com effeito fallou. Carlos ouviu um som de voz sonora, metallica, e
insinuante. Cada palavra d'aquelles labios mysteriosos sahia vibrante e
afinada como a nota d'uma tecla. Tinha aquelle não-sei-que,
que só se
escuta nas salas, onde fallam mulheres distinctas, mulheres que obrigam
a gente a prestar fé aos privilegios,
ás prerogativas, aos dons muito peculiares da aristocracia
do sangue. Todavia, Carlos não se recordava de ter ouvido
semelhante voz, nem semelhante linguagem.
«Uma aventura de romance!» dizia elle lá
comsigo, em quanto o dominó-velludo, conjecturando o enleio
em que pozera o seu enthusiasta companheiro, continuava a fazer gala do
mysterio, que é de todas as alfaias aquella que mais alinda
a mulher! Se ellas podessem andar sempre de dominó! Quantas
mediocridades em intelligencia rivalisariam com Jorge Sand! Quantas
physionomias infelizes viveriam com a fama da mulher de Abdel-Kader!
―Então quem sou eu?―proseguiu ella―não me
dirás?... Não dizes... pois então,
tu és Carlos, e eu sou Carlota... fiquemos n'isto, sim?
―Em quanto eu não souber o teu nome, deixa-me chamar-te
«anjo.»
―Como quizeres; mas sinto dizer-te que não és
nada original!
Anjo!... é
um appellido tão safado como
Ferreira,
Silva,
Sousa,
Costa... et cetera. Não
vale a pena questionarmos: baptisa-me á tua vontade. Ficarei
sendo o teu «anjo de entrudo!» E a historia?...
Imagina que te possuias d'um amor impetuoso por essa mulher, que
phantasiaste linda, e insensivelmente lhe curvaste o joelho,
pedindo-lhe uma esperança, um sorriso affectuoso
através da mascara, um aperto convulsivo de mão,
uma promessa, ao menos, de se mostrar um, dous, tres annos depois. E
essa mulher, cada vez mais sublime, cada vez mais litterata, cada vez
mais radiosa, protesta eloquentemente contra as tuas instancias,
[62]declarando-se muita
feia,
indecentissima de nariz, horrivel até, e, como tal, pesa-lhe
na consciencia matar as tuas candidas illusões, levantando a
mascara. Tu que a não crês, instas, supplicas,
abrasas-te n'um
ideal, que toca as extremas do ridiculo, e estás capaz de
lhe dizer que te abolas o craneo com um tiro de pistola, se ella
não levanta a cortina d'aquelle mysterio que te dilacera uma
por uma as fibras do coração. Chamas-lhe
Beatriz, Laura, Fornarina, Natercia, e ella diz-te que se chama
Custodia, ou Genoveva para te aguar a poesia d'esses nomes, que, na
minha humilde opinião, são
completamente fabulosos. O dominó quer fugir-te
ardilosamente, e tu não lhe deixas um passo livre, nem um
dito espirituoso a outro, nem um lançar d'olhos para os
mascaras, que a fixam como quem sabe que está alli uma
rainha, envolta n'aquelle manto negro. Por fim, a tua
perseguição é tal, que a desconhecida
Desdemona finge assustar-se, e sahe comtigo ao salão do
theatro para levantar a mascara. Arfa-te o
coração na anciedade d'uma esperança:
sentes o jubilo do cego de nascimento, que vai vêr o sol;
estremeces como a creança a quem
vão dar um bonito, que ella não viu ainda, mas
imagina ser quanto o seu coração infantil
ambiciona n'este
mundo... Ergue-se a mascara!... Horror!... vês um nariz... um
nariz-pleonasmo, um nariz homerico, um nariz maior que o do duque de
Choiseul, onde cabiam tres jesuitas a cavallo!... Recúas!...
sentes despregar-se-te o coração das entranhas,
córas de
vergonha, e foges desabridamente...
―Tudo isso é muito natural.
―Pois não ha nada mais artificial, meu caro senhor. Eu lhe
conto o resto, que é o mais interessante para um mancebo que
faz do nariz d'uma mulher o thermometro de avaliar-lhe a temperatura do
coração. Imagina, meu joven Carlos, que sahiste
do theatro depois, e entraste na
Aguia
d'Ouro a comer
ostras, segundo
[63]o
costume dos
elegantes do Porto. E quando, pensavas, ainda aterrado, na aventura do
nariz, te apparecia fatidico dominó, e se assentava ao teu
lado, silencioso e immovel, como a larva das tuas asneiras, cuja
memoria procuravas delir na imaginação com os
vapores do vinho... Perturba-se-te a digestão, e sentes
contracções no estomago, que te
ameaçam com o vomito. A massa enorme d'aquelle nariz
figura-se-te no prato em que tens a ostra, e já
não pódes
levar á bocca um bocado do teu appetitoso manjar sem um
fragmento d'aquelle fatal nariz á mistura. Queres transigir
com o silencio do dominó; mas não
pódes. A
inexoravel mulher aproxima-se de ti, e tu, com um sorriso cruelmente
sarcastico, pedes-lhe que te não entorne com o nariz o copo
de vinho. Achas isto natural, Carlos?
―Ha ahi crueldade de mais... O poeta devia ser mais generoso com a
desgraça, porque a missão do
poeta é a indulgencia não só para as
grandes
affrontas, mas até para os grandes narizes.
―Será; mas o poeta, que transgrediu a sublime
missão da generosidade para com as mulheres feias, vai ser
punido. Imagina que aquella mulher, pungida pelo sarcasmo, levanta a
mascara. O poeta ergue-se, e vai fugir com grande escandalo do dono da
casa, que naturalmente tem a sorte do boticario de Nicolau Tolentino.
Mas... vingança do céo!... aquella mulher ao
levantar a mascara arranca do rosto um nariz postiço, e
deixa vêr a mais formosa cara que o céo alumia ha
seis mil annos! O hespanhol quer ajoelhar áquella dulcissima
visão de um sonho, mas a nobre andaluza repelle-o com um
gesto, onde o despreso está associado á
dignidade mais senhoril.
[64]
II.
Carlos scismava na applicação da anedocta, quando
o dominó lhe disse, adivinhando-lhe o pensamento:
―Não creias que eu seja mulher de nariz de cera, nem me
supponhas capaz de assombrar-te com a minha fealdade. A minha modestia
não vai tão
longe... Mas, meu pacientissimo amigo, ha em mim um defeito peor que um
nariz enorme: não é physico nem
moral; é um defeito repulsivo e repellente: é uma
cousa
que eu não sei exprimir-te com a linguagem do inferno, que
é a unica e mais eloquente que eu sei fallar, quando me
lembro que sou assim defeituosa!
―És um enigma!...―atalhou Carlos, embaraçado, e
convencido de que encontrára um typo maior que os moldes
tacanhos da vida romanesca em Portugal.
―Sou, sou!...―acudiu ella com rapidez―sou aos meus proprios olhos um
dominó, um continuado carnaval de lagrimas...
Está bom! não quero
tristezas... Se me tocas na tecla do sentimentalismo, deixo-te. Eu
não vim aqui fazer papel de dama dolorida. Soube que estavas
aqui, procurei-te, esperei-te mesmo com anciedade, porque sei que
és espirituoso, e podias, sem prejuizo da tua dignidade,
ajudar-me a passar algumas horas de illusão. Fóra
d'aqui, tu ficas sendo
Carlos, e eu serei sempre uma incognita muito grata ao seu companheiro.
Agora acompanha-me: vamos ao camarote 10 da 2.ª ordem.
Conheces
aquella familia?
―Não.
―É uma gente da provincia. Não digas tu nada;
deixa-me fallar a mim, e verás que não passas
mal... É muito orgulho, não achas?
―Não acho, não, minha querida; mas eu antes
[65]queria
não
desperdiçar estas horas porque fogem.
Tu vaes fallar, mas não é comigo. Sabes que tenho
ciumes de ti?
―Sei que tens ciumes de mim... Sabes tu que eu tenho um profundo
conhecimento do coração
humano? Já vês que não sou a mulher que
imaginas, ou quererias que eu fosse. Não comeces a
desvanecer-te com uma conquista esperançosa. Faz calar o teu
amor proprio, e emprega a tua vaidade em bloquear com ternuras
calculadas uma innocente a quem possas fazer feliz, em quanto a
enganas...
―Julgas, por tanto, que te minto!...
―Não julgo, não. Se mentes a alguem é
a ti proprio: bem vês que não te creio... Tempo
perdido! Anda, vem comigo, se não...
―Senão... o que?
―Senão... olha...
E a melindrosa desconhecida largou-lhe o braço com
delicadeza, e retirara-se, apertando-lhe a mão.
Carlos, sinceramente commovido, apertou aquella mão, com o
frenesi apaixonado de um homem que quer suster a fuga da mulher por
quem se mataria.
―Não―exclamou elle com enthusiasmo―não me
fujas, porque me levas a esperança mais bella que o meu
coração concebeu. Deixa-me adorar-te, sem te
conhecer!... Não levantes nunca esse véo... mas
deixa-me vêr a face da tua alma, que deve ser a realidade
d'um sonho de vinte e sete annos...
―Estás dramatico, meu poeta! Eu sinto realmente a minha
pobreza de palavras garrafaes... Queria ser uma vestal d'estilo
fervente para sustentar o fogo sagrado do dialogo... O monologo deve
cançar-te, e a tragedia desde Sophocles até
nós não
póde dispensar uma segunda pessoa...
―És um prodigio...
―De litteratura grega, não é verdade? Inda sei
[66] muitas outras
cousas da Grecia. A
Lais tambem era muito versada, e repetia as rapsodias gregas com um
garbo sublime; mas a Lais era... sabes tu o que ella era?... E serei eu
o mesmo? Já vês que a
litteratura não é symptoma de virtudes dignas da
tua
affeição...
Tinham chegado ao camarote na 2.ª ordem. O
dominó-velludo
bateu, e a porta foi, como devia ser aberta.
A familia, que occupava o camarote, compunha-se de muitas pessoas, sem
typo, vulgarissimas, e prosaicas de mais para captarem a
attenção d'um leitor
avesso a trivialidades. Todavia, estava ahi uma mulher que valia um
mundo, ou cousa maior que o mundo―o coração d'um
poeta.
As rosas purpurinas dos vinte annos tinham-lhes sido crestadas pelo
halito abrasado dos salões. A placidez extemporanea d'uma
vida agitada, via-se-lhe no rosto protestando não contra os
prazeres, mas contra a debilidade d'um sexo, que não
póde acompanhar com a materia as
evoluções desenfreadas do espirito.
Mas que olhos! mas que vida! que electricidade no frenesi d'aquellas
feições! que
projecção de uma sombra azulada lhe descia das
palpebras! Era uma mulher, em cujo rosto transluzia a soberba, talvez
demasiada, da sua superioridade.
O dominó-velludo estendeu-lhe a mão, e chamou-lhe
Laura.
Seria Laura? É certo que ella estremeceu, e recuou a
mão repentinamente como se uma vibora lh'a tivesse mordido.
Aquella palavra symbolisava um mysterio dilacerante: era a senha de uma
grande lucta em que a pobre senhora devia sahir escorrendo sangue.
―Laura―repetiu o dominó―não me apertas a
mão? Deixa-me ao menos sentar-me perto... muito perto de
ti... sim?
O homem, que mais proximo estava de Laura,
[67]afastou-se
urbanamente para deixar
aproximar um mascara, que denunciara o sexo pela voz, e a
distincção pela mão.
E Carlos nunca mais despregou os olhos d'aquella mulher, que revelava a
cada instante um pensamento nas variadas physionomias com que queria
disfarçar a sua angustia intima.
A desconhecida fez signal a Carlos para que se aproximasse. Carlos,
enleado nos embaraços naturaes d'aquella
situação toda para elle enygmatica,
recusava cumprir as imperiosas determinações
d'uma mulher
que parecia calcar todos os melindres. Os quatro ou cinco homens, que
pareciam familiares de Laura, não deram muita importancia
aos dominós. Conjecturaram, primeiro, e quando suppozeram
que tinham conhecido as visitas, deixaram em plena liberdade as duas
mulheres que se fallavam de perto como duas amigas intimas. O
cavalheiro passou por um tal Eduardo, e a desconhecida tiveram-n'a por
uma D. Antonia.
Laura humedecia os labios com a lingua. As surprezas pungentes produzem
uma febre, e aquecem o mais bem calculado sangue frio. A incognita,
profundamente conhecedora da situação da sua
victima, fallou ao
ouvido de Carlos:
―Estuda-me aquella physionomia. Eu não estou em
circumstancias de ser Max... Soffro demasiado para contar as
pulsações d'este
coração. Se te sentires condoido d'esta mulher,
tem compaixão de mim, que sou mais desgraçada que
ella.
E voltando-se para Laura:
―Procuro, ha quatro annos, uma occasião de prestar
homenagem á tua conquista. Deus, que é
Deus, não despreza os incensos do verme da terra, nem
esconde á vista dos homens a sua fronte magestosa n'um manto
de estrellas. Tu, Laura, que és mulher, embora os homens te
chamem anjo, não despresarás vaidosa
a
[68]homenagem d'uma
pobre creatura, que
vem depôr a teus pés o obulo sincero da sua
adoração.
Laura não levantava os olhos do leque; mas a mão,
que o sustinha, tremia; e os olhos, que o contemplavam,
pareciam absortos n'um quadro afflictivo.
E o dominó continuou:
―Foste muito feliz, minha cara amiga! Eras digna de o ser. Colheste o
fructo abençoado da
abençoada semente que o Senhor fecundou no teu
coração de pomba!... Olha, Laura, deves dar
muitas graças á Providencia, que velou os teus
passos no caminho do crime. Quando devias resvalar no abysmo da
prostituição, subiste, radiante de virtudes, ao
throno das virgens. O teu anjo da guarda foi-te leal! És uma
excepção a milhares de desgraçadas,
que nasceram em estofos de damasco, e cresceram em perfumes de
opulencia. E, quanto mais, minha ditosa Laura, tu nasceste nas palhas
da miseria, cresceste nos andrajos da indigencia, ainda viste com os
olhos da razão a desgraça
sentada á cabeceira do teu leito... e, com tudo, eis-te ahi
rica, honrada, formosa, e soberba de encantos, com que pódes
insultar toda essa turba de mulheres, que te
admiram!... Ha tanta mulher infeliz!... Queres saber a historia
d'uma?...
Laura, contorcendo-se como se fosse de espinhos a cadeira em que
estava, não tinha ainda balbuciado um monosyllabo; mas a
urgente pergunta, duas vezes repetida, do dominó, obrigou-a
a responder affirmativamente com um gesto.
―Pois bem, Laura, conversemos amigavelmente.
Um dos individuos, que estava presente, e ouvira pronunciar
Laura, perguntou
á mulher que assim era chamada:
―Elisa, ella chama-te
Laura?
―Não, meu pai...―respondeu Elisa, titubeando.
[69] ―Chamo Laura,
chamo... e que tem lá isso, snr.
visconde?―Atalhou a incognita, com affabilidade, erguendo o falsete
para ser bem ouvida.―É um nome de carnaval, que passa com
os dominós. Quarta feira de cinza torna a filha de v. exc.
a
a chamar-se Elisa.
O visconde sorriu-se, e o dominó continuou, abaixando a voz,
e fallando naturalmente:
III.
―Henriqueta...
Esta palavra foi um abalo que fez vibrar todas as fibras de Elisa. O
rosto incendiou-se-lhe d'aquelle encarnado do pudor ou da raiva. Esta
sensação violenta não podia ser
desapercebida. O visconde, que parecia estranho á
conversação intima
d'aquellas suppostas amigas, não o pôde ser
á
agitação febril de sua filha.
―Que tens, Elisa?!―perguntou elle sobresaltado.
―Nada, meu pai... Foi um ligeiro incommodo... Estou quasi boa...
―Se queres respirar vamos ao salão, ou vamos para casa...
―Antes para casa―respondeu Elisa.
―Eu vou mandar buscar a sege―disse o visconde; e retirou-se.
―Não vás, Elisa...―disse o dominó,
com uma voz imperiosa, semelhante a uma ameaça
inexoravel.―Não vás... porque, se vaes, contarei
a todo o mundo uma historia que só tu has-de saber. Este
outro
dominó, que tu não conheces, é um
cavalheiro:
não temas a menor imprudencia.
―Não me martyrises!―disse Elisa.―Eu sou infeliz de mais,
para ser flagellada com a tua vingança... Tu és
Henriqueta, não és?
[70] ―Que te importa a
ti saber quem eu sou?!...
―Importa muito... Sei que és desgraçada!...
Não sabia que vivias no Porto; mas palpitou-me o
coração que eras tu, apenas me chamaste Laura.
O visconde entrou afadigado, dizendo que a sege não podia
tardar, e convidando a filha para dar alguns passeios no
salão do theatro. Elisa satisfez a carinhosa anciedade do
pai, dizendo que se sentia boa, e pedindo-lhe que se demorasse
até mais tarde.
―Onde julgavas tu que eu existia? No cemiterio não
é assim?―perguntou Henriqueta.
―Não: sabia que vivias, e prophetisava que devia
encontrar-te... Que historia me queres tu contar?... a tua? Essa
já eu sei... imagino-a... tens sido muito infeliz... Olha,
Henriqueta... deixa-me dar-te esse tratamento affectuoso com que nos
conhecemos, com que
fomos tão amigas, alguns fugitivos dias, no tempo em que o
destino nos marcava com o mesmo stygma de infortunio...
―O mesmo... não!...―atalhou Henriqueta.
―O mesmo, sim, o mesmo... e se me forças a contradizer-te,
direi que invejo a tua sorte, seja ella qual fôr...
Elisa chorava, e Henriqueta emmudecera. Carlos estava impaciente pelo
desfecho d'esta aventura, e desejava, ao mesmo tempo, reconciliar estas
duas mulheres, e fazel-as amigas, sem saber a razão porque
eram inimigas. A belleza impõe-se á
compaixão. Elisa
era bella, e Carlos era d'uma sensibilidade extremosa. Nem elle
já sabia decidir-se entre aquellas duas mulheres. A
mascarada
poderia ser, mas a outra
era um anjo de sympathia e
formosura. O espirito gosta do mysterio que esconde o bello; mas
decide-se pela belleza real, sem mysterio.
Henriqueta, depois de alguns minutos de silencio, durante os quaes
não era possivel avaliar-lhe o
coração
[71]pela
exterioridade da physionomia,
exclamou com impeto, como se despertasse d'um sonho, d'aquelles intimos
sonhos de dôr, em que a alma se reconcentra:
―Teu marido?
―Está em Londres.
―Ha quanto tempo o não viste?
―Ha dous annos.
―Abandonou-te?
―Abandonou-me.
―E tu?... abandonaste-o?
―Não concebo a pergunta...
―Ainda o amas?
―Ainda...
―Com paixão?
―Com delirio...
―Escreves-lhe?
―Não me responde... Despresa-me, e chama-me
Laura.
―Elisa!―disse Henriqueta, com a voz tremula, e apertando-lhe a
mão com enthusiasmo nervoso―Elisa! perdôo-te...
És bem mais desgraçada que
eu, porque tens um homem que pôde chamar-te Laura, e eu
não tenho senão um nome... sou Henriqueta! Adeus.
Carlos pasmou do desenlace cada vez mais embrulhado d'aquelle prologo
d'um romance. Henriqueta tomou-lhe o braço com
precipitação, e sahiu do
camarote abaixando levemente a cabeça aos cavalheiros, que
se davam tractos por adivinhar o segredo d'aquella conversa.
―Não pronuncies o meu nome em voz alta, Carlos. Sou
Henriqueta; mas não me atraiçoes, se queres a
minha amisade.
―Como hei-de eu atraiçoar-te, se não sei quem
és? Pódes chamar-te Julia em vez de Henriqueta,
que, nem por isso te fico conhecendo mais... Tudo mysterios! Tens-me,
ha mais d'uma hora, n'um estado de
[72]tortura!
Eu não sirvo para
estas emboscadas... Diz-me quem é aquella mulher...
―Não viste que é D. Elisa Pimentel, filha do
visconde do Prado?
―Não a conhecia...
―Então que mais queres que eu te diga?
―Muitas outras cousas, minha ingrata. Quero que me digas quantos nomes
tem aquella Laura, que se chama Elisa. Falla-me do marido d'aquella
mulher...
―Eu te digo... O marido d'aquella mulher chama-se Vasco de Seabra...
Estás satisfeito?
―Não... Quero saber que relações tens
tu com esse Vasco ou com aquella Laura?
―Não saberás mais nada, se fores impaciente.
Imponho-te mesmo um profundo silencio a respeito do que ouviste.
Á menor pergunta que me faças,
deixo-te ralado por essa curiosidade indiscreta, que te faz parecer uma
mulher de soalheiro. Eu contrahi comtigo a
obrigação de te contar a minha vida?
―Não; mas contrahiste com a minha alma a
obrigação de eu me interessar na tua vida e nos
teus infortunios desde este momento.
―Obrigado, cavalheiro!―Juro-te uma sincera amisade.―Has-de ser o meu
confidente.
Estavam, outra vez, na platêa. Henriqueta aproximou-se ao
quarto camarote da primeira ordem, firmou o pé de fada na
frisa, segurou-se ao peitoril do camarote, e travou
conversação com a familia que o
occupava. Carlos acompanhou-a em todos estes movimentos, e preparou-se
para um novo enygma.
Segundo o costume, as mãos de Henriqueta passaram por uma
analyse rigorosa. Não era possivel,
porém, fazel-a tirar a luva da mão esquerda.
―Dominó, porque não deixas vêr este
annel?―Perguntava uma senhora de olhos negros, e vestida de negro,
como uma viuva rigorosamente enluctada.
[73] ―Que te importa o
annel, minha querida Sophia!?... Fallemos de ti,
aqui em segredo. Ainda vives melancolica, como a Dido da fabula?
Fica-te bem essa côr de esquifes, mas não
sustentas o caracter
artistico com perfeição. A tua tristeza
é
fingida, não é verdade?
―Não me offendas, dominó, que eu não
te mereço essa injuria... A desgraça nunca se
finge...
―Disseste uma verdade, que é a tua
condemnação. Eu, se tivesse sido abandonada por
um amante, não vinha aqui dar-me em espectaculo a um baile
de mascaras. A desgraça não se finge,
é
verdade; mas a saudade esconde-se para chorar, e a vergonha
não se ostenta radiosa d'esse sorriso que te brinca nos
labios... Olha, minha amiga, ha umas mulheres que nasceram para esta
época, e para estes homens. Ha outras que a Providencia
caprichosa atirou a esta geração
corrompida como os imperadores romanos atiravam os christãos
ao amphitheatro dos leões. Felizmente que tu não
és das segundas, e sabes harmonisar com o teu genio
folgasão e desleixado uma hypocrisia que te vai bem n'um
sophá de pennas, onde te recostas com um perfeito
conhecimento das attitudes languidas das mulheres cançadas
do Balzac. Eu, se fosse homem, amava-te por desfastio!... És
a unica mulher para quem este paiz é pequeno.
Devias conhecer o Regente, e Richelieu, e os abbades de Versailles, e
as filhas do Regente, e as Heloïsas desenvoltas dos abbades, e
as aias da duqueza do Maine... et cetera. Isto por cá
é pequenissimo para as
Phryneas. Uma mulher da tua indole morre asphyxiada n'este ambiente
pesado em que o coração, nas suas
expansões romanticas, encontra, quasi sempre, a
mão burgueza das conveniencias a tapar-lhe os
respiradouros... Parece que te enfadas de mim?...
―Não te enganas, dominó... Obsequeias-me se me
não deres o incommodo de te mandar retirar.
[74] ―És
muito delicada, minha nobre Sophia!... Já
agora, porém, deixa-me dar-te uma
idêa mais precisa d'esta mulher que te enfada, e que, apesar
das tuas injustiças, se interessa na tua sorte. Diz-me
cá... Tens uma sincera paixão, uma saudade
pungente por aquelle bello capitão de cavallaria, que te
deixou, tão
sosinha, com as tuas agonias de amante?
―Que te importa?...
―És cruel! Pois não ouves o tom sentimental com
que te faço esta pergunta?... Quantos annos tens?...
―Metade e outros tantos...
―A resposta não me parece tua... Aprendeste essa
vulgaridade com a filha do teu sapateiro?... Ora olha: tu tens 38
annos, a não ser mentiroso o assento de baptismo, que se
lê no cartorio da freguezia dos Martyres em Lisboa.
Aos vinte annos amavas com ternura um tal Pedro Sepulveda. Aos vinte e
cinco, amavas com paixão, um tal Jorge Albuquerque. Aos 30,
amavas com delirio, um tal Sebastião de Meirelles. Aos 35,
amavas, em Londres, com frenesi um tal... como se chamava...
não me recordo... diz-me, por piedade o nome d'esse homem,
que, se não, fica o meu discurso sem o effeito do drama...
Não dizes, má?... Ai!... eu tenho
aqui a mnemonica...
Henriqueta tirou a luva da mão esquerda, e deixou
vêr um annel... Sophia estremeceu, e córou
até ás orelhas.
―Já te recordas?... Não córes, minha
querida amiga... que não fica bem ao teu caracter de mulher
que conhece o mundo pela face positiva... Deixa-me agora arredondar o
periodo, como dizem os litteratos... Ora tu que amaste desenfreadamente
cinco antes do sexto homem, como queres fingir debaixo d'esse vestido
negro, um coração varado de saudades e
orphão de consolações?... Adeus, minha
bella hypocrita...
[75]
Henriqueta desceu elegantemente do seu poleiro, e deu o
braço a Carlos.
IV.
Eram tres horas.
Henriqueta disse que se retirava, depois de victimar com seus ligeiros,
mas pungentes gracejos, alguns d'aquelles muitos que provocam o
sarcasmo só com a presença, só com o
vulto corporal, só
com a semsaboria de um remoque parvo e pretencioso. O carnaval
é uma exposição annual d'estes
infelizes.
Carlos, ao vêr que Henriqueta se retirava com um segredo que
tanto irritára a sua curiosidade, instou com delicadeza, com
meiguice, e até com resentimento, pela realidade de uma
esperança, que fizera a sua felicidade de algumas horas.
―Eu não me arrependo―disse elle―de ter sido a voluntaria
testemunha de teus desforços... Ainda mesmo que me tivessem
conhecido, e tu fosses uma mulher licenciosa e depravada,
não me arrependeria... Ouvi-te, illudi-me na
esperança vaidosa de conhecer-te, tive orgulho de ser o
escolhido para sentir de perto as pulsações
vertiginosas do teu
coração... estou recompensado de mais... Ainda
assim, Henriqueta, eu não tenho pejo de abrir-te a minha
alma, confessando-te um desejo de conhecer-te que não posso
illudir... Este desejo vaes-m'o tu convertendo n'uma dôr; e
será
logo uma saudade insupportavel, que te faria compaixão se
soubesses avaliar o que é na minha alma um desejo
impossivel. Se tu m'o não
dizes, quem me dirá o teu nome?
―Não sabes que sou Henriqueta?
―Que importa? E serás tu Henriqueta?
[76] ―Sou... juro-te
que sou...
―Não basta isto... Ora diz-me... não sentes a
precisão de ser-me grata?
―A que, meu cavalheiro?
―Grata ao melindre com que te tenho tractado, grata á
delicadeza com que te peço uma
revelação da tua vida, e grata a este impulso
invencivel que me manda ajoelhar-te... Será nobre zombar
d'um amor que
involuntariamente fizeste nascer?
―Não te illudas, Carlos―replicou Henriqueta n'um tom de
seriedade, semelhante ao de uma mãi que aconselha seu filho.
O amor não é isso que pica a
tua curiosidade. As mulheres são faceis de transigir de boa
fé com a mentira, e, pobres mulheres!... succumbem muitas
vezes á eloquencia artificiosa d'um conquistador. Os homens,
fartos de estudarem as paixões na sua origem, e enfadados
das rapidas illusões que elles choram todos os dias,
estão promptos sempre a declararem-se affectados da
cholera-paixão, e nunca apresentam
carta-limpa de scepticos. De maneira
que o sexo fragil das chimeras sois vós, creancinhas de toda
a vida, que brincaes aos trinta annos com a mulher como aos seis
brincaveis com os cavallinhos de pau, e os fradinhos de sabugo! Olha,
Carlos, eu não sou ingrata... Vou-me despedir de ti, mas
hei-de conversar comtigo ainda. Não instes; abandona-te
á minha generosidade, e
verás que alguma cousa lucraste em me encontrar e em me
não conhecer. Adeus.
Carlos acompanhou-a com os olhos, e permaneceu alguns minutos n'uma
especie de idiotismo, quando a viu desapparecer á sahida do
theatro. O seu primeiro pensamento foi seguil-a; mas a prudencia
lembrou-lhe que era uma indignidade. O segundo foi empregar a intriga
astuciosa até roubar alguma
revelação áquella Sophia da primeira
ordem ou á Laura da segunda. Não lhe lembraram
recursos, nem eu sei quaes elles poderiam
[77]ser.
Laura e Sophia, para
dissiparem completamente a esperança anciosa de Carlos,
tinham-se retirado. Era necessario esperar, era necessario confiar
n'aquella mulher extraordinaria, cujas promessas o
alvoroçado poeta traduzia em mil versões.
Carlos retirou-se, e esqueceu não sei quantas mulheres, que
ainda, na noite anterior, lhe povoaram os sonhos. Ao amanhecer,
ergueu-se, e escreveu as reminiscencias vivas da scena, quasi fabulosa,
que lhe transtornava o plano de vida.
Não houve nunca um coração
tão ambicioso de futuro, tão fervente de poesia,
e tão phantastico de
conjecturas! Carlos adorava seriamente aquella mulher! Como estas
adorações se afervoram com
tão pouco, não sei eu: mas que o amor
é assim, vou eu jural-o, e espero que os meus amigos me
não deixem mentir.
Imaginem, por tanto, a inquietação d'aquelle
grande espiritualista, quando viu passarem, vagarosos e enfadonhos,
oito dias, sem que o mais ligeiro indicio lhe viesse confirmar a
existencia de Henriqueta! Não direi que o desesperado amante
appellou para o supremo tribunal das paixões impossiveis. O
suicidio não lhe
passou nunca pela imaginação; e muito sinto que
esta
verdade diminua as sympathias que o meu heroe poderia grangear. A
verdade, porém, é que o apaixonado
mancebo vivia sombrio, isolava-se contra os seus habitos socialmente
galhofeiros, abominava as impertinencias de sua mãi que o
consolava com anedoctas tragicas a respeito de rapazes cegos de amor,
e, emfim, soffrera a ponto tal, que resolvera abandonar Portugal, se,
no fim de quinze dias a fatidica mulher continuasse a ludibriar a sua
esperança.
Diga-se, porém, em honra e louvor da astucia humana: Carlos,
resolvido a partir, lembrou-se de pedir a um seu amigo, que, na
gazetilha do
Nacional, dissesse, por exemplo, o
seguinte:
[78]
«O snr. Carlos d'Almeida vai, no proximo paquete, para
Inglaterra. S. s.
a tenciona observar de perto a
civilisação das primeiras capitaes da Europa. O
snr. Carlos d'Almeida é uma intelligencia, que, enriquecida
pela instrucção pratica da sua visita aos focos
da civilisação, ha-de voltar á sua
patria
com fecundo cabedal de conhecimentos em todos os ramos das sciencias
humanas. Fazemos votos porque s. s.
a se recolha
em breve ao seio dos
seus numerosos amigos.»
Esta local bem podia ser que chegasse ás mãos de
Henriqueta. Henriqueta bem podia ser que conjecturasse o imperioso
motivo, que obrigava o infeliz a buscar
distracções longe da patria, onde a sua
paixão era invencivel. E, depois, nada mais facil que uma
carta, uma palavra, um raio de esperança, que lhe
transtornasse os seus planos.
Era esta a infallivel tenção de Carlos, quando ao
decimo quarto dia lhe foi entregue a seguinte carta:
V.
«Carlos.
«Sem offender as leis da civilidade, continuo a dar-te o
tratamento do dominó, porque, em boa verdade, eu continuo a
ser para ti um dominó moral, não
é assim?
«Passaram-se quatorze dias, depois que tiveste o mau encontro
d'uma mulher, que te privou de algumas horas de deliciosa intriga.
Victima da tua delicadesa, levaste o sacrificio a ponto de te mostrares
interessado na sorte d'essa celebre desconhecida que te mortificou.
Não serei eu, generoso Carlos, ingrata a essa
manifestação
[79]cavalheirosa,
embora ella seja um rasgo de
artista, e não um desejo espontaneo.
«Queres saber porque tenho demorado quatorze dias este grande
sacrificio que vou fazer? É porque ainda hoje me levanto
d'uma febre incessante, que me insultou n'aquelle camarote da segunda
ordem, e que, n'este momento, parece declinar.
«Permitta Deus que seja longo o intervallo para ser longa a
carta: mas eu sinto-me tão pequena para os sacrificios
grandes!... Não te quero responsabilisar pela minha saude;
mas, se o meu silencio de longos tempos succeder a esta carta,
conjectura, meu amigo, que Henriqueta cahiu no leito, d'onde ha-de
erguer-se, senão é graça que os mortos
hão-de erguer-se um dia.
«Queres apontamentos para um romance que terá o
merito de ser portuguez? Vou dar-t'os.
«Henriqueta nasceu em Lisboa. Seus paes tinham o lustre dos
brazões, mas não brilhavam nada pelo
ouro. Viviam sem fausto, sem historia contemporanea, sem bailes, e sem
bilhetes de boas festas. As visitas que Henriqueta conhecia eram, no
sexo feminino, quatro velhas suas tias, e, no masculino, quatro
caseiros que vinham annualmente pagar as rendas, com que seu pai
regulava economicamente uma nobre independencia.
«O irmão de Henriqueta era um moço de
talento, que grangeara uma instrucção,
enriquecida sempre
pelos desvelos com que afagava a sua paixão unica. Isolado
de todo o mundo, o irmão de Henriqueta confiou a sua
irmã os segredos do seu muito saber, e formou-lhe um
espirito varonil, e inspirou-lhe uma ambição
faminta de sciencia.
«Bem sabes, Carlos, que fallo de mim, e não posso,
n'esta parte, engrinaldar-me de flôres immodestas, se bem que
não me faltariam depois espinhos que me desculpassem as
vaidosas flôres...
«Eu cheguei a ser o ecco fiel dos talentos de meu
[80]irmão.
Nossos paes não
comprehendiam as praticas
litterarias com que aligeiravamos as noites d'inverno; e, mesmo assim,
folgavam de nos ouvir, e via-se-lhes nos olhos aquelle rir de bondoso
orgulho, que tanto inflamma as vaidades da intelligencia.
«Aos dezoito annos achei pequeno o horisonte da minha vida, e
enfastiei-me da leitura, que m'o fazia cada vez amesquinhar-se mais.
Só com a experiencia, se conhece o quanto a litteratura
modifica a organisação de uma mulher. Eu creio
que a mulher, apurada na sciencia das cousas, pensa de um modo
extraordinario na sciencia das pessoas. O prisma das suas vistas
penetrantes é bello, mas as lindas cambiantes do seu prisma
são como as côres variegadas do arco iris, que
annuncia tempestade.
«Meu irmão lia-me os segredos do
coração! não é facil mentir
ao talento com as hypocrisias do talento. Comprehendeu-me, e teve
dó de mim.
«Meu pai morreu, e minha mãi pediu á
alma de meu pai que lhe alcançasse do Senhor uma vida longa
para meu amparo. Ouviu-a Deus, porque eu vi um milagre na rapida
convalescença com que minha mãi sahiu d'uma
enfermidade de quatro annos.
«Eu vi um dia um homem no quarto de meu irmão,
onde entrei como entrava sempre sem receio de encontrar um
desconhecido. Quiz retirar-me, e meu irmão chamou-me para me
apresentar, pela primeira vez na sua vida, um homem.
«Este homem chama-se Vasco de Seabra.
«Não sei se por orgulho, se por acaso, meu
irmão chamou a conversa ao campo da litteratura. Fallava-se
em romances, em dramas, em estilos, em escólas, e
não sei que outros mais assumptos ligeiros e graciosos que
me captivaram o coração e a
cabeça.
«Vasco fallava bem, e revelava cousas que me não
eram novas com estilo novo. N'aquelle homem, via-se
[81]o genio aformoseado pela
arte que
só na sociedade se adquire. Em meu irmão
faltava-lhe o relevo de estilo, que se lapida ao tracto dos maus e dos
bons. Bem sabes Carlos, que te digo uma verdade, sem
pretenções de
bas-bleu, que é de
todas as miserias a mais lastimosa miseria das mulheres cultivadas.
«Vasco retirou-se, e eu quizera antes que elle se
não retirasse.
«Disse-me meu irmão que aquelle rapaz era uma
intelligencia superior, mas depravada pelos maus costumes. A
razão porque elle viera a nossa casa era muito simples;
encarregara-o seu pai de fallar com meu irmão a respeito da
remissão d'uns fóros.
«Vasco passou n'esse dia por debaixo das minhas janellas:
fixou-me, cortejou-me, corei, e não me atrevi a seguil-o com
os olhos, mas segui-o com o
coração. Que suprema miseria, Carlos! Que
renuncia tão impensada faz uma mulher da sua tranquillidade!
«Voltou um quarto d'hora depois: retirei-me, sem querer
mostrar-lhe que o percebia; fiz-me distrahida, por entre as cortinas, a
contemplar a marcha das nuvens, e das nuvens descia um olhar
precipitado sobre aquelle
indifferente que me fazia
córar e soffrer. Viu-me, adivinhou-me, talvez, e cortejou-me
ainda. Eu vi o gesto da cortezia, mas fingi-me, e não lhe
correspondi. Foi isto um heroismo, não é verdade?
Seria; mas
eu tive remorsos, apenas elle desapparecera, de o tratar tão
grosseiramente.
«Demorei-me n'estas puerilidades, meu amigo, porque
não ha nada mais grato para nós que a
recordação dos ultimos instantes de ventura a que
se prendem os primeiros instantes da desgraça.
«Aquellas linhas fastidiosas são a historia da
minha transfiguração. Ahi principia a longa noite
da
minha vida.
«Nos dias immediatos, a horas certas, vi sempre
[82]este
homem. Concebi os perigos da minha fraqueza, e quiz ser forte. Resolvi
não vêl-o mais: revesti-me
d'um orgulho digno da minha immodesta superioridade ás
outras mulheres: sustentei este caracter dous dias; e, ao terceiro, era
fraca como todas as outras.
«Eu já não podia divorciar-me da imagem
d'aquelle homem, d'aquellas nupcias infelizes, que meu
coração contrahira. O meu instincto
não era mau; porque a
educação tinha sido boa; e, não
obstante a humildade constante com que sempre sujeitei a minha
mãi os meus innocentissimos desejos, senti-me
então, com magoa minha, rebelde, e capaz de conspirar contra
a minha familia.
«A frequente repetição dos passeios de
Vasco não podia ser indifferente a meu irmão. Fui
suavemente
interrogada por minha mãi, a tal respeito, e respondi-lhe
com respeito, mas sem temor. Meu irmão presentiu a
necessidade de matar aquella inclinação nascente,
e expoz-me um quadro feio dos costumes pessimos de Vasco, e o conceito
publico em que era tido o primeiro homem a quem eu tão
francamente me offerecia em namoro. Fui altiva com meu
irmão, e adverti-lhe que os nossos
corações não tinham contrahido
a obrigação de se consultarem.
«Meu irmão soffreu; eu tambem soffri;
e, passado o momento da exaltação, quiz cerrar a
ferida que abrira n'aquelle coração, desde a
infancia,
identificado com as minhas vontades.
«Este sentimento era nobre; mas o do amor era inferior. Se eu
podesse reconcial-os ambos! Não podia, nem sabia fazel-o!
Uma mulher, quando principia a sua dolorosa tarefa do amor,
não sabe mentir com apparencias, nem calcula os prejuizos
que póde evitar com uma pouca de impostura. Eu fui assim.
Deixei-me hir abandonada á correnteza, da minha
inclinação; e,
quando forcejei por me tornar, tranquilla, á
isenção da minha alma, não pude vencer
a corrente.
[83]
«Vasco de Seabra perseguia-me: as cartas eram incessantes, e
a grande paixão que ellas exprimiam
não era ainda igual á paixão que me
faziam.
«Meu irmão quiz tirar-me de Lisboa, e minha
mãi instava pela sahida, ou pela minha entrada a toda a
pressa nas Silesias. Informei Vasco das intenções
de minha familia.
«No mesmo dia, este homem, que me pareceu um cavalheiro digno
d'outra sociedade, entrou em minha casa, pediu-me urbanamente a minha
mãi, e foi urbanamente repellido. Eu sube-o, e torturei-me!
Não sei do que seria então capaz a minha alma
offendida! Sei que foi capaz de tudo que póde caber em
forças
d'uma mulher, contrariada nas ambições que
nutrira,
sosinha comsigo, e conjurada a perder-se por ellas.
«Vasco irritado d'um nobre estimulo, escreveu-me, como quem
me pedia a mim a satisfação dos
despresos de minha familia. Respondi-lhe que lh'a dava plena, como elle
a exigisse. Disse-me que fugisse de casa, pela porta da deshonra, e
muito cedo entraria n'ella com a minha honra illibada. Que
desgraça! n'aquelle tempo até as pompas do estilo
me seduziam!... Respondi que sim, e cumpri.
«Meu amigo Carlos. Vai longa a carta, e a paciencia
é curta. Até ao correio que vem.
Henriqueta.»
VI.
Carlos relêra com sofrega anciedade, a singela
expansão d'uma alma que, talvez, nunca se abrira, se a
não rasgasse o espinho d'um martyrio surdo. Henriqueta
não escrevia assim uma carta a um homem, que podesse
[84]consolal-a. Afeita a gemer
no
silencio, e na solidão,
tornava-se como egoista das suas dôres, e suppunha que
divulgal-as era esfolhar a mais bella flôr da sua
corôa de martyr. Escreveu, porque a sua carta era um mytho de
segredo e publicidade; porque a sua
afflicção não rastejava pelos
queixumes lamuriantes e triviaes d'um grande numero de mulheres, que
não choram nunca a viuvez do coração,
e lastimam sempre a
demora das segundas nupcias; escreveu em fim, porque a sua
dôr, sem deshonrar-se com uma publicidade esteril,
interessava um coração, esposava uma sympathia,
um soffrimento simultaneo, e, quem sabe mesmo, se uma nobre
admiração! Ha mulheres vaidosas―deixem-me assim
dizer―da fidalguia do seu soffrer. Risonhas para o mundo, é
muito sublime aquella angustia represada que só
póde extravasar os sobejos do seu fel em
uma carta anonyma. Lagrimosas para si, e fechadas no circulo estreito,
que a sociedade lhes traça com o compasso inexoravel das
conveniencias, essas sim, são duas vezes anjos despenhados!
Quem podesse receber na taça de suas lagrimas algumas, que
ahi se choram, e que a opulencia material não enxuga,
experimentaria consolações
d'um sabor novo. O padecimento, que se esconde, impõe o
respeito religioso do augusto mysterio d'esta religião
universal, symbolisada pelo soffrimento commum. O homem, que podesse
verter uma gota de orvalho na aridez d'algum
coração, seria o sacerdote providencial no
tabernaculo d'um espirito superior, que velasse a vida da terra para
que tamanhas agonias não fossem estereis na vida do
céo. Não ha na terra mais gloriosa
missão!
Carlos por tanto, sentiu-se feliz d'este orgulho santo que ennobrece a
consciencia do homem que recebe o privilegio d'uma confidencia. Esta
mulher, dizia elle, é para mim um ente quasi phantastico.
Allivios quaes são os que eu posso dar-lhe?... Nem ao menos
escrever-lhe!...
[85]E
ella... em que
fará consistir o seu prazer?! Deus o sabe! Quem
póde explicar, e mesmo explicar-se a singularidade d'um
proceder, ás vezes, inconcebivel?
No correio proximo, recebeu Carlos a segunda carta de
Henriqueta:
«Que imaginaste, Carlos, depois da leitura da minha carta?
Adivinhaste o resto, com prestesa natural. Recordaste mil aventuras
d'este genero, e amoldaste a minha historia ás legitimas
consequencias de todas as aventuras. Julgaste-me abandonada pelo homem,
com quem fugira, e chamaste a isto, talvez, uma
deducção contida nos principios.
«Pensaste bem, amigo, a logica da desgraça
é essa, e o contrario dos teus juizos é o que se
chama sophisma, porque eu estou em pensar que a virtude é o
absurdo da logica dos factos, é a heresia da
religião das sociedades, é a
aberração
monstruosa das leis, que regem o destino do mundo. Achas-me metaphysica
de mais? Não te impacientes. A dôr refugia-se nas
abstracções, e encontra melhor pabulo na Loucura
de Erasmo, que nas sisudas deducções de
Montesquieu.
«Minha mãi estava reservada para uma grande
provação! Amparou-a Deus n'aquelle golpe, e
permittiu-lhe uma energia que não era de esperar. Vasco de
Seabra bateu ás portas de todas as igrejas de Lisboa, para
me apresentar, como sua mulher, ao cura da freguezia, e achou-as
fechadas. Eramos perseguidos, e Vasco não contava com a sua
superioridade sobre meu irmão, que lhe fizera certa e
infallivel a morte, onde quer que a fortuna lh'o deparasse.
«Fugimos de Lisboa para Hespanha. Um dia entrou Vasco,
alvoroçado, pallido, e febril d'aquella febre de medo, que,
realmente, era, até então, a unica face prosaica
do meu amante. Emmulamos a toda
[86]a
pressa, e partimos para Londres. É
que Vasco de Seabra vira meu irmão em Madrid.
«Vivemos em um bairro retirado de Londres. Vasco
tranquillisou-se, porque lhe afiançaram de Lisboa a volta de
meu irmão, que perdera as esperanças
de encontrar-me.
«Se me perguntas como era a vida intima d'estes dous
fugitivos, aos quaes não faltava
condição alguma das aventuras romanticas d'um
rapto, dir-t'a-hei em poucas linhas.
«O primeiro mez das nossas nupcias de emboscada foi um sonho,
uma febre, uma anarchia de
sensações que, levadas ao extremo do goso,
pareciam tocar as raias do soffrimento. Vasco parecia-me um Deus, com
as seductoras fraquezas d'um homem; queimava-me com o seu fogo,
divinisava-me com o seu espirito; levava-me de mundo em mundo
á região dos anjos
onde a vida deve ser o extasis, o arrobamento, a
alienação com que a minha alma se derramava nas
sensações
ardentissimas d'aquelle homem.
«No segundo mez, Vasco de Seabra disse-me pela primeira vez
«que era muito meu amigo.» O
coração pulsava-lhe vagaroso, os olhos
não faiscavam electricidade, os sorrisos eram frios... os
meus beijos já os não aqueciam n'aquelles labios!
«Sinto por ti uma sincera estima.» Quando isto se
diz, depois d'um amor vertiginoso, que não sabe as phrases
triviaes, a
paixão está morta. E estava...
«Depois, Carlos, fallavamos em litteratura, analysavamos as
operas, discutiamos o merito dos romances, e viviamos em academia
permanente, quando Vasco me não deixava quatro, cinco, e
seis horas entregue
ás minhas innocentes recreações
scientificas.
«Vasco cançara-se de mim. A consciencia
affirmou-me esta verdade atroz. Suffoquei a
indignação, as lagrimas, e os gemidos. Soffri sem
limites. Abrasou-se-me
[87]na
alma um inferno que me coava fogo nas
vêas. Não houve nunca mulher assim
desgraçada!
«E vivemos assim dezoito mezes. A palavra
«casamento» foi banida de nossas curtas
conversações... Vasco desquitava-se de
compromissos, que elle chamava parvos. Eu mesma, de bom grado, o remia
de ser o meu escravo, como elle intitulava o nescio, que se deixava
algemar ás obscuras superstições do
setimo sacramento... Foi ahi que Vasco de Seabra encontrou a Sophia que
te apresentei no real theatro de S. João, na primeira ordem.
«Comecei então a pensar em minha mãi,
em meu irmão, na minha honra, na minha infancia, na memoria
deslustrada de meu pai, na tranquillidade de minha vida até
ao momento em que me atirei á lama e
salpiquei com ella a face da minha familia.
«Peguei da penna para escrever a minha mãi.
Escrevera a primeira palavra, quando comprehendi o vexame, a
degradação, e a villania com que ousava
apresentar-me áquella virtuosa senhora, com a face manchada
de nodoas, contagiosas. Repelli com nobreza esta
tentação, e desejei n'aquelle instante, que minha
mãi me julgasse morta.
«Em Londres viviamos n'uma hospedaria, depois que Vasco
perdeu o medo a meu irmão. Viera ahi hospedar-se uma familia
portugueza. Era o visconde do Prado, e sua mulher, e uma filha. O
visconde relacionou-se com Vasco, e a viscondessa e sua filha
visitaram-me, tractando-me como irmã de Vasco.
«Agora, Carlos, esquece-te de mim, e satisfaz a tua
curiosidade na historia d'esta gente, que já
conheceste no camarote da 2.ª ordem.
«Mas não posso agora dispor de mim...
Saberás, alguma vez, a razão porque
não pude continuar
esta carta.
«Adeus, até outro dia,
Henriqueta.»
[88]
VII.
«Cumpro religiosamente as minhas promessas. Tu não
avalias o sacrificio que faço. Não
importa. Como não quero captivar a tua gratidão,
nem, mesmo
ainda, mover a tua piedade, basta-me a consciencia do que sou para ti,
que é (medita bem) o mais que posso ser...
«A historia... não é assim? Principia
agora.
«Antonio Alves era um pobre amanuense do escriptorio de um
tabellião de Lisboa. Casou, e reuniu ao infortunio de casar
a desgraça de ser pai. O
tabellião morreu, e Antonio Alves, privado dos escassos
lucros de amanuense, luctou com a fome. A mulher por um lado com a
filhinha ao collo, e elle pelo outro com as lagrimas da indigencia,
conseguiram algumas moedas, e com ellas a passagem do pobre marido para
o Rio de Janeiro.
«Foi, e deixou entregues á Providencia a mulher e
a filha.
«Josepha esperava todos os dias carta de seu marido. Nem
carta, nem um indicio da sua existencia. Julgou-se viuva, vestiu-se de
preto, e viveu de esmolas, pedidas á noite na
praça do
Rocio.
«A filha chamava-se Laura, e crescera bella, não
obstante as angustias da fome, que transformam a formosura do
berço.
«Aos quinze annos de Laura, já sua mãi
não mendigava. A deshonra proporcionara-lhe abundancia que
uma honrosa mendicidade lhe não dera. Laura era amante d'um
rico, que cumpria fielmente com a mãi as condicionaes
estipuladas na escriptura de venda da filha.
«Um anno depois, Laura explorava outra mina. Josepha
não soffria com as vicissitudes da filha, e continuava
[89]a gosar os fins da
vida á sombra de tão
fecunda arvore.
«A indigencia, e a sociedade fizeram-lhe comprehender que
só ha deshonra na fome e na nudez.
«Outro anno depois, a radiosa Laura declarou-se o premio do
cavalleiro, que mais airoso entrasse no torneio.
«Concorreram muitos gladiadores, e parece que todos foram
premiados, porque todos esgrimiam galhardamente.
«Desgraça foi para Laura, quando os melhores
campeões se retiraram fatigados da liça. Os que
vieram depois eram bisonhos no jogo das armas, e viram que a dama das
justas já não valia a pena de
perigosos botes de lança, e de arreios muito custosos de
pedraria e ouro.
«Pobre Laura, apeada do seu pedestal, olhou-se a um espelho,
viu-se ainda bella com vinte e cinco annos, e perguntou á
sua consciencia a baixa do preço com que corria no
leilão de mulheres. A consciencia respondeu-lhe que descesse
da altura das suas
ambições, que viesse para onde a chamava a logica
da sua vida, e continuaria a ser rainha n'um reino de segunda ordem,
já que a exauthoravam d'um throno que tivera na primeira.
«Laura desceu, e encontrou uma sociedade nova. Acclamaram-na
soberana, reuniu-se uma côrte tumultuosa na ante-camara
d'esta odalisca
facil, e não houve grande nem pequeno a quem se baixassem os
reposteiros do throno.
«Laura viu-se um dia abandonada. Viera uma outra disputar-lhe
a sua legitimidade. Os cortezãos voltaram-se para o sol
nascente, e apedrejaram, como os incas, o astro que se escondia para
alumiar os antipodas d'um outro mundo.
«Os antipodas d'um outro mundo eram uma sociedade
[90]inculta, sem a
intelligencia da arte, sem o culto á
formosura, sem as opulencias que o ouro cria nas altas
regiões da civilisação, e,
finalmente, sem algum dos attributos, que Laura amára tanto
nos mundos, onde fôra soberana duas vezes.
«A infeliz tinha descido ao derradeiro grau de aviltamento;
mas era bella ainda. Sua mãi, enferma n'um hospital, pedia a
Deus, como esmola, a sua morte. A desgraçada foi punida.
«No hospital, viu passar sua filha diante do seu leito; pediu
que a deitassem ao pé de si; o enfermeiro riu-se; e entrou
com ella n'outra enfermaria, onde o anjo do pudor e o das lagrimas
cobriam o rosto na presença da ulcera mais esqualida, e mais
lastimosa do genero humano.
«Laura principiava a sondar a profundidade do abysmo em que
cahira.
«Sua mãi recordava as fomes d'outro tempo, quando
sua filha, virgem ainda, chorava e supplicava, com ella, uma esmola ao
passageiro.
«As privações de então eram
semelhantes, ás privações de agora,
com a differença,
porém, que a Laura de hoje, deshonrada e repelida,
não podia
já prometter o futuro da Laura de então.
«Agora, Carlos, vejamos o que é o mundo, e
pasmemos diante das evoluções gymnasticas dos
acontecimentos.
«Apparece em Lisboa um capitalista, que chama a
attenção dos capitalistas, a
consideração do governo, e, por via de regra,
desafia inimisades politicas, e invejas, que procuram o seu principio
de vida para denegrir-lhe o luzimento da sua affrontosa opulencia.
«Este homem compra uma quinta na provincia do Minho, e, mais
barato ainda, compra o titulo de visconde do Prado.
«Um jornal de Lisboa, que traz entre os dentes
[91]venenosos da
politica o pobre visconde, escreve um dia um artigo, onde
se acham, entre muitas, as seguintes allusões:
«O snr. visconde do Prado adscreveu á immoralidade
do governo a immoralidade da sua fortuna. Como ella foi adquirida,
dil-o-hiam as costas d'Africa se os sertões contassem os
horrorosos dramas da escravatura, em que o snr. visconde foi heroe.
«O snr. visconde do Prado era Antonio Alves ha 26 annos, e a
pobre mulher que deixou em Portugal, com uma tenra filhinha ao collo,
ninguem dirá em que rua morreu de fome sobre as lages, ou em
que agua-furtada curtiram ambas as agonias da fome, em quanto o snr.
visconde medrava cynicamente na hydropisia do ouro, com que hoje vem
arrotar moralidades no theatro das suas infamias de esposo e de
pai.................................
«Melhor fôra que o snr. visconde indagasse onde
repousam os ossos de sua mulher, e de sua filha, e nos pozesse ahi um
padrão de marmore, que possa attestar ao menos o remorso
d'um infame contricto...
«Este insulto directo, e fundamentado, ao visconde do Prado,
fez ruido em Lisboa. As edições do
jornal espalharam-se, e leram-se, e commentaram-se com frenetica
maldade.
«Ás mãos de Laura chegou este jornal.
Sua mãi, ouvindo lêl-o, delirou. A filha cuidou
que sonhava; e a situação de ambas perderia muito
se eu tentasse
roubar-lhe as côres vigorosas da tua
imaginação.
«No dia seguinte, Josepha e Laura entravam no palacete do
visconde do Prado. O porteiro respondeu que s. exc.
a
não
estava ainda a pé. Esperaram.
Ás 11 horas sahia o visconde, e, ao saltar para a carruagem,
viu duas mulheres que se aproximavam. Metteu a mão ao bolso
do collete, e tirou doze vintens que lançava na
mão de uma das duas mulheres. Olhou admirado para ellas,
quando viu que a esmola lhe era recusada.
[92]
«―Que querem?―interrogou elle, com soberba
indignação.
«―Quero vêr meu marido que não vejo, ha
26 annos...―respondeu Josepha.
«O visconde estacou ferido d'um raio. O suor gotejava-lhe na
testa em bagas frias. Laura aproximou-se, em attitude de beijar-lhe a
mão...
«―Pois que?...―interpellou o visconde.
«―Sou sua filha...―respondeu Laura com humildoso respeito.
«O visconde, aturdido e parvo, voltou as costas á
carruagem, e mandou ás duas mulheres que o
seguissem.
«O resto no correio seguinte.―Adeus, Carlos.
Henriqueta.»
VIII.
«Carlos, tenho quasi tocado a extrema d'esta minha
peregrinação. A minha illiada está no
ultimo canto. Quero dizer-te que é esta a minha penultima
carta.
«Não sou tão independente como pensava.
A não serem os poetas, ninguem gosta de contar as suas
magoas ao vento. É bello dizer-se, que um gemido nas azas da
brisa vai da terra em dorido suspirar até ao
côro dos anjos. É bonito conversar com a fonte
suspirosa, e contar á avesinha gemedôra os
segredos do nosso
penar. Tudo isto é delicioso d'uma puerilidade inoffensiva;
mas eu, Carlos, não tenho alma para estas cousas, nem
engenho para estes artificios.
«Vou contando as minhas penas a um homem, que não
póde zombar de minhas lagrimas, sem
trahir a generosidade do seu coração, e a
sensibilidade do
talento.
[93]
Sabes qual é o meu egoismo, o meu estipendio n'este
trabalho, n'esta franqueza d'alma, que ninguem te póde
disputar como unico em merecêl-a? Eu te digo. Quero uma carta
tua, dirigida a Angelica Michaela. Diz-me o que a tua alma te disse;
não tenhas pejo em denuncial-a; associa-te um momento
á minha dôr, e dize-me o que farias se tivesses
sido Henriqueta.
«Aqui tens o prologo d'esta carta: agora vamos espreitar o
lance extraordinario d'aquelle encontro, em que deixamos o visconde e
a... como hei-de chamar-lhe?... a viscondessa, e sua exc.
ma
filha D.
Laura.
«―Pois é possivel existires?―perguntava o
visconde, sinceramente admirado, a sua mulher.
«―Pois não me conheces, Antonio?―respondia ella
com estupida naturalidade.
«―Tinham-me dito que morreras...―tornou elle com desazada
hypocrisia―tinham-me dito, ha dezesete annos, que tu e a nossa filha
tinheis sido victimas da cholera-morbus...
«―Felizmente que lhe mentiram―interrompeu Laura com
affectada meiguice.―Nós é que lhe
tinhamos resado por alma, e nunca deixamos de pronunciar o seu nome sem
saudosas lagrimas.
«―Como tendes vivido?―perguntou o visconde.
«―Pobre, mas honradamente―respondeu Josepha, dando-se uns
ares austeros, e pondo os olhos em branco, como quem invoca o
céo por testemunha.
«―Ainda bem!―tornou o visconde―mas que modo de vida tem
sido o vosso?
«―O trabalho, meu querido Antonio, o trabalho de nossa filha
tem sido o amparo da sua honra, e da minha velhice. Tu abandonaste-nos
com tamanha crueldade!... Que mal te fizemos nós?
«―Nenhum, mas não vos disse eu que vos
considerava mortas?―respondeu o visconde a sua mulher,
[94]que
tivera a habilidade de arrancar duas volumosas lagrimas, tanto a
proposito.
«―O passado, passado―disse Laura, afagando carinhosamente
as mãos paternas, e dando-se uns ares de innocencia capazes
de illudir S. Simão Stylita.―Quer o pai saber (proseguiu
ella com sentimento) qual tem sido a minha vida? Olhe, meu pai,
não se envergonhe da posição social em
que encontra sua filha... Tenho sido modista, tenho trabalhado
incessantemente... tenho luctado com as tentações
da penuria, e
tenho feito consistir em minhas lagrimas o meu triumpho...
«―Bem, minha filha―interrompeu o visconde com sincera
contrição―esqueçamos o
passado.... D'hora em diante será a abundancia a premio da
tua
virtude... Ora diz-me: o mundo sabe que tu és minha
filha?... disseste a alguem que eu era teu marido, Josepha?
«―Não, meu pai.―Não meu
Antoninho.―Responderam ambas, como se tivessem previsto e calculado as
perguntas e as respostas.
«―Pois bem―continuou o visconde―vamos a conciliar com o
mundo as nossas posições
presentes, passadas e futuras. D'hora ávante, Laura,
és
minha filha, és filha do visconde do Prado, e não
pódes chamar-te Laura. Serás Elisa,
comprehendes-me? é necessario
que te chames Elisa...
«―Sim, meu pai... eu serei Elisa―atalhou a
innocente modista com impetuosa
alegria.
«―É necessario abandonar Lisboa―proseguiu o
visconde.
«―Sim, sim, meu pai... vivamos num sertão...
quero gosar, sosinha, na presença de Deus a felicidade de
ter pai...
«―Não hiremos para um sertão... vamos
para Londres; mas... attendam-me... é preciso que ninguem as
veja, n'estes primeiros annos, principalmente
[95]em
Lisboa... A minha posição actual é
muito melindrosa. Tenho muitos inimigos, muitos invejosos, muitos
infames, que procuram perder-me no conceito que pude comprar com o meu
dinheiro. Estou farto de Lisboa; partiremos no primeiro paquete...
Josepha, repara em ti, e vê que és a viscondessa
do Prado. Elisa, a
tua educação foi desgraçadamente
mesquinha para te poderes mostrar qual eu quero que sejas na alta
sociedade. Voltaremos um dia, e terás então
supprido com a
educação pratica a rudeza que indispensavelmente
tens.
«Não progrido, n'este dialogo, Carlos. O programma
do visconde foi rigorosamente cumprido.
«Aqui tens os precedentes que prepararam o meu encontro, em
Londres, com esta familia. Vasco de Seabra, quando viu, pela primeira
vez, a filha do visconde atravessar um corredor do hotel, fixou-a com
pasmo, e veio dizer-me que acabava de vêr, elegantemente
trajada, uma mulher que conhecera em Lisboa, chamada Laura. Acrescentou
varias circumstancias da vida d'esta mulher, e acabou por mostrar vivos
desejos de saber o tolo opulento, a quem tal mulher estava associada.
«Vasco pediu a lista dos hospedes, e viu que os
unicos portuguezes eram Vasco de Seabra e
sua irmã, e o visconde do
Prado, a sua mulher, e sua filha D. Elisa Pimentel.
«Redobrou o seu pasmo, e chegou a convencer-se d'uma
illusão.
«No seguinte dia, o visconde encontrou-se com Vasco, e
alegrou-se de ter encontrado um patricio, que lhe explicasse aquelles
gritos barbaros dos serventes do hotel, que lhe davam agua por vinho.
Vasco não duvidou em ser interprete do visconde, com tanto
que as suas luzes em lingua ingleza podessem chegar ao escondrijo
d'onde nunca mais vira sahir a supposta Laura.
«Correram as cousas á medida do seu desejo. Na
noite d'esse dia, fomos convidados para tomar chá, na
[96]saleta
do visconde. Eu hesitei, sem saber ainda se Laura seria familiar do
visconde. Vasco, porém, despreveniu-me d'este temor,
afiançando-me que se tinha illudido com a
semelhança das duas mulheres.
«Fui. Elisa pareceu-me uma menina bem educada. Nunca o
artificio tirou maior partido das maneiras adquiridas em habitos
libertinos. Elisa era a mulher de côrte, com os ademans
fascinadores dos salões,
onde a immoralidade do coração passeia de
braço dado com a illustração do
espirito. O som da palavra, a
escolha da phrase, a compostura airosa da mimica, o tom sublime em que
as suas idêas eram voluptuosamente lançadas
na torrente de uma conversação animada, tudo isto
me fez crêr que Laura era a primeira mulher que eu tinha
encontrado, talhada á feição do meu
espirito.
«Quando agora pergunto á minha consciencia como
estas transições se fazem, descreio da
educação, lamento os annos consumidos no cultivo
da intelligencia, e chego a persuadir-me que a escóla da
devassidão
é a ante-camara por onde mais facil se entra no mundo da
graça e da civilisação.
«Perdôa-me o absurdo, Carlos; mas ha mysterios na
vida, que só pelo absurdo se explicam.
Henriqueta.»
IX.
«Li a tua carta, Carlos, com os olhos cheios de lagrimas, e o
coração de reconhecimento.
Não esperava tanto da tua sensibilidade. Fiz-te a
injustiça de te julgar infeccionado d'este marasmo de
egoismo que entorpece o espirito, e calcina o
coração. E, de mais,
suppunha-te insensivel pelo facto de seres intelligente. Eis-aqui
[97]um disparate, que
eu não ousaria
balbuciar na
presença do mundo. O que vale é que as minhas
cartas não
serão lidas pelas mediocridades, que se acham em concilio
permanente para condemnar, em nome de não sei que tolas
conveniencias, as heresias do genio.
«Deixa-me dizer-te francamente o juizo que eu
fórmo do homem transcendente em genio, em estro, em fogo, em
originalidade, finalmente em tudo isso que se inveja, que se ama, e que
se detesta, muitas vezes.
«O homem de talento é sempre um mau homem. Alguns
conheço eu que o mundo proclama virtuosos, e sabios.
Deixal-os proclamar. O talento não é a sabedoria.
Sabedoria é o trabalho incessante do espirito sobre a
sciencia. O talento é a
vibração convulsiva do espirito, a originalidade
inventiva e rebelde á authoridade,
a viagem extatica pelas regiões incognitas da
idêa. Santo Agostinho, Fenelon, Madame de Stael, e Bentham
são sabedorias. Luthero, Ninon de Lenclós,
Voltaire e Byron são talentos. Compara as vicissitudes
d'essas duas mulheres, e os serviços prestados á
humanidade
por esses homens, e terás encontrado o antagonismo social em
que luctam o talento com a sabedoria.
«Porque é mau o homem de talento? Essa bella
flôr porque tem no seio um espinho envenenado? Essa
esplendida taça de brilhantes e ouro porque é que
contem o fel, que abrasa os labios de quem a toca?
«Aqui tens um thema para trabalhos superiores á
cabeça d'uma mulher, ainda mesmo reforçada por
duas duzias de cabeças academicas!
«Lembra-me ouvir dizer a um doudo que soffria por ter
talento. Pedi-lhe as circumstancias do seu martyrio sublime, e
respondeu-me o seguinte com a mais profunda
convicção, e a mais tocante solemnidade
philosophica: Os talentos são raros, e os estupidos
são muitos. Os estupidos guerream barbaramente o talento:
são os vandalos do mundo espiritual. O talento
não tem
[98]partido
n'esta peleja desigual. Foge,
dispara na retirada um tiroteio de sarcasmos pungentes, e, por
fim, isola-se, segrega-se do contacto do mundo, e curte em
silencio aquelle fel de vingança, que, mais cedo ou mais
tarde, cospe na cara d'algum inimigo, que encontra desviado do corpo do
exercito.
«Ahi tem―acrescentou elle―a razão porque o homem
de talento é perigoso na sociedade. O odio inspira-lhe a
eloquencia da traição. A mulher,
que lhe ouve o astucioso hymno das suas apaixonadas lamurias,
acredita-o, abandona-se, perde-se, e retira-se, por fim, gritando
contra o seu algoz, e pedindo á sociedade que grite com
ella.
«Agora, diz-me tu, Carlos, até que ponto devemos
acreditar este doudo. Eu por mim não me satisfaço
com o seu systema, todavia sinto-me propensa a aperfeiçoar o
prisma do doudo, até encontrar as côres
inalteraveis do juizo.
«Seja o que fôr, eu creio que és uma
excepção e não soffra com isto a tua
modestia. A tua carta fez-me chorar, e acredito que soffrias,
escrevendo-a. Has-de continuar a visitar-me espiritualmente na minha
Thebaida, sem cilicios, sim?
«Agora conclua-se a historia, que leva seus visos de folhetim
philosophico, moral, social, e não sei que mais por ahi se
diz, que não vale nada.
«Contrahi amisade com a filha do visconde do Prado.
Não era ella, porém, tão
intima, que me levasse a declarar-lhe que Vasco de Seabra
não era meu
irmão. Por elle me fôra imposto, como preceito, o
segredo de nossas relações. Bem longe estava eu
de
comprehender este zelo de virtuosa honestidade, quando a mão
d'um demonio me tirou a venda dos olhos.
«Vasco amava Laura!! Eu puz dous pontos de
admiração, mas acredita que foi uma urgencia
rhetorica, uma composição artistica,
que me obrigou a
admirar-me,
[99]escrevendo,
de cousas que me não
admiram, pensando.
«Que é o que levou tão depressa este
homem a aborrecer-me, pobre mulher, que despresei o mundo, e me
despresei a mim propria para satisfazer-lhe o capricho d'alguns mezes?
Foi uma miseria que ainda hoje me envergonha, supposto que esta
vergonha devesse ser um reflexo das faces d'elle... Vasco amava a filha
do visconde do Prado, a
Laura
d'alguns
mezes antes, porque a Elisa d'hoje era a herdeira de não sei
quantos centos de contos de reis.
«Devo envergonhar-me de ter amado este homem, nao
é verdade, Carlos? Não devo soffrer um
instante a perda d'um miseravel, que eu vejo d'aqui com uma grilheta
d'ouro algemada a uma perna, tapando em vão os ouvidos para
não ouvir-lhe o ruido... a sentença
do forçado que o segue até ao fim d'uma
existencia
farta de opprobrio, e celebre de infamias!
«E não soffro, Carlos! Tenho aqui no seio uma
ulcera que não tem cura... choro, porque é
intensa a dôr que ella me causa... mas, olha, não
tenho
lagrimas que não sejam remorsos... não tenho
remorsos que não sejam picados pela affronta que fiz a minha
mãi, e a meu irmão... Não me doe o meu
proprio
aviltamento, não! Se em minha alma cabe algum enthusiasmo,
algum desejo, é o enthusiasmo da penitencia, é o
desejo de torturar-me...
«Fugi tanto da historia, meu Deus!... Desculpa estes desvios,
meu paciente amigo!... Eu queria correr muito sobre o que me falta, e
hei-de conseguil-o, porque não posso parar, e temo de me
converter em estatua, como a mulher de Loth, quando olho com
attenção para o meu passado...
«O visconde do Prado convidou Vasco de Seabra a ser seu
genro. Vasco não sei como recebeu o convite; o que eu sei
é que os vinculos d'estas
relações estreitaram-se
[100]muito,
e Elisa, desde esse dia,
expandiu-se comigo em intimidades do seu passado, todas mentirosas.
Estas intimidades eram o prologo d'outra que tu avaliarás.
Foi ella a propria que me disse que esperava ainda poder chamar-me
irmã! Isto é uma atrocidade
sublime, Carlos! Diante d'essa dôr calam-se todas as agonias
possiveis! O insulto não podia ser mais
despedaçador! O punhal não podia entrar mais
dentro no virtuoso coração da pobre amante de
Vasco de Seabra!...
Agora, sim, que eu quero a tua admiração, meu
amigo! Tenho direito á tua compaixão, se
não
pódes estremecer de enthusiasmo diante do heroismo d'uma
martyr! Ouvi este annuncio dilacerante!... Senti fugir-me o
entendimento... aquella mulher suffocou-me a voz na garganta...
horrorisei-me não sei se d'ella, se d'elle, se de mim... Nem
uma lagrima!... acreditei-me douda... Senti-me estupida d'aquelle
idiotismo pungente que faz chorar os estranhos, que nos vêem
nos labios um sorriso de imbecilidade...
«Elisa parece que recuou aterrada da expressão da
minha physionomia... Fez-me não sei que perguntas...
não me lembro mesmo se aquella mulher permaneceu diante de
mim... Basta!... não posso prolongar esta
situação...
«Na tarde d'esse mesmo dia, chamei uma creada da hospedaria.
Pedi-lhe que me vendesse algumas joias de pouco valor que eu possuia;
eram minhas; minhas não... eram um roubo que eu fiz a minha
mãi.
«Na manhã do dia seguinte, quando Vasco, depois de
almoço, visitava o visconde do Prado, escrevi estas linhas:
«Vasco de Seabra não póde gloriar-se de
ter deshonrado Henriqueta de Lencastre. Esta mulher sentia-se digna
d'uma corôa de virgem, virgem do
coração, virgem na sua honra, quando abandonava
um villão, que não pôde infectar da sua
infamia o coração
[101]da
mulher, que arrastou ao abysmo da sua
lama, sem lhe salpicar a cara. Foi a Providencia que a
salvou!»
«Deixei este escripto sobre as luvas de Vasco, e fui
á estação dos caminhos de ferro.
«Dous dias depois entrava n'um paquete.
«Ao vêr a minha patria, cobri o rosto com as
mãos, e chorei... Era a vergonha e o remorso. Diante do
Porto senti uma inspiração do céo.
Saltei n'uma catraia, e pouco depois achava-me n'esta terra, sem um
conhecimento, sem um apoio, e sem subsistencia para muitos dias.
«Entrei em casa d'uma modista, e pedi obra. Não
m'a negou. Aluguei uma agua-furtada, onde trabalho ha quatro annos;
onde, ha quatro annos, comprimo bem aos rins, segundo a linguagem
antiga, os cilicios do meu remorso.
«Minha mãi e meu irmão vivem. Julgam-me
morta, e eu peço a Deus que não haja um indicio
da minha
vida. Sê-me tu fiel, meu generoso amigo, não me
denuncies, pela tua honra, e pela sorte de tuas irmãs.
«Tu sabes o resto. Ouviste, no theatro, Elisa. Foi ella a que
disse que seu marido a abandonára, chamando-lhe
Laura. Aquella
está punida...
«Sophia... (lembras-te de Sophia?) essa é uma
pequena aventura, que aproveitei para tornar menos insipidas aquellas
horas, em que me acompanhaste... Foi uma rival que não honra
ninguem... uma
Laura com os respeitos publicos, e
as considerações que se
barateiam a corpos ulcerosos, com tanto que se vistam de veludos
matizados. Ainda eu era feliz, quando o infame amante d'essa mulher me
dava aquelle annel, que viste, como oblação de
sacrificio que me fazia d'uma
rival...
«Escreve-me.
«Has-de ouvir-me no proximo carnaval.
«Por ultimo, Carlos, deixa-me fazer-te uma pergunta:
[102]
«Não me achas mais defeituosa que o nariz
d'aquella andaluza da historia, que te contei?
Henriqueta.»
X.
É natural a exaltação de Carlos,
depois de erguido o véo, em que se escondiam os mysterios de
Henriqueta. Alma apaixonada pela poesia do bello, e pela poesia da
desgraça, Carlos não teve nunca
impressão na vida, que mais lhe incendiasse uma
paixão!
As cartas a Angela Michaela eram o desafogo do seu amor sem
esperança. Os mais ferventes extasis da sua alma de poeta,
imprimiu-os n'aquellas cartas escriptas, debaixo de uma
impressão, que lhe roubava a tranquilidade do somno, e o
refugio d'outros affectos.
Henriqueta respondera concisamente ás explosões
d'um delirio, que nem sequer a fazia tremer pelo seu futuro. Henriqueta
não podia amar. Arrancaram-lhe pela raiz a flôr do
coração.
Esterilisaram-lhe a arvore dos bellos fructos, e envenenaram-lhe de
sarcasmo e ironia os instinctos do carinho brando, que acompanham a
mulher até á sepultura.
Carlos não podia supportar uma repulsa nobre. Persuadira-se
que havia um estalão moral para todas. Confiava no seu
ascendente, em não sei que mulheres, entre as quaes lhe
não fôra penoso nunca fixar o
dia do seu triumpho.
Homens assim, quando encontram um estorvo, apaixonam-se seriamente. O
amor-proprio, angustiado nos apertos d'uma impossibilidade invencivel,
adquire uma nova feição, e converte-se em
paixão, como as paixões primeiras, que nos sopram
a tempestade no limpido lago da adolescencia.
[103]
Carlos, em ultimo recurso, precisava saber onde morava Henriqueta. No
lance extremo d'um desafogo, hiria elle, audacioso, humilhar-se aos
pés d'aquella mulher,
que a não poder amal-o, choraria com elle ao menos.
Estas preciosas futilidades escaldavam-lhe a
imaginação, quando lhe occorreu a astuciosa
lembrança de surprehender a morada de Henriqueta
surprehendendo a pessoa que no correio lhe tirava as cartas,
subscriptadas a Angela Michaela.
Conseguido o compromettimento d'um empregado do correio, Carlos
empregou n'esta missão um vigia
insuspeito.
No dia de correio, uma velha, mal trajada, pediu a carta n.º
628. O
que a entregou fez um signal a um homem, que passeava no corredor, e
este homem seguiu de longe a velha até ao campo de Santo
Ovidio. Feliz das vantagens, que lucrára em tal
commissão, correu a encontrar-se com Carlos. É
ocioso descrever a precipitação com que o
enamorado mancebo,
espiritualisado por algumas libras, correu á indicada casa.
Em honra de Carlos, é necessario dizer que aquellas libras
representavam a eloquencia com que elle tentaria mover a velha em seu
favor, por isso que, á vista das
informações que tivera da pobreza da casa,
concluiu que não era alli a residencia de Henriqueta.
Acertou.
A confidente de Henriqueta fechava a porta da sua baiuca, quando Carlos
se aproximou, e muito urbanamente lhe pediu licença para
dizer-lhe duas palavras.
A velha, que não podia receiar alguma aggressão
traiçoeira aos seus virtuosos oitenta annos, franqueou os
umbraes da sua possilga, e prestou ao seu hospede a cadeira unica do
seu camarim de tecto de vigas, e pavimento de lages.
Carlos principiou como devia o seu ataque. Lembrado
[104]da chave com que
Bernardes manda fechar os sonetos, applicou-a
á abertura da prosa, e conheceu de prompto as vantagens de
ser classico, quando convém. A velha, quando viu cahir no
regaço duas libras, sentiu o que nunca sentira a mais
carinhosa das mães, com dous filhinhos no collo. Luziram-lhe
os olhos, e
dançaram-lhe os nervos em todas as
evoluções dos seus vinte e cinco annos.
Feito isto, Carlos precisou a sua missão nos seguintes
termos:
«Esse pequeno donativo, que lhe faço, ha-de ser
repetido, se vm.
ce me fizer um grande
serviço, que
póde fazer-me. vm.
ce recebeu, ha
pouco, uma carta, e vai
entregal-a a uma pessoa, cuja felicidade está nas minhas
mãos. Estou certo que vm.
ce
não ha-de
querer occultar-me a morada d'essa senhora, e prival-a de ser feliz. O
serviço que tenho a pedir-lhe, e a pagar-lhe bem,
é este; póde fazer-m'o?
A fragil mulher, que não se sentia bastante heroina para hir
de encontro á legenda, que D. João V.
fez gravar nos cruzados, deixou-se vencer, com mais algumas
reflexões e denunciou o santo asylo das lagrimas de
Henriqueta, segunda vez atraiçoada por uma mulher, fragil
á tentação do ouro, que lhe
roubára um amante, e vem agora devassar-lhe o seu sagrado
refugio.
Poucas horas depois, Carlos entrava em uma casa da
rua
dos Pelames, subia a um
terceiro andar, e batia a uma porta, que lhe não foi aberta.
Esperou. Momentos depois, subia um rapaz com uma caixa de
chapéo de senhora: bateu; perguntaram de dentro quem era, o
rapaz fallou, e a porta foi immediatamente aberta.
Henriqueta estava sem dominó na presença de
Carlos.
Foi sublime esta apparição. A mulher, que Carlos
viu, não saberemos nós pintal-a. Era o original
d'essas esplendidas illuminuras, que o pincel do seculo XVI fazia
[105]saltar
da téla, e consagrava a Deus, denominando-as Magdalena,
Maria Egypsiaca, e Margarida de Corthona.
O homem é fraco, e sente-se mesquinho perante a magestade da
belleza! Carlos sentiu-se dobrar nos joelhos; e a primeira palavra, que
balbuciou foi
«perdão!»
Henriqueta não pôde receber com a firmesa, que
devia suppor-se-lhe, uma tal surpreza. Sentou-se e limpou o suor que
lhe correra de improviso todo o corpo.
A coragem de Carlos desmereceu do muito em que elle a tinha. Succumbiu,
e nem, ao menos lhe deixou o dom dos lugares communs. Silenciosos,
olhavam-se com uma simplicidade infantil, indigna de ambos. Henriqueta
revolvia no pensamento a industria com que o seu segredo fôra
violado. Carlos invocava ao
coração palavras que o salvassem d'aquella crise,
que o materialisava por ter tocado o extremo do espiritualismo.
Não nos faremos cargo de satisfazer as despoticas exigencias
do leitor, que pede contas das
interjeições, e das reticencias d'um dialogo.
O que podemos garantir-lhe, debaixo da nossa palavra de folhetinista,
é que a musa das
lamentações desceu á
invocação de Carlos, que, por
fim, desenvolveu toda a eloquencia da paixão. Henriqueta
ouviu-o com a seriedade com que uma rainha absoluta escuta um ministro
da fazenda, que lhe conta os chatissismos e massudos negocios das
finanças.
Sorria-se, ás vezes, e respondia com um resaibo de magoa e
de resentimento, que matava, no nascedouro, os transportes do seu
infeliz amante.
As suas ultimas palavras, essas sim, são dignas de se
archivarem para escarmento d'aquelles que se julgam herdeiros dos raios
de Jupiter Olympico, quando se empavonam de fulminar as mulheres, que
tiveram a desventura de se queimarem, como as mariposas, no lume
electrico de seus olhos. Foram estas as suas palavras:
«Snr. Carlos! Até hoje os nossos espiritos viveram
[106]ligados por umas
nupcias, que eu pensei não perturbarem
a nossa cara tranquillidade, nem escandalisarem a caprichosa
opinião publica. D'hora em diante, um solemne divorcio entre
os nossos espiritos. Estou punida de mais. Fui fraca e talvez
má, em prender-lhe a sua attenção n'um
baile mascarado. Perdoe-me, que
sou, por isso, mais desgraçada do que pensa. Seja meu amigo.
Não me envenene esta santa obscuridade, este circulo
estreito da minha vida, em que a mão de Deus tem derramado
algumas flôres. Se não póde
avaliar o travo das minhas lagrimas, respeite cavalheiramente uma
mulher, que lhe pede com as mãos erguidas o favor, a piedade
de a deixar sósinha com o segredo da sua deshonra; que eu
prometto nunca mais alargar a minha alma n'estas
revelações, que morreriam comigo, se
eu podesse suspeitar que attrahia com ellas a minha
desgraça...»
Henriqueta continuava, quando Carlos, com lagrimas d'uma dôr
sincera, lhe pedia ao menos a sua estima, e lhe entregava as suas
cartas, debaixo do sagrado juramento de nunca mais a procurar.
Henriqueta, enthusiasmada pelo pathetico d'esta nobre rogativa, apertou
anciosamente a mão de Carlos, e despediram-se....
E nunca mais se viram.
Mas o leitor tem direito a saber mais alguma cousa.
Carlos, um mez depois, partiu para Lisboa, colheu as necessarias
informações, e entrou em casa da mãi
de Henriqueta. Uma senhora, vestida de lucto, e encostada a duas
creadas, veio encontral-o n'uma sala.
―Não tenho a honra de conhecer...―disse a mãi
de Henriqueta.
―Sou um amigo...
―De meu filho?!...―interrompeu ella―Vem-me
[107]dar
parte do triste acontecimento?... Eu já o sei!... Meu filho
é um assassino!...
E prerompeu n'um choro, que a não deixava articular
palavras.
―O filho de v. exc.
a assassino!... interpellou
Carlos.
―Sim... sim... pois não sabe que elle matou em Londres o
seductor da minha desgraçada filha?!... da minha filha...
assassinada por elle...
―Assassinada, sim, mas só na sua honra―atalhou Carlos.
―Pois minha filha vive!... Henriqueta vive!... Oh meu Deus, meu Deus,
eu vos agradeço!...
A pobre senhora ajoelhou, as creadas ajoelharam com ella, e Carlos
sentiu um calefrio nervoso, e uma exaltação
religiosa, que quasi o fizeram ajoelhar
com aquelle grupo de mulheres, cobertas de lagrimas....
Dias depois, Henriqueta era procurada no seu terceiro andar, por seu
irmão, e choravam ambos abraçados com toda a
expansão d'uma dôr represada.
Houve ahi um drama de agonias grandiosas, que a linguagem do homem
não saberá descrever nunca.
Henriqueta abraçou sua mãi, e entrou n'um
convento onde pede incessantemente a Deus a
salvação de Vasco de Seabra.
Carlos é o intimo amigo d'esta familia, e conta este lance
da sua vida como um heroismo digno d'outras épocas.
Laura, viuva de quatro mezes, contrahe segundas nupcias, e vive feliz
com o seu segundo marido, digno d'ella.
Acabou o conto.
DINHEIRO! DINHEIRO!
Contaram-me, ha poucas horas, um episodio da extraordinaria vida d'um
homem, que apenas hoje conta vinte e cinco annos. Quem elle
é não o direi eu,
ainda que me façam... eu sei cá!? bacharel! Eu
bem sei que não posso encarecer-me com este segredo, porque
ha ahi uma boa duzia de pessoas que o sabem, por triste experiencia,
mais miudamente que eu.
Mas o que é mais bonito, e não sei mesmo se mais
romantico, é que eu conheço pelo menos quatro
primas-donas, afóra as comprimarias, d'esta partitura, que
negam com toda a energia dos seus brios o importante papel que
desempenharam.
Deixal-as negar, que eu tambem não digo quem ellas
são, ainda que me deem o habito de Christo.
Outra cousa:
O muito veridico archivista dos factos, que vão
lêr-se, pediu-me, por tudo quanto ha sagrado no folhetim, que
não divulgasse, nem por sombras, o seu nome.
Não o direi nunca, ainda que me façam...
barão!
E está dito tudo.
Agora, gentis leitoras e eruditos leitores, começa o
romance, em nome da moralidade, do decoro e dos interesses materiaes...
DINHEIRO! DINHEIRO!
I.
Foi assim que principiou o meu illustre amigo:
―Alli onde o vês é um embryão de
romances desgrenhados...
Referia-se a um rapaz que passava por debaixo das minhas janellas. Era
uma boa figura, visto pelas costas; mas de frente não se
podia contemplar-lhe o rosto sem recuar... não de medo, mas
d'um não sei que
desabrido e repulsivo. E não era feio. Eu por mim, custou-me
muito a sustentar cara firme quando elle me fitava com aquelles olhos
negros e magneticos. Fazia-me medo, palavra d'honra! Depois afiz-me
áquella petulancia d'olhar, áquelle carregado
provocante da sobrancelha, e, graças a Deus, já
me não custa
tanto.
Ora ahi está, sem grave impertinencia, traçado
corporalmente o snr. Alvaro de Sousa, que passava na minha rua.
―Com que então (disse eu) é um
embryão de romances aquelle senhor?! Bem me parecia a mim
que
[114]a vida
d'aquelle homem não devia ser
symetrica, pausada, e prosaicamente chata como a minha! Eu nem se quer
lhe sei de nada! Ando cá tão fóra
das barreiras da sociedade, e dos dramas contemporaneos... que nem ao
menos sei se a mazurka está no quinto grau da
refinação, ou se as polkas cederam o terreno
á
restauração do minuete da côrte... Que
miseria!
―Não perdes nada, meu caro. Olha que a verdadeira miseria
está escondida no manto de lentejoulas com que esta
sociedade desdentada e trôpega se encobre. E, se
não, deixa-me lêr-te uma pagina da vida de Alvaro
de Sousa, e verás como se vive por lá...
Como sabes, aquelle rapaz é da plebe, e aspirou sempre a ser
da fidalguia. O homem não podia tragar esta desigualdade de
gosos imposta pela desigualdade do dinheiro. Sem dinheiro, e sem
avós, Alvaro achava-se aos vinte annos n'este mundo sem
saber o fim para que viera, nem a fileira social em que devia
perfilar-se.
―Pois não ha tantos officios?―interrompi eu.
―Essa pergunta não me parece tua! Pois tu querias sentar
n'uma tripeça um homem de intelligencia?
―Que duvida! Os sapateiros de Lisboa não tem um jornal?
Alvaro de Sousa seria um habil redactor do
jornal dos
sapateiros.
―Estás zombando!
―Palavra de honra, que não zombo! Tu sabes lá
porque horisontes vai ampliar-se o espirito da arte? Sabes se a
tripeça terá uma plastica e uma
esthetica! Sabes se a bota de canhão terá um
bello ideal? Sabes se
a tomba e a intercospia terão uma philosophia? Sabes se as
mathematicas virão, com a sua geometria applicada
á bota, regular as dimensões do salto? Sabes se a
dynamica será a ultima expressão do pino? E
não
achas aqui n'este complexo de sciencias um succolento
pabulo para um sapateiro talentoso, para um
sapateiro-Newton, para um sapateiro-Girardin?
[115] ―Tenho entendido
que não queres a historia do homem...
Façamos treguas... Eu dou-te o diploma de espirituoso, e tu
fechas a torneira ao espirito por algum tempo... Guarda esse cabedal,
que desperdiças, para os teus folhetins. Farás
rir um fidalgo de raça,
embora o seu quinto avô fizesse borzeguins para a tua quinta
avó. Farás indignar o sapateiro, teu
irmão pelo sangue, pelo osso, e pela carne, e teu
irmão pela arte, porque, em fim, eu não sei se a
sociedade dispensa mais depressa os teus folhetins que as botas...
E eu vi que o meu amigo tinha razão, e dei-lhe plena
liberdade de historiar o episodio de Alvaro de Sousa, que
continúa assim:
―Alvaro, á custa de muitos vexames e affrontas conseguiu
relacionar-se em algumas casas, onde compareciam algumas das primeiras
mulheres. Eram talvez estas as notabilidades, as sacerdotisas de
iniciação para os noviços que entravam
no faustuoso templo das vestaes em quinta mão.
O rapaz foi mais adiante nas suas ambições.
O coração pedia-lhe alimento, o espirito
pedia-lhe amor, as aspirações anceavam-lhe um
ideal, e o
altivo mancebo entendeu que aquellas mulheres deviam comprehendel-o no
coração, no espirito, e nas
aspirações.
Era, realmente, exigir muito, no anno do Senhor de 1849!
A primeira declaração, que balbuciou, teve em
troca um sorrir de despreso. Aventurou uma segunda centelha da lava,
que o escaldava, por dentro, e achou de gêlo todas aquellas
mulheres. E não era isto
só. Escarneciam-no. Lastimavam-lhe a mania das
declarações; e algumas galhofeiras senhoras
reuniram-se, uma noite de baile, para lhe dizerem que, todas juntas,
hiam devotamente cumprir uma novena a Santo Anastacio para que o
servinho de Deus o livrasse d'aquella hydrophobia amorosa. É
onde podia levar-se o insulto!
[116]
Alvaro de Sousa entrou no amago da sua consciencia, como n'um abysmo
sem luz, n'um segredo de torturas, e despedaçou um a um os
sentimentos generosos com que entrára n'este mundo ingrato.
Pobre! esta maldita palavra, estigma
de reprovação, era o seu demonio das vigilias e
dos sonhos!
Como o supersticioso, que recua espavorido á larva
imaginaria do seu crime, Alvaro de Sousa fugia dos homens, como se
elles, juizes implacaveis, devessem sentencial-o no crime da sua
pobresa.
Mas um coração altivo de impotente orgulho
não podia transigir com estas leis barbaras da sociedade,
que amputam no coração do pobre os mais augustos
sentimentos da sua vitalidade.
Ha uma apparente reconciliação entre a affronta e
a pobresa: é a reconciliação do odio:
é um pacto de vingança, sellado pelas lagrimas do
affrontado; é uma letra de usura avara de
desforço, a vencer-se, sem praso fixo, mas a vencer-se um
dia.
Esta fôra a reconciliação de Alvaro de
Sousa com as
generosas mulheres da
sua
affeição.
―Ellas, naturalmente, riam-se, se elle lhes désse parte
d'essa reconciliação...
―Riram muito. Alguem lhes disse: «Aquelle pobre rapaz, que
sentia freneticamente as suas paixões, fugiu da sociedade, e
devora, na solidão do seu quarto, um rancor profundo...―A
mim:―interrompeu uma d'ellas―Que pena! Oh Theresinha, não
é uma
verdadeira calamidade o odio d'aquelle rapaz?―Ai! Maria da Luz! que
triste futuro nos espera...»
E chasqueavam assim o seu
ridiculo
inimigo, perguntando aos amigos d'elle em que dia finalmente as
hostilidades se romperiam.
Isto ninguem o dizia a Alvaro, porque entre o odio e a
vingança impossivel, nas almas fortes, está o
suicidio.
―
Nas almas fortes! (atalhei eu com
gravidade
[117]
philosophica). Então não sei eu o que
são «almas fortes!» Cobardes chamo eu
aquelles que desesperam. A suprema das miserias humanas é a
vingança
reservada por causa d'amores despresados. O tal Alvaro de Sousa
será muito romanesco, mas tambem é um grande
tolo. Com que direito queria elle impôr-se ao amor d'essas
mulheres? «Despresaram-no porque era pobre»
respondes tu. E se o despresassem porque era feio? Achas que a pobresa
tenha muitas seducções? E porque
não foi Alvaro de Sousa amar uma peixeira que as ha bem
bonitas? Se a sua alma de poeta aspirava a um
ideal
olympico e metaphysicamente imponderavel porque foi
elle procurar o seu ideal nas mulheres carnalmente vestidas de
tafetás e veludos? A mulher ordinaria, virgem na alma, sem a
depravação das Aspasias que o
repudiaram, não lhe seria mais interessante pela candura,
pela innocencia, e pelo angelico scismar dos singelos devaneios? Eu
não posso soffrer estes Werters caricatos que appellam para
o suicidio, quando a mulher dos seus sonhos não
póde altear-se ás delicadas
concepções da sua alma! Vai a vêr-se a
mulher em que elles empregam todo o seu cabedal de sentimentalismo, e
depara-se uma estragada de espirito, abastardada nos instinctos,
incapaz de conceber a generosidade, gelada para as suaves
impressões d'uma amisade honesta, e finalmente uma Ninon sem
o
espirito da franceza,
mas opulenta como ella de
materia.
Repito: porque
não vão estes impostores queimar o incenso das
suas angelicas adorações
aos pés d'uma donzellinha d'olhos timidos, e faces
purpurinas? Não é tão bello
surprehender o pejo da
innocencia!? Não ha tanta poesia n'aquellas lagrimas de um
primeiro amor que desconfia da sombra de uma mulher, que passa ao longe
do seu Medro! Não ha ahi tantas Angelicas obscuras, tantas
Virginias, segregadas dos salões das Phryneas? Emfim, meu
sentimental historiador de paixões desgrenhadas, eu
não posso sentir
comtigo
[118]as
desventuras do snr.
Alvaro. Quero ouvil-as, porque emfim, escrevo folhetins, e minto quasi
sempre para encher um espaço de papel. Póde ser
que
digas alguma cousa que valha a pena de captar a
attenção
d'este publico portuense, que lê constantemente, e,
á
falta de romances, por não poder emendar o costume de
lêr sempre, começa a mastigar profundas
lucubrações sobre a doença das
vinhas.―Ora, diz lá.
II.
O meu amigo continuou:
―Alvaro reconcentrou-se em uma tal misanthropia, que nem ao menos os
intimos amigos recebia em casa. Dir-se-hia que aquella vida estava a
levedar-se do amargo fermento de rancor que as mulheres lhe levaram
á alma. Eu vi-o uma vez. Parecia um Smarra, um magico, uma
cousa d'um outro mundo, onde os homens conversam com as larvas. Morava
no quarto o terror. A sombra da aza da morte empanava aquelle rosto,
d'onde a vivesa e o lume fugira, deixando como vestigios, as rugas
cadavericas d'uma lenta agonia.
―Devia ser um demonio! Cuidei que uns figurões assim eram
privilegio dos romances!... E os cabellos? naturalmente arripiados como
os do Asaverus, de Orestes, ou de qualquer outro estafermo,
não é verdade?
―O que tu quizeres... O caso é que eu julguei-o demente,
ou, pelo menos, desgraçado, que não sei
se é menos, por toda a vida.
Agora, levanta-se o pano do segundo acto.
Uma bella manhã, sahe um homem d'um navio com quatro
bahús atraz de si. Este homem procurou a morada de um seu
irmão; este irmão, que tinha morrido, era o pai
de Alvaro. O tio de Alvaro, por consequencia,
[119]era
um rico brasileiro, que acabava
de manifestar seiscentos contos.
Alvaro recebeu-o com sinistra rudeza. O snr. Manoel da Silva
abraçou seu sobrinho, chorando a morte de seu
irmão, que era muito semelhante com seu sobrinho. Deu
graças á Providencia por encontrar um
herdeiro do seu ouro e do seu sangue; e, deixa-me assim dizer sem
offensa da metaphysica, insufflou uma alma nova n'aquella casa, uma
alma muito grande, maior que a alma universal de Platão!
só comparavel
á alma que faz girar um sangue azul nas veias d'um
merceeiro.
Alvaro, quando de improviso se viu rico, partiu a pedra do seu tumulo,
e respirou o ar dos vivos. Os olhos faiscaram-lhe um novo lume. Os
labios vibraram-lhe uma eloquencia nova. O
coração bateu-lhe
pulsações d'um orgulho expansivo. O corpo
endireitou-se na linha vertical que a Providencia geometrica marcou a
todos os que podem parodiar Luiz XIV, e dizer: o dinheiro sou eu!
O brasileiro não era abdominoso nem vermelho das bochechas.
Era um homem regular, com sentimentos de homem não
bestealisado pelo ouro.
Achando uma casa pobre, enriqueceu-a, ampliou-a, abriu-lhe os flancos,
e deu-lhe as fórmas arrogantes d'um palacete. Um tylburi,
uma carruagem, e duas parelhas de eguas hanoverianas harmonisaram o
fausto d'aquella magica metamorphose.
E tudo era feito a bel-prazer de Alvaro. O tio authorisara-o para tudo,
menos para casar-se, porque detestava as mulheres.
Elle lá sabia o porque, e, se eu o souber um dia, conta com
um folhetim.
―Muito obrigado; não me despeço do favor.
―Agora vaes tu conhecer a astucia da intelligencia, que não
prescinde, na riqueza, da vingança
premeditada no infortunio.
[120]
Alvaro de Sousa não ostentou, como era de esperar, as suas
eguas, a sua carruagem, e os seus lacaios de verde e prata. Viveu, dous
mezes, ao fogão, conversando com o tio, e conquistou-lhe
assim um conceito de grave sisudez, e uma plena confiança.
Na primavera, Alvaro appareceu com as flôres, e, agradavel
como ellas, grangeou amisades, que não tinha...
―Necessariamente... Olha que novidade me dás!...
É melhor dizer...
comprou amisades, que
não tinha...
―Não posso assim dizer absolutamente. Alvaro, em quanto
pobre, era desabridamente orgulhoso, e desconfiado... Um olhar de
través irritava-o, e uma palavra equivoca enfurecia-o. Era
como os que soffrem rheumatismo agudo, que não consentem uma
mosca no travesseiro. E a pobresa, seja dito em proveito da pathologia,
é o rheumatismo agudissimo da humanidade...
Depois de rico, parece que a sua grandeza estava na consciencia d'ella.
O dinheiro tornou-o affavel, carinhoso, sollicito em procurar as
relações dos que lhe
eram muito inferiores, e até d'aquelles que repellira na
infelicidade. É realmente um phenomeno, mas tu sabes que eu
não te minto.
―E as mulheres que faziam?
―As mulheres? Agora vamos nós lá... Isso
é uma historia muito complicada...
―Quaes são as que figuram?
―Vamos por partes. A mulher, que, primeiro, o repelliu foi a Maria da
Luz. Esta mulher é casada, e era solteira, mas solteira de
trinta e tantos annos, quando Alvaro a requestou. Não sei
porque, Maria da Luz, era a preferida no odio, talvez porque sendo a
primeira a repellil-o, desairou-o, para todas as outras...
Não sei.
Alvaro foi com seu tio pagar uma visita ao marido d'esta mulher, porque
a influencia do brasileiro em certos homens do poder obrigara aquelle a
captar-lhe a benevolencia
[121]para
conservar certos
proventos, que estavam muito em perigo.
O sobrinho começou a jogar com a influencia do tio. Quiz
lêr-lhe o seu programma de vingança, mas
achou que era cedo, ou immoral. Calou-se e esperou.
Na visita, que fizeram, Maria da Luz veio á sala, e quiz
sustentar a dignidade matrimonial, com os artificios d'uma etiqueta
safada. Alvaro ria-se por dentro, mas fingia-se parvo por
fóra. Dava-se uns ares de esquecido, e apertava a
mão da sua victima com a cordialidade d'um bom homem. E
Maria da Luz espantou-se.
Passaram-se alguns mezes. Alvaro, que participava da influencia do tio
nos destinos da patria, reconcentrou toda a sua energia em realisar
desgraçadamente os terrores do marido de Maria da Luz.
Quando menos se esperava, este homem é demittido, e obrigado
pela fazenda a um saldo de contas que o empobrecia. O brasileiro, que
n'este tempo já era visconde de Sousa, quiz salval-o, mas
encontrou em seu sobrinho um violento accusador das immoralidades
d'aquelle mau funccionario, cuja deshonra reflectia na face de quem o
protegesse. As instancias redobradas encontraram frio o visconde, que,
por fim, declarou que não intervinha em certos negocios que
delegara em seu sobrinho, mais conhecedor das conveniencias do paiz, e
da moralidade dos funccionarios. Com este fragmento de
artigo do
fundo, foi despedido o marido da Luz, cujo decahir
para o abysmo de miseria era rapido como a facilidade com que subira.
Maria da Luz comprehendeu a vingança, e achou-a vil.
―Realmente era...
―Mas não ha vinganças nobres, creio eu. A
mulher, que eu principio a chamar pobre, fechára os seus
salões, e não esperou que os alheios se lhe
fechassem. A tristeza sentára-se nos sophás
d'aquellas salas desertas,
onde viria brevemente sentar-se o escrivão da penhora. A
[122]desgraça,
ainda assim, não lhe aniquilava a
soberba. Julgava ella que, humilhando-se a Alvaro, encontraria uma
protecção, mas tambem uma ignominia. O marido,
que cahira primeiro na sua miseria, perdeu, primeiro, a dignidade.
Excitou-a para que escrevesse a Alvaro, e encontrou-a sempre negativa.
E Alvaro respirava com sofreguidão um momento que devia
chegar.
Ao mesmo tempo, desenvolvia-se o plano d'outra vingança.
Thereza da Cruz era a segunda victima de Alvaro. Esta não
podia ser ferida nos interesses materiaes. Era rica das suas
propriedades. Era solteira, e amava profundamente um homem casado.
Este homem era delirantemente amado por sua mulher, e presava-a,
senão posso dizer que a adorava. Thereza da Cruz
fascinava-lhe a cabeça d'aquelle amor-appetite que Stendhal
judiciosamente distingue do amor-paixão. Mas Thereza da Cruz
detestava a virtuosa esposa do seu amante, com toda a raiva d'um ciume
reconcentrado.
E Alvaro sabia-o.
Era-lhe necessario quebrar aquellas ligações com
estrondo e deshonra para Thereza da Cruz.
O que elle fez é uma ignominia, é,
porém uma vingança que medrara em fel durante
tres annos de torturas suffocadas.
Alvaro obteve uma carta da mulher do amante de Thereza da Cruz,
escripta a uma sua amiga.
O dinheiro proporcionou-lhe um falsificador de letra, perfeito na sua
perversa habilidade.
Mandou-lhe escrever algumas cartas amorosas pelo molde d'aquella letra.
E não deixou uma ligeira duvida sobre o genero de
relações que a prendiam a um
homem, que se não nomeava.
Estas cartas enviadas a Thereza da Cruz, foram incluidas n'uma anonyma,
que dizia assim:
[123]
«Minha querida amiga.
«Sei que detestas Miquelina, e que procuras
perdêl-a no conceito do marido, para conquistares plenamente
uma alma digna de ti. Queres castigar o orgulho d'essa hypocrita que
lamenta a nossa
prostituição?
Ahi tens essas cartas, que eu pude obter d'um amante, que a despresou
por mim. Tira as têas d'aranha dos olhos d'esse piegas, e
faz-lhe vêr que sua mulher não
é melhor que tu: porque tu és livre, e ella
é casada.
Saberás o meu nome, no primeiro baile onde nos reunirmos.
Tua amiga d'alma.»
D. Thereza, recebendo estes cartas, sentiu uma alegria infernal. Daria
por ellas a reputação de honrada,
se a tivesse.
Por fatalidade, o amante, na noite d'aquelle dia tratou-a com
indifferença. A orgulhosa, enraivecida d'um tedio que
não podia supportar, esforçou-se por
chamar a conversação a respeito de mulheres
casadas, e
avançou a proposição de que
não havia uma na
primeira roda, que não fosse adultera. O amante protestou
colericamente contra o absoluto da proposição.
Defendeu sua
mulher com ares de Collatino, e exprobrou acremente a maledicencia da
insolente.
A indignação ferveu: trocaram-se epithetos
ultrajantes. D. Thereza foi uma eloquente regateira, e o seu apaixonado
repetiu as phrases mais peculiares da tarimba. Por fim, D. Thereza,
chegado o momento dramatico, apresentou-lhe as suppostas cartas da
esposa.
O homem abriu-as com frenesi: reconheceu a letra e sahiu como um vexado
pelo demonio.
D. Thereza da Cruz, sentiu, pela primeira vez, um momento de completa
felicidade em sua vida!...
―E depois?
[124]
III.
―Depois, o furioso entrou na camara de sua mulher, e encontro-a
velando o somno de um filhinho, que tinha no berço.
Perguntou-lhe o marido o que ella fazia a pé á
uma hora da noite. Miquelina respondeu que
o esperava para lhe servir a cêa, por isso que as creadas,
fatigadas de trabalho, não podiam esperar que seu amo se
recolhesse, alta noite, para repousarem.
O marido recebeu com um sorriso feroz esta resposta digna de uma
senhora virtuosa, e sentou-se junto d'ella. Tocado da faisca electrica
de tyranno de melodrama, enturvou os olhos, franziu a testa, arrancou a
voz dos subterraneos do pulmão, e fallou assim, com uma
carta aberta: «Conhece esta letra,
senhora?»―É minha, penso eu―respondeu ella com
promptidão.―«Já sabe naturalmente que
carta é
esta.»―Não sei... será escripta
á Antoninha? ou á prima
Angela? eu não escrevo a mais ninguem.―«A mais
ninguem, infame!... a senhora não escreve a mais
ninguem?»―Juro que não, juro que
não... deixa-me vêr
essa carta, Luiz, deixa-me vêl-a, eu t'o peço pela
boa sorte
da nossa filhinha.―«Veja.»
Miquelina leu estas duas linhas da carta:
Dous dias
é uma ausencia insupportavel!... Vem, meu anjo, faz que a
minha vida tenha algumas flôres...
Não continuou. Prerompeu em palavras inarticuladas. Eram os
gritos da desesperação! A surpreza
transtornara-lhe o espirito, até converter-lhe o dom da
palavra em alarido selvagem. Parecia douda. O proprio marido retirou
aterrado diante d'aquella angustia sublime. Houve em casa um motim, um
tropel de creados, que se olhavam estupidamente. Miquelina, exhausta de
forças, e
[125]
convencida da realidade daquella infame allusão, desmaiou.
Seu marido tateou-lhe o pulso e o coração.
Reconheceu que havia alli uma dôr legitima. Ficou
estupidamente perplexo, e fazia dó n'esta duvida afflictiva.
Mas a innocencia, filha da justiça de Deus, devia triumphar.
Miquelina foi logo entregue aos cuidados da medicina. Julgaram-na
subindo a gradação d'uma demencia, e Luiz d'Abreu
aterrou-se seriamente.
Ás dez horas do dia seguinte, Luiz d'Abreu recebia a
seguinte carta:―«Deves possuir quatro cartas, que te foram
dadas por Thereza da Cruz. São quatro documentos
inqualificaveis da infamia d'essa mulher. Tua virtuosa senhora
escrevera uma carta a sua prima Angela. Thereza da Cruz pôde
obter essa carta, de que se serviu para fazer imitar a letra da que
ella chama sua rival. Remetto a carta de que ella se serviu. Tua
senhora é innocente como os anjos. Pede-lhe
perdão, se lhe
já lançaste em rosto a calumnia forjada pela
ignobil mulher a que vives associado. Se apesar de tudo, tiveres a
impudencia de continuar relações com Thereza da
Cruz, hei-de
eu, com os teus amigos, apregoar a baixeza do teu caracter para
engrandecer a nobreza de tua deploravel esposa.
Um teu amigo.»
Luiz d'Abreu entrou na camara de sua mulher. Estavam com ella dous
medicos e duas creadas. Miquelina estremeceu ao vêl-o. Mal
sabia ella que esse homem hia ajoelhar-se na sua presença!
Eram tocantes as lagrimas que elle chorava, ajoelhado, balbuciando
palavras inintelligiveis. Miquelina ergueu a face para testemunhar
aquella nova surpreza. Os circumstantes quinhoavam do enthusiasmo
d'aquella scena, sem a comprehenderem.
«Peço perdão a minha virtuosa mulher!
(exclamou elle) perdão d'uma affronta, d'uma calumnia, que a
reduziu
[126]
a esta situação... Na presença
de todo o mundo eu quizera que ella me perdoasse...»―Sim,
sim,―bradou ella com enthusiasmo febril―eu perdôo-te de
toda a minha alma, Luiz, de todo o meu coração,
meu esposo querido!...
Luiz d'Abreu ergueu-se, chorou sobre a mão que beijava, e
foi feliz, verdadeiramente feliz, n'aquella hora solemne da sua vida.
Foram muito sensiveis os progressos nas melhoras de Miquelina.
Na tarde d'esse dia, Abreu, com o mais carinhoso bilhete, pediu uma
entrevista, á meia noite, a Thereza da Cruz. Foi-lhe
concedida.
Ao dar da meia noite estava Luiz d'Abreu encostado á porta
que devia ser-lhe aberta por Thereza da Cruz. Abriu-se a porta. Abreu
tomou aquella mulher pelos cabellos, arrastou-a para o meio da rua, e,
sem dizer-lhe um monosyllabo, encheu-lhe o corpo dos vergões
d'um chicote. Thereza supportara as primeiras chicotadas com o silencio
da vergonha; mas quando a dôr physica dominou a moral,
gritou. Abreu retirou a passo rapido. Thereza fugia, quando um segundo
homem lhe lançou a mão. Ella reconheceu-o, e
pediu que a deixasse. «Não, minha
senhora,―replicou o seu conhecido―eu
não posso consentir que v. exc.
a seja
assim desfeiteada na
rua como uma mulher de alcouce...»―Deixe-me, deixe-me... por
piedade, snr. Alvaro de Sousa!
E debatia-se entre as mãos de Alvaro como atacada de gota
coral.
Aproximou-se a patrulha. Lançou mão de ambos, e
perguntou a D. Thereza se aquelle homem a insultara. D. Thereza
respondeu que não, que ninguem a insultara. Alvaro, que nem
zombando mentia, desmentiu a sua velha
amiga, dizendo que elle a vira
chicoteada cruelmente por um homem, que fugira; e que o mais que a tal
respeito podia dizer era que esta senhora morava
[127]n'aquella casa,
era uma respeitavel fidalga, e chamava-se D. Thereza da
Cruz. A patrulha não prescindiu d'estas
informações ratificadas por s. exc.
a
Perguntou-lhe o nome do
aggressor, e ella
respondeu que o não dizia.
Imagina, meu amigo folhetinista, a colica despedaçadora em
que a pobre mulher se viu! A patrulha não queria largal-a;
mas Alvaro de Sousa capitulou por uma libra com as imperiosas
exigencias da guarda municipal, e conseguiu a liberdade da pobre
mulher.
E, ao despedir-se de D. Thereza, fel-a parar um momento, para dizer-lhe
com a mais fleumatica placidez: «Minha querida senhora! Eu
comprei com uma libra a satisfação de pagar a v.
exc.
a a menor
parte d'um grande serviço que lhe devo... Eu não
pude
esquecer-me nunca de que v. exc.
a com algumas
amigas suas, cumpriram
uma novena a Santo Anastacio, para que o servinho de Deus
alcançasse curar-me da hydrophobia do amor, que me atacou...
Tenha v. exc.
a uma noite feliz.»
E retirou-se. Thereza da Cruz não respondeu uma palavra.
Alvaro de Sousa estava vingado.
―Tens mentido com a mais soberana presença de
espirito!―atalhei eu.
―Não minto, juro-te que não minto...
Estás muito em occasião de verificar estes
factos... Deseja conseguir a verdade, que has-de consegu
Estás muito em occasião de verificar estes
factos... Deseja conseguir a verdade, que has-de conseguil-a.
[3]
E eu acreditei-o; e ámanhã acreditarei tambem que
qualquer destemido despejou um bacamarte nos intestinos do seu anjo...
―O rigor da chronologia―proseguiu o implacavel noticiador―exige que
eu te conte agora a vingança de Maria da Luz.
A hora da miseria extrema tinha soado. Os bens de
[128]raiz
confiscou-os a fazenda: os moveis estava designado o dia de
leilão em que deviam ser vendidos.
O marido de Maria da Luz, que por nome não perca, soubera
que sua mulher ridiculisara as pretenções
de Alvaro de Sousa n'aquelles dias de vergonhosa pobreza. Bem conhecia
elle a indignidade a que tentava forçar sua mulher,
instigando-a a que se valesse do prestimo d'um homem que tinha fortes
razões de aborrecel-a. Todavia, Alvaro gosava de um tal
conceito de nobreza de coração, e sensibilidade
d'alma que qualquer
marido, mais escrupuloso ainda, não duvidaria instar, na
hora critica d'uma penhora, pela humildade da sua supposta Lucrecia.
Maria da Luz, por fim, conveio na pessima
situação em que se achavam os negocios de seu
marido. A fome avisinhava-se, e a deshonra é menos negra que
a fome, segundo a opinião d'alguns moralistas entendidos
n'estas côres.
Alvaro de Sousa recebeu uma carta de Maria da Luz, em que lhe era
pedido o emprestimo de doze mil cruzados, pagaveis em doze annos.
O cavalheiro respondeu que a obrigação onde eram
estipulados doze annos seria reformada pelo praso de duas horas......
Maria da Luz comprehendeu-o. O primeiro abalo, que sentiu no
coração, foi a raiva: o segundo foi
a vergonha: o terceiro foi a negociação com as
condições do titulo reformado, conforme a vontade
do credor.
E respondeu affirmativamente, com a sagrada
condição d'um segredo inviolavel para seu marido.
E Alvaro de Sousa enviou doze mil cruzados ao marido de Maria da Luz,
com esta carta:
«Meu caro senhor.
«Conforme á negociação que
acabo de fazer com
[129]sua
senhora, remetto doze mil cruzados. Da inclusa carta da exc.
ma
snr.
a D. Maria da Luz, verá v. s.
a
que este contracto
é bilateral, e a parte que eu tenho n'elle em vantagem minha
é a renuncia que a dita senhora me faz d'uma propriedade que
eu não sei se está
hypothecada a v. s.
a Supposto me devessem
ter sido
dados estes esclarecimentos antes da remessa do dinheiro, eu
não tenho duvida em sujeitar-me a qualquer outra
transacção
que possamos ambos amigavelmente fazer, visto que, d'hora em diante,
nos devemos ambos considerar com mais ou menos jus á mesma
propriedade. E, como eu tenha resolvido cedêl-a em beneficio
de meu lacaio, v. s.
a não
terá duvida em
consideral-o com os direitos que eu possuia.
De v. s.a
attento venerador
Alvaro de Sousa.»
―E depois?―interrompi com anciedade.
―Depois...... tu vaes dizer que eu te minto!...
―Não digo... palavra d'honra!
―Depois, o codilhado foi Alvaro de Sousa, porque o marido da Maria da
Luz empregou convenientemente os doze mil cruzados e vive perfeitamente
com sua mulher.
―Mas Alvaro de Sousa? nunca mais se importou com ella?
―Nunca mais. A consciencia diz-lhe que está vingado.
―E das outras?
―Das outras... vingou-se sem ruido... Tomou d'ellas uma
vingança que não póde ser
romantisada por ser muito simples.
O meu amigo viu passar uma mulher, e foi atraz d'ella.
[130]
Eu escrevi tudo isto com as reminiscencias vivissimas do dialogo.
Querem saber onde tudo isto aconteceu?
Agora é que v. exc.
as vão
ficar
surprehendidas...
Foi em Pekim!
Salvei a moral publica!
Cante-se o hymno!
A CAVEIRA.
PROLOGO.
Quem disser que em Traz-os-Montes não ha romances,
é capaz de dizer que a lua não tem habitantes, e
as alfandegas ratos.
A provincia de Traz-os-Montes é um sertão
desconhecido, um retalho de Portugal segregado da
civilisação; mas não deixa por isso de
ter uma chronica de
tradições barbaras, que virá
archivar-se em folhetins, quando os caminhos de ferro, construidos
pelos capitalistas da Ovelhinha, aproximarem o contacto das
intelligencias com as florestas virgens d'aquella região
polar.
Esse dia amanhecerá bem cedo. A aurora da
civilisação madrugou para todos. A viabilidade
discute-se á lareira. Mais d'um juiz das almas se extasia
nas vastas theorias do caminho de ferro. O regedor de parochia rural,
auxiliado pelo cura, apostolisam no adro, aos domingos, a theoria do
augmento do salario pela facilidade dos
[134]transportes. Ha
lavradores que addicionaram á leitura do
Borda d'Agua as prelecções escriptas de economia
politica do snr. dr. Carneiro. Alguns esperam concorrer ao mercado de
Sevilha com cereaes e repolhos nas proximas colheitas. O enthusiasmo
é universal. A expansão
fervente dos interesses materiaes, a febre eloquente da viabilidade, os
traços profundos e rasgados, com que as intelligencias
financeiras fixam cathegoricamente o dia supremo da nossa prosperidade,
não são já um
exclusivo da mocidade jornalistica.
O meu collega Ricardo Guimarães, que salta de noite em
cuecas, fóra da cama, sonhando-se impellido por um wagon,
doudeja de jubilo ao vêr-se comprehendido, no seu ardente
apostolado, desde Monção
até ao Cabo da Roca. Lateja-lhe o enthusiasmo nas bossas
frontaes, cada vez que o alvião do operario rasga no seio da
terra o tumulo do carroção ignobil! (Isto era
escripto em
1853...)
A mocidade é assim. A força creadora do talento
ha-de supprir a debilidade do thesouro. Onde os capitalistas
não chegaram, hirá o artigo de fundo, palpitante
de vida, como um ouragan invencivel, desaterrar a aterrar com as
forças magneticas do genio, com a magia imperiosa dos
periodos arredondados artisticamente.
E, por tanto, a provincia de Traz-os-Montes vai ser aquecida pelas
irradiações do foco civilisador.
Um dia, os povos do Marão, agrupados nas cristas das
serranias,
verão lá em baixo passar o traço negro
do carril; e
cuidarão que um demonio, na cauda d'um raio, lhe talou as
campinas, no dia tremendo das vinganças do Senhor!
Mais tarde, os pavidos moradores da Campeam, illustrados
[135]pela
leitura repentina, e pelos artigos de fundo, virão, de
sócos e coroça, nas azas do
carril, applaudir os cavallinhos, saborear um ponche no Guichard, e
influir seriamente no futuro da empreza lyrica.
Então, sim! Mondroens, Villarinho de Cotas, e Canellas
terão uma associação industrial, uma
caixa filial, um gabinete de leitura, e um centro promotor das classes
laboriosas. O cavador, na hora da sesta lerá, na vinha, de
barriga ao ar, o
Tymes, e
Benjamin Constant. O proprietario, entregue ás subtilezas
economicas, que
distinguem o cabedal da renda, andará em guerra littetaria
com o seu visinho da aldeia proxima, por causa d'uma falsa
interpretação aos sophismas de Bastiat.
N'esse dia, serão banidos os estupidos da face da terra. O
proletariado,
filho da estupidez, não virá coberto de farrapos
pedir um bocado de pão, no banquete social, por conta do
futuro fomento. Pouco ha-de viver quem não vir tudo isto.
Será então chegado o momento solemne de pedir
á provincia do norte a historia do seu passado.
Serão
exploradas então as minas de poesia, entulhadas pelo
obscurantismo de longos seculos. Acontecerá muitas vezes
encontrar-se um sóco onde se esperava um borzeguim de
castellan. O leitor pedirá uma heroica lucta de dous
infanções armados da fidalga espada, e
verá duas fouces roçadouras decidirem um pleito
de apaixonado melindre.
Mas não será em tudo assim a chronica obscura da
provincia, onde vivi alguns annos, e em poucos dias colhi apontamentos
para longos trabalhos de muito proveito esthetico, plastico, artistico,
e não sei mesmo se cubico, anomalo, e hybrido.
[136]
A historia, que vou contar, com innocentissima lealdade,
póde ser confirmada ainda por duas ou tres testemunhas, que,
pelo menos, viviam, ha cinco annos. Fallo assim com orgulhosa
authoridade, porque tenho direito a ser acreditado em romances, que tem
a honra de assentarem n'uma sincera base.
A mentira no romance é uma nodoa, que nausêa o
publico illustrado. Alexandre Dumas, escrevendo um romance intitulado
Martim de Freitas,
obrigou este heroe a desembarcar em Mafra, nomeou-o alcaide do castello
da Horta, e fez nascer D. Sancho II na Palestina, onde foi baptisado
por um tal monsieur d'Evora, arcebispo de Leiria! É uma
cornucopia de asneiras este litterato,
fallando de Portugal.
O publico tem direitos sagrados, e é realmente
ultrajar-lh'os, querel-o capacitar de que Mafra é um porto
de mar, e Leiria uma cidade archiepiscopal, e monsieur d'Evora
cidadão portuguez.
Comprehenda-se a missão do romancista. O romance, a
viabilidade, e o fluido transmutativo são a
tripeça em que está sentada a
civilisação.
Quebrar-lhe um dos pés é dar com ella em terra.
A CAVEIRA.
I.
Morreu, ha seis annos, em Villa Real, um velho de oitenta e oito annos.
Chamava-se D. João de Noronha, e habitava uma casa pequena,
mas decorada de grande brazão d'armas, e não sei
quantas ameias
modeladas pelos pilares das açoteas mouriscas. O leitor,
que, por louvavel curiosidade, quizer, de perto, capacitar-se da
fidelidade architectonica d'esta casa, vá a Villa Real, e na
rua do Cabo da Villa, pergunte pela
casa de D.
João de Noronha. Não terá de que
maravilhar-se, a não
ser da sisuda gravidade, e rigorosa certeza com que o author lhe conta
historias interessantissimas.
Algumas palavras a respeito d'este D. João de Noronha.
O
dom é quasi sempre,
entre portuguezes, indicação de fidalguia remota;
mas em D. João de Noronha era
[138]uma
irrisão para o povo, e uma ignominia affrontosa aos fidalgos
da terra. E a razão é esta:
Ha cento e vinte annos que viveu em Villa Real uma senhora D. Paula
Coronel e Noronha, protectora d'um tal Antonio da Silva, sapateiro da
casa.
Este homem era desordeiro e valentão. Em rixas com um
freguez por causa d'umas tombas, matou-o desastradamente. A
justiça apanhou-o, e condemnou-o a pena ultima.
D. Paula exhaurira os grandes recursos da sua influencia, sem conseguir
salvar da forca o seu afilhado. Avaliem-se, porém, os
extremos de D. Paula pelo condemnado, e attenda-se á
época em que os grandiosos
esforços d'uma fidalga são anciosamente
empenhados na
salvação d'um arrastado verme da plebe.
D. Paula, em ultimo recurso, declara que o sapateiro é filho
bastardo de seu irmão, e como tal o
perfilha. Desde que esta adopção foi consignada
no livro
dos alvarás de perfilhamentos, Antonio Coronel de Noronha
está salvo da forca. O processo atravessa novos tramites; e
a lei, esmagada sob o rebolo transformado em pedra d'armas condemna o
réo a cinco annos de degredo para Castro-Marim.
O nobre exilado, um anno depois, morreu de uma indigestão de
figos do Algarve; e, honra lhe seja feita,
á hora da morte, declarou que vivera sapateiro e
christão, e como sapateiro pedia perdão aos
homens, e como christão a Deus porque muito queria
salvar-se.
Seu irmão Francisco, mestre ferreiro, morreu ferreiro,
porque não quiz partilhar das honras heraldicas de seu
irmão, que, pelos modos, não eram muito
lisongeiras para a memoria de sua mãi.
Este ferreiro deixou um filho, chamado João, e uma fortuna
avultada, adquirida na bigorna.
João, orphão aos quinze annos, quiz ordenar-se;
mas o amor tolheu-lhe as vocações ardentes do
sacerdocio.
[139]
Por aquelles tempos a sociedade estava retalhada em classes.
João da Silva invejava o acaso d'um nascimento, e
desesperava-se na impotencia de associar-se dous appellidos euphonicos,
que o guindassem á região dos homens superiores
em raça aos outros homens, como o onagro de Sevilha superior
em raça ao onagro de Cacilhas.
Zombavam cruelmente d'elle, quando lhe disseram que se
encabeçasse na linhagem, embora bastarda, de seu tio, que
morrera legalmente inscripto no livro dos costados a folhas 1473.
João da Silva foi conscienciosamente fidalgo desde esse
instante. Tirou uma certidão, hypothecou metade da sua
fortuna ao fôro, e consegui-o. Não diremos
ao certo quem foi o concussionario d'aquelles tempos, que lhe recebeu
os dous mil cruzados do pergaminho. As urgencias do estado de hoje eram
litteralmente as urgencias do estomago dos chancelleres
móres do reino.
A fidalguia protestou silenciosa contra tão grave injuria.
Fechou os seus salões ao adepto insolente, que
ousára assignar-se D. João de Noronha, e
mandára
insculpir na fachada d'uma casa ameiada as armas dos Noronhas,
É tradição em Villa Real que os Pintos
Coelhos, representados hoje por José Antonio Teixeira Coelho
de Mello Pinto da Mesquita, mandaram borrifar de sangue as armas de D.
João de Noronha. Nada fez recuar o proposito do filho do
ferreiro. Os tempos correram, mas os odios ao pobre homem
não se extinguiram. Digno d'estes tempos, D.
João, seria hoje affavelmente recebido pela velha nobreza,
com tanto que as differenças no azul do sangue fossem
saldadas com o amarello do ouro.
Conheci este homem, e tractei-o muito de perto. Era eu bem
creança, e respeitava as loucuras d'aquelle velho, com a
mais sisuda tolerancia. Quando o vi, aos oitenta e seis annos, casar-se
com uma donzella (oitava maravilha!) de oitenta e nove, cingi-me com
aquelle par conjugal, e
[140]quiz
ouvir-lhe os colloquios amorosos, as expansões
delirantes, as ternuras idealissimas. Não pude; e o leitor
perdeu muito com isso, que eu não era homem de privar d'um
capitulo precioso a
Physiologia do
Casamento de Balzac.
O vento das tempestades da vida impelliu-me de Villa Real para outra
linha no mappa-mundi das minhas observações; e o
meu caro D. João
morreu poucos dias depois de sua mulher, e é de
crêr que,
abraçados em frenetica paixão, renascessem,
viçosos e frescos
como Paulo e Virginia, em mundos novos, e novas
constellações. Assim seja!
Como vinha dizendo, leitor attencioso, quando eu tive a honra de ser
admittido ao tracto intimo de D. João de Noronha, reparei
n'uma caveira, contida em uma redoma de vidro, com pedestal de pau
preto, enviezado de arabescos de marfim.
Esta redoma pousava em uma mesa torneada em bilros de custoso lavor.
Reparei, outrosim, que em certo dia do anno um véo funebre
cobria aquella redoma. Este dia era quinta feira santa. Não
concebi que
relação podesse existir entre aquella caveira e a
paixão de Jesus Christo não ousava,
porém, interrogar-lhe o profundo
mysterio.
Entrava eu uma vez, sem fazer-me annunciar, na sala da redoma, e
encontrei D. João ajoelhado com austero fervor na
presença da caveira. Voltou-se de repente sentindo-me os
passos, e eu não pude recuar sem ser conhecido. Vi-lhe
lagrimas; eram magestosas, e eu juro que muitos dos meus leitores de
coração
petrificado chorariam, se vissem a sincera angustia d'aquelle rosto
venerando.
―Venha cá―me disse elle―que eu não tenho
vergonha de chorar; Choram-se na decrepitude os risos da mocidade.
Entra-se no tumulo a chorar como se entra na vida.
Vi-me embaraçado em responder-lhe. Eu não tinha
[141]aprendido estas
palavras artificiosas, com que fingimos um
quinhão de sentimento impostor. Então senti e
chorei. Hoje... eu sei cá! faria uma nenia em prosa de muita
melodia, e citara-lhe não sei quantos velhos, que a historia
diz que choraram desde Belisario até ao abbade de Chateneuf.
―Sente-se aqui ao pé d'esta reliquia―proseguiu o
consternado ancião.―Devo-lhe um lavor muito delicado: nunca
o senhor me perguntou o segredo d'este craneo. Eu gosto de quem
respeita a dôr alheia. Quero pagar-lhe essa fineza invocando
do tumulo do meu coração o mysterio, que aqui
está sepultado ha sessenta annos. Se eu me calar, no correr
da minha historia, respeite o meu silencio... É que
não poderei... Talvez
possa... O coração... dizem que manda aos labios
muito do
seu fel, quando os labios lhe pedem as amarguradas reminiscencias d'uma
grande desgraça... Será assim? Eu
não sei... vel-o-hemos.
Ora attenda-me, meu amigo. A innocencia deve alegrar-se com a historia,
onde figura um anjo. Hei-de fallar-lhe de Lucifer tambem... Seja o anjo
para o recreio; e o Lucifer para a experiencia... Um velho é
um livro. Eu vou abrir-me... quero dar-lhe a leitura de minha alma,
hoje, que, ámanhã, talvez a pedra
rasa d'uma sepultura nem ao menos lhe diga que eu durmo alli o
suspirado somno do infeliz...
II.
D. João de Noronha, sentado de modo que encostava o
cotovello á mesa da redoma, principiou a historia do seu
segredo, em tom de profunda commoção:
«Tinha eu vinte annos... ha que tempo isto vai!... ha
sessenta e oito annos que eu estudava latim no convento
[142]de S. Francisco.
Era minha tenção
ordenar-me. Meu pai grangeara-me uma fortuna, que me estimulou
ambições de subir na
posição social. Quiz ser padre, e era-o, se
nascesse na igreja lutherana, onde o padre não soffre a
cruelissima amputação da
vida da alma, em commercio com o mundo.
Quando encontrei uma mulher, que me imprimiu nos sonhos a sua imagem,
perdi o imperio da vontade, e as fervorosas
vocações do sacerdocio. Adorei uma
d'essas bellas mulheres, que trazem comsigo uma sina de
desgraças, um contagio de desastres, e a perpetuidade d'uma
chaga, aberta no coração com um ferro em brasa.
Esta mulher, por quem me fizera nobre, por quem me sentira ambicioso
d'um fausto, que a sociedade me ultrajou com justos motivos, por quem,
finalmente, me fizera estupido... atraiçoou-me.
No meu tempo o amor era uma corôa de espinhos.
Então apaixonava-se um homem, e sentia-se perdido para a sua
liberdade, e escravo de uma angustia interminavel. Eu, por mim,
senti-me ultrajado por uma traição
incrivel, e não pude, ainda assim, estalar as algemas
ignobeis que me prendiam á deshonra d'um abandono
injustificavel.
Ajoelhei aos pés de Martha. Pedi-lhe a pouca ventura que me
roubára cruelmente... pedi-lhe a dignidade do homem que por
ella se despresára... encontrei-a morta para mim, e vencida
por uma paixão, que devia matal-a! Tive então
dó d'aquella flôr,
que se desfolhava na madrugada da sua primavera? O meu amor era grande
e generoso! Pedi-lhe que fosse minha irmã, minha amiga...
Nem isso!... nem se quer me aceitou um conselho de pai na hora em que
mais precisa lhe fosse uma protecção que a
salvasse da deshonra, a que
se tinha cegamente abandonado.
Eu valia menos que Pedro de Mesquita.
Este homem era official de cavallaria. Nascêra illustre;
[143]conquistara-se uma
opinião de heroe; batera-se
ardidamente como um leão nas ultimas batalhas. Era aqui
apontado em Villa Real; como o primeiro homem nos triumphos difficeis
do amor.
E não o lisongeavam! O homem, que obrigára Martha
a despresar-me, devia ser tudo isso.
Era muito linda esta mulher! Diziam-no as
emulações, os odios, e as intrigas, que a sua
formosura causára entre pretendentes, que não
queriam ceder a prioridade do merito a nenhum.
Um dos mais poderosos era Heitor Corrêa, cadete de cavallaria
e filho segundo de uma nobre casa d'esta villa, que não
tenho necessidade de mencionar-lhe.
Não obstante Heitor Corrêa era repellido, porque
Pedro de Mesquita não tinha concessões a esperar
para ser mais amado que outro qualquer.
Martha arrancára, como Luzia, os bellos olhos, se assim
podesse afastar de si os perseguidores que a tornavam suspeita ao homem
que tão caro devia ser-lhe. E era.
Estes dous homens odiavam-se rancorosamente, e procuravam á
porfia um ensejo em que podessem travar as espadas. Corrêa
confiava demasiado em si. Mesquita sobejava-lhe a certeza de superar o
debil adversario.
O momento ambicionado chegou.
Era quinta feira santa.
Martha assistia ao officio da paixão na igreja de S.
Francisco.
Heitor Corrêa antecipára-se a occupar o mais
proximo, lugar de Martha. Pedro de Mesquita viera depois, e mordera
colericamente o beiço inferior. Martha tremeu e chorou. Quiz
sahir; não a deixaram as multidões
espessas. Heitor Corrêa comprehendeu-a, e indignou-se. Era
muito despreso para a altivez do seu caracter.
Terminára o officio. O povo evacuou o templo. Martha
sumiu-se nas turbas. Dous homens apenas, como
[144]duas
estatuas, se fixavam sós,
e immoveis, na nave da igreja.
Sahiram, simultaneamente. Encontraram-se no adro. Trocaram poucas e
rapidas palavras, e desembainharam os fains.
Pedro de Mesquita ostentava no rosto a superioridade de mestre. Heitor
chammejava a colera, a vingança, o capricho, e por ventura o
desejo de matar, ou morrer.
Esta scena passava-se na presença de mil pessoas. As beatas
benziam-se horrorisadas; e os mancebos estorciam-se no frenesi de
espedaçarem o forasteiro Mesquita, cuja superioridade sobre
o seu patricio era indubitavel, e perigosa.
Perigosa, não; porque o valente era generoso. Heitor
não tinha já um botão na farda, quando
Pedro de Mesquita, despresando demasiadamente a defesa, se sentiu
ferido ligeiramente no braço esquerdo.
A scena tornou-se cruel! O orgulhoso não podia conciliar com
aquelle sangue a sua generosidade. Heitor foi mortalmente ferido, e
cahiu banhado em sangue. Alguem correu sobre Mesquita, gritando contra
o assassino. Mesquita esperou com bravura! Não houve
mão que lhe tocasse.
III.
Heitor Corrêa, reanimado pelos alentos da
desesperação, ergueu-se, e esgrimiu ainda o
florete com braço impotente. Mesquita, ferido n'um
braço, afastou-lhe os botes, com admiravel
presença de espirito.
O duello em Villa Real era uma cousa nova. O facto, em um dia tal,
redobrava de escandalo. Não se atravessavam as
multidões espessas, que reprovavam ruidosamente um tamanho
desacato. A causa do seu espanto
[145]não
era a moral
ultrajada, nem a perda voluntaria da vida. Dava-se como
razão suprema de tal algazarra estar exposto o Santissimo
Sacramento, quando dous homens se cortavam a ferro frio.
As authoridades, conscias do acontecimento, deram ordens immediatas de
captura. Estas ordens não podiam ser cumpridas por
meirinhos; e não houve
desgraçadamente authoridade militar que capturasse os
duelistas.
Heitor Corrêa, exhausto de forças, perdidas no
sangue, que os recursos da cirurgia não
estancára,
desmaiou, e deu symptomas de morto. O alferes de cavallaria,
ligeiramente ferido no braço, curava-se n'uma botica,
affectando um ar de placidez que indignava as turbas, tumultuosas na
rua. D'entre ellas sahiam gritos terriveis de
«morra!» Os que assim gritavam diziam que estava
exposto o Santissimo Sacramento; e, por tanto, não podiam
deixar de matar o impio que
desacatára, em quinta feira santa, a solemnidade da
paixão de Christo. Como elles saciavam a sede de sangue com
o fervor beatifico das suas crenças, explicam-no milhares de
factos semelhantes que acompanham sempre a edificante historia dos
muito austeros authores da integridade religiosa, tanto em Roma, como
em Constantinopla.
Fernando Corrêa, irmão de Heitor, estava
á janella quando viu entrar seu irmão nos
braços de dous
soldados. Desceu ao atrio, e interrogou o facto. Contaram-lhe, com as
mais irritantes circumstancias, o acontecimento.
Fernando, sem attender a supplicas da familia, e de amigos prudentes,
sahiu de casa, tal qual estava, embrulhado n'um capote. Mas, debaixo
d'este capote, levava um bacamarte.
Quando chegou á entrada da
rua do Jogo da
Bolla, viu um grupo de povo, que parecia vedar a
sahida d'uma botica. Lá dentro estava Pedro de Mesquita, a
quem
[146]faltára
a coragem para
affrontar a força bruta da
populaça.
Em frente d'essa botica morava a infeliz Martha, a attribulada amante
d'aquelle homem, que alli estava ameaçado das iras da plebe,
tigre desenfreado da
licença, n'aquelles dias de escravidão, logo que
um acaso lhe alargasse um pouco as algemas.
Fernando Corrêa abriu uma clareira entre a
multidão. Descobriram-se todos, exclamando: «Chega
o fidalgo! deixem passar o fidalgo.»
E o fidalgo entrou, perguntando quem era o assassino de seu
irmão.
―Assassino... não!...―respondeu o alferes.―Fui eu quem o
feri, e honro-me de ser ferido pelo cavalheiro com quem me bati.
Fernando Corrêa, estupido como fatalmente são os
que podem contar muitos avós robustos de musculos, e nenhum
de vigor intellectual, não comprehendeu a delicadesa
d'aquella resposta. O que elle praticou é um acto de
barbaridade, que envergonha a especie humana. Recuou um passo atraz,
aperrou o bacamarte, e despejou-lh'o, á queima roupa, no
peito.
Foi horrivel, senhor! Foi esse um lance, que eu tenho aqui diante de
meus olhos, noite e dia, porque n'esse instante ouvi um grito de
arripiar as carnes. Era Martha que cahira, com a face na lage da
janella, fulminada pela angustia mais atroz, e mais inconcebivel dos
tormentos possiveis n'esta vida.
Voltaram-se todos para aquella janella, e viram-me... a mim, que
subira, alentado pela coragem da minha dôr, as escadas
d'aquella casa, e levantára
da janella a pobre menina que julguei morta. Olhei em redor de mim...
não vi ninguem, excepto uma creada que chorava, perplexa,
sem atinar com o que devia fazer. A familia, a essa hora, na igreja da
Misericordia, orava, talvez,
á Virgem protectora das virgens...
[147]
Fernando, consummado o assassinio, sahiu galhardamente por entre as
turbas que saudavam o nobre algoz. A paralysia do terror
gelára os poucos que lhe reprovavam a infamia. Ninguem
ousou, sequer, lembrar-lhe que aquelle sangue lhe tingia os
pergaminhos!
O nobre amante de Martha foi conduzido ao quartel. O seu ultimo lance
d'olhos n'esta vida, viram-no todos fixar-se na janella da infeliz.
Depois... fechou-os, e fechou-os para sempre.
Passada uma hora, Fernando Corrêa, montado n'uma possante
mula, e seguido d'um creado, e dous bacamartes, passava em
Almodena, caminho de
Lisboa. E, para que esta circumstancia me não
esqueça,
dir-lhe-hei que, um mez depois, o assassino, impune pelo privilegio dos
seus pergaminhos, entrava em Villa Real, com um alvará de
real mercê que o isentava de responder pela morte de Pedro de
Mesquita.
O povo, desde esse dia, vergava respeitosamente a cabeça ao
fidalgo, que passava soberbo por entre aquelles que lhe liam na face a
altivez do assassino, que zombára da lei.
Heitor Corrêa... esse foi enterrado no mesmo dia em que os
sinos dobraram por alma de Pedro de Mesquita.
IV.
É necessario fallarmos de Martha... É a luz unica
d'este quadro negro... Nem a historia valia a pena de ser ouvida, se
não tivesse um heroismo de virtude para a
admiração, e uma santa para o culto das almas
nobres, e apaixonadas pelo sublime do martyrio.
Por ventura, póde o senhor comprehender a
situação d'um homem, que tem desmaiada nos
braços aquella por quem fôra
atraiçoado...? Não
é bastante comprehender
[148]isto:
é
necessario compenetrar-se mais da minha
situação...
Martha illudira-me... ou illudira-se; Martha despresara-me com cynismo
indigno da sua idade; Martha escarnecera as loucuras que me
sacrificaram a ella; Martha desmaiara, adivinhando a morte do meu
rival... Comprehende por ventura agora o tormento indefinivel da minha
situação?... Não comprehende,
porque se eu lhe disser que n'aquelle trance original o meu sentimento
era a piedade... se eu lhe disser que dera a minha vida pela do rival
assassinado, com tanto que Martha não fosse assim
desgraçada... o senhor,
por certo, não concebe este phenomeno, este sacrificio...
esta monstruosidade de resignação... Quem
sabe!... a sociedade capitular-me-hia de imbecil, e o meu amigo, por
muito favor, concedera-me a celebridade dos tolos inoffensivos,
não é assim?»
Não lhe respondi; mas aqui me puno, confessando que D.
João me adivinhára. Córei, de
certo, quando fui surprehendido no segredo dos meus juizos. Nada
menos lisongeiro que o meu silencio para o pobre velho! Era de certo um
pungente assentimento á sua conjectura! A dôr
é generosa, e cala as affrontas.
Reconheço hoje que ultrajei aquelle grande sacrificio, que
comprehendo agora. Se não receasse mesclar com a gravidade
melancolica d'esta narrativa um anexim popular e graciosamente
philosophico, diria que o diabo não quiz nada com rapazes, e
D. João de Noronha, de certo, não era mais
privilegiado que Lucifer para tirar de mim melhor partido.
D. João proseguiu:
«A familia de Martha veio encontrar-me, com ella nos
braços. A mãi, que prophetisára,
em seus virtuosos presentimentos, a desgraça da filha,
apertou-a contra o seio, cobriu-a de lagrimas, e acordou-a d'aquelle
lethargo, com afflictivos gemidos.
[149]
Martha abriu os olhos; mas nunca mais descerrou os labios. Esperavamos
anciosos que a sua angustia respirasse pelas lagrimas. Não
chorou uma só. Em quanto os sinos dobravam a finados pela
alma dos dous amantes, Martha estremecia, mas não posso
dizer-lhe como era aquelle tremor... A corda d'um instrumento ferida, e
deixada ao impulso da vibração estremece assim.
No fim de tres dias extinguiu-se o soffrimento, por que a vimos pender
serenamente a cabeça nos
braços de sua mãi. Felicitamos-nos pelo repouso
da infeliz. Imaginamos
que ella devia acordar mais tranquilla, ou, pelo menos, mais desabafada
d'aquella agonia que lhe suffocava não só os
gemidos, mas até a
respiração. Esperamos... mas quem não
esperava era o medico, que, ao retirar-se, deixou dito que
não era Christo para restituir a filha á viuva de
Nahim.
Estava morta, por tanto... e morta sem balbuciar uma palavra! Como se
morre assim? Dizem que a morte é a
aniquilação da materia...
mas aquelle anjo morreu dentro em si, antes que os symptomas da
destruição nos revelassem o rapido dilacerar
d'aquella morte! Quem dirá que aquella mulher soffreu no
corpo? Ninguem! A alma, só a alma, este ser immortal que
foge do mundo, onde a vida do amor lhe falta; a alma, reconcentrada no
seu mysterio de dôres inconcebiveis, reluctando por estalar
as algemas que a prendem ao cavallete do corpo... a alma, e
só a alma, meu amigo, consummou aquelle trance de
incomportavel inferno, e passou ao mundo da penitencia ou da gloria...
Agora principia a minha scena n'esta tragedia... É
só minha, e só eu a comprehendo...
mas hei-de contar-lh'a. Acompanhei á igreja de S. Francisco
o cadaver de Martha. Fui o ultimo que se retirou de ao pé da
sepultura; e fui o primeiro que todos os dias, em tres annos
successivos, lhe ajoelhou na pedra que eu não queria fosse a
nossa eterna separação.
[150]
Empreguei os meios para obrigar o coveiro a não tocar
n'aquella sepultura durante tres annos.
Findo este praso, venci com dinheiro a repugnancia do coveiro, e a
pedra que cobria os ossos de Martha foi levantada.
Era meia noite, e perpassavam em redor de mim as larvas do terror,
agitadas pelo lampejar tremulo das lampadas, suspensas no altar do
Santissimo Sacramento.
O coveiro, afeito a lidar com os mortos, tremia, e largava
machinalmente a enxada com que afastava as camadas da terra.
Não posso dizer-lhe até que ponto fui enganado
pelas larvas que a desvairada phantasia, ou a mysteriosa realidade
revocou em volta de mim... Estou quasi jurando-lhe que a vi... a
ella... como nos dias da sua esplendida formosura illuminada pelo
resplendor da sua innocencia, purpureada do pejo com que a candura se
rende ao imperio dos instinctos... Era ella, quando, nos primeiros
tempos da nossa infancia, me offerecia de seu
coração a parte que não podia
dar a sua mãi, e a seus irmãos... Era ella,
quando me perguntava o segredo d'aquella
attracção irresistivel, que a
arrastava para mim, que a entristecia sem motivo, que a fazia
ambicionar uma riqueza imaginaria, que a fazia sonhar umas delicias que
sua mãi lhe não explicava nem
realisava com os seus carinhos... Foi assim que eu a vi, em quanto o
ecco da enxada, que feria o seio da sepultura, reboava nas naves da
igreja... Gelava-se-me de terror o pensamento... a phantasia
esfriava-se ao roçar pela mortalha d'aquelles ossos, e eu
sentia-me morto em metade da vida, quando a terra sacudida da enxada me
vinha cahir aos pés.
E depois... as larvas, que a razão não podia
espavorir, tornavam a cingir-se com os pilares da nave, a pendurar-se
nas grades do côro, a tremularem por entre os cortinados dos
altares, e a esvoaçarem na abobada
[151]do
templo como nuvens
escuras, espedaçadas pela tempestade.
Erguera-se do tumulo para ajoelhar, a meus pés... tinha a
face lacerada pelos vermes. E era bella ainda... Devo ser sincero, meu
amigo... É impossivel que a imaginação
me mentisse... Ouvi-lhe a sua voz...
senti o frio das suas mãos... ergui-a de meus
pés...
perdoei-lhe... chorei com ella...
A voz d'um homem chamou a minha alma á realidade acerba
d'aquella scena, que se me figurava um sacrilegio, uma
profanação.
Era o coveiro, que me dizia: «a enxada já topou
com os ossos.»
Esta nova, communicada friamente pelo coveiro, alvoroçou-me,
e coou-me nas veias não sei que terror
semelhante ao do sacrilego, que não tem ainda bastante
barbarisada a alma pelo crime, e vacilla, horrorisado de si proprio,
quando atira ao pavimento do altar as hostias contidas no calix, que
rouba.
Aquelles ossos, aquelle meu thesouro, ambicionado ha tres annos, tinham
agora para mim uma
superstição, um cunho sagrado, que me fazia na
alma não sei que pesar semelhante ao remorso.
Cheguei ainda a proferir a primeira palavra do
coração, que se arrependera. Quiz deixar intactas
aquellas cinzas. Luctei comigo para vencer um excesso de medo, um
abuso, talvez, da imaginação. Não
pude; mas não pude tambem retirar-me sem uma reliquia, um
ser sem alma, uma recordação para as lagrimas, e
uma
gloria só minha n'este mundo... a gloria de possuir na morte
uma companhia que tivesse sido incentivo de lagrimas, já que
não pude conseguir como companheira na
vida essa preciosa existencia, que me espera ha sessenta e seis annos
na eternidade.
Eis-aqui a reliquia, a testemunha immovel, terrivel, e silenciosa dos
longos soffrimentos d'um homem, que
[152]atravessou uma
longa existencia, sem conciliar com os prazeres do mundo
a eterna viuvez da sua alma!
Eis-aqui a caveira de Martha que eu revisto a cada instante das
feições com que a vi partir d'este
mundo. Ha alli n'aquellas orbitas uns olhos que me vêem...
olhos mais penetrantes que os da vida, porque, nos sonhos angustiosos
d'esta paixão desastrada, eu vejo sempre esta caveira,
animada umas vezes do gracioso riso da innocencia, outras vezes das
contorsões freneticas da
desesperação... Ha alli n'aquelles ossos, onde os
labios articulavam hymnos dos anjos, uns labios que, a cada instante,
me balbuciam um perdão... E tenho momentos de inferno nas
minhas dolorosas contemplações,
aqui diante d'esta redoma... Ás vezes juraria que essa
caveira estremece em convulsões rancorosas contra mim,
balbuciando o nome do homem, que a levou comsigo á
sepultura!... Então... sinto-me demente, porque tenho ciumes
do nada... ciumes d'estas cinzas esquecidas no mundo... ciumes da
memoria d'outras cinzas, que, ha tres quartos de seculo, esperam o dia
final... É
lamentavel a situação d'este pobre velho, que
não
pôde roubar-se a uma agonia, das que o mundo reputa chimeras,
não é assim?
Deixe-me agora dizer-lhe o meu segredo, que esse ainda eu lh'o
não disse, nem lh'o diria, se lhe
não acreditasse umas lagrimas que lhe vejo nos olhos.
Eu creio em Deus, como creio na vida. Creio na vida como creio na
dôr. O que eu não creio
é na morte. A morte é uma palavra convencional,
com que os homens explicam a passagem de sobre a terra para o seio
d'uma nova existencia. A immortalidade é uma
idêa abstracta de tudo que é comprehensivel aos
homens. O homem não explica a immortalidade, em quanto
não sobe um grau na escala dos seres intelligentes. Veja se
me comprehende... Ha uma escala de seres que principia na materia
bruta, e termina nos espiritos. As funcções
[153]
do espirito, sem fórmas
corporeas, pertencem á creatura, superior ao homem. Ora, o
homem não explica essas funcções, que
devem ser a sua futura
existencia, pela mesma razão que o animal, inferior ao
homem, não comprehende as funcções do
pensamento aperfeiçoadas, mas não perfeitas, no
homem. Todos os seres, por tanto, vão subindo na escala da
intelligencia. Todos se transfiguram de fórma em
fórma até
deixarem na terra o involucro da materia, e vagarem nos
espaços incognitos como vagam os espiritos. É
lá em cima,
nas proximidades do grande mysterio, ao clarão da eterna
luz, que se lê o livro de Deus. É nas
regiões, que a minha alma adivinha, que eu devo sentir pelo
orgão
espiritual em que recebi a interminavel impressão de agonia,
que foi na terra a minha lenta peregrinação. O
amor ardente e sublime não é um attributo do
espirito?
Aquelle que muito ama, e muito devorado morre de paixões
grandes e ideaes, não é um propheta da vida
futura, uma preexistencia do futuro amor? A não ser o amor,
qual será a existencia do espirito?
Conheço que o fatiguei... Pois, em verdade, lhe digo que
quiz elevar o seu espirito á altura das minhas grandes
doutrinas, do meu querido segredo. Quiz convencel-o, não
digo bem, quiz enthusiasmal-o por essa eternidade em que ahi se falla,
despida de affectos, de poesia, de esperanças, e... deixe-me
dizer-lhe... indigna de Deus e dos homens...
Meu amigo, ha na minha vida um oasis. Tenho
exaltações de jubilo, aqui, n'este quarto, onde
conto, ha perto de setenta annos, os minutos da minha existencia. Este
goso é a minha convicção na
immortalidade... É a minha esperança, confirmada
pela
meditação e pela sciencia, de que hei-de
encontrar essa alma, que tem vindo aqui revelar-me os segredos do
céo...
Basta... Seja digno da minha confidencia... Não diga
ás turbas de Villa Real os segredos de D.
João de
[154]
Noronha. Aqui escarnecem-se os que soffrem, logo que não
soffrem pelas más colheitas do vinho, ou pela
barateza dos cereaes. Não falle a linguagem dos espiritos,
onde a materia organisada dispõe do machinismo da bocca para
lhe dar uma gargalhada em resposta.»
D. João de Noronha despediu-me.
Desde esse dia foram mais da alma e da intelligencia as nossas
communicações. Aprendi com elle a
sciencia do espiritualismo. Se depois me materialisei, é
porque a faisca d'aquelle genio não me tinha abrasado mais
que a superficie da materia. O espirito tem a força dos
imponderaveis. A força da materia póde muito bem
calcular-se pela força dos vapores...
tantos
cavallos.
Pergunta-me uma senhora de critica muito fina:
―Como se explica o casamento de D. João de Noronha aos 86
annos de idade, com uma donzella sua contemporanea?!
―De uma maneira muito simples. As nupcias de D. João
não podem considerar-se physicas nem
moraes. «Absurdo!―replica a espirituosa dama.»
Está enganada, minha senhora. D. João tinha uma
pequena fortuna, e queria deixal-a a uma creada, que o servira
desveladamente toda a sua vida. D. João encarava
philosophicamente as formulas sacramentaes do casamento. Achava-o
utilissimo como carimbo de contracto civil. Casou-se para recompensar
uma creada que lhe consolou muitas lagrimas, e lhe enxugou nas faces
mortas as ultimas que elle chorou. Era digna do sacrificio. Poucos dias
supportou a viuvez.
―E a caveira?―perguntou ainda a amavel syndica dos meus romances.
―A caveira deve estar confundida nos ossos de D. João de
Noronha. A viuva cumpriu religiosamente as suas ordens: envolveu-a na
mesma mortalha.
UMA PRAGA
ROGADA NAS ESCADAS DA FORCA.
UMA PRAGA
ROGADA NAS ESCADAS DA FORCA.
Este romance não devera chamar-se
«romance.» Desde que esta palavra é o
atilho onde se enfeixam as mentirosas invenções
do escriptor phantastico,
não ha historia verdadeira que possa, como tal,
recommendar-se com aquelle titulo.
Estes acontecimentos, expostos aqui, segundo o formulario romantico, e
affeiçoados ás leis do estilo
romantico, são verdades que não deram brado, nem
se gravaram
na memoria da geração que as viu e as
não comprehendeu.
Na vida moral da sociedade ha phenomenos cuja causa ninguem estuda. No
drama da familia ha lances que são do dominio do publico, e
o publico não
póde, ainda que o tente, explical-os. Nas
attribuições
individualissimas do homem ha phases extraordinarias de soffrimento,
que esta sociedade de entranhas crueis lhe recrimina,
[158]
reputando-lh'as effeitos necessarios das causas, consequencias do crime
voluntario.
A sociedade, a familia e o homem expiam incessantemente a culpa do
homem, da familia, e da sociedade. Opera-se uma continua
redempção do genero humano.
O homem é, desde o seu principio, a victima da culpa com o
labio collocado no calix da agonia.
A vida sobre a terra é uma interminavel
expiação. Eu pago pelos crimes de meu pai, meus
filhos expiarão meus crimes, e o ultimo ser vivo da
animalidade intelligente será o holocausto do primeiro homem
criminoso.
É forçoso recorrer ao inconcebivel, ao
sobre-natural, ao mysticismo da providencia occulta para comprehender o
que vulgarmente se diz «fatalidade.»
Na historia, que vai ser lida, é tão sensivel
esta necessidade, tão aterrado se sente o espirito diante
d'um facto consummado, que eu não tive escrupulo religioso
ou philosophico em subordinar um encadeamento de infortunios d'uma
familia á
praga rogada nas escadas da
forca.
I.
Bernardo da Silva era um filho bastardo de um nobre de Vizeu. Do ventre
materno passou á roda dos expostos, e d'ahi aos cuidados
d'uma pobre mulher d'aldêa.
Aos dez annos não conhecia pai; e sua mãi, mulher
do povo, arrastada sobre a lama da plebe toda a sua vida, morrera com o
segredo do
nobre, que se dignára
descer até ella para honral-a com deshonra.
Bernardo, aos dez annos, era aprendiz de alfaiate, e de todos os seus
companheiros era elle o mais despresado, porque tambem era o mais
preguiçoso.
O rapaz vivia triste como se a idade lhe permittisse
[159]comprehender a
dôr immensa d'um grande desastre.
Lá dentro n'aquelle coração infantil
fallava uma
prophecia funebre. Com os olhos sempre extaticos no horisonte negro do
seu futuro, o pobre moço não tinha uma
hora livre para o trabalho. Muitas vezes uma bofetada acordava-o
d'aquelle lethargo; e o braço, que estava suspenso com a
agulha, continuava a tarefa molhada de lagrimas.
Aos 13 annos era ainda um aprendiz de alfaiate, repellido d'este para
aquelle mestre, desacreditado em todos, e inutilmente espancado por
todos. Chamavam-no incorrigivel, e elle mesmo conheceu que o era.
Abandonou a agulha, e foi servir em casa de Francisco de Lucena. Era
ahi, como em toda a parte, coconhecido pelo «Bernardo
Engeitado.» Nunca ninguem
se lembrou de reputal-o filho
d'alguem: nem Lucena se lembrou,
alguma vez, de que um de seus muitos filhos, atirados á
roda, poderia ser seu lacaio.
Bernardo era creado de taboa.
II.
Este officio era-lhe mais generoso que o de alfaiate. Tinha muitas
horas livres para a sua melancolia, e muitos escondrijos no amplo
palacio de seu amo para refugiar-se d'uma sociedade que elle detestava
sem saber porque.
Este viver excepcional n'aquella classe galhofeira, esturdia, e
estragada, excitou a curiosidade dos seus companheiros, e, depois, a
dos amos. Aquelles chasqueavam-nos com desabrimento: estes admiravam-no
por compaixão.
Bernardo chorava sem motivo. Sorria-se com violencia. Era humilde com
um não sei que de estranha delicadesa.
[160]Destacava-se da sua classe
com um ar orgulhoso, mas não calculado. Cumpria as suas
muitas
obrigações, e ninguem sabia quando as cumpria.
Estas qualidades, rarissimas vezes encontradas n'um lacaio, tornavam-no
assumpto de estudo para os amos que principiavam a interessar-se na
analyse d'aquelle obscuro engeitado.
Guardadas as inauferiveis distancias que separam o senhor do servo, os
fidalgos souberam que Bernardo desejava muito saber lêr, e
gastava a maior parte da noite soletrando o abecedario, e decorando as
lições que o mordomo da casa lhe dava nas horas
de desenfado.
Qualquer que fosse o impulso que a isso o levou, é certo que
o amo, por um nobre impulso, permittiu que o rapaz fosse a uma
escóla, e para isso alliviou-o dos encargos de
moço de taboa, e levou-o á
jerarchia de escudeiro do menino mais velho.
III.
Um anno depois, Bernardo fizera admiraveis progressos. Lia com
intelligencia do que lia; escrevia com acerto, e aprêndera
só comsigo a grammatica
portugueza, visto que seus amos lhe não tinham permittido
esta segunda parte dos seus estudos. Seria um caprichoso luxo permittir
ao servo sciencia que os amos não tinham! O muito illustre
Francisco de Lucena não daria o menor dos seus galgos pela
vasta sciencia do Lobato. E, talvez, tivesse razão.
Em casa de fidalgos d'esta bitóla, quando um creado adquire
a confiança dos amos, ha sempre para isso uma de duas
razões. Ou o creado, devasso como elles, encobre
astuciosamente as devassidões dos amos; ou se torna
estimavel pelo zelo honroso com que procura encobrir-lh'as,
já que não póde reprehender-lh'as.
[161]
Bernardo estava na segunda razão. Os filhos de Lucena eram
livres e desmoralisados a não poder ser mais. Quizeram
captar a benevolencia do servo, não para
aconselhal-os, que não desciam elles a isso, mas para
acompanhal-os em emprezas difficeis, d'aquellas em que o
braço do plebeu é muitas vezes a
salvação
das costas do fidalgo.
Não o conseguiram nunca; mas tambem não tiveram
de arrepender-se da confiança d'esse convite. Bernardo
exercia uma influencia admiravel sobre os nobres libertinos. Era a
superioridade da intelligencia. Ouviam-no, e maravilhavam-se do acerto
das suas idêas, e da linguagem escolhida com que o engeitado
se sahia! O facto de ser engeitado era em Bernardo, talvez, um motivo
de superstição n'aquella casa. Se elle fosse
reconhecido filho d'algum
borra-botas, como em
linguagem nobliarchica se chama um plebeu, de certo lhe não
dariam a importancia de o considerarem pela intelligencia. Mas o
mysterio, a possibilidade de ser vergontea infeliz d'um tronco
illustre, cingiam-lhe a fronte d'uma aureola entre nuvens, que poderia
talvez, mais tarde, dissipar-se, e deixar na plenitude da sua luz
aquelle fructo do amor criminoso d'alguma raça nobilissima,
mais ou menos aparentada com os Lucenas!
Tudo isto era possivel; mas o que elles julgariam, entretanto,
impossivel, é o que vai lêr-se.
IV.
A familia que Bernardo servia compunha-se de pai, mãi, tres
filhos, e uma filha, de todos os irmãos
a mais nova. Por então contava quinze annos. Era bonita, mas
pobre. Os morgados não a pediam; os filhos segundos tambem
não; e a sensivel menina precisava amar, porque o seu
coração era da tempera d'aquelles que
não sabem
[162]conceber
sómente o amor
com a condicional do casamento.
Eulalia não tinha a mais superficial tintura de
instrucção, e por isso não podemos, em
boa fé, chamar-lhe romantica. Não era janelleira,
nem rapinhava da papeleira dos irmãos o perfumado papel
setim para deposito de semsaborias amorosas, e por isso não
podemos chamar-lhe douda.
Era uma mulher, e n'isto está dito tudo.
Este Bernardo é que realmente se parecia muito com os nossos
poetas de aspirações ferventes e
meditações profundas. Mas não era
impostor, nem romanticamente parvo. O rapaz tinha uma alma como poucas,
e uma tristesa inconsolavel como nenhuma. «A minha
organisação―dizia elle―é um aborto,
uma enfermidade incuravel.»
Eulalia sympathisava com aquella tristesa, e com a figura do rapaz.
Achava-lhe traços de semelhança
com seus irmãos, e via n'elle o que ella chamava
«cara
de pessoa de bem.» E, com quanto eu deteste esta maneira de
classificar as caras, porque não conheço as
«caras de pessoas de mal» tenho-me visto em
circumstancias
forçadas de dizer o mesmo, porque ha n'este val de lagrimas
umas caras que não exprimem bem nem mal, e essas
são as peiores caras.
Bernardo não se lembrou nunca de fazer sentir á
cozinheira da casa, e menos se lembraria de accender o fogo do amor no
illustre coração d'uma Lucena,
com quem em toda a sua vida fallára tres vezes.
Eulalia passou da dôce sympathia ao amor abrasado, e do amor
abrasado á paixão violenta. Por mais
finos e eloquentes olhares que a fogosa menina lançou ao
escudeiro, o escudeiro ou não dava por elles, ou
explicava-os de qualquer modo, com tanto que não ousasse
ensoberbecer-se d'aquelle affecto disparatado. E Eulalia
desesperava-se!
[163]
V.
Francisco de Lucena espreitava a opportunidade de empurrar a filha para
fóra de casa. Aspirou, primeiro, aos morgados; mas
encontrou-os pouco apreciadores de formosura e fidalguia. Recorreu,
depois, aos burguezes ricos, e encontrou um negociante d'alto
bôrdo, que recebeu a proposta com affabilidade e trabalhou
desde logo em levar a fim um casamento que permittia aos filhos de seu
filho appellidarem-se Lucenas.
O pai annunciou á filha o seu rico futuro, e encontrou-a
fria. Apresentou-lhe o noivo, e viu-a enjoada. O noivo,
porém, era um rapaz de fina
educação, d'alguma intelligencia, de brios que o
ouro lhe estimulava, e de orgulho superior á sua classe,
porque, ha 50 annos, a classe commercial era muito humilde, supposto
já
trabalhasse para esta época de barões
commerciaes, que, digam lá o que disserem, é o
mais palpitante
triumpho da democracia. Para me não metter em graves
questões sociaes, entenda-se que D. Eulalia repelliu a
felicidade que seu pai lhe annunciára com tanto jubilo, e
declarou-se sentimental, por tempo de quinze dias, fechada no seu
quarto, sem querer vêr sol nem lua.
Mas o pai apoquentava-a, sempre que podia, pintando-lhe a mesquinhez do
seu futuro, e a pobresa de sua legitima, que orçaria talvez
por tres mil cruzados. E era isto verdade.
VI.
E o peor era que o tal João Leite, noivo repellido, ficou
amando desesperadamente D. Eulalia. Ferido no
[164]seu
amor proprio, e envergonhado de tão má
estreia, instava com Francisco de Lucena, lançando-lhe em
rosto a imprudencia com que viera roubal-o á sua
tranquilidade, não podendo contar com a obediencia de sua
filha. Esta maneira de accusar vexava Francisco de Lucena, porque era
pôr em duvida o seu poder paternal, e chamar-lhe fraco,
imputação que elle odiava ainda mesmo que se
tratasse de vencer a repugnancia de uma fraca menina.
Redobravam as mortificações, e Eulalia, immovel
como o seu infeliz amor, offerecia-se de bom grado á
vingança paternal, mas dizia, em linguagem tragica, que
só reduzida a cadaver passaria para a posse do tal
miseravel, que não tinha vergonha de perseguir uma mulher
que o despresava. O pai realisou o dito popular: «casar, ou
metter freira.» Eulalia optou pelo segundo, e os
preparativos para entrar no convento principiaram.
O amor faz a mulher varonil. Temos visto almas de lama apresentarem uma
energia corajosa, quando o tonico do amor lhes vibra as cordas
embrionarias d'um coração, que parece arfar de
improviso ao
repentino choque, ao rapto da paixão violenta.
Nas vesperas da sua entrada no mosteiro, Eulalia escreveu tres cartas.
Uma a seu pai. Dizia-lhe que amára um só homem e
viveria d'esse amor desgraçado toda
a sua vida.
Outra ao escudeiro. Dizia-lhe que tivesse compaixão d'ella,
e chorasse uma lagrima em troca das que ella
chorára, e choraria até á morte.
Outra ao seu implacavel pretendente. Dizia-lhe que o
amaldiçoava com todo o odio do seu
coração. Que lhe atirára á
cara com um
não, e nem assim o
envergonhára de continuar a perseguir uma mulher.
Esta correspondencia conservou-a Eulalia até ao momento em
que transpoz o limiar do convento. O seu primeiro acto foi dar-lhe o
destino competente. Depois, chorou,
[165]chorou, e attrahiu
em volta de si os carinhos da communidade que a
mortificava com as suas frias
consolações.
VII.
Francisco de Lucena recebeu com espanto semelhante carta.
Bernardo da Silva embruteceu-se ao lêr a sua.
João Leite deu quatro murros n'uma mesa, e sentiu-se
suspenso no ar por uma legião de demonios raivosos.
Cada um fez seu papel; mas todos tres reunidos deviam formar um grupo
digno da melhor caricatura inédita!
Francisco de Lucena correu ao locutorio do mosteiro, e fez alli
apparecer imperiosamente a filha.
Quiz forçal-a a declarar o nome do homem que a
preoccupára até a fazer má filha.
Não lhe arrancou a menor revelação.
Foi por outro caminho para
chegar ao seu fim. Fez-se sentimental; lamentou, como bom pai, as
paixões invenciveis d'uma filha que se présa
com extremo carinho; contou historias análogas, que acabavam
todas por casamentos desiguaes, mas nem por isso menos venturosos.
Pediu a sua filha o nome d'esse homem que a impressionára, e
fez-lhe ante-gostar a possibilidade de casar-se, se não
viesse d'alli uma absoluta deshonra para a sua familia.
O amor fez heroes, mas tambem faz patetas. Eulalia desceu da sua altiva
energia ao raso da toleima. Declarou o nome... o nome de quem? o nome,
sem nome, do engeitado, do aprendiz de alfaiate, do lacaio, do
escudeiro!...
Que horror!
Nunca se viu um solavanco mais desamparado que
[166]o
salto de tigre que Francisco de Lucena deu contra a grade que o
separava da filha! Por Deus! que a esgana se lhe chega! A pobre menina,
arripiada como quem vê um lobo com as fauces vermelhas, e as
unhas recurvas, foge pelo dormitorio, e fecha-se no quarto.
VIII.
Lucena correu a casa com os olhos injectados de fogo. Precisava d'uma
victima! Encontrou no caminho João Leite, mas este
não podia justificadamente ser sua victima. João
Leite mostra-lhe a carta que recebêra de
Eulalia. Isto foi exacerbal-o. «Não se lhe
dê de
ser repellido por essa infame,―lhe disse elle―Eu vou provar-lhe que
sou pai!... Essa mulher amava um escudeiro... um lacaio... um
engeitado...»
Entrando em casa, procurou o «engeitado.»
Encontrou-o ainda estupidamente absorvido na
meditação d'aquella carta. A entrada rapida que
fez no quarto não deu tempo a que Bernardo escondesse a
carta que tinha aberta nas mãos tremulas. Lucena
arrancou-lh'a com uma convulsão de raiva superior
á furia d'um
demente. Passou-a pelos olhos, e, sem articular um som,
lançou mão d'uma cadeira, e, á segunda
pancada, Bernardo
tinha a face coberta de sangue. Era um sangue innocente que reclamava
justiça. Era um sangue innocente que pedia a
intervenção de Deus. A
justiça, filha legitima do céo, virá
mais tarde salpicar d'aquelle sangue a
face de quem o derramava.
Bernardo, ferido, e pisado de successivas pancadas, não
pronunciára uma só palavra durante
este infernal martyrio. Impellido por pontapés, foi
lançado
fóra da porta do quarto. As forças faltaram-lhe.
O sangue corria a jôrros. Esvaiu-se-lhe a cabeça,
e cahiu.
[167]
O fidalgo chamou dous creados, e mandou pôr aquelle homem
fóra da porta. Era ao anoitecer. O engeitado foi arremessado
á rua. Quando recuperou os sentidos, achou-se frio.
Ergueu-se. Olhou com os olhos da alma para a sua consciencia, e sentiu
pela primeira vez vontade de sorrir da sua desgraça pelos
labios molhados de fel.
E riu-se. Era um sorriso semelhante ao dos anjos. As almas que podem
sorrir assim são as que Deus elege para a santidade da
bemaventurança.
IX.
Bernardo procurou um refugio em casa de uma mulher pobre que o
tractára sempre com amor, matando-lhe a fome, quando a
aprendizagem de alfaiate lhe não valia o pão de
cada dia. Esta mulher fôra ama da
roda no tempo em que Bernardo lá fôra
lançado. Suppunha ella que talvez o tivesse alimentado ao
seu seio por algumas horas, e esta só conjectura attrahia-a
para elle com instincto maternal.
O engeitado curou-se dos leves ferimentos, e pediu a Deus que lhe
inspirasse um destino. Esperou.
Em Vizeu fallava-se muito d'este successo, divulgado por Francisco de
Lucena, e por João Leite.
Bernardo era procurado para ser punido; e quem mais diligencias fazia
para isso era o juiz de fóra Paulo
Botelho.
O honrado moço, quando se viu na penosa
situação de agenciar a sua vida, por
não poder sahir da pobre casa em que vivia, impellido pela
sua innocencia, procurou o juiz de fóra, e expoz-lhe com a
mais eloquente
naturalidade a injustiça com que fôra maltratado e
com que estava sendo perseguido.
[168]
Paulo Botelho quiz espancal-o com um chicote por ter tido a audacia de
entrar em sua casa sem ferros aos pés. Olhou em redor de si
procurando um aguazil para fazel-o prender traiçoeiramente;
mas o generoso mancebo,
adivinhando-lhe as intenções, disse que
não precisava
fingir-se; que elle dava a sua palavra de honra de não
retirar da casa em que estava vivendo, e que mandasse sua senhoria
captural-o quando quizesse. O juiz riu-se da
palavra
d'honra na bocca d'um creado de servir, e mandou-o
embora, por não ter a proposito um meirinho.
Bernardo encontrou ao retirar-se, nas escadas do ministro,
João Leite, que apeava d'uma liteira, segundo o uso dos
nobres, comprado pelo ouro do burguez opulento.
João Leite fixou-o com ar de soberano despreso, e
perguntou-lhe:
―És tu o lacaio de Francisco de Lucena?
―Fui o lacaio do snr. Francisco de Lucena―respondeu Bernardo com
dignidade.
―E tens o atrevimento de apparecer entre pessoas de bem?
Bernardo suffocou uma resposta amarga, e fez uma continencia respeitosa
para retirar-se.
―Vem cá, miseravel!―tornou João Leite―tu
és o amante da filha do teu amo?
―Respeitei-a muito, por ser a filha de meu amo, em quanto o servi.
Hoje respeito-a, porque lhe não
conheço a menor falta que a deshonre!
―Nem ao menos a deshonra de receber as tuas
affeições, lacaio?
―Eu não lh'as offereci nunca, senhor.
―Offereceu-t'as ella, sevandija?
―Não, senhor.
―Mas ella escrevia-te...
―Sem ser criminosa, por isso...
―Então achas que não é crime escrever
a um bandalho?
[169] ―Será,
se v. s.
a o quer...
―Tenho pena de seres um reptil que faz nojo esmagar com a solla da
bota! Se tivesses um nome...
―Tenho um caracter, senhor!
Bernardo respondeu com altivez; João Leite riu-se com
despreso, e olhando-o da cabeça aos pés,
replicou:
―Tu sabes que não podes ter caracter, engeitado!?
―Então, terei um braço...
―Um braço!―atalhou o fidalgo em projecto, imprimindo-lhe
um valente pontapé, que o fez descer tres escadas
maquinalmente.
Bernardo assumira toda a dignidade do homem de
coração ultrajado. João Leite achou-se
comprimido entre os braços do
sevandija
que elle suppunha fugir ao primeiro pontapé para evitar o
segundo.
Quiz desfazer-se, de prompto, d'este empecilho, e não
pôde, porque os pés falsearam-lhe,
e as costas bateram-lhe com todo o peso sobre os degraus de pedra.
Tirou rapido de um punhal, e roçou com elle duas vezes sobre
o braço direito de Bernardo, que o desarmou, no acto em que
uma terceira punhalada lhe resvalára no peito. O engeitado
sentiu-se ferido: vacillou um instante na
resolução que se debatia entre o homicidio e o
perdão. Venceu o primeiro. Aquelle punhal tinto de sangue
innocente, pela segunda vez, derramado, entrou no
coração de João Leite, e matou-o.
Isto foi obra d'alguns segundos. João Leite
gritára nas convulsões da morte; acudiram os
creados, e encontraram Bernardo da Silva, de braços cruzados
ao pé do cadaver, que vibrava nos seus derradeiros
estorcimentos.
Paulo Botelho tambem acudiu. Primeiro recuou aterrado: depois gritou
«matem esse homem!» E vendo que ninguem de prompto
lhe aceitava o diploma de assassino, mandou-o carregar de ferros.
Bernardo caminhou para o carcere, com a fronte altiva, com nobreza de
passo, com serenidade de consciencia
[170]e
maneiras d'um principe, segundo a linguagem popular dos que o viram.
X.
Foi processado. Paulo Botelho desenvolveu uma espantosa energia no
andamento d'esta causa crime. Erguia-se todos, os dias, sofrego da
escrever uma sentença de forca.
Os depoimentos eram todos contrarios ao infeliz. Um só homem
protegeu esse preso; sabia-se que era um
ancião que lhe levava umas sopas diariamente, e palavras
consoladoras de esperança sem esperança.
Eulalia, sabendo estes acontecimentos até á
vespera do dia em que o escudeiro devia ser condemnado, requereu que
queria ser ouvida em juizo. Não lhe admitiram o seu
depoimento. A pobre menina, inspirada da eloquencia do martyrio, entrou
um dia no côro, quando a communidade orava, e invocou o
testemunho de Jesus Christo, exclamando, de modo que a escutasse o povo
que estava na igreja:
«Declaro que esse infeliz homem, que vai morrer, depois de
martyrisado por meu pai, e apunhalado por um homem que eu despresei,
declaro diante de Deus e dos homens, que esse infeliz nunca me disse
uma palavra só para que eu o amasse. Fui eu que o amei, fui
eu que lhe escrevi, quando entrei n'este mosteiro, fui eu que o fiz
desgraçado, mas em recompensa hei-de amal-o toda a minha
vida, e hei-de unir-me a elle na presença de
Deus!» Era uma demencia!
Foi grande o assombro dos que a ouviram. O ecco d'este grito chegou aos
ouvidos de Paulo Botelho, que estava presente; mas a sua alma
fôra cerrada pela
mão corrupta do ouro. O povo murmurava, e dizia que
não havia de ser enforcado o escudeiro.
[171]
Pobre povo, n'aquelles dias, se tentasse tirar das mãos d'um
juiz o seu instrumento inauferivel, o carrasco!
XI.
Bernardo foi condemnado á pena ultima; Ergueu-se uma forca
nas proximidades do delicto, entre a casa do juiz, e a de Francisco de
Lucena.
Eulalia exaltára-se no martyrio até causar
receios de loucura. Inspiravam-se de uma dôr de morte as
exclamações pungentes que soltava a cada ruido
que ouvia semelhante ao arranco retrahido d'um justiçado. O
espectaculo da forca era a sua idêa fixa, desde o momento que
uma religiosa imprudente lhe annunciou o destino de Bernardo da Silva.
A infeliz, na madrugada do dia da execução, fugiu
da cella com os cabellos em desordem, com as faces chammejantes de
febre, com os olhos embriagados de delirio, e com o
coração a estalar-lhe de uma
dôr que a endoudecia.
Chegando á portaria não houveram
forças humanas que a contivessem. Os ferrolhos cederam ao
impulso d'uma fraca mulher, forte da sua
desesperação; e
esta virgem, com habitos de noviça, e bella, na sua agonia,
como um corpo epileptico que se levanta amortalhado do esquife, corria
por entre as multidões que principiavam a agglomerar-se para
testemunharem o desconjuntar dos ossos do pescoço d'um
padecente entre as mãos
do carrasco, seu irmão, ambos filhos do mesmo Deus, ambos
remidos pelo sangue do mesmo Christo.
Viram-na as multidões passar; muitos a conheceram: alguns
pronunciaram o seu nome, mas aquella pomba, ferida de morte, era um
cadaver que se movia impellido pelo choque da pilha galvanica.
[172]
Erguera-se um alarido na cidade. As turbas corriam na
direcção da infeliz, a quem chamavam douda;
mas não ousou alguem embargar o passo áquella
mulher
que parecia fascinar com a magestade da sua demencia.
Os que a seguiam esperavam vêl-a entrar em casa de seu pai.
Enganaram-se. Eulalia subiu as escadas de Paulo Botelho, e entrou no
salão onde fôra lavrada a
sentença de cadafalso para Bernardo da Silva.
Paulo Botelho estremeceu na cadeira, quando viu aquelle alvejar de uma
larva, ajoelhada nos degraus da tribuna.
Deu-se um profundo silencio de alguns minutos.
Eulalia já não podia coordenar as idêas
que poucos dias antes clamára no côro. O sorriso
da loucura,
o gemido suffocante, uma lagrima embebida logo no ardor das faces, e
algumas palavras entaladas, e apenas intelligiveis, eram alternativas
que a tornaram mais lastimavel durante alguns minutos.
A mulher e tres filhas de Paulo Botelho, que a viram entrar, correram
ao tribunal, e quizeram arrastal-a d'alli. Era impossivel. A estatua
parecia chumbada sobre o seu tumulo.
A familia do juiz julgou conveniente empregar o insulto como
solução. Fallavam do
justiçado com certa nauzea, que ellas suppozeram ser o
balsamo para a ferida mortal de Eulalia. Paulo Botelho, coadjuvando as
razões da sua familia, cobria de improperios affrontosos o
homem que, pouco depois, havia de perdoar as injurias com a
cabeça no laço da forca.
A exaltação afflictiva de Eulalia tinha tocado o
ponto culminante da morte, ou da alienação
irremediavel.
―Innocente! Innocente!―eram os gritos unicos, as derradeiras palavras
que os labios d'aquella mulher tinham de proferir.
[173]
XII.
N'este momento entrou um homem que redobrou o espanto. Era Pedro Leite,
pai de João Leite.
Este homem fez signal de querer fallar. Attenderam-no todos com
religioso respeito.
As suas palavras foram estas:
―Perdôo ao assassino de meu filho! O sangue d'esse homem
cahirá sobre a minha face! Matou defendendo-se d'um
aggressor infame! Senhor juiz de fóra, requeiro a
suspensão da execução da
sentença. Eu sou parte, e declaro innocente o
réo!
Seguiram-se minutos d'uma estupefacção natural.
Eulalia voltou os olhos para o homem que fallára, quiz
arrastar-se de joelhos aos pés d'elle; não
pôde; a
impressão devia matal-a, ou resuscital-a... desmaiou a meio
caminho.
O juiz era o algoz moral creado pelo ouro, assim como o carrasco
physico fôra creado pela lei. Não podia
eximir-se a pegar do cutello, e seguir seu caminho.
―É tarde!―respondeu elle.
―Não é tarde!―replicou Pedro Leite, e continuou
com solemne exaltação:―Tarde, senhor juiz,
é depois que o tribunal do mundo se fecha atraz d'aquelle
que vai entrar no tribunal de Deus! Tarde, é quando um juiz
de entranhas ferozes se apresenta no banco dos réos
condemnados
com a face borrifada de sangue innocente!
―Basta!―exclamou Paulo Botelho com authoridade!
―Pois sim... basta! mas, abaixo de Deus, invoco o testemunho das
pessoas que me escutam. Declaro que lavo as mãos d'este
sangue innocente que vai ser derramado!
[174]
O povo murmurou com acanhamento, com a consciencia cobarde da sua
nullidade, mas balbuciou não sei que palavras que irritaram
o juiz.
―Não se trata só de punir o assassino de
João Leite!―exclamou o juiz―trata-se de castigar a
affronta que recebeu um nobre, feita por um lacaio que ousou levantar
olhos de amante para sua filha!
―Não, não!―gritou Eulalia, erguendo-se com
impeto, com as mãos postas, e cahindo outra vez sobre os
joelhos.
O cynico já não tinha coragem para tanto!
Soára a hora do ultimo mandato ao carcereiro.
Expirára o ultimo instante de oratorio.
―Cumpra-se a lei!
Disse o juiz, e fez menção de retirarem-se as
ondas de povo que tinham concorrido em tropel, chamadas pelos gritos de
Eulalia, e pelo perdão publico de Pedro Leite.
Eulalia foi conduzida em braços para o interior da
habitação do juiz.
XIII.
A procissão onde a impudencia collocára um
Christo, o Deus da caridade, nas mãos d'um padecente, que
hia ser esganado!... a procissão, onde se via um homem de
tunica branca, um algoz de cutello e alcofa, alguns sacerdotes d'um
Deus misericordioso!... a procissão descia terrivel de
repulsiva solemnidade para o açougue d'aquella
rêz! A tumba da misericordia fechava aquella orgia de sangue!
Era um insulto a Deus! o cadaver d'um homem atirado á face
do Creador! um escarneo satanico á intelligencia, e ao
coração
da humanidade!
O prestito parou na praça do sacrificio.
[175]
Bernardo com os olhos fitos no céo via nascer a risonha
aurora da eternidade. Sorriam-lhe os anjos, e a justiça de
Deus mostrava-lhe o seu regaço. A
morte do justo era um crepusculo de nova existencia a alumiar-lhe o
rosto. Inspirava devoção aquelle seu santo
sorrir para o seio do céo que se lhe abria! Trazia nas
mãos a
imagem do Redemptor; mas lá em cima via elle o Espirito
Creador, a grande alma, onde se refugiam as almas dispersas na face
d'este mundo, e perseguidas pelo demonio da ira, e da
vingança, eternamente encarnado no homem, a quem a sociedade
entregou o azorrague da flagellação do virtuoso.
Bernardo caminhava a passo firme para a escada da forca. Estavam
contrahidas as respirações. Um
gemido, menos suffocado, podia ser ouvido por quinze mil almas que
vieram a contemplar aquelle apparelho de morte, segundo a lei,
formulada pelas
inspirações do Evangelho! pelo
codigo dos perdões! pelos preceitos do Filho de Deus que
morrêra, perdoando!
XIV.
Através da multidão abriu-se uma clareira para
deixar passar um homem, que devia representar um principal papel
n'aquelle festim da lei.
Convergiram todas as attenções para aquelle
ponto.
Era Pedro Leite―ainda o pregoeiro da innocencia de Bernardo, com a
face cadaverica das longas noites que chorára sobre o tumulo
de seu filho unico.
Quem disse a este homem que Bernardo da Silva era um innocente?
Que força occulta o arrasta a abençoar nas
escadas da forca o assassino de seu filho?
Phenomenos occultos da Providencia! A voz de
[176]Deus,
soando pelos labios do mysterio! Explicai-me as
operações de Deus, e eu vos explicarei a
inspiração sobrenatural que obriga a balbuciarem
o perdão os labios, que beijaram morto um filho
estremecido...
Pedro Leite aproximou-se do justiçado. Ninguem lhe
embaraçou o passo.
Cheio de magestade, de poesia funebre, e de santo terror, fallou assim:
«Eu venho pedir o seu perdão á beira do
patibulo. Fui eu que o arrastei até ao tribunal em que foi
condemnado;
mas não sou eu que o arrasto aqui. Bradei em favor da sua
innocencia. Pedi, ha momentos, a suspensão d'este acto, em
que a minha dôr será mais... muito
mais prolongada que a sua. Não me ouviram: impozeram-me
silencio, e mandaram-me sahir do sanctuario da lei, que resfolegava
sangue pela bocca do seu sacerdote.
Venho pedir o seu perdão nas escadas da forca, e vasar o
fel, que me devora a consciencia, na consciencia do juiz implacavel que
pede a sua cabeça a altos
gritos!»
Ouviu-se um prolongado murmurio. Era a onda popular que refervia
sopeada entre as rochas da sua impotencia moral, n'aquelles dias, em
que o sangue d'um plebeu continuava a operação
regeneradora do
sangue de Jesus Christo.
Bernardo ouviu com presença de espirito a
exclamação de Pedro Leite.
«Eu lhe perdôo!»
Foram as suas palavras unicas.
Choraram-se então muitas lagrimas. A piedade teve uma
explosão, que as cronhas dos soldados reprimiram. As turbas
queriam rasgar o quadrado para arrancarem da morte um santo. Este
conflicto foi serenado por outro mais sublime. Ouviu-se uma voz. Viu-se
um homem que sobresahia entre as molas populares. Era o velho,
protector unico de Bernardo da Silva, durante a sua prisão.
Poucos o conheciam.
[177]
Foram estas as suas palavras:
«Nobre senhor Francisco de Lucena! vem vêr teu
filho que morre enforcado! Nobre senhor Francisco de Lucena! vem
vêr o filho da mulher que deshonraste, como é
nobre nas escadas da forca! Nobre senhor Francisco de Lucena! vem
vêr teu filho, o filho de minha filha, que borrifa os teus
pergaminhos com o teu sangue illustre!»
E calou-se. Calaram-se todos. E aquelle homem lá estava
erguido como o anjo dos tumulos á espera que Deus mande
quebrar a lousa d'uma mulher que ahi falta n'esse trance afflictivo!
Essa mulher morrêra, deshonrada, suffocada pela
mão da ignominia, a que a soberania fidalga de Francisco de
Lucena a abandonára.
Esse ancião era o pai d'essa mulher, unico que
recebêra em seus braços o filho da deshonra, unico
sabedor d'aquella existencia, que acompanhou sempre, porque lhe
marcára um braço com uma cruz. Desde o ventre
á forca, de longe, desconhecido, com o segredo da deshonra
de sua filha abafado no coração, este
homem seguira os vestigios do neto, sem declaral-o nunca, porque um
appellido illustre não o salvava a elle d'uma
illustre ignominia.
Que impressão fez este homem nas turbas? A do espanto. Mas,
momentos depois, chamavam-lhe
doudo. Por ordem do
juiz de
fóra hia ser preso o demente. Aproximou-se a
justiça d'el-rei. «É
doudo...!» dizia o meirinho ao lançar-lhe a
mão.
«
Não é
doudo... é
morto... »
responderam
algumas vozes.
Morto, sim!
[178]
XV.
Hia consummar-se aquelle enredo de peripecias terriveis.
Bernardo poz o pé direito na ultima prancha da forca.
Voltou-se para o povo. Brilhou-lhe na face o clarão d'um
outro mundo. A sua voz era melodiosa como o cantico do anjo da morte
suavissima: mas n'aquelle todo via-se a terrivel magestade do anjo do
dia final. As suas ultimas palavras foram estas:
«Ouvide a praga d'um padecente, rogada nas escadas da forca:
Que a justiça de Deus
se cumpra
na presença dos homens!»
O povo voltou o rosto do aspecto hediondo d'uma face injectada de
sangue negro. Outros viram-lhe uma onda de luz cingindo a fronte.
N'esse momento ajoelharam muitos justos pedindo ao espirito do
justiçado a sua protecção na
presença de Deus!
CONCLUSÃO.
Passaram quinze dias.
Eulalia de Lucena recuperára o juizo, e entrára
no mosteiro. Um anno depois, professára. A sua vida foram
tres annos de adoração extatica. Ouviram-na
murmurar palavras celestes, como em dialogo. Dizia-se que um anjo devia
apparecer-lhe n'aquelles arrobamentos. Chamavam-lhe santa, e
adoraram-na morta.
Passados quatro annos, Francisco de Lucena, sempre
[179]afastado de sua
filha pela mão do remorso, morreu de repente
no mesmo local em que fôra hasteada a forca.
Simão Botelho, filho de Paulo Botelho, déra um
tiro em seu pai. O pai quiz sentencial-o: deu-lhe sentença
de forca, que depois lhe foi commutada em degredo perpetuo. Apenas
desembarcou em Cabo Verde, abriu-se-lhe uma sepultura.
Paulo Botelho, desembargador aposentado, dez annos depois, morria
á vigesima quinta punhalada que
recebêra, por não dar exactas
informações d'um
peculio de cincoenta mil cruzados que guardava em uma quinta nas
visinhanças de Villa Real.
A mulher de Paulo Botelho morria douda no hospital de S.
José um anno depois.
Restavam tres filhas de Paulo Botelho.
Foram devassas até ao escandalo de serem arrastadas a um
recolhimento por expresso mandado regio.
Uma appareceu morta n'um aqueducto por onde procurára
evadir-se.
Outra casou com um homem que a retalhou de martyrios.
A terceira enforcou-se no batente de uma porta.
A justiça de Deus
cumpriu-se na
presença dos homens.
A praga do justiçado nas escadas da forca teve o seu
complemento do genero de morte que a ultima pessoa d'aquella familia se
déra.
Forca por forca.
Tendes a curiosidade das averiguações? Procurai
em alguns cartorios de Vizeu a sentença pronunciada entre
1776 e 1780.
[180]
REMATE.
Não sou contumaz, nem me ufano de relapsia.
De tudo que disse me desdigo, se algum inquisidor intoleravel deparar
ahi heresia, contra-senso, atrevimento ou cousa que duvida
faça contra Plutus, unico deus da unica religião
cujo codigo penal me intimida.
Ha cousas incriveis n'este volume? É que eu, e os meus
amigos litteratos, poetas, jornalistas, e até
redactores encartados de necrologios sabemos passagens que arripiam
carnes e cabellos. Se o siso commum as não adopta,
é que os chronistas do tempo formam,
á parte, um
status in
statu, cousa
inintelligivel aos que não sabem latim, por grande fortuna
sua.
N'este synhedrim ha uma moral, estragada se o quizerem, mas os
evangelistas, que a propagam são Catões, com
tanto que os não obriguem a inquietar a sadia
tranquillidade dos intestinos. Aqui, não se sacrifica um
dedo a uma pisadella, porque não vale a pena.
É necessario escrever, visto que ha leitores.
Eu, e os meus correligionarios, se até hoje não
temos irradiado sobre a humanidade ondas de luz, é porque a
humanidade precisava ser, primeiramente, operada na catarata. O luzeiro
da civilisação aqueceu,
não ha muito, a concha em que, por aqui, se escondiam muitos
molluscos moraes, que vão sahindo agora a
espanejar-se ao sol.
Não quero dizer que os molluscos passassem a articulados.
Póde muito bem ser que o leitor, ou leitora sejam ainda
legitimos molluscos; mas a excepção
deploravel não claudica a generalidade. E, por tanto:
Eu, e os meus amigos, mencionados acima, considerando que a candeia
não deve estar muito tempo debaixo
[181]do
alqueire, nem os
talentos (dinheiro) soterrados vencem juros: e tendo nós
outro sim, em muito afan e desvelo desaffrontar a litteratura patria de
injurias com que estrangeiros e nacionaes a desconceituam, desairando-a
como pobre de romances, pela sua incapacidade inventiva―o que
não só é malicia, mas
até aleivosia: resolvemos escrever romances em que
figurassem muitas pessoas nossas conhecidas, e outras, que viremos a
conhecer no decurso d'esta meritoria tarefa.
Pelo que, a mim, humilde entre os humildes apostolos d'esta
idêa lucida, coube o quinhão de trabalho, que a
posteridade me devolverá em gabos e applausos, e o futuro
Plutarcho dos homens illustres d'esta freguezia de Cedofeita, em que
tenho a honra de morar, não deixará de consignar
nos fastos gloriosos.
Disse.
PATHOLOGIA DO CASAMENTO.
DEDICATORIA.
exc.ma
snr.a
D. Fulana.
Conceda-me v. exc.
a a gloria de offerecer-lhe um
quadro d'esta
galeria. Vai lêr um drama intitulado
Pathologia do Casamento.
Pathologia, minha querida snr.
a
D.
Fulana, é uma palavra grega, composta de
pathos,
doença, e
logos,
tractado. Quer, por tanto, dizer
molestias do
casamento.
Balzac escreveu a
«
physiologia»;
outro, que me não vem á memoria, escreveu
«
anatomia
do coração»; faltava
uma «
pathologia»
que apparece agora, e, mais tarde, se me não faltar a vista
intellectual, que já
sinto muito cançada, escreverei a
«
Pharmacia
do casamento» que hei-de dedicar a uma
outra D. Fulana, que eu cá sei.
V. exc.
a é uma senhora fina, que,
além de ter a
cabeça no seu lugar, apresenta muitas vezes lume no olho.
Sympathiso com o seu talento, e talvez casasse com a
[186]snr.
a
D. Fulana, se
tivesse a certeza de podermos entreter o nosso tempo traduzindo os
trinta e sete livros de Plinio, e os trinta e cinco
De
Linguâ
Latinâ de Terencio Varro, que Deus tem em
sua santa gloria.
Penso que v. exc.
a não estaria por
isto. O seu espirito tem
calefrios de enthusiasmo, e eu, a fallar-lhe a verdade na sua nudez
patriarchal, devo dizer-lhe que tenho dentro do peito uma mumia, que
poderia valer alguma cousa nas ruinas de Memphis, mas não
vale nada no cavername ossudo d'este seu creado.
Eu preciso d'uma mulher d'oculos, e pitada constante nos dedos. Quero
que ella me falle dos Heraclidas, das Saturnaes de Macrobio, de Creta e
de Lacedemonia, da Beocia e Epaminondas.
Eu não sei se v. exc.
a sabe alguma
cousa d'isto; mas
desconfio que não. Falla-me muito em Victor Hugo, e na
Petite Fadete de George Sand.
Já a encontrei a lêr
les Liaisons
Dangereuses, e a
Manon
Lescaut. Palpita-me que a snr.
a D.
Fulana tem na
cabeça muita somma de
têas de aranha, e não serei eu a vassoura da
limpeza.
Não obstante, respeito-a, admiro-a até ao ponto
de lhe offerecer a minha «
Pathologia do
Casamento.»
Digne-se v. exc.
a acolhel-a no regaço
da sua benevolencia,
e dê-me occasiões de mostrar-lhe que sou
De v. exc.a
o ultimo creado, e o primeiro dos seus admiradores,
Camillo Castello Branco.
PERSONAGENS.
D.
Leocadia |
18 annos |
D.
Julia |
20
« |
A
Viscondessa de
Valbom |
45
« |
Jorge
da
Silveira |
30
« |
Alvaro
de
Castro |
32
« |
Eduardo
Leite |
30
« |
O
Visconde de
Valbom |
50
« |
Damas, cavalheiros, e creados.
(Podem ter a idade que quizerem).
A scena dizem que se passou no Porto; mas o author não
impõe, Mafoma dramatico, a crença
a ninguem. Cada qual fique no que lhe parecer; mas, se, effectivamente,
os personagens existem, tenham paciencia.
PATHOLOGIA DO CASAMENTO.
ACTO I.
DECORAÇÃO.
Uma saleta contigua a um
salão de baile,
separada por largas portadas de vidro, através das quaes se
vêem perpassar, em passeio, damas e
cavalheiros.
SCENA I.
Julia,
e
Leocadia,
entrando, como fatigadas, sentam-se n'um
sophá.
Julia tira
da
cabeça uma grinalda de flôres brancas, que
arremessa com desdem sobre o
sophá.
Julia.―Afflige-me
tudo!...
Tomára-me eu na minha liberdade, Leocadia! Não
goso nada... Tanta luz parece um insulto á
escuridão da minha alma...
Queria-me sosinha...
[190]
Leocadia.―Não
tens
paciencia nenhuma, Julia!... Que é o que te afflige assim?
Julia.―Que
é!...
É aquelle homem... Sempre aquelle homem!... não
ha nada que o desengane...
Leocadia.―Nem as
palavras?!
Julia.―Eu sei!...
nem as
palavras, talvez...
Leocadia.―Porque
não
és franca?! Eu, de mim, na tua
posição, tinha-lhe dito:
«não me persiga!» É o que eu
já disse a Eduardo...
Julia.―Eu
não sei
dizer isso... Acho que é aviltar demasiadamente um homem...
Pois tão estupido é elle, que precisa uma
franqueza tão impropria
d'uma senhora? Tenho feito tudo que póde desenganar um
homem... Teima, persegue-me, flagella-me... é
insupportavel!... Ainda ha pouco, entre mim e Jorge...
Leocadia
(
sobresaltada).―E Jorge!...
Julia.―Que modo
é
esse!? Jorge interessa-te!?
Leocadia.―E a ti?
Julia.―A mim?...
Pois
não sabes...
Leocadia.―O que?...
não sabia... Elle ama-te?
Julia.―Tem-m'o
dito...
Leocadia.―Elle!...
tem t'o
dito... Jorge!...
Julia.―E tambem a
ti?... Falla
depressa...
Leocadia
(
contrafeita).―Não... a
mim... não... mas a ti... sim?
Julia.―Penso que
sim... mas esse
descorar... Leocadia!...
Leocadia.―Fui eu que
me
enganei... Pensava...
Julia.―Talvez te
não
enganasses... Que te disse elle?
Leocadia.―Nada...
Vamos
nós á sala?...
Julia.―Já?!...
Eu
não vou já... Vai tu, se queres...
Leocadia.―Que
é o que
me querias dizer?... Disseste que entre ti e Jorge...
Julia.―Estava uma
cadeira de
vago... Alvaro vinha
[191]occupal-a,
e eu
ergui-me de repente, e occupei-a primeiro...
Leocadia.―E
Alvaro... nem
assim...
Julia.―Me
comprehendeu...
Sentou-se na immediata, e disse não sei que frioleira...
Leocadia.―Se tu
és
tão amavel!...
Julia.―Ai!... tu
queres
imital-o?! É o que elle me diz cem vezes em cada baile...
Leocadia.―Uma
verdade, por muito
repetida, nunca perde o merecimento...
Julia.―Que maneira
de fallar!...
Quem me dera adivinhar-te! Tu amas Jorge!...
Leocadia.―Não,
menina... Eu não amo ninguem...
Julia.―Ninguem?! nem
a tua Julia?
Leocadia.―A minha
Julia
não póde repartir o seu
coração... Não quero entrar em
partilha com Jorge... O peor quinhão seria para mim, porque
não ha nada superior a elle... Ficas?
Julia.―Fico a
scismar... Vem
cá, Leocadia... sê franca, senão...
não sou tua
amiga... Jorge será um impostor?...
Leocadia.―Perguntasm'o
a mim!? Eu
não sei...
Julia.―Terá
tido a
mesma linguagem para ambas?
Leocadia.―Disse que
te amava?...
A mim... não me disse nada...
Julia.―Então
és tu que o amas?
Leocadia.―Não...
Olha,
minha amiga, faz de conta que eu ouvi com perfeita
indifferença a tua
revelação... Até logo... Ai!... diz-me
cá... O teu namoro é antigo... ou
começou aqui?
Julia.―Com Jorge?
É
muito moderno... Tem um mez... É uma creança, mas
já foi
baptisado com lagrimas...
Leocadia.―Já?
Pois
afaga-o muito na alma... Sê
[192]muito
feliz.... que eu, se
te não felicitei mais cedo,
é porque o não sabia... Vou lá
dentro... Minha
mãi deve reparar n'esta ausencia...
Julia.―Não
me deixes
agora que ahi vem Alvaro... É insupportavel!
Leocadia.―Ora!...
que mal te faz
o homem?!... Eu volto já... Olha... diz-lhe que amas
Jorge...
é impossivel que elle queira sustentar a competencia...
(
Sahe).
SCENA II.
Julia
e
Alvaro.
Alvaro.―Está
incommodada, snr.
a D. Julia?
Julia.―Não,
senhor.
Alvaro.―Então
está aborrecida...
Julia.―De certo...
Alvaro.―Menos,
quando ao seu lado
um certo cavalheiro de luneta...
Julia.―Ah! o senhor
vem pedir-me
satisfações? É engraçada a
liberdade!...
Alvaro.―Não
lhe
peço satisfações... Se as minhas
palavras foram indiscretas, seja generosa, perdoando-m'as.
Julia.―Muitos
perdões
me tem pedido, snr. Alvaro!... A minha generosidade com v. s.
a
chega
já a parecer-se...
Alvaro.―Com a
virtude d'uma
santa?
Julia.―Não
queria
dizer isso...
Alvaro.―Queria dizer
que chega a
parecer-se...
Julia.―Com um
excesso de imbecil
paciencia.
Alvaro.―Isso
é muito
forte!... Eu não lhe mereço tanto! Nunca lhe
disse affrontas...
Julia.―Com que
direito ha-de
dizerm'as?
Alvaro.―Não
tenho
nenhum? absolutamente nenhum?
[193]
Julia.―De certo,
nenhum...
Alvaro.―A
paixão cega
o entendimento...
Julia.―Não
é minha a culpa...
Alvaro.―É
toda...
Julia.―Toda?... pois
eu
authorisei-o? Disse-lhe alguma vez que o amava?
Alvaro.―Nunca m'o
disse...
porque...
Julia.―Porque o
não
sentia... Que mais lhe posso dizer agora?
Alvaro.―Depois
d'isso, mais nada.
(
Retira-se).
Julia.―Foi preciso
isto... Ainda
bem!... (
Ouve-se a musica d'uma polka.
Julia
enfeita-se ao espelho com a grinalda, e sahe).
SCENA III.
Jorge
e
Eduardo.
Jorge.―Tu vaes ser
verdadeiro,
Eduardo?
Eduardo.―Como
Epaminondas
Thebano, que nem zombando mentia. Não me lembra d'outro
estafermo antigo que fallasse verdade...
Jorge.―Tu tens
algumas
intelligencias com Leocadia?
Eduardo.―Diz-me
cá,
Jorge, póde fumar-se aqui?
Jorge.―Não...
se
queres vamos á sala debaixo...
Eduardo.―Não
posso,
que tenho a sexta quadrilha com Leocadia... Diz lá o que
queres...
Jorge.―Perguntei-te
se amavas
Leocadia.
Eduardo.―Gosto muito
d'ella...
Depois d'um bom charuto, é o meu sonho dourado.
Jorge.―E ella...
Eduardo.―Gosta de
mim?
não sei bem ainda... Perguntei-lh'o ainda agora pela
vigesima vez... Disse-me que sim, e é a primeira vez que m'o
diz... Se mente, lá se avenha com a sua consciencia...
[194]
Jorge.―E
é a primeira
vez que te disse que sim?
Eduardo.―A primeira,
palavra
d'honra, Jorge!
Jorge.―E que
conclues d'ahi?
Eduardo.―Concluo que
não gostou até hoje.
Jorge.―E
não conclues
mais nada?
Eduardo.―Nem quero.
Jorge.―Não
suppões que ella amasse, até este momento, outro
homem?
Eduardo.―Não
só supponho; mas até acredito... Nada de
emboscadas... Essa diplomacia parece-me uma velhacaria
rançosa... Sei que amas Leocadia, ou, se a não
amas, que a amaste já... Eu não
tenho nada com o passado, nem com o futuro... A minha grande
questão é a actualidade. São arrufos?
Deixal-os ser: aqui
estou eu para encher as lacunas, e tenho n'isso muita honra... Nunca me
importou saber que tentos lavravas no coração da
pequena. Vi-te fazer de Cesar, e eu
fiz de Fabio. Agora, cada um de nós segue o seu systema... E
até logo... Acho que não te queres bater...
Jorge.―Eu
não me bato
por estimulos tão pouco despertadores do brio...
Eduardo.―Fazes tu
muito bem... Eu
tambem zango de duellos, principalmente por causa de mulheres... que
comem
sandwichs, e bebem
limonadas... Falla-me logo...
(
Sahe).
SCENA IV.
Jorge
e
depois Julia.
Jorge.―Eu tinha
previsto tudo...
Era necessario renunciar uma das duas...
Julia.―Procurava-o...
Jorge.―Sim?... que
é,
Julia?
Julia.―Diga-me:
poderei confiar a
Leocadia o segredo do nosso amor?... Vacilla?... responda!...
[195]
Jorge.―Tem
precisão de
confidentes?
Julia
(
sorrindo).―Tenho, porque me
não cabe a felicidade no coração...
Posso?...
Jorge.―E
é
forçoso que seja Leocadia?!
Julia.―É...
preferi-a
entre todas as minhas amigas... Que embaraços são
esses?!
Jorge.―Entendo que
não
deve revelar a ninguem o nosso amor.
Julia.―Sim?...
porque m'o
não disse?... Já agora, perdeu-se a sua
discrição... Eu disse
tudo...
Jorge.―A quem?
Julia.―A Leocadia...
Jorge
(
á
parte).―Está explicado o enigma!...
Julia.―Nada de
monologos... falle
comigo... Ora, snr. Jorge... que necessidade tinhamos nós de
corarmos um na presença do outro!?
Jorge.―Eu
não
córo... A côr d'este rosto só
póde alteral-a uma infamia.
Julia.―Dê
o nome que
lhe aprouver ao seu acto, que eu não lhe conheço
outro... V. s.
a feriu-me,
e cicatrizou-me a ferida... São boas todas as affrontas que
nos despertam a sensibilidade da honra... A lembrança do
ultraje ha-de fazer que eu esqueça a causa depressa... Fez
bem... Deixou cahir a mascara muito a tempo...
(
Retira-se).
Jorge.―Escute-me,
Julia...
(
Vai sentar-se no sophá).
SCENA V.
Jorge,
e
Eduardo, dando
o
braço a
Leocadia.
Eduardo.―Será
isto um
sonho?... Se o é, deixe-me sonhar uma hora, sim?
Leocadia
(
sorrindo).―Tambem ha sonhos de que
se acorda com a face cheia de lagrimas...
[196]
Eduardo (
para
Jorge).―Ainda aqui!...
(
Leocadia estremece).
Jorge.―Ainda aqui...
não estou mal... Tem dançado muito, minha
senhora?
Leocadia.―Principiei
agora...
Jorge.―Pois ainda
tem muito tempo
de gosar... São tres horas... Nunca lhe esqueça
que foi
ás tres horas...
Leocadia.―Não
o
comprehendo, snr. Jorge... Que tenho eu com as tres horas do seu
relogio?
Jorge.―Não
se finja
simples como donzellinha que sahiu hontem do collegio...
Leocadia.―Antes uma
fingida
innocencia que uma descarada impostura.
Jorge.―Não
entendo.
Eduardo.―Os senhores
dizem que
não se entendem, e eu de certo não os entendo
melhor. Não
façam ceremonia de mim. Queiram explicar-se de modo que eu
possa reconcilial-os.
Jorge.―Reconciliar-nos!...
Não estamos divorciados... O que me prende a esta senhora
são os respeitos e considerações que
se lhe devem. Em quanto ella se não desviar da carreira d'um
nobre procedimento, as nossas relações
não soffrem
quebra...
Eduardo.―Pois n'esse
caso, meu
caro Jorge, serás sempre o respeitador d'esta senhora,
porque os anjos não se precipitam desde que um, ha muitos
annos, teve o mau gosto de se precipitar do céo.
Jorge
(
sorrindo).―snr.
a D.
Leocadia...... snr.
a D. Leocadia!...
(
Retira-se).
[197]
SCENA VI.
Eduardo
e
Leocadia.
Eduardo.―Fallemos
seriamente,
minha senhora. V. exc.
a n'um momento de ciume,
dignou-se empregar-me
no seu serviço como instrumento de barro, que se quebra,
feito o serviço, não é
verdade?
Ora ande lá... não perca o animo, supposto que o
escarlate do pejo não lhe fica mal... acho-a muito mais
bella... Parece-me que adivinho o segredo... V. exc.
a
encontrou em
flagrante delicto de ternura o sensivel Jorge com a sensivel Julia...
Ferida na sua vaidade, quer vingar-se, e eu represento n'este negocio o
tertius sem o
gaudet. Perdoará o
latim... quiz dizer que represento n'este negocio uma triste figura...
Já não
é a primeira vez... Não se inquiete, que eu
tambem me não incommodo... Tire de mim o partido que
quizer...
Leocadia.―Snr.
Eduardo...
não devia fallar-me assim... Essas palavras são
tão repassadas de
ironia...
Eduardo.―É
o meu
genio... Sou um Democrito pequenino, porque tambem são
ridiculamente pequenas as cousas que me fazem rir... Ahi vem uma que me
arranca do profundo da consciencia uma legitima gargalhada.
Leocadia.―Que
é?
Eduardo.―É
a sua amiga
Julia pelo braço de Alvaro, em intima
conversação... Não acha tudo
isto tão comico?
SCENA VII.
Leocadia,
Eduardo, Julia
e
Alvaro.
Eduardo (
para
Alvaro, sorrindo).―Os reis da noite somos
nós, snr. Alvaro... Logo despimos a purpura de
[198]reis
de comedia, e fumamos um pessimo cigarro do contracto...
Alvaro.―Não
entendo a
finura do epigramma.
Eduardo.―Então,
é mais feliz do que eu suppunha... Póde contar
com o reino do céo... Deveras não entende?
Alvaro.―Não,
e
dispenso as explicações officiosas do meu
amigo...
Eduardo
(
rindo).―Espero que á
solemnidade do estilo, se não siga um cartel de desafio...
Leocadia.―Que
linguagem!...
É bem galhofeiro o seu caracter, snr. Eduardo!
Eduardo.―Muito
galhofeiro, minha
rica senhora... E alli o do meu amigo é sombrio como o d'um
encapotado de drama em cinco actos.
Alvaro.―A verdade
é
que nos não parecemos...
Eduardo.―Felizmente
para o senhor
ou para mim... Mas na singelesa do coração, na
temperatura do
amor, ha-de permittir que sejamos parecidos como Pylades com Orestes...
Alvaro.―Não
temos
semelhança nenhuma... Eu não posso brincar com as
paixões...
Eduardo
(
áparte, a
Leocadia).―É da força de
trinta Paulos; mas a Virginia que o escuta, só com os olhos,
d'aqui a pouco remette-o ao catalogo dos Othellos em quarta
mão. (
Alvaro e Julia
retiram-se). Espero que não se
baterá comigo, snr. Alvaro...
Não respondeu!... Aquelle silencio não quer dizer
nada; mas, quem não conhecer o homem, ha-de suppor que a
cratera vai rebentar... Quer sentar-se, minha senhora?...
Leocadia.―Sim... um
momento...
Ahi vem Jorge.
Eduardo.―Ah!... V.
exc.
a
estremece!... Muito me ama! (
rindo).
É d'uma
ingenuidade mythologica!
[199]
SCENA VIII.
Leocadia,
Eduardo
e
Jorge.
Jorge.―Eduardo,
preciso roubar-te
um instante a essa senhora... tens a bondade!
Eduardo.―Ah! sim...
esta senhora
não vai de certo queixar-se á policia pelo
roubo...
Jorge (
a
sós).―Fazes um sacrificio deixando-me
cinco minutos com ella?
Eduardo.―Sacrificio...
nenhum;
mas a decencia pede que eu não esteja aqui servindo de
sentinella
á vista a um teu namoro... Ai!... espera... eu dirijo-me a
estas duas almas penadas, que ahi vem... Vou comprimental-as, e tu,
como penetrante abutre, desce o vôo sobre a presa...
(
Comprimenta duas
damas, vestidas de branco, em quanto Jorge vai sentar-se ao lado de
Leocadia). Parecem-me dous anjos, minhas
senhoras. São duas virgens de Taurida, que fazem lembrar as
alvissimas virtudes de Ephigenia... (
As damas, que
elle acompanha, com gaifonas cortezãs, retiram-se
sorrindo).
SCENA IX.
Jorge
e
Leocadia.
Jorge.―Que caprichos
são estes, Leocadia?
Leocadia.―Caprichos!...
O
sentimento d'uma offensa é um capricho?!
Jorge.―Qual
é a
offensa? Uma leviandade de Julia?
Leocadia.―A
leviandade foi minha,
que não quiz imital-a a ella e a muitas, que sabem pisar os
homens aos pés antes de lhes darem a mão para que
se
levantem. Eu dei-lhe a minha alma sem reserva... Fiz do
[200]meu
amor um sagrado mysterio com medo que m'o profanassem. Violentei-me a
olhal-o, em publico, com indifferença, para que ninguem me
invejasse. Eram estes os seus conselhos, Jorge... Hoje é que
eu comprehendo a horrivel significação d'este
plano. O senhor
precisava do segredo para agradar a muitas victimas illudidas com um
só lance de olhos... Creia que tenho tanta pena de mim como
de Julia...
Jorge.―Olha,
Leocadia... se o meu
crime foi grande, a tua vingança excede-o... Não
me pareces
o anjo resignado que eu imaginei... O que eu acabo de fazer foi uma
experiencia na tua alma... O resultado foi infeliz! Nunca previ que
consentirias ao teu
coração um arrojo vingativo, indigno de ti...
Leocadia.―Que fiz
eu?
Jorge.―Que fizestes
tu?...
É boa a pergunta!... Procuraste n'esse salão o
homem mais desacreditado, o espirito mais corrompido, o cynico mais
orgulhoso de o ser, e disseste-lhe que o amavas, sorriste angelicamente
ás suas phrases ironicas, e nivelaste-me com elle,
apresentando-m'o como rival!... Eu... rival de Eduardo!...
Leocadia (
com
vivacidade).―Como rival... nunca! Elle
não podia ser seu rival... porque eu não
tenho dous corações.... Fui imprudente...
confesso que
fui; mas não pude mais... a punhalada feriu-me de repente,
não me deu tempo de pensar... disse-lhe não sei
quê dos labios, mas o coração
aborrece-o, porque eu
não posso amar alguem com mais virtudes do que tu... pouco
me importa que tu sejas tão cynico, tão
desmoralisado como Eduardo... Oh! Deus queira que me não
ouvissem... Ahi vem Julia... Eu retiro-me... A mãi
está com os olhos fixos em mim...
(
Menção de
sahir).
[201]
SCENA X.
Alvaro
, Julia
e
Jorge.
Julia (
passando
por Leocadia).―Muitos parabens, minha amiga...
Leocadia.―De que?
Julia.―Transigiste
amigavelmente?...
Leocadia.―Não
sei que
dizes...
Julia
(
ironica).―Innocentinha...
(
Leocadia sahe.
Passam alguns grupos de
homens e
senhoras).
Alvaro (
que
não vê Jorge).―Jorge
não é homem talhado para o seu
coração...
Julia.―Falle baixo,
que elle
está muito perto... Mas não se cale... diga
alguma cousa.
Alvaro.―É
necessario
ter o coração puro de amores viciosos para
conceber a sublime candura do seu...
Julia.―Hei-de morrer
sem ser
comprehendida...
Alvaro.―Não
nasceria
eu para comprehendêl-a?
Julia.―Ai!
não... a
minha alma é um abysmo, onde se esconde o anjo do bem, e a
serpente do mal... Tenho na mesma intensidade transportes d'amor e
odio...
Alvaro.―Qual lhe
mereço?...
Julia.―Quer-me
sincera? uma
verdadeira estima de irmã...
Alvaro.―Só?
Jorge (
sem
erguer-se do sophá).―Ó snr.
Alvaro!... Que tal acha a eloquencia d'esta senhora?
Alvaro.―A pergunta
é
celebre; todavia, responderei: a eloquencia d'esta senhora é
excellente...
Jorge.―E v. exc.
a,
snr.
a
D.
Julia, que tal acha a eloquencia d'aquelle senhor?
Julia.―Eu sou menos
generosa que
este cavalheiro: não lhe respondo.
[202]Jorge.―Responda,
responda, que v.
exc.
a não é responsavel
pelo que diz...
Alvaro.―Eu
não posso
consentir que se affronte assim uma senhora!...
SCENA XI.
Os mesmos e
Eduardo, que
vem
passando com uma dama pelo braço, e
pára.
Jorge.―Pois
senão
póde, resigne-se...
Alvaro.―Tenho a
optar por outro
expediente antes da resignação...
Eduardo.―Naturalmente
quer
bater-se... Eu sou de opinião que os meus amigos devem
cortar-se reciprocamente
os pescoços ás 4 horas da tarde...
Jorge
(
sorrindo).―Fecha lá as
torneiras ao espirito, Eduardo. Aqui falla-se seriamente...
Não vês que aquelle senhor está
formalisado?
Eduardo.―Pois o
senhor
está formalisado? e v. exc.
a (
para
Julia) tambem
está formalisada? e a menina (
para a que
tem no braço)
tambem se formalisa?... Eu de mim, declaro-me formalisado sem saber
porque. Formalisem-se todos, desde o dono da casa até ao
creado da campainha. Isto deve acabar por hir cada um para sua casa,
porque são quasi quatro horas... não
acha?
Alvaro.―Se me
dá
licença...
Eduardo.―A respeito
de
licenças, isso não é comigo:
é com o dono da casa... Que queria o meu amigo? quer duvidar
de que a snr.
a D. Julia é a rainha
das mais formosas?
(
Com escarneo).
Alvaro.―Snr.
Eduardo, as suas
zombarias são intempestivas!... Entre cavalheiros
é d'uso adoptar-se a linguagem seria e digna d'um
salão...
Eduardo.―O meu caro
senhor
está funebre como um mestre de cantochão...
Fallou muito bem; mas
[203]eu
é que
não me sinto disposto a manter a
reputação de eloquente ás quatro horas
da manhã... Se me
querem vêr dormir, fallem-me em cousas serias... Diga-me
cá... já tomou chocolate?
Julia
(
desprendendo-se do
braço).―Dê-me
licença... Minha mana chama-me...
Alvaro.―Eu
acompanho-a, minha
senhora... (
Vão sahir).
Jorge.―Minha bella
menina,
estamos quites... D'hoje em diante cada um de nós caminha
para o seu polo diverso...
Julia.―São
indifferentes os seus passos... Caminhe para onde lhe aprouver, snr.
Jorge...
(
Sahe).
Eduardo.―Disse que
caminhasses
para onde te approuvesse... Eu de mim vou para casa... Queres vir?...
É verdade... que é da transparente
creatura, que eu tinha no braço? Evaporou-se?... Deixal-a...
(
Atira-se ao sophá). Ai
que somno!... Em que pensas tu?... (
Entra um creado
com chavenas de
chocolate). Isso que é? Venha
cá... É chocolate...
vm.
ce não terá a
habilidade de converter isto
em vinho do Porto?...
Creado.―Não,
senhor...
Eduardo.―Então
vm.
ce, pelo que diz na sua, é um
grande idiota.
(
Toma duas chavenas da
bandeja). Póde retirar-se... Aquelle
senhor está fazendo
versos... (
O creado sahe).
Ó Jorge,
não tens no coração um reservatorio
onde caiba uma chavena de excellente chocolate?
Jorge.―Adeus...
retiro-me...
Eduardo.―Alto
lá!...
Eu preciso saber em que lei devo viver... Reconsideraste a respeito de
Leocadia? Quem é que a ama, sou eu, ou és tu?
Jorge.―Fallas d'ella
com
tão pouco respeito!...
Eduardo.―De quem? de
s.
exc.
a!?... Pois eu disse alguma cousa que possa
chamar-se grosseira?
Jorge.―Leocadia
não
é uma apolice que se passe com o mesmo valor de
mão em mão...
[204]
Eduardo.―Justamente
o peor que ella tem é não ser
apolice, nem ao menos acção da empreza do
caminho de ferro de leste...
Jorge.―Estás
estragado!...
Eduardo.―Do
estomago? Palavra
d'honra que sim! As taes sandwichs são indigestas como um
artigo de fundo... Mas do espirito estou optimo... Ella ahi vem...
Queres ficar só com ella?... Eu vou entreter Julia... Que
mais queres da minha docilidade? Um homem que faz isto não
está de todo estragado...
SCENA XII.
Jorge
e
Leocadia.
Leocadia.―Vou sahir,
Jorge...
Dê-me uma só palavra, que me salve...
Jorge.―Que queres
que eu te diga,
Leocadia?... Ámanhã vou consultar a vontade de
teu pai...
Queres assim tão breve o desenlace das tuas
affeições?
Leocadia.―É
muita
felicidade, meu Deus. Eu não merecia tanto... E Julia!...
Coitadinha!... quanto não soffrerá ella!...
Jorge.―Que tenho eu
com Julia!...
Poderia amal-a com a paixão violenta d'uma febre... mas
estimal-a com a serena amisade que te dedico, Leocadia, isso nunca...
Leocadia
(
reparando).―Ai!... minha
mãi... não me deixa um instante... Adeus...
SCENA XIII.
Os mesmos e
Julia, e
depois, Eduardo
e
Alvaro.
Julia.―Espera,
menina
(
para Leocadia que se retira)...
São só duas
palavras... Snr Jorge... V. s.
a,
[205]não
é digno d'ella, nem de mim, que valho menos
que ella... Não te felicito pela
reconciliação, minha querida amiga... D'este a
Eduardo, que a sociedade chama cynico, não vai distancia que
tu não vejas desapparecer
vinte e quatro horas depois de casada... São tudo
Eduardos...
Eduardo.―Que
é isso de
Eduardos? Ainda falta este... Trata-se de levar ao capitolio os
Eduardos, minha senhora? N'esse caso peço que não
sejam
exceptuados os Alvaros. (
Para Alvaro que
entra).
Venha cá, meu amigo... Á vista d'este quadro,
confesse que fizemos tristissimas figuras... Aquelle senhor
(
apontando Jorge) fez monopolio de
dous corações, que nós tivemos o
imbecil heroismo de conquistar
ás tres horas da noite... Sabe que mais? Olhemos para ellas,
e digamos como a raposa: «Estão
verdes!» Pois não convém n'isto?
Vozes dentro.―Vamos
meninas!
São quatro horas.
Eduardo.―Nenhum dos
senhores se
quer bater pelo que vejo!... Boas noites... Minhas senhoras...
Vozes.―O ultimo
cotillon, o ultimo.
Eduardo (
para
a
viscondessa de Valbom que entra).―O ultimo
cotillon, minha senhora, se
não tem par... (
Retiram-se todos os
outros).
Viscondessa.―Eu
não
danço senão quadrilhas.
Eduardo.―Faz v. exc.
a
muito
bem... Tem dançado muitas?
Viscondessa.―
Un
peu...
un peu.
Eduardo.―Ah! V. exc.
a
falla
francez! Ha quantos annos aprendeu, minha amavel senhora? Antigamente
ensinava-se um francez muito solido... Hoje é tudo pela
superficie...
Viscondessa.―É
verdade; mas as bases d'uma verdadeira instrucção
são os solidos
rudimentos.
Eduardo.―Muito bem,
minha
senhora... O seu
[206]
coração deve ser tão sensivel como a
sua cabeça é illustrada.
Viscondessa.―O meu
coração está morto.
Eduardo.―Deveras!...
Quem
fará o milagre de o chamar á vida?... Eu de certo
não ousaria
tão difficil empresa...
Viscondessa.―V. s.
a
zomba?...
Eduardo.―Não
zombo,
porque não sei zombar com o amor...
Viscondessa.―Falle
baixo que ahi
vem meu marido...
Eduardo (
para
o
marido que entra).―Snr. visconde!... estavamos
fallando na guerra da Crimea.
Visconde.―Vai por
lá o
diabo... Eu acho que os alliados não mettem o nariz em
Sebastopol.
Viscondessa.―Pelo
menos em quanto
a Austria e Prussia não expedirem forças que
suppram a
mortandade dos inglezes...
Visconde.―E que me
diz o senhor
á exportação dos bois? Cessa ou
não cessa?
Eduardo.―A respeito
de bois,
não sei nada... (
reparando para
fóra) Ahi
vem tudo... Que é isto!... uma senhora desmaiada?
SCENA XIV.
Os mesmos, e
Julia desmaiada
nos braços de algumas damas.
Vozes.―Que seria?
Coitadinha...
Tragam agua...
Eduardo.―Fumo de
charuto
não é mau...
Visconde.―Faz favor
de lhe botar
um pouco de fumo pelas ventas?...
[207]
Eduardo
(
accendendo o
charuto).―Lá vou... lá vou,
snr. visconde.
Vozes.―Não
é preciso...
Julia.―É
Jorge!...
Jorge é o responsavel da minha vida...
Vozes.―Ah!...
Eduardo.―É
uma maneira
bonita de terminar um acto! Está tudo com a bocca aberta...
e eu tambem! (
Abrindo a bocca).
CORRE O PANO.
ACTO II.
A scena é na Foz,
justamente na praia dos
Inglezes. Senhoras e homens tomando banhos; outros, entrando nas
barracas, horrivelmente desfigurados, ou, antes, taes quaes a natureza
os fez. Sobre os penedos, pinhas de povo que pasmam diante dos ensaios
do salva-vidas. Estes podem dizer o que quizerem a tal respeito. O
author dá carta branca ao actor para que diga centenares de
parvoices: póde até discorrer sobre
o dropp se lhe aprouver; mas o melhor é
calar-se.
SCENA I.
Afóra
estes entes nullos,
Jorge
e
Leocadia sentados
em cadeiras.
Leocadia (
fazendo
SS com o guarda-sol na areia).―Estás
tão sombrio, Jorge!
Jorge (
fazendo
TT
na areia com a chibata).―Estou optimamente.
(
Ouvem-se guinchos muito sympathicos das senhoras, que
patinham no banho.
Alguns homens urram).
Leocadia.―Parece que
te aborrece
a Foz!...
Jorge.―Nada me
aborrece... Estou
bem em toda a parte...
[210]
Leocadia.―Niguem o
ha-de dizer... Todas as minhas amigas me perguntam o que
tens...
Jorge.―Diz-lhes que
se
não incommodem...
Leocadia.―Hão-de
suppor que a tua amisade para comigo foi uma illusão
desvanecida pelo casamento...
Jorge.―A
opinião
é livre... Supponham o que quizerem.
Leocadia.―Mas
não
consideras que eu soffro muito se ellas imaginam tal?
Jorge.―Não
me lembrava
essa especie... Isso é amor proprio...
Leocadia.―Não
é amor proprio... é
dôr do
coração...
Jorge.―Será
algum
aneurisma?
Leocadia.―É
uma
zombaria bem cruel!... Estranho-te, Jorge.
Jorge.―Tambem eu me
estranho...
Não achas que é melhor estarmos calados?
Leocadia.―Calar-me-hei...
Jorge.―E fazes
bem... Estes
dialogos terminam sempre mal... A necessidade da variar a
conversação é a tisica das grandes
paixões... Uma phrase repetida aborrece, por mais bonita que
seja... Nós podiamos ter sempre cousas novas a dizer, se
não tivessemos gastado a inspiração em
quatro mezes de casados. Dissemos
tudo... definimos tudo que nos rodeava, e agora sentimos a dura
necessidade de nos definirmos a nós... É onde
está o mal.... Tu queres que eu te repita
o que te disse ha cinco mezes, e eu zango de
repetições... Não sei fazer phrases
como tu fazes punhos de camizas... Exhauri-me... Agora é
necessario esperar uma nova colheita do terreno que já deu
fructo. Essas lagrimas vem muito a proposito...
(
Erguendo-se e
espreguiçando-se). Ai! que vida!...
(
Reparando).
Olá, Eduardo!... por cá?
[211]
SCENA II.
Os mesmos, e
Eduardo.
Eduardo.―É
verdade...
Como passou, minha senhora?
Leocadia
(
disfarçando as
lagrimas).―Muito bem... agradecida...
Está bom?
Eduardo.―Como
sempre... Tenho uma
saude insupportavel!... Não sou capaz de arranjar uma
dôr de cabeça, para me dar certos ares romanticos.
Vejo por ahi muitos mancebos, alquebrados no frescor da vida, e, em
quanto a mim, são infelizes creaturas que soffrem dos
callos... Já tomou banho, minha senhora?
Leocadia.―Não
tomo
banho hoje. Constipei-me hontem.
Eduardo (
para
Jorge).―E tu?
Jorge.―Vou tractar
d'isso...
Ficas por aqui?
Eduardo.―Vamos
nós
conversar, minha senhora... Eu hoje sinto-me com
disposição para dizer cousas
muito philosophicas... (
Jorge sahe).
SCENA III.
Leocadia
e
Eduardo.
Leocadia.―V. s.
a
tem sempre um
humor tão alegre...
Eduardo.―Será
isto
idiotismo? Já me lembrou se eu seria tão doudo
como por ahi me julgam!
Leocadia.―Quem o
julga doudo?!
Eduardo.―É
toda essa
sociedade...
Leocadia.―Doudo...
não!... Dizem que v. s.
a
não tem persistencia em
cousa nenhuma; e escarnece tudo...
[212]
Eduardo.―Em quanto
á
persistencia, é falso o que dizem, minha senhora, e sinto
que v. exc.
a, tão distincta do
commum, queira ser o ecco
das opiniões vulgares da rançosa sociedade...
Não sou inconstante...
Leocadia.―A quem diz
isso? Pois
não sei eu a sua vida!... Só namoros, tenho-lhe
conhecido cincoenta.
Eduardo.―Serão
mais,
talvez; mas... que namoros!... V. exc.
a
não se recorda de
que foi meu namoro vinte minutos no baile do barão de
Valbom?
(
Leocadia abaixa os olhos). Pois os
taes cincoenta namoros
foram todos assim... Não sou constante, porque
não
encontrei ainda uma mulher, que possa adorar-se seriamente.
Não ha paixão que o ridiculo não mate.
As minhas tem todas soffrido morte de gargalhada.
Leocadia.―Pois
não
amou nunca seriamente?
Eduardo.―Eu lhe
digo, minha
senhora... amei... Vou contar-lhe a minha vida; mas só lhe
digo os argumentos dos capitulos que são tres.
Capitulo 1.º Conta-se que Eduardo
Leite amou diabolicamente uma mulher, aos dezeseis annos, e fez tantas
loucuras por ella, que, não tendo mais que fazer, quiz
suicidar-se com
pós dos ratos, e foi uma tia que lhe valeu com um copo de
azeite... Pois v. exc.
a ri-se das minhas
desgraças!... E eu
suppunha que a fazia chorar!... Estou como certo dramaturgo que
endoudeceu porque a platéa se riu justamente no
pedaço mais triste da tragedia!...
Leocadia.―É
que v.
s.
a dá um colorido comico
ás scenas mais
tristes...
Eduardo.―
Capitulo
2.º No qual se diz que o dito Eduardo Leite fez tristissima
figura,
vociferando injurias contra as mulheres, emmagrecendo na
razão inversa da hydropesia do scepticismo, e passeando de
noite nas Fontainhas, perguntando ás estrellas pela mulher
dos seus sonhos, e bebendo agua no chafariz para refrigerar o
vulcão, que lhe queimava as entranhas. Dizem-se outras
[213]muitas
cousas tristes a este respeito, como por exemplo um duello que elle
teve com o seu rival, de que lhe resultou estar quinze dias de cama,
com uma bala mettida n'um hombro. Que lhe parece o segundo capitulo?
Leocadia
(
sorrindo).―É funebre;
mas faz-lhe muita honra...
Eduardo.―Estou por
isso...
É uma honra muito grande...
Leocadia.―Pois
não
é? ser ferido em duello por causa d'uma senhora!... Quem
seria a ditosa?
Eduardo.―Era a filha
do meu
sapateiro, minha senhora...
Leocadia (
com
seriedade).―Não diga tal... V. s.
a
não se fascinava por tal mulher!...
Eduardo.―Pois
fascinei-me... Era
linda como a edição mais nitida, que sahiu da
typographia
celeste. Nos seus olhos espelhava-se a candura, e dos labios fugiam-lhe
espiritos d'azas scintillantes, como não vi em nenhuns,
excepto nos de v. exc.
a...
Leocadia.―Dispenso a
comparação...
Eduardo.―E faz bem,
minha
senhora!... Ella por fim, cahiu do ministerio a que eu a levantei, e
tornou-se uma gorda matrona casada com um gordo bate-folha, que
é a minha vergonha porque teve a petulancia de luctar
comigo, e vencer-me...
Leocadia.―E foi esse
que teve o
duello com v. s.
a?
Eduardo.―Nada... foi
uma segunda
victima, que ainda hoje faz quadras a uma certa visão que
lhe appareceu no amanhecer da vida... E esta visão
é a
sobredita filha do meu sapateiro...
Leocadia.―A sua vida
é
um poema epico... E o terceiro capitulo?
Eduardo.―É
verdade, o
terceiro capitulo... O terceiro capitulo... é isto...
É este riso, esta
zombaria, esta conscienciosa abnegação de mim
mesmo...
é a resignada docilidade com que me prestei a ser o
instrumento
[214]de v. exc.
a
para ferir a vaidade de seu
marido... Queira
desculpar-me... Entristeci-a? O passado, passado... Quer v. exc.
a
que
eu lhe escolha duas conchinhas? (
Procurando na
areia). Aqui
está uma bem bonita...
(
Reparando). Ahi vem a sua amiga
Julia...
Leocadia
(
sobresaltada).―Ai!... vem?...
Eduardo.―Como se
dá
ella com o marido, sabe dizer-me?
Leocadia.―Não
sei..
penso que não é feliz...
SCENA IV.
Leocadia,
Julia,
e
Eduardo.
Julia.―Snr. Eduardo,
se me
concedesse alguns instantes com a minha amiga...
Eduardo.―Pois
não,
minha senhora... (
Sahe).
Julia.―São
só duas palavras... Vi entrar teu marido para a barraca, e
não nos vê... Leocadia... Eu não sou
mais feliz que tu... Jorge fez-nos
desgraçadas a ambas... Tu sabes que o meu casamento com
Alvaro foi um capricho que tenho sustentado com lagrimas... Mas tu
não tens culpa... Sei que não
és amada... Eu tambem o não seria... Sou ainda
tua amiga... Não poderei prestar-me nunca a ser o cutello na
mão do teu algoz... ahi tens essas cartas.
Leocadia.―Que cartas
são estas?!
Julia.―São
cartas, que
teu marido me escreve...
Leocadia.―Meu
marido!...
Julia.―Sim... mais
nada...
adeus... (
Sahe).
SCENA V.
Leocadia,
e
depois Eduardo.
Leocadia.―Vou
sondando toda a
profundidade do
[215]meu
abysmo... Eu bem sabia que era infeliz; mas tanto... não!...
Eduardo.―Parece-me
que a sua
amiga não veio dar-lhe prazer... Tão descorada,
minha senhora! Que tem?
Leocadia.―Nada, snr.
Eduardo...
É uma nuvem passageira... Queira dizer a Jorge que me
retirei...
Eduardo.―Eu
acompanho-a...
Leocadia.―Não
consinto... a minha casa é alli...
Eduardo.―Não
insto,
minha senhora, para não ser importuno...
(
Ella sahe,
cortejando-o).
SCENA VI.
Eduardo,
e
depois
a viscondessa de
Valbom, com um creado de farda, que
conduz em sacco de damasco vermelho a roupa de banho.
Eduardo
(
accendendo um charuto).―Ora aqui
está o que são os môços
honestos, honrados,
e bem comportados!... São estes dous maridos. Jorge passa
por um mancebo exemplar; Alvaro dizem que é o typo da
bondade; e, comtudo, vou descobrindo que as respectivas mulheres, se
escrevessem jornaes, estavam em opposição com os
maridos. Os honrados
são elles... Eu é que sou o cynico!... Esta
sociedade é uma
grande patacuada!... Ahi vem a viscondessa de Valbom. Não me
larga desde aquelle baile... (
Olhando sobre o
hombro). Ella cá está comigo...
(
Erguendo-se). Minha querida senhora
viscondessa, como passou v. exc.
a desde hontem?
Viscondessa.―
Passablement.
Esperei-o á noite para a partidinha, e o maganão
não nos quiz
honrar com a sua visita...
Eduardo.―Urgentes
negocios
obrigaram-me a hir ao Porto.
[216]
Viscondessa.―Namôro...
diga a verdade... namôro...
Eduardo.―Não,
minha
senhora. O meu coração está desde
muito na terceira secção...
Não ha poder que o faça entrar na
effectividade...
Viscondessa.―Ora
deixe-se
d'isso... Eu sei que ama... e ama uma senhora... que... digo?
Eduardo.―Se lhe
apraz...
Viscondessa.―Não
direi; mas... lembre-se de que
la proprieté
n'est pas un
vol como diz Proudhon...
Eduardo.―Eu acredito
que a
propriedade não seja um roubo, e por isso mesmo
não tento contra ella.
Viscondessa.―Tenta,
tenta... Isso
não é bonito... Se quer merecer a minha estima,
não tente partir os vinculos matrimoniaes de... eu bem
sei...
Eduardo.―E v. exc.
a
acha que sou
indigno da sua estima, se tentar...
Viscondessa.―Pois
não?
Ha cousa mais sagrada sobre a terra?! A reputação
d'uma senhora!...
(
Mudando de tom). É
verdade que muitas vezes toda a
philosophia é pouca para conter os impetos do
coração... (
Mudando para o tom
da honestidade).
Ainda assim, a mulher digna reprime-se, e faz-se superior a si
propria... (
Mudando de tom).
Apesar d'isso, eu absolvo alguns erros, que muitas infelizes commettem,
porque tem a imprudencia de tentar com a ponta do pé o
desfiladeiro, e por fim...
Eduardo.―Escorregam...
Viscondessa.―Justamente...
Eduardo.―E n'esse
caso...
Viscondessa.―Está
a
pessoa de quem fallamos...
Eduardo.―Nós
não fallamos de pessoa nenhuma... Queria eu dizer que n'esse
caso não está de certo
v. exc.
a
Viscondessa.―Quem
sabe!...
(
Á parte). Ai! o que eu
fui dizer!...
[217]
Eduardo.―Sei-o eu
porque a
conheço desde menino, sempre esposa exemplar...
Viscondessa.―Desde
menino,
não!... pois que annos tem v. s.
a?...
Eduardo.―Trinta,
minha senhora.
Viscondessa.―Trinta?!...
Ha-de
ser isso... Não levamos grande differença...
Eduardo.―Queira
perdoar-me, minha
senhora, mas eu andava na escóla, quando v. exc.
a
deu um
baile para celebrar os annos de seu filho, que era meu condiscipulo...
Ha quantos annos isto vai!
Viscondessa
(
enfronhada).―Dê-me
licença que vá ao meu banho... São
horas, e a maré principia a
vasar...
Eduardo.―Vasa, vasa,
minha
senhora... Será bom aproveitar a vasante...
Viscondessa
(
á parte).―É
muito grosseiro!...
Eduardo.―Vai a
resfolegar polvora
pelos narizes...
D'esta vez, creio que aboli este vinculo de nova especie!... Ahi
está um dos taes cincoenta namoros de que falla Leocadia...
E é por causa d'estas... que me chamam inconstante!... Que
pessimo charuto!... Gilbert se vivesse n'este tempo suicidava-se com um
d'estes canudos de acido prussico...
SCENA VII.
Eduardo
e
Jorge.
Jorge.―Leocadia?
Eduardo.―Já
lá vai... Disse que hia para casa.
Jorge.―Dá-me
lume...
(
accende o charuto). Quero dar-te um
conselho, Eduardo...
Eduardo.―Sim?!
Jorge.―Não
te cases.
[218]
Eduardo (
Alvaro,
sem ser visto, entra n'uma das proximas
barracas).―Deus me livre... Sendo eu, como realmente
sou um cynico, pobre da mulher que tivesse de luctar com o meu
cynismo!... O casamento é bom para ti que és um
anjo de virtude, e para
Alvaro que é o typo da sisudez... Diz-me cá,
és muito feliz, não és?
Jorge.―Não.
Estou
cançado... Minha mulher... é uma mulher...
Eduardo.―É
uma mulher? Pois louva a Deus por
não serem duas... Quantas querias tu? Aposto que
estás desmoralisado como um turco?!
Jorge.―Sempre
galhofeiro... Agora
serio... Tu que és homem de expedientes, não me
dizes como eu
possa ser feliz com Leocadia?
Eduardo
(
ironicamente).―Estás a
zombar! Pois o anjo de virtude vem consultar o cynico!? Não
abuses da tua superioridade, Jorge...
Jorge.―Se tu
soubesses que
tormentos aqui vão n'esta alma!... A paixão
allucinada que me abriu o inferno no coração!...
Tenho necessidade de
respirar... Quero que tu me ouças, porque não
és
d'esses tartufos que torcem o nariz á menor
expansão d'um espirito
atormentado!... Sabes que amo até ao delirio uma mulher?
Eduardo.―É
a tua
naturalmente... Isso é muito justo...
Jorge.―Não
é a minha...
Eduardo.―Pois a
minha tambem
não...
Jorge.―Não
motejes a
minha dôr... Se me não queres ouvir com seriedade,
calemo-nos...
Eduardo.―Ora diz...
Jorge.―Eu amo...
Julia...
Eduardo.―A mulher
de... Oh
escandalo!... Falla baixo que te não ouçam os
caranguejos...
Jorge.―Não
soffro o
escarneo... És incapaz de comprehender um sentimento
nobre...
[219]
Eduardo
(
rindo).―Sim... esse sentimento
é muito nobre... Eu é que sou o cynico... Tens
razão... estou estragado a ponto de não
comprehender a nobreza d'esse sentimento... Prega essa moral,
verás o
galardão que recebes...
Jorge.―Não
me importa
a sociedade... Perco-me por aquella mulher... Era ella quem eu amava...
Casei com Leocadia por um capricho... mas a mulher do meu
coração era Julia...
Eduardo.―E ella...
concorda?
Jorge.―Não...
despresa-me... recebe as minhas cartas, e não me responde...
Eduardo.―Mas sempre
vai lendo as
cartas?... Então continúa, visto que esse
sentimento
é nobre... Eu é que sou o cynico...
Jorge.―E quem sabe o
fim para que
ella recebe as cartas?
Eduardo.―Talvez para
papelotes,
quando se frisa...
Jorge.―Adeus!...
estás
insoffrivel... Isso offende!...
Eduardo.―Pois eu sei
cá para que ella recebe as cartas?
Jorge.―Talvez para
mostral-as a
minha mulher... e vingar-se assim...
Eduardo.―Isso
póde
ser... A historia antiga conta tres factos semelhantes. O primeiro
aconteceu com Dido, a respeito de Eneas; o segundo com Fredegonda...
Jorge.―Deixa
lá
isso... que me importa a mim a historia?... Fazes-me um favor?... Se
fallas com ella, pódes sondal-a a meu respeito...
Eduardo.―Sondal-a?...
não sei de que modo!... Tu não sabes que o marido
é meu figadal inimigo?
Só se a vir por aqui destacada do osso do seu osso... Ella
ainda agora aqui esteve com D. Leocadia...
Jorge.―Com minha
mulher!
Eduardo.―Sim...
[220]
Jorge.―Estou
perdido!... Deu-lhe
as cartas!...
Eduardo.―Daria?! Que
grande
immoralidade!
Jorge.―E por isso
Leocadia se
retirou...
Eduardo.―E olha que
não hia boa... Parece-me que a estas horas já
ella admirou o estilo das tuas
preciosas cartas!... Olha... queres vêr Julia?... Ella vem
para aqui... Esconde-te atraz d'essa barraca, em quanto ella te
não vê... e quando passar, falla-lhe...
Jorge
(
cumpre).―Que hei-de eu
dizer-lhe?!...
Eduardo
(
sorrindo).―Vê se ella
comprehende o
o teu nobre
sentimento...
Jorge.―Ella
não
pára a ouvir-me... tu verás...
Eduardo.―Se
não parar,
anda tu com ella... (
Retira-se).
SCENA VIII.
Jorge
e
Julia.
Jorge.―Não
tenho
animo... Sou um imbecil...
Julia (
sem
o
vêr, sentando-se em cadeira).―A minha
querida vingança!... Não vim só para
soffrer... Alguem ha-de soffrer comigo...
Jorge
(
dirigindo-se com
irresolução).―Animo!
Julia
(
voltando-se de repente, e
erguendo-se).―O senhor!... (
Quer
retirar-se).
Jorge
(
sustendo-a).―Não me
fuja...
Julia.―Retire essa
mão, senhor!
Jorge.―Esse enfado
é
muito pouco senhoril... Esta mão não mancha a sua
pureza...
Julia.―Para mim tem
o horror de
mão que me feriu com um punhal... O senhor não
tem dignidade nenhuma... Retire-se, que meu marido póde
vêl-o.
Jorge.―Que veja...
Eu
não temo seu marido...
Julia.―Pois
não o tema
a elle, mas respeite-me a
[221]mim,
para que a sua posição de marido seja
respeitada... (
Eduardo tem vindo por entre as barracas
esconder-se atraz da mais proxima do dialogo).
Jorge.―Eu
já me
não respeito na minha posição... Seu
marido que tire represalias, que eu sou indifferente a todos os
ultrajes d'essa ordem.
Eduardo
(
á parte).―Eu
é que sou o cynico...
Julia.―Então
devo
acreditar que o senhor requintou em immoralidade...
Jorge.―Acredite o
que quizer...
Saiba que foi uma paixão que me perverteu... Hei-de cuspir
na sociedade, visto que a não posso calcar aos
pés... Despreso todas as formalidades... Para a
desesperação
não ha conveniencias a guardar...
Eduardo
(
á parte).―Eu
é que sou o cynico!...
Julia.―Pois, senhor,
eu entendo
que as devo guardar todas... Snr. Jorge, tenha vergonha diante da sua
propria consciencia. (
Vai
retirar-se).
Jorge
(
segurando-a).―Ha-de ouvir-me...
Que destino deu ás minhas cartas?
Julia.―Entreguei-as
a sua
senhora.
Jorge.―Isso foi um
vil
procedimento...
Julia.―Deveria antes
entregal-as
a meu marido?
Jorge.―Não
tenho nada
com seu marido, Julia... Não me cite tantas vezes o nome de
seu marido, que
é de nenhuma importancia n'este objecto...
SCENA IX.
Os mesmos e
Alvaro sahindo
da
barraca, vestido de banho.
Julia.―Ah! meu
marido...
Eduardo
(
escondido).―Isto ha-de ser
bonito...
Alvaro.―Pois, snr.
Jorge, eu
pensei que importava alguma cousa n'este negocio... Isto que
é? Cahiram miseravelmente
[222]n'um
silencio estupido!... Julia, tu não
fallas? Snr. Jorge! não fique embuchado!... O senhor
está-me dando uma importancia, que não era a do
seu programma...
Jorge.―Esta
situação é melhor que a não
prolonguemos. V. s.
a vai pedir-me uma
satisfação...
(
Julia retira-se).
Alvaro.―Está
enganado... Não tenho de que lhe pedir
satisfação... Faz v. s.
a
muito bem...
Não lhe desagradam os olhos d'aquella senhora, e
põe os seus meios... Tudo isto é natural... Que
satisfação lhe hei-de eu pedir!...
Eduardo
(
á parte).―Eu
é que sou o cynico!
Jorge.―Acabemos,
snr. Alvaro...
Alvaro.―Tranquille-se,
cavalheiro... Eu ainda não disse senão metade.
Visto que o senhor gosta dos olhos de minha mulher, eu aproveito a
occasião para lhe dizer que não desgosto dos
olhos da sua. Com a
differença, porém, que eu, declarando-me a v.
s.
a, dou-lhe a
importancia que v. s.
a me não deu...
Visto que nos
encontramos no mercado, permutaremos os olhos de nossas mulheres. O
senhor fica com os olhos da minha, e eu com os olhos da sua...
Parece-me que me vai pedir uma satisfação...
Jorge.―Não
sei com que
intenção me faz semelhante proposta...
Alvaro.―Com a melhor
intenção do mundo... É um contracto
bilateral... sem testemunhas... Eu concedo-lhe a frequencia de minha
casa para v. s.
a estudar bem os olhos de minha
mulher, e o cavalheiro
franqueia-me occasiões de estudar os olhos da sua.
Eduardo
(
á parte).―Eu
é que sou o cynico!...
Jorge.―E se na
sociedade se
desconfia esta convenção?
Alvaro.―Deixe-se
d'isso... A
sociedade, deu-nos diplomas de excellentes pessoas... Eu creio que
ambos
[223]temos
a finura necessaria para desempenharmos, sem pateada, os nossos
papeis... Aqui o grande plano é que afastemos do nosso
commercio Eduardo, porque esse tem a alma sufficientemente estragada
para nos adivinhar...
Eduardo
(
á parte).―Muito,
obrigado!... Até este me dá diploma de cynico!
Alvaro.―Agora, meu
amigo, vou
tomar banho... Hoje á noite espero-o com sua senhora em
minha casa para tomarem uma chavena de chá...
(
Apertando-lhe a mão).
Au
revoir, meu caro senhor...
(
Sahem). Ó banheiro!...
Vamos lá, que nos foge o mar...
SCENA X.
Eduardo.―Visto que
eu sou o
cynico, e os virtuosos são estes, passo a ser um pouco mais
virtuoso que elles, para que elles sejam cynicos como eu... Alguma vez
hei-de atinar com a virtude... A verdadeira acho que é a
d'elles... O genero não é caro...
Veremos...
CORRE O PANO.
ACTO III.
Passa-se em casa do visconde
de
Valbom. Sala
faustuosa: luxo sem gosto: muita cadeira de estôfos
amarellos: muito relogio: muita bugiaria de vidro, de mistura com
porcellanas de Sevres, e adornos d'ouro, sem
significação nem serventia. É
noite.
SCENA I.
Viscondessa
de Valbom,
D. Julia,
Jorge, visconde
de Valbom.
Um creado com uma bandeja,
recebe as chavenas do
chá; e retira-se.
Viscondessa (
a
Jorge).―A snr.
a D. Leocadia
não
virá?
Jorge.―É
natural que
venha.
Viscondessa.―Com o
capellão?
Jorge.―Sim... com o
capellão...
Viscondessa (
a
Julia).―O snr. Alvaro que andará a fazer?
Julia.―Naturalmente...
das
suas...
Visconde.―Das
suas... isso que
quer dizer?! Alvaro é o exemplo da honradez personalisada...
Julia.―Agradecida a
v. exc.
a,
snr. visconde.
Viscondessa.―Não
tem
de que, menina. Seu marido
[226]é um
anjo, e a sociedade faz-lhe justiça. A
reputação que elle tem grangeado é a
prova infallivel das suas virtudes. Elle, e aqui o snr. Jorge
são os dous cavalheiros mais queridos da nossa roda. Foram
rapazes, sem rapaziadas. São maridos, sem mancha, e
hão-de ser
sempre modêlos de probidade a todos os respeitos.
Jorge.―Muito grato,
minha
senhora. Tenho empregado todos os esforços por merecer
á sociedade um bom conceito, e creio que o tenho
conseguido...
Viscondessa.―Porque
o merece. Se
o não merecesse, creia que o não teria, porque a
opinião publica
é justiceira, e nunca se engana com os bons, ou com os
maus... Não se lembra da opinião que teve
Eduardo?
Jorge.―Uma pessima
opinião.
Visconde.―Oh! de
certo, aquillo
era um homem com uma lingua depravada, e costumes horriveis...
Viscondessa.―Mas
vejam que lhe
chegou a sua hora de reflexão. Retirou-se completamente da
sociedade; viveu tres mezes encerrado comsigo mesmo na
solidão, e voltou para o mundo completamente desfigurado.
É outro homem...
Julia.―Totalmente
outro.
Visconde.―Faz mesmo
espantar a
differença que o homem fez!...
Jorge.―É
pasmosa!
Viscondessa.―As suas
palavras
são todas serias, medidas, e reflectidas. Os seus modos
são circumspectos, civis, e insinuantes. O seu vestir
é muito grave, muito decente, e muito sisudo... Dizem-me que
dá esmolas... tenho lido nos jornaes alguns actos de
philantropia que o honram muito... em fim, está um
cavalheiro, que não deixa nada a desejar! Vejam o que
são as cousas!... Aqui ha quatro mezes, se elle me olhasse
para uma das minhas creadas, despedil-a-hia immediatamente; e hoje, se
eu tivesse uma filha, dava-lh'a com immensa
satisfação...
[227]
Jorge.―Muito se
lucra, quando se
é honrado!...
Visconde.―Pois
não!
Não ha nada como a honra!
Jorge.―Oh! a honra
é a
salvaguarda de todas as inquietações!
Viscondessa.―Que
precipicios
não encontrou Eduardo em quanto se deixou hir á
mercê dos seus
extravagantes desejos!...
Visconde.―Oh!... era
insoffrivel!... Nunca se viu assim uma libertinagem!...
Julia.―Ouvi fallar
tão
mal d'esse homem, e nunca me disseram distinctamente os seus crimes.
Visconde.―Immensos,
immensos...
Viscondessa.―Immensissimos,
immensissimos...
Julia.―Mas posso eu
saber algum
d'elles?
Visconde.―Eu
não sei
de nenhum; mas dizem por ahi que são muitos... muitos...
Julia.―E a snr.
a
viscondessa
sabe quaes são?
Viscondessa.―Tambem
não sei; mas, na boa roda, diziam que elle era um prodigio
de immoralidade...
Julia.―E o snr.
Jorge? Esse ha-de
saber muitas cousas...
Jorge.―Creio que ha
muitas scenas
horriveis na vida d'esse homem, todavia, eu não sei
nenhuma...
Julia.―Mas vive com
elle ha mais
de sete annos...
Jorge.―É
verdade...
mas, como elle me não chamava a testemunhar os seus
desvarios, nada sei...
Julia.―O que se
segue
é que nenhum de nós sabe dizer em que consistiu a
depravação de
Eduardo!...
Viscondessa.―A
sociedade
não se engana, menina. Ella que o condemnou lá
sabe os motivos porque o fez. A virtude não é
nunca infamada. Veja
lá se seu marido, e aqui o snr. Jorge foram victimas da
calumnia!...
Julia.―Mas eu queria
que me
citassem um crime de Eduardo...
Um creado―O snr.
Eduardo...
[228]
SCENA II.
Os mesmos e
Eduardo.
(Eduardo veste todo de preto.
Maneiras muito
acanhadas, dando-se uns ares de virtude idiota. Uma cortezia a cada
palavra. Recolhido sempre em si, affectando uma imbecilidade moral, de
fazer piedade).
Viscondessa
e
visconde.―Muito bem
vindo.
Eduardo.―Como
passaram vv.
exc.
as?
Viscondessa.―Maravilhosamente...
queira sentar-se.
Eduardo.―E a snr.
a
D. Julia?
Julia.―Um pouco
affectada dos
nervos.
Eduardo.―Muito
sinto, minha
senhora, Deus a poupe a soffrimentos de todo o genero... E o meu amigo
Jorge... como passa?
Jorge.―Assim,
assim...
Viscondessa.―Então!
senta-se? (
Eduardo senta-se).
Eduardo.―Como
está tua
senhora, Jorge?
Viscondessa.―Estamos
á
espera d'ella.
Eduardo.―E seu
marido, snr.
a
D.
Julia?
Visconde.―Não
deve
tardar... (
Eduardo em ar de pensativo, esfregando as
costas das
mãos).
Viscondessa.―Elle
ahi vai recahir
nas suas melancolias! Não o queremos assim! Que tem?
Eduardo.―Pesares...
que vem de
longe, minha senhora...
Visconde.―O passado
já
lá vai... Agora v. s.
a é
outro homem... Toda a
gente diz que quem o viu e quem o vê...
Viscondessa.―Nada de
tristezas. A
virtude é sempre alegre... Ó menina,
vá tocar um bocadinho...
Tenho notado que o snr. Eduardo está melhor quando ouve
tocar... Que quer que ella toque?
[229]
Eduardo.―O que s.
exc.
a
quizer...
Julia.―Cousas
tristes?
Viscondessa.―Não,
menina! Bem triste está elle!... Toque alguma cousa do
Barbeiro de Sevilha...
Julia.―Pois, sim...
(
Vai tocar na sala immediata).
Viscondessa (
a
Eduardo).―Quer que vamos á sala do piano,
ou quer gosar de longe?
Eduardo.―De longe,
se v. exc.
a
não manda o contrario. (
Jorge, logo depois,
segue Julia).
Visconde.―Muito
folgamos de o
vêr rehabilitado na opinião publica.
Eduardo.―E estarei-o
eu por
ventura?
Viscondessa.―Está...
Veja... n'um só mez recuperou os creditos perdidos em tantos
annos...
Eduardo.―Muito devo
a Deus,
porque é o contrario que costuma acontecer...
Então a snr.
a D. Julia
não nós dá o prazer de a ouvirmos?
Vai-nos demorando
o goso...
Visconde.―Eu vou
lá...
(
Sahe).
SCENA III.
Eduardo
e
a viscondessa.
Viscondessa (
com
vivacidade).―Vês como sahiu certo tudo o
que eu te disse? A sociedade é uma excellente pessoa.
Eduardo
(
mudança de tom. Ouve-se o
piano).―Tenho notado isso... Achas que vou bem
assim?
Viscondessa.―O
melhor possivel...
Ponto é que te conserves...
Eduardo.―N'este
pé de
virtude? Já me não desmancho... E, com effeito,
dizem que sou beato, virtuoso, martyr, contricto...
Viscondessa.―Até
o
visconde está espantado da tua mudança...
[230]
Um creado.―A snr.
a
D. Leocadia,
e o snr. Alvaro. (
Sahe).
Viscondessa.―Não
sei o
que me parece este grupo, a estas horas!... Sabes que eu suspeito...
Eduardo.―Suspeitas?!...
Oh!... eu
não... Facilidades da innocencia!...
SCENA IV.
Os mesmos,
D.
Leocadia, e
Alvaro.
Viscondessa.―Tão
tarde!...
Leocadia.―Foi
impossivel aquietar
o pequeno até agora...
Eduardo (
tornando
ao tom beatifico).―Passou bem, minha senhora?
Leocadia.―Bem...
Alvaro
(
dá uma gargalhada).
Viscondessa.―Que
riso
é esse?
Alvaro.―Não
é nada, minha senhora... Quem toca, é minha
mulher?
Viscondessa.―É
sim...
se quer vá á sala...
Alvaro.―Não,
minha
senhora. (
Senta-se trombudo a um canto da
sala).
Viscondessa (
a
Leocadia).―Que terá elle? Estranho-o!...
Leocadia.―Eu
não
sei... Chegou a minha casa quando eu estava para sahir... Disse-me que
me acompanhava... veio comigo sem dizer palavra... e não sei
mais nada, nem me importa...
Eduardo
(
pesaroso).―Terá
dôr de dentes? São dôres dos nossos
peccados... Deus nos acuda...
Viscondessa.―Venha
cá,
snr. Alvaro!... O nosso bom amigo Eduardo, que é o S. Paulo
dos nossos tempos, pergunta se lhe doem os dentes...
(
Alvaro
dá outra gargalhada).
[231]
Leocadia.―Ora
entendam
lá aquillo!...
SCENA V.
Os mesmos, e
Julia,
Jorge, e
o visconde.
Jorge (
apertando
a mão de Leocadia).―Até que
finalmente...
Julia (
apertando
a mão de Alvaro).―Com effeito...
demoraste-te.
Alvaro.―Negocios...
Leocadia.―O pequeno
não queria adormecer... (
Alvaro
dá terceira
gargalhada).
Jorge.―Que riso
é
esse?
Julia.―A que vem o
destempero
d'essa gargalhada?...
Viscondessa.―Lá
está outra vez mergulhado na sua melancolia o snr.
Eduardo!... Quer, talvez, mais musica...
Eduardo.―Se
não
receasse ser indiscreto, pedia a v. exc.
a
aquella aria da Norma... no
acto final...
Viscondessa.―Executada
por quem?
Eduardo.―Por v. exc.
a...
dá-lhe uma graça particular... Não
quero offender as duas senhoras que a desempenham habilmente; mas
não sei que toque melancolico...
Viscondessa.―Pois
sim... hirei...
Vamos todos...
Eduardo.―Se me
concedesse...
Viscondessa.―Ficar
sósinho aqui?... Pois sim... fique.
Visconde.―Eu
cá fico
com elle...
Viscondessa.―Não,
não... deixa-o... são necessidades organicas...
Eu tambem tenho d'estas tempestades moraes...
Vozes.―Pois sim...
pois sim...
(
Sahem).
[232]
SCENA VI.
Eduardo,
e
depois Julia.
Eduardo.―A
gargalhada de Alvaro
quer dizer muito... (
Ouve-se a aria da
Norma).
O maldito veria alguma cousa? Se viu, lá vai a terra todo o
meu edificio de virtude... Dizem que ella é facil, eu
vejo-me illaqueado n'uma rede tal, que se me descobrem não
sei por onde hei-de evadir-me... Que pena se me não deixam
ser honrado!... Tenho, só n'um mez, colhido tantas palmas de
virtude, que, passados tres, n'este andar, eu todo seria um palmito...
Julia
(
agitada).―Eduardo...
Eduardo.―Julia...
Julia.―Pelo amor de
Deus,
desvanece-me d'uma suspeita que me despedaça...
Eduardo.―Que
é?!
Julia.―Tu amas
Leocadia.
Eduardo.―É
falso...
Julia.―Mas ella
adora-te com
delirio...
Eduardo.―Que culpa
tenho eu?
Julia
(
tomando-lhe a mão com
frenesi...)―Não me sacrifiques a ella...
a nenhuma... porque nenhuma te amará tanto...
Jorge (
ao
fundo).―Isto é espantoso!...
Eduardo.―Não
vês que represento um papel hypocrita, tão contra
o meu caracter, para te não perder?
Jorge (
o
mesmo).―É incrivel!...
Julia.―Conheço
tudo...
meu anjo... Vou á sala... póde notar-se a minha
falta...
[233]
SCENA VII.
Eduardo
, e
depois Leocadia,
e depois o
visconde na
porta
do fundo sem ser visto.
(Ouve-se ainda a musica da Norma).
Eduardo.―Tornemos
á
posição do benemerito Tartufo. Oh meu querido
Moliere, onde quer que estás recebe os meus agradecimentos
pelo excellente molde que me cá deixaste!
Leocadia
(
impetuosamente).―Eduardo...
só duas palavras... Olha que Alvaro viu-te sahir de minha
casa...
Eduardo.―Viu?!
estão
explicadas as gargalhadas...
Leocadia.―Receio
maus
resultados... Elle é capaz de tirar qualquer
vingança... Oh meu Deus!... estou sobre um
vulcão...
Eduardo.―E eu dentro
d'uma
tina... Deixa correr os successos... Vai, que podem descobrir-nos...
Visconde
(
á parte).―Como se
explica isto?
Leocadia.―Que has-de
tu dizer se
elle nos denuncia?
Eduardo.―Provo que
não
sou mais immoral que elle... As pretenções
são as mesmas...
Visconde.―Isto
é
bonito!... (
Retira-se).
Leocadia.―Que
situação a minha!...
Eduardo.―Retira-te,
que podem
surprehender-nos... (
Leocadia sahe).
SCENA VIII.
Eduardo,
e
depois
a viscondessa,
e
Alvaro ao
fundo.
Eduardo.―Atropellam-se
os
acontecimentos!... Tudo isto faz persuadir que eu tenho sido um homem
verdadeiramente virtuoso! No tempo em que eu era cynico,
[234]antes
que a sociedade me chamasse regenerado, as mulheres
não andavam assim n'uma dobadoura em redor de mim!
Ó benevola opinião publica, quanto
te devo!... Ahi vem outra que me não faz muita honra!...
Viscondessa.―Aproveitei
um
instante para estar só comtigo antes que elles venham...
Eduardo.―Como
és
carinhosa!
Viscondessa.―Desconfiei
que
Leocadia tivesse vindo para aqui... Sabes que tenho ciumes de todas as
mulheres!...
Alvaro
(
á parte).―Que
ouço!...
Eduardo.―Continuo a
representar
bem? A platea applaude?...
Viscondessa.―O
visconde disse-me
n'este momento que tinha muito que contar-me... perguntei-lhe a que
respeito... e elle de fugida pronunciou o teu nome e de Leocadia...
Alvaro
(
aparte).―E Leocadia!...
Eduardo.―E
Leocadia!... Como se
entende isso?...
Viscondessa.―Não
sei... Mudemos de tom que elles ahi vem...
SCENA IX.
Os mesmos, e
Julia,
Alvaro,
Jorge
e
Leocadia.
Viscondessa (
com
emphase).―Pois não queremos uma virtude
assim melancolica... É necessario que resurja d'esse
abatimento moral, snr. Eduardo... A verdadeira felicidade
está na consciencia. O seu passado não tem a
pedir contas ao seu presente... A sociedade abre-lhe o
braços como ao filho prodigo...
(
Alvaro solta uma risada).
Que riso é esse, snr. Alvaro?
Alvaro.―É
um riso
nervoso!...
Eduardo
(
á parte).―Mau!...
Leocadia.―Não
tem
razões para tanta melancolia!...
[235]É
estimado geralmente pelas suas virtudes, e merece
a confiança de todas as pessoas...
(
O visconde solta uma risada).
Que risada é essa, snr. visconde?
Visconde.―É
uma risada
como a d'aquelle senhor (
apontando
Alvaro). É uma
risada nervosa!
Eduardo
(
á parte).―Peor!...
Julia.―Parece que
escarnecem a
virtude!... Estas transfigurações moraes custam
muitas
amarguras... Eu comprehendo a melancolia do snr. Eduardo... Lembra-se
do que foi, e, no prazer do que é, sente pesar de o
não ter sido desde muito... (
Jorge
solta uma risada).
Tambem o senhor se ri?
Jorge.―É
uma risada
como a d'aquelle senhor... (
apontando
Alvaro) é uma
risada nervosa...
Eduardo
(
á
parte).―Está tudo por terra!...
(
Alto). Vejo que os meus amigos
estão muito nervosos!... Banhos de mar podem ser-lhes
proveitosos... Não acho bonito que me
escarneçam... Fazem-me lembrar a fabula do leão e
do... Em fim, seja tudo em desconto das minhas culpas!...
(
Riem todos
tres).
Ora comprehendam isto!... É um abuso do riso!... Eu
não lhes mereço isso, senhores! Dizem por ahi
que eu sou um honrado homem, e não se cospe assim na
honra...
Jorge
(
á parte).―Vou-lhe
arrancar a mascara!...
Visconde
(
á parte).―Hypocrita!
Alvaro
(
á parte).―O impostor
não passará d'hoje...
Viscondessa.―Que
falsa
posição é esta?
Leocadia.―Não
entendo
isto!
Julia.―Nem eu!
Eduardo.―Nem eu!...
Viscondessa.―Que
modos
são esses!... em que pensam os senhores?...
Alvaro.―Eu pensava
nos recursos
do talento depravado!...
[236]Senhores!...
é necessario que se acabe este
comedia d'algum modo!... Aquelle senhor
(
indicando Eduardo) é um
impostor!
Eduardo.―Eu!
Calumnia! infamia...
quero as provas...
Alvaro.―A snr.
a
D. Leocadia que
as dê...
Visconde.―Justamente:
a snr.
a
D.
Leocadia que as dê!...
Jorge.―Minha
mulher!...
Leocadia.―Eu!
Eduardo.―Ella!...
Alvaro
e
visconde.―Sim!
ella!...
Jorge.―Pois bem...
cáia a mascara... Esse senhor é um infame
seductor!
Eduardo.―Eu!
Viscondessa.―Elle!
Jorge,
visconde,
e
Alvaro.―Sim, sim,
elle!
Eduardo.―Provas,
senhores
calumniadores!
Jorge.―Provas? a snr.
a
D. Julia
que as dê!
Alvaro.―Minha
mulher!
Julia.―Eu!
Eduardo.―Ella!
Jorge
e
visconde.―Sim, sim,
ella!
Alvaro.―N'esse
caso... rasgue-se
o véo do mysterio... Todos somos victimas da hypocrisia
d'esse homem!
Visconde.―Menos eu!
Viscondessa.―Nem eu!
Eduardo.―Provas,
senhores!
Alvaro.―Provas? a
snr.
a
viscondessa que as dê.
Visconde.―Minha
mulher!
Viscondessa.―Eu!
Eduardo.―Ella!
Alvaro
e
Jorge.―Sim, sim!
Eduardo.―Todas
tres!...
Alvaro (
para
Julia).―Responde!
[237]
Jorge (
para
Leocadia).―Que dizes a isto?
O visconde (
para
a viscondessa).―Pois não te defendes?
Todas tres.―É
falso!...
Eduardo (
mudando
de tom).―Eu vou defendêl-as, minhas
senhoras!
Alvaro.―A snr.
a
D. Leocadia
não tem defeza nenhuma, porque...
Eduardo.―Silencio!
Jorge.―A snr.
a
D. Julia
não tem defeza nenhuma, porque...
Eduardo.―Esperem!...
Visconde.―Concordo
que nenhuma
d'essas tem defeza!... mas é preciso que me provem que...
Eduardo.―Alto
lá...
Queiram retirar-se, minhas senhoras... É defeza a
presença das
rés no tribunal que vai installar-se... Queiram
retirar-se... (
Ellas
sahem).
SCENA X.
Eduardo,
Jorge,
Alvaro, e
o visconde.
Eduardo.―Venham
cá...
Os senhores não tem ouvido dizer que eu me regenerei?
Respondam, sim ou não?
Alvaro.―Qual
regenerou-se! É um
impostor!...
Eduardo.―Concordemos
em que sou
um impostor. Mas digam-me: a opinião publica a meu respeito
é essa?
Visconde.―Não
é... porque o senhor enganou-nos.
Eduardo.―Pois, se
não
é, porque não respeitam os senhores a
opinião publica á qual me mandaram
obedecer?
Visconde.―Já
lhe disse
que a opinião publica está illudida com o senhor!
[238]
Eduardo.―E d'antes?
ha quatro
mezes era mais verdadeira que hoje?
Jorge.―Não
quero
disputas... Não respondo ao seu interrogatorio... Quero uma
satisfação
immediata.
Alvaro.―E eu tambem.
Eduardo.―E o snr.
visconde?
Visconde.―Veremos,
depois...
Eduardo
(
sorrindo).―Acha que não
vale a pena decidir já... Pois lá hiremos... Mas,
antes d'isso,
queiram attender-me: os senhores, com uma bala, em duello, podem
matar-me, primeira loucura; e, se me não matam, arruinam a
minha boa reputação, que eu aprecio mais que a
vida; segunda asneira... Que lucram os senhores com isto?
Alvaro.―Nada de
philosophias!...
É indispensavel para a minha honra um duello...
Jorge.―Não
prescindo.
Eduardo.―Pois se
não
prescindem, lá vamos... Mas os primeiros que
hão-de bater-se um com o outro, são os senhores!
(
Indicando Alvaro e
Jorge).
Alvaro
e
Jorge.―Nós?!...
Eduardo.―Os
senhores...
Alvaro.―Porque?!
Eduardo.―Porque teem
trabalhado
reciprocamente na sua deshonra.
Jorge.―Isso
é uma nova
infamia!
Eduardo.―Mãos
na
consciencia, meus amigos! O contracto feito ha quatro mezes na praia
dos Inglezes não os exime de serem honrados!
Alvaro
e
Jorge.―Na praia dos
Inglezes!...
Eduardo.―Querem
explicações?... Vejam lá o que
resolvem... Querem explicações?... Que
dizem?!... Esse silencio annuncia bonança... Aproveitemos o
vento que é favoravel... Concordam em que occultemos
mutuamente as nossas miserias? Eu de mim... (
Comprime
os labios com os dedos...)
Os senhores, se
[239]são
honrados como a opinião publica os
apregôa, calem-se tambem...
Visconde.―Mas eu
é que
não entro n'esse contracto...
Eduardo.―Nem lh'o
propuz... mas,
v. exc.
a contando com o silencio d'estes
cavalheiros, de certo
não quererá uma ignobil publicidade a respeito
de... Veja lá o que resolve...
Visconde.―Mas v.
s.
a
não ha-de entrar mais em minha casa...
Eduardo.―D'accordo.
Amanhã embarco para a exposição de
Pariz, e tenciono viajar tres annos... Serve-lhe a
condição?... O silencio approva... Muito bem...
(
Ao fundo). Minhas senhoras! queiram
entrar!... (
As damas entram). Vv.
exc.
as foram julgadas
innocentissimas e absolvidas... Continuamos todos a ser excellentes
pessoas a todos os respeitos. Estes senhores, de parte a parte, pedem
perdão das calumnias sordidas com que quizeram
reciprocamente manchar os seus nomes...
Viscondessa.―Assim o
suppuz!
Julia.―Assim devia
acontecer!
Leocadia.―Mas eu
não
perdôo a quem me infamou!
Viscondessa
e
Julia.―Nem
nós!
Eduardo.―Hão-de
perdoar, que são muito boas senhoras, e o perdão
das injurias é o sentimento mais nobre
do coração humano... Eu retiro-me com os meus
creditos, e vv. exc.
as ficam com os seus...
Muito boas noites...
(
Sahe).
Os outros, como é natural, ficam a olhar uns para os outros
com aquellas caras proprias de taes conflictos. O author vem
fóra dizer que não ha na comedia
allusões nenhumas. A platéa retira satisfeita, e
continúa
a guardar-se dos cynicos.
[240]
No dia seguinte os jornaes dizem que a comedia é immoral, e
attentatoria contra os bons costumes. Os Sganarellos mandam comprar o
jornal, e mostram-no aos compadres. O author, conscio de que o mordem,
vem no conhecimento de que os mordentes são os legitimos
Orgons d'este seculo; mas, um pouco
menos felizes que os d'uma grande comedia, que o leitor, se se
não recorda, ou não leu nunca, póde
encontrar com o titulo de
Tartuffe.
Se, todavia, detesta a
letra redonda, estude a vida pratica, e chegará á
mais difficil das
formaturas, ao
ultimatum da
sabedoria:
«o conhecimento dos homens.» É
tão facil, ao primeiro intuito, estremar o
cynico do hypocrita!... Dai-me o primeiro, que repellis, e
não me relacioneis com o segundo, que abraçaes:
que eu, profundamente grato, ficarei pedindo a Deus que vos augmente o
dinheiro, e vos conserve uma saude bem vermelha, bem gorda, para que a
virtude não seja sempre uma irrisão n'este
planeta. Disse.
FIM.
INDICE.
Morrer por capricho
(romance) |
5 |
Uma paixão bem empregada
(romance) |
25 |
De abysmo em abysmo
(romance) |
35 |
Aventuras d'um boticario d'aldêa
(romance) |
41 |
Cousas que só eu sei
(romance) |
55 |
Dinheiro! dinheiro!
(romance) |
109 |
A caveira (romance) |
131 |
Uma praga rogada nas escadas da forca
(romance) |
155 |
Pathologia do casamento (drama em 3
actos) |
183 |
Notas:
[1] Systema
pathologico do snr. Borges de Castro, facultativo
distincto, na cidade do Porto, em 1853.
[2] Escripto
em 1853.
[3] .......