Title: Elegias
Author: Teixeira de Pascoais
Release date: October 20, 2007 [eBook #23105]
Most recently updated: November 6, 2007
Language: Portuguese
Original publication: Porto: Typographia Costa Carregal Travessa Passos Manuel, 27, 1913
Credits: Produced by Vasco Salgado
Produced by Vasco Salgado
1912
Sempre—1897
Terra Prohibida—1899
Sempre (2.^a edição)—1902
Jesus e Pan—1903
Para a Luz—1904
Vida Etherea—1906
As Sombras—1907
Senhora da Noite—1908
Marános—1911
Regresso ao Paraiso—1912
O Espirito Lusitano ou o Saudosismo—1912
O Doido e a Morte—1913
1912
Não tencionava publicar este livro. A dôr que ele contem, muito embora arrefecida ao tomar expressão verbal, é sagrada para mim.
Estes versos, nascidos da morte d'uma creança bem amada, fôram escriptos para seus Paes e Avós, para as pessoas que a rodearam de carinhos durante a sua doença e para os meus intimos amigos de alma.
O soffrimento verdadeiro não ama a luz do mundo. Quem chora, esconde o rôsto. A dôr oculta-se por conhecer a desharmonia de que é feita.
Mas quando soube da subscripção nacional aberta a favor do divino Poeta da "Historia de Jesus" para as creancinhas lerem, resolvi pôr á venda este livro, com o fim de inscrever o seu producto, ainda que modesto, na subscripção referida.
Fui eu que resolvi?… Gomes Leal verá no producto das "Elegias" não a minha pessoa, mas o proprio espirito d'essa Creança…
É ela a agradecer-lhe a dedicatoria do Poema, sublime de emoção religiosa, onde murmura, eternamente viva, a alma de Jesus.
Março de 1913.
[Nota do Transcritor: Aqui surge a assinatura do autor.]
Este pequeno livro é para ti,
Minha irmã. Has de lê-lo com amor,
Pois nele encontrarás o que soffri
E uma sombra talvez da tua dôr.
E nele, embora em nevoa, encontrarás
A Imagem de teu Filho…
Ó minha irmã,
Sei que és a campa viva onde ele jaz;
Sei que este livro é cinza, poeira vã
Que eu espalho em redor da tua cruz…
Mas ante a negra dôr que me tortura,
Quiz vingar-me da Morte, e ergui á luz,
Cantando, este meu calix de amargura.
Vi-o doente, ouvi os seus gemidos;
Sinto a memoria negra, ao recordá-lo!
A Mãe baixava os olhos doloridos
Sobre o Filho. E era a Dôr a contemplá-lo!
Depois, nesses instantes esquecidos,
Ou lhe falava ou punha-se a beijá-lo…
Mas, retomando, subito, os sentidos,
Estremecia toda em grande abalo!
Fugia de ao pé dele suffocada,
A sua escura trança desgrenhada,
Os seus olhos abertos de terror!
E então, num desespêro, a Mãe chorava,
E, por entre gemidos, só gritava:
Amôr! amôr! amôr! amôr! amôr!
Que terrivel tragedia ver a gente,
No seu exiguo e doloroso leito,
Uma creança morta, um Inocente,
Um pequenino Amôr inda perfeito!
Oh que mimosa palidês tremente
A do gélido rôsto contrafeito!
A as mãosinhas de cêra, docemente,
Ó dôr, ó dôr, cruzadas sobre o peito!
Ó Deus cruel que matas as Creanças!
Auroras para o nosso coração,
Alegrias, alivios, esperanças!
Não sei quem és; eu não te entendo, Deus!
E penso, com terror, na escuridão
Desse teu Reino tragico dos Céus…
Como estou só no mundo! Como tudo
É lagrima e silencio!
Ó tristêsa das Cousas, quando é noite
Na terra e em nosso espirito!… Tristêsa
Que se anuncia em vultos de arvoredos,
Em rochas diluidas na penumbra
E soluços de vento perpassando
Na tenebrosa lividez do céu…
Ó tristêsa das Cousas! Noite morta!
Pavor! Desolação! Escura noite!
Phantastica Paisagem,
Desde o soturno espaço á fria terra
Toda vestida em sombra de amargura!
Êrma noite fechada! Nem um leve
Riso vago de estrela se adivinha…
Sómente as grossas lagrimas da chuva
Escorrem pela face do Silencio…
Piedade, noite negra! Não me beijes
Com esses labios mortos de Phantasma!
Ó Sol, vem alumiar a minha dôr
Que, perdida na sombra, se dilata
E mais profundamente se enraiza
Nesta carne a sangrar que é a minha alma!
Ilumina-te, ó Noite! Ó Vento, cála-te!
Negras nuvens do sul, limpae os olhos,
Desanuviae a bronzea face morta!
Oh, mas que noite amarga, toda cheia
Do teu Phantasma angelico e divino;
Espirito que, um dia, em minha irmã,
Tomou corpo infantil, figura de Anjo…
E para que, meu Deus? Para partir,
Com seis annos apenas, no primeiro
Riso da vida, em lagrimas, levando
Toda a luz de esperança que floria
Este êrmo, este remoto em que divago…
Como estou só no mundo! Como é triste
A solidão que faz a tua Ausencia,
E o terrivel e tragico silencio
Da tua alegre Voz emudecida!
Ó noite, ó noite triste! Ó minha alma!
Tu, que o viste e beijaste tantas vezes,
Tu, que sentiste bem o que ele tinha
De angelica Creança sobrehumana,
Não vês as proprias cousas como soffrem,
E como as grandes arvores agitam
As ramagens de lagrimas e sombras?
Repára bem na lugubre tristêsa
Da nossa velha casa abandonada
Da divina Presença da Creança!
Ah, como as portas gemem e o beiraes
Têm soluços de vento…
Lá fóra, no terreiro onde brincavas,
A noite escura chora…
Ó minha alma,
Embebe-te na dôr das Cousas êrmas;
Chora tambem, consome-te, soluça,
Junto á Mãe dolorosa, de joelhos…
Aquele olhar tão triste,
Onde ia, feito em lagrima, o que eu sou,
Isto é, tudo o que existe,
No instante em que pousou,
Relampago do Além,
Sobre ti, meu querido e pobre Anjinho,
Já deitado na cama e tão doentinho,
Cercado da afflicção de tua Mãe;
Esse olhar fez-se eterno,
Em meus olhos ficou: é luz do inferno
Que tudo me alumia…
Parece a luz do dia!
Sobre o seu frio berço sepulcral,
Meu espirito resa ajoelhado;
E sente-se perfeito e virginal
Na sua dôr divina concentrado.
Caí, gotas de orvalho matinal!
Astros, caí do céu todo estrelado!
Sêcas flôres do zéfiro outomnal,
Vinde enfeitar-lhe o tumulo sagrado!
Ó luar da meia noite, encantamento
De sombra, vem cobri-lo! Ó doido Vento,
Dorme com ele, em paz religiosa…
Sobre ele, ó terra, sê brandura apenas;
Faze-te luz, toma o calor das pennas;
Sê Mãe perfeita, bôa e carinhosa.
Não posso crêr na morte do Menino!
E julgo ouvi-lo e vê-lo, a cada passo…
É ele? Não. Sou eu que desatino;
É a minha dôr soffrida, o meu cansaço.
Delirio que me prendes num abraço,
Emendarás a obra do Destino?
Vê-lo-ei sorrir, de novo, no regaço
Da mãe? Verei seu rosto pequenino?
Misterio! Sombra imensa! Alto segredo!
Jamais! jamais! Quem sabe? Tenho mêdo!
Que vejo em mim? A treva? a luz futura?
Ah, que a dôr infinita de o perder
Seja a alegria de o tornar a ver,
Meu Deus, embora noutra creatura!
Onde comtigo, um dia, me zanguei,
É hoje um sitio escuro que aborreço;
E sempre que ali passo, eu anoiteço!…
Ah, foi um crime, sim, que pratiquei!
Quantas negras torturas eu padeço
Pelo pequeno mal que te causei!
Se, ao menos, presentisse o que hoje sei?
Mas não; fui mau; fui bruto; reconheço!
E sôffro mais, por isso, a tua morte,
E dou mais chôro amargo ao vento norte,
Mais trevas se acumulam no meu rôsto…
Ó vós que n'este mundo amaes alguem,
Seja linda creança ou pae ou mãe,
Não lhe causeis nem sombra de desgôsto!
Nasce a luz do luar dos derradeiros,
Êrmos, soturnos pincaros sósinhos…
Andam sombras no ar e murmurinhos
E vagidos de luz… e os Pegureiros
Descem, cantando, a encosta dos outeiros…
Tangendo amenas frautas amorosas,
Seus vultos, no crepusculo, desmaiam
E assim como os seus canticos, se espraiam
Em ondas de emoção. As fragarosas
Quebradas que o luar beija, misteriosas
Furnas, boccas de terra, murmurantes,
Arvoredos extaticos orando,
Rochedos, na penumbra, meditando,
Desfeitos em ternura, esvoaçantes,
Pairam tambem no espaço comovido,
Das primeiras estrelas já ferido,
Todo em luar e sombra amortalhado…
E eu choro sobre um monte abandonado…
E o Phantasma divino da Creança,
Sombra de Anjinho em flor,
Nos longes dos meus olhos aparece,
Como se, por ventura, ele nascesse
Da minha incerta e trémula esperança,
E não da minha firme e eterna dôr!
E choro; e alem das lagrimas, eu vejo
Aquele dôce Vulto pequenino,
Em seu leito de morte e soffrimento;
Jesus martirisado, inda Menino…
E é como cinza morte o meu desejo
E como extinta luz meu pensamento!
Depois, a sua Imagem soffredôra
Regressa á Vida, veste-se de aurora;
Os seus labios sorriem para mim…
E aquelles verdes olhos cristalinos
Abrem-se radiosos e divinos,
E vejo-o então brincar no meu jardim!
Vejo-o como ele foi, como ele existe
No coração da Mãe por toda a vida!
Anjinho tutelar da nossa casa!
A divina Esperança florescida,
Brilhando além de tudo quanto é triste…
Longinquo Alivio, protectora Asa!
Mas de que serve? Eu choro sem descanço,
No meio da tristêsa indiferente
Das Cousas que têm a alma sempre ausente…
Só eu na minha dôr nunca me canço.
Ó brutêsa das Cousas! No infinito
E gélido silencio, eu ouço um grito!
Na funda solidão que me rodeia,
Um sêr apenas, tétrico, vagueia…
Quem grita? O meu espirito. E que importa?
É ele a errar no mundo solitario,
Sem principio nem fim, sem pae nem mãe!
Ó céu indiferente! Ó terra morta!
Ó grito de Jesus sobre o Calvario,
A subir no Infinito, cada vez
Mais cercado de tragica mudez,
Mas afflicto, mais alto, mais além!…
Cousas que já fizestes companhia
A este espirito meu que, em vós, se via,
Porque me abandonastes? Êrmo Vento,
Insonia do ar correndo o Firmamento,
Só vejo, em ti, loucura inanimada,
Revolta inconsciencia destruidora!
Alta estrela, na noite, incendiada,
Passarinhos do céu, cantos da aurora,
Já não palpita em vós meu coração…
Sois o silencio, a treva, a solidão.
Além de mim já nada avisto. As cousas,
Arvores, nuvens, serras pedregosas,
São penumbras que á luz do meu olhar
Se dissipam, de subito, no ar.
De tal forma meu sêr se concentrou
Na visão da Creança, que além d'ela,
Não vejo flôr ou ave ou luz de estrela,
Limpido céu azul, verde paisagem!
Dir-se-á que o seu Espectro reencarnou
Em mim,—que não sou mais que a sua Imagem!
Quantas horas passava contemplando
Seu pequenino Vulto. Era um Anjinho
Dentro de nossa casa, abençoando…
Era uma Flôr, um Astro, um Amorzinho.
Um dia, em que ele, ao pé de mim, sósinho
Brincava, estes meus olhos inundando
De graça, de inocencia e de carinho,
De tudo o que é celeste, alegre e brando,
Vi tremer sua Imagem, de repente,
No ar, como se fôra Aparição.
E para mim eu disse tristemente:
"Pertences a outro mundo, a um céu mais alto;
Partirás dentro em breve." E desde então
Eu fiquei num constante sobresalto!
Quantas vezes, ficava a olhar, a olhar
A tua dôce e angelica Figura,
Esquecido, embebido num luar,
Num enlêvo perfeito e graça pura!
E á força de sorrir, de me encantar,
Deante de ti, mimosa Creatura,
Suavemente sentia-me apagar…
E eu era sombra apenas e ternura.
Que inocencia! que aurora! que alegria!
Tua figura de Anjo radiava!
Sob os teus pés a terra florescia,
E até meu proprio espirito cantava!
Nessas horas divinas, quem diria
A sorte que já Deus te destinava!
Nocturna e dubia luz
Meu sêr esboça e tudo quanto existe…
Sou, num alto de monte, negra cruz,
Onde bate o luar em noite triste…
Sou o espirito triste que murmura
Neste silencio lúgubre das Cousas…
Eu é que sou o Espectro, a Sombra escura
De falecidas formas mentirosas.
E tu, Sombra infantil do meu Amôr,
És o Sêr vivo, o Sêr Espiritual,
A Presença radiosa…
Eu sou a Dôr,
Sou a tragica Ausencia glacial…
Pois tu vives, em mim, a vida nova,
E eu já não vivo em ti…
Mas quem morreu?
Fôste tu que baixaste á fria cova?
Oh, não! Fui eu! Fui eu!
Horrivel cataclismo e negra sorte!
Tu fôste um mundo ideal que se desfez
E onde sonhei viver apoz a morte!
Vendo teus lindos olhos, quanta vez,
Dizia para mim: eis o logar
Da minha espiritual, futura imagem…
E viverei á luz daquele olhar,
Divino sol de mistica Paisagem.
Era minha ambição primordial
Legar-lhe a minha imagem de saudade;
Mas um vento cruel de temporal,
Vento de eternidade,
Arrebatou meu sonho! E fugitiva
Deste mundo se fez minha alegria;
Mais morta do que viva,
Partiu comtigo, Amôr, á luz do dia
Que doirou de tristêsa o teu caixão…
Partiu comtigo, ao pé de ti murmura;
É maguada voz na solidão,
Dôce alvor de luar na noite escura…
E beija o teu sepulcro pequenino;
Sobre ele vôa e erra,
Porque o teu Sêr amado é já divino
E o teu sepulcro, abrindo-se na terra,
Penetrou-a de luz e santidade…
E para mim a terra é um grande templo
E, dentro dele, a Imagem da Saudade…
E reso de joelhos, e contemplo
Meu triste coração, saudoso altar
Alumiado de sombra, escura luz…
Nele deitado estás como a sonhar,
Meu pequenino e mistico Jesus…
Lagrimas dos meus olhos são as flôres
Que a teus pés eu deponho…
Enfeitam tua Imagem minhas dôres,
E alumia-te, ás noites, o meu sonho.
Todo me dou em sacrificio á tua
Imagem que eu adoro.
Sou branco incenso á triste luz da lua:
Eu sou, em nevoa, as lagrimas que choro…
Minha alegria foi no teu caixão;
Deitou-se ao pé de ti, na sepultura,
A fim de acalentar teu coração
E tornar-te mais branda a terra dura.
Por isso, é para mim consolação
Esta sombria dôr que me tortura!
E ponho-me a cantar na solidão,
Meu cantico esculpido em noite escura!
Consola-me saber minha alegria
Longe de mim, perto de ti, na fria
Cova a que tu baixaste apoz a morte.
Fôste tu que m'a deste, meu amôr;
Agora, dou-t'a eu: é a minha flôr;
Eu quero que ela soffra a tua sorte.
O sol do outomno, as folhas a cair,
A minha voz baixinho soluçando,
Os meus olhos, em lagrimas, beijando
A terra, e o meu espirito a sorrir…
Eis como a minha vida vae passando
Em frente ao seu Phantasma… E fico a ouvir
Silencios da minh'alma e o resurgir
De mortos que me fôram sepultando…
E fico mudo, extatico, parado
E quasi sem sentidos, mergulhando
Na minha viva e funda intimidade…
Só a longinqua estrela em mim actua…
Sou rocha harmoniosa á luz da lua,
Petreficada esphinge de saudade…
Tua morte feriu-me no mais fundo,
Remoto da minh'alma que eu julgava
Já fóra desta vida e deste mundo!
E vejo agora quanto me enganava,
Imaginando possuir em mim
Alma que fôsse livre e não escrava!
Meu espirito é treva e dôr sem fim.
Todo eu sou dôr e morte. Sou franquêsa.
Sou o enviado da Sombra. Ao mundo vim
Prégar a noite, a lagrima, a incertêsa,
A luz que, para sempre, anoiteceu…
Esta envolvente, essencial tristêsa,
Tristêsa original donde nasceu
O sol caindo em lagrimas de luz,
Chôro de oiro inundando terra e céu!
Sou o enviado da Sombra. Em negra cruz,
Meu ilusorio sêr crucificado
Lembra um morto phantasma de Jesus…
E aos pés da minha cruz, no chão maguado,
A tua Ausencia é a Virgem Dolorosa,
Com tenebroso olhar no meu pregado.
Ah! quanto a minha vida religiosa,
Depois que te perdeste no sol-pôsto,
Se fez incerta, fragil e enganosa!
Em meu sêr desenhou-se um novo rôsto.
Sou outro agora; e vejo com pavor
Minha máscara interna de desgôsto.
Vejo sombras á luz da minha dôr…
Sombras talvez de eternas Creaturas
Que vivem na alegria do Senhor…
E quem sabe se os Mortos, nas Alturas,
Vivem na paz de Deus, em sitios êrmos,
Entre flôres, sorrisos e venturas?…
E quem sabe se as dôres que soffremos
E nosso corpo e alma, não são mais
Que as suas vagas sombras irreaes?…
Ah, nós sômos ainda o que perdemos…
Teu sêr tragicamente enternecido,
Em desespero de alma transformado,
Vae através do espaço escurecido
E pousa no seu tumulo sagrado.
E ele acorda, sentindo-o; e, comovido,
Chora ao vêr teu espirito adorado,
Assim tão só na noite e arrefecido
E todo de êrmas lagrimas molhado!
E eis que ele diz: "Ó Mãe, não chores mais!
Em vez dos teus suspiros, dos teus ais,
Quero que venha a mim tua alegria!"
E só nas horas em que a Mãe descança,
É que ele inclina a fronte de creança
E dorme ao pé de ti, Virgem Maria!
Lúgubre solidão! Ó noite triste!
Como sinto que falta a tua Imagem
A tudo quanto para mim existe!
Tua bemdita e efémera passagem
No mundo, deu ao mundo em que viveste,
Á nossa bôa e maternal Paisagem,
Um espirito novo mais celeste;
Nova Forma a abraçou e nova Côr
Beijou, sorrindo, o seu perfil agreste!
E ei-la agora tão triste e sem verdor!
Depois da tua morte, regressou
Ao seu velhinho estado anterior.
E esta saudosa casa, onde brilhou
Tua voz num instante sempiterno,
Em negra, intima noite se occultou.
Quando chego á janela, vejo o inverno;
E, á luz da lua, as sombras do arvoredo
Lembram as sombras pálidas do Inferno.
Dos recantos escuros, em segredo,
Nascem Visões saudosas, diluidos
Traços da tua Imagem, arremêdo
Que a Sombra faz, em gestos doloridos,
Do teu Vulto de sol a amanhecer…
A Sombra quer mostrar-se aos meus sentidos…
Mas eu que vejo? A luz escurecer;
O imperfeito, o indeciso que, em nós, deixa
A amargura de olhar e de não vêr…
A voz da minha dôr, da minha queixa,
Em vão, por ti, na fria noite clama!
Dir-se-á que o céu e a terra, tudo fecha
Os ouvidos de pedra! Mas quem ama,
Embora no silencio mais profundo,
Grita por seu amor: é voz de chama!
E eu grito! E encontro apenas sobre o mundo,
Para onde quer que eu olhe, aqui, além,
A tua Ausencia tragica! E no fundo
De mim proprio que vejo? Acaso alguem?
Só vejo a tua Ausencia, a Desventura
Que fez da noite a imagem de tua Mãe!
A tua Ausencia é tudo o que murmura,
E mostra a face triste á luz da aurora,
E se espraia na terra em sombra escura…
Quem traz o outomno ao meu jardim agora?
Quem muda em cinza o fogo do meu lar?
E quem soluça em mim? Quem é que chora?
É a tua Ausencia, Amôr, que vem turbar
Esta alegria etérea, nuvem, asa
De Anjo que, ás vezes, passa em nosso olhar!
O Sol é a tua Ausencia que se abrasa,
A Lua é tua Ausencia enfraquecida…
Da tua Ausencia é feita a minha vida
E os meus versos tambem e a minha casa.
Meu Deus! meu Deus! quando me lembro agora
De o ver brincar, e avisto novamente
Seu pequenino Vulto transcendente,
Mas tão perfeito e vivo como outrora!
Julgo que ele ainda vive; e que, lá fóra,
Fala em voz alta e brinca alegremente,
E volve os olhos verdes para a gente,
Dois berços de embalar a luz da aurora!
Julgo que ele ainda vive, mas já perto
Da Morte: sombra escura, abysmo aberto…
Pesadêlo de treva e nevoeiro!
Ó visão da Creança ao pé da Morte!
E a da Mãe, tendo ao lado a negra sorte
A calcular-lhe o golpe traiçoeiro!
Sinto que, ás vezes, choras, minha Irmã,
No teu sombrio quarto recolhida…
É que ele vem rompendo a sombra vã
Da Morte, e lhe aparece á luz da vida!
E afflicta, como choras, minha Irmã…
Teu chôro é tua voz emudecida,
Ante a imagem do Filho, essa Manhã
Em profunda saudade amanhecida.
Silencio! Não palpites, coração;
Nem canto de ave ou mistica oração
Um tal idilio venham perturbar!
Deixae o Filho amado e a Mãe saudosa:
O Filho a rir, de face carinhosa,
E a Mãe, tão triste e pálida, a chorar…
Quando me deito ao pé da minha dôr,
Minha Noiva-phantasma; e em derredor
Do meu leito, a penumbra se condensa,
E já não vejo mais que a noite imensa,
Ante os meus olhos intimos, acêsos,
Extaticos, surprêsos,
Aparece-me o Reino Espiritual…
E ali, despido o habito carnal,
Tu brincas e passeias; não comigo,
Mas com a minha dôr… o amôr antigo.
A minha dôr está comtigo ali,
Como, outrora, eu estava ao pé de ti…
Se fôsse a minha dôr, com que alegria,
De novo, a tua face beijaria!
Mas eu não sou a dôr, a dôr etérea…
Sou a Carne que soffre; esta miseria
Que no silencio clama!
A Sombra, o Corpo doloroso, o Drama…
Passas em claro as noites a chorar;
Dia a dia, teu rosto empalidece…
Faze tu, pobre Mãe, por serenar,
Santa Resignação sobre ela desce!
Rochedo que a penumbra desvanece,
Tu, por acaso, não lhe podes dar
Um pouco d'esse frio que entorpece
O coração e o deixa descançar?…
Jamais! Não ha remedio! Nem as horas
Que passam! Toda a fria noite choras;
Tua sombra, no chão, é mais escura.
Soffres! E sinto bem que a tua dôr,
Como se fôra um beijo, acêso amôr,
Vae-lhe aquecer, ao longe, a sepultura.
Pelas tardes divinas,
Quando a côr se dissolve em lagrimas doiradas,
Eu vejo duas Sombras pequeninas,
Andando de mãos dadas.
Como duas creanças que elas são,
Percorrem, a brincar,
Esta minha infinita solidão;
E extatico e suspenso, eu fico a olhar, a olhar…
Bate-me o coração; caminho… Na distancia,
Através do crepusculo divino,
Vejo a Sombra infantil da minha infancia
E a Sombra do Menino!
E d'elas me aproximo; e paro; tenho mêdo
De as vêr fugir, assim…
Seus Vultos de chimera e de segrêdo
Tremem deante de mim…
E como se parecem!
O mesmo adeus no olhar, o mesmo rôsto e altura…
E ao pé d'elas as cousas se enternecem,
E este meu coração aberto em sepultura.
Durante a tua vida, meu Amôr,
Quantas vezes, ao ver-te, imaginava
Olhar de perto, a minha infancia toda em flôr!
E ainda mais: pensava
Que eras a minha propria Infancia novamente,
Mesmo deante de mim, resuscitada
E brincando comigo alegremente,
N'esta velha Paisagem bem amada,
Terra da meia noite, alma do outomno…
N'esta casa velhinha, evocadora,
Tocada de luar, de sombra e de abandono,
Da alegria de outrora…
E por isso, no dia em que morreste,
Quando tudo era lagrima, a distancia,
Coração, duas cruzes padeceste;
Duas mortes soffreu a minha infancia.
Bate-me o luar na face, e o meu olhar
Em lagrima saudosa se condensa…
Vejo-a deante de mim, como suspensa
Na sombra do ar.
E em seu liquido seio de esplendor,
Tua Imagem começa a alvorecer,
Pois toma corpo e vida no meu sêr,
Quando a beija, sorrindo, a minha dôr…
Ébria do teu espirito sagrado,
A radiosa lagrima estremece,
Emquanto a minha face empalidece
E o luar e a noite scismam ao meu lado…
E a comovida lagrima crepita…
Relampago de dôr… E nada vejo;
Pois nela está presente o meu desejo
E a minha vida fragil e infinita.
E a lagrima scintila, num adeus…
E, desprendida de meus olhos, ei-la
Já distante, no espaço: é nova estrela
Subindo aos céus…
A nocturna lembrança consumida
Da tua horrivel morte dolorosa,
Enevôa de lagrimas a vida…
E sinto a luz tornar-se duvidosa,
Tocando a minha fronte que lhe gasta
A seiva etérea, a fluida côr viçosa.
O meu olhar maldito logo afasta
O Sêr que ás suas lagrimas empece,
E o perfil animado lhe desgasta!
O meu olhar as cousas anoitece…
E elas choram na sombra e na incertêsa,
A minha propria dôr… E eis que aparece,
Deante de mim, o Espectro da Tristêsa…
E tudo transfigura… E eu fico a vêr,
Como através da Morte, a Naturêsa…
O berço é cova. Que é nascer? Morrer.
Quem abre ao sol os olhos, escravisa
A alma, a luz espiritual do sêr…
Um rio de emoção, em mim, deslisa…
Para cantar se fez pequena fonte;
Seu canto é bruma pálida e indecisa.
E fito, de olhos tristes, o horisonte:
Nele me perco em nevoa: sou distancia…
Intima cruz a erguer-se em tôsco monte…
Vésper, sorriso de oiro, luz, fragancia
Da noite que amanhece, ao teu fulgôr,
Vejo Espectros que são da minha infancia…
Formas mortas que nem meu proprio Amôr
Anima,—ele que d'antes animava
A sombra, a pedra, as arvores em flôr!
E como outrora tudo me encantava!
Como perdi no turbilhão dos dias
O sabôr que nas cousas eu gostava!
Tristêsas são phantasmas de alegrias…
E entre Phantasmas vivo… Ó meus amôres,
Folhas mortas, outomno, ventanias!…
Sombras da meia noite! Mãe das Dôres
Em teu altar sósinho, na capela
Do monte sem romeiros e sem flôres!
Ó Noite! Virgem triste! Êrma Donzela!
Se eu fôra sombra de alma adormecida,
Silencio de alma, solidão de estrela?…
Mas não; eu vivo e penso n'esta Vida;
No Mal victorioso e na Bondade
Quasi sempre ultrajada e perseguida!
Vejo a Inocencia ás mãos da Crueldade
Morta, desbaratada, e vejo a aurora
Alumiando esta negra, ferrea edade!
Vejo um pequeno Anjinho que enamora
Meu comovido espírito encantado…
E divinos sorrisos ele chora,
E só de vê-lo, eu sinto-me sagrado!
E fica todo em flôr meu coração,
Paraiso astral, Jardim de Deus, Sol nado!
E, súbito, lá vae: é sonho vão!
E sobre mim, afflicta, a noite desce:
Maré cheia de treva e solidão.
E o sangue em minhas veias arrefece…
Á altura do meu rôsto, vejo o Mêdo
Que, nos êrmos crepusculos, me empece!
E como tudo é sombra, dôr, segrêdo!
De longe, aspectos de alma que nos falam;
De perto, brutas formas de rochedo!
Quantas intimas dôres nos abalam!
Porque não ha no mundo quem as ouça,
As dolorosas vozes que se calam!
Ó gente enamorada! Ó gente môça!
Que, de repente, ao tumulo baixaes,
Qual o vosso pecado? a culpa vossa?
Ó Procissão das lagrimas, dos ais,
Deante de mim, passando eternamente
A caminho das sombras sepulcraes!
Dôr sem fim, sem principio, dôr presente,
Martirisando as almas, e sobre elas
O sorriso de Deus indiferente!
O Deus que põe na face das estrelas
Nodoas de sombra e enfeita com as flôres
Da morte, as brancas Noivas e as Donzelas;
O Deus acêso em tragicos furôres,
Que mata as creancinhas sem peccado
E parece viver das nossas dôres,
E fez do nosso chôro o mar salgado,
E fez da nossa angustia um êrmo outeiro,
E sobre ele Jesus crucificado;
O Deus que me tornou prisioneiro,
E que transforma tudo quanto eu amo
Em desfeita visão de nevoeiro;
Ah, esse Deus que, quando por Deus chamo,
É profundo silencio, indiferença,
A propria sombra morta que eu derramo…
Remoto Deus—Phantasma, sem presença,
Que em materia de dôr edificou
As arvores, o Sol, a noite imensa,
E em doloroso barro alevantou
Minha figura tragica e reprêsa,
Num impotente, empedernido vôo;
É o Deus do Abysmo, o Pae da Naturêsa,
Nocturno Deus da vida material,
Divindade da fúnebre Tristêsa;
O Deus creador das Trevas, contra o qual
Sósinho, se ergue em mim, mas sem temor,
O meu divino Sêr espiritual;
Meu Sêr heroico acêso em puro amor!
Sol comovido, ardente meio dia,
Trespassando de luz a noite e a dôr!
Meu Sêr, onde se muda em alegria
A corporea tristêsa; onde a Materia
Se faz alma perfeita de harmonia;
Meu Sêr que afirma o Bem, ante a miseria
Das transitorias cousas; que alevanta,
Contra a sombra do inferno, a Luz etérea!
Meu Sêr espiritual que, alegre, canta,
Se, por ventura, eu choro desolado,
E que os Phantasmas lúgubres espanta;
Meu Sêr creador do Espírito sagrado,
O Redemptor das lagrimas, dos ais;
Senhor dum novo Olimpo sublimado…
Novo Orféu nos Abysmos infernaes.
Minha tristêsa é peor que a tua dôr.
Um dia, no teu ventre sentirás
Reencarnar para o mundo o teu amor:
A mesma alma, o mesmo olhar… verás!…
Eu sei que ha de voltar; e assim terás
A alegria primeira, ainda maior…
E então, de novo, alegre ficarás;
Será primeiro o teu segundo amôr!
Mas eu que, antes do tempo, já declino,
Quem sabe se verei o teu Menino,
Numa edade em que possa compreender?
E partirei talvez sem lhe deixar,
Na memoria, esse interno e fundo olhar,
A comovida imagem do meu sêr…
Tarde. Vagueio só por um outeiro.
Sua Imgem chimerica fluctua,
Deante de mim, no espaço: é nevoeiro
Vestindo de emoção a terra nua…
E como na minh'alma se insinua
Aquele etéreo Vulto… amôr primeiro!
Ouço-o falar, lá fóra, á luz da lua.
Vejo-o brincar na sombra do terreiro.
Apenas vêm meus olhos, n'este mundo,
O seu perfil angelico, o seu fundo,
Misterioso, verde negro olhar…
Vejo uma estrela? É ele. Vejo um lirio?
É ele. Tudo é ele. E o meu delirio
É ele: é o seu espírito a cantar!
Quando meu coração parar desfeito
Em sombra, na profunda sepultura,
E o meu sêr, já phantastico e perfeito,
Vaguear entre o Infinito e a terra dura;
Quando eu sentir, emfim, todo o meu peito
A transformar-se em constelada Altura;
Eu, divino Phantasma, o claro Eleito,
O Enviado da Vida á Morte escura;
Quando eu fôr para mim minha esperança,
Meu proprio amôr jamais anoitecido,
E a minha sombra apenas fôr lembrança;
Quando eu fôr um Espectro de Saudade,
Entre o luar e a nevoa amanhecido,
Serei comtigo, Amôr, na Eternidade.
Receio o teu encontro, pobre Mãe,
Com o retrato de teu Filho. Vaes
Contemplar suas formas materiaes,
O que pertence á morte e a mais ninguem…
Mas para que exaltar ainda mais
Aquela dôr que é só do mundo? Tem
Paciencia. Não o vejas. Olha bem:
De que servem as lagrimas e os ais?…
Essa dôr não a ames, que é profana.
Sim: não adores nele a forma humana,
A ilusoria aparencia, o sonho vão…
Pois é verdade, ó Mãe, que tens presente
Seu imortal espírito inocente
Em ti mesma, em teu proprio coração!…
Aqui, por estes sitios onde nós
Vivêmos; tu brincando no jardim;
Eu a ouvir encantado a tua voz
E vendo em ti um Anjo, um sonho, ao pé de mim;
Aqui, por estes vales de alegria
Emquanto tu viveste,
E agora escuras, êrmas terras de elegia
Batidas do nordeste,
Eu ando á minha sombra redusido
E mais a tua Imagem.
E quem nos vê, de longe, diz entristecido:
Dois Espectros, além, vagueando na Paisagem…
Os meus olhos abrigam como um templo,
Tua divina Imagem que os eleva
E os enche de purêsa e santidade;
São os meus olhos intimos, aqueles
Que entre as nuvens avistam, certas horas,
Azas de Anjos, relampagos de Deus,
E não meus pobres olhos materiaes
Na côr, nos formas vãs crucificados.
E tu vives e falas nesse mundo,
Ao pé do qual meu corpo de tragedia
É sua antiga e vaga Nebulosa…
E em meu nocturno espirito rebôa
Aquela tua voz amanhecente
Que espalhava alegrias pelo ar.
E a tua voz divina, por encanto,
Se espêlha em minhas lagrimas que ficam
Todas, por dentro, acêsas num sorriso.
A lagrima vê tudo: a propria voz,
Pousando á sua tôrva superficie,
Nela desenha, em ondas, o seu Vulto.
Meu doloroso sêr com tua Imagem
Eterna comunica. A minha vida
Na tua morte assim se continua…
Embora exista entre elas a distancia
De sombras lampejantes, que separa
Nosso corpo mortal do nosso espirito.
E eu canto, e me deslumbro em minha dôr!
De subito, anoiteço, e me disperso,
E vejo-me Phantasma… e, a sós, divago
Pelos caminhos lúgubres da Morte…
E chego á porta em flôr do teu sepulcro;
E uma alegria misteriosa vem
Doirar a sombra vã de que sou feito…
E esta alegria és tu… que me apareces!…
Minha segunda vida transcendente
Nasceu da tua Ausencia que lhe imprime
O drama eterno, a acção divina e triste.
Tua morte refez meu sêr: abriu-lhe
Novo sentido de alma; aquele olhar
Que no seio das lagrimas desperta,
E veste de infinito e de saudade
A tôsca rocha bruta que se torna
Espirito vivente no crepusculo:
Esphinge em cujos labios a tristêsa
Das cousas interroga a dôr humana.
E vós, ó brutas cousas reviveis
Perante o meu olhar que vos penetra
De seu liquido lume visionario.
Tornastes a viver. As vossas almas
Que a minha dôr primeira afugentou,
São presentes, de novo, em vosso corpo.
Ei-lo scismando, triste, á luz do luar,
Na projectada sombra que, a seus pés,
Desenha ignotas formas de silencio…
Ei-lo embebido em mistica ternura,
Tremulo de emoção, reverdecendo,
Esculpindo, no ar, melancolias…
E a tua Imagem paira sobre mim…
Todo eu palpito em ondas de anciedade!
Abysmo de emoção, em mim me perco!
E minh'alma exaltada e comovida,
D'este meu sêr trasborda e inunda tudo!
Arde no fogo virgem das estrelas,
Em cada humana lagrima scintila,
Chora nas nuvens, no êrmo vento geme!
E julgo haver, meu Deus, resuscitado
Da morte que soffri para nascer!
Sim: o meu berço é irmão do teu sepulcro;
Teu cadaver baixou áquele abysmo
Donde subi outrora á luz da morte…
E lá tu me encontraste ainda em vida,
Na Aurora que precede o nascimento,
E parece doirar a nossa Infancia…
Sinto que estou comtigo em outro mundo.
Lá vivemos os dois em companhia,
Muito embora eu arraste sobre a terra,
Que teu cadaver, tão mimoso! esconde,
Esta minha Presença de afflição!
E beijo a tua Imagem, de joelhos…
E, em meu silencio, reso… E a tua Imagem
Agora é grave, séria, quasi triste,
Porque se fez sagrada além da Morte.
Emquanto chora a Mãe desventurada,
Sobre o seu coração, de noite e dia,
Eu canto a minha dôr; e a dôr cantada
Como que intimamente se alumia…
Se me levanto cêdo e a madrugada
Já vem doirando os longes de harmonia,
Sinto que estás ainda despertada
E eu ouço, em mim, cantar nova elegia.
Abre-te a dôr os olhos sem piedade,
Durante as longas noites de amargura…
Mas para mim a dôr é já saudade.
A dôr, em mim, é canto que murmura;
A dôr, em ti, é negra tempestade:
Sou a noitinha, e tu, a noite escura!
Nele adora somente o que não passa;
O que é imortal, perfeito, e no teu sêr
É fonte de orações, de luz e graça.
Adora a sua Imagem a viver,
Numa perpetua infancia florescendo,
Perpetuamente isenta de soffrer.
Dia a dia, nós vamos falecendo;
Esta vida carnal é um arremêdo
Da Vida, á luz da qual eu não entendo
Nem morte ou aparencia ou dôr ou mêdo…
Teu Filho agora é luz, revelação;
E tu, ó Mãe, crepusculo e segrêdo!
Adora, sim, teu proprio coração
Se desejas amar teu Filho. Resa
E não chores, que a luz duma oração
Mostra-te bem melhor sua belêsa,
Seus verdes olhos de alma, a fronte e o rôsto
Que as lagrimas sombrias de tristêsa.
Seja alegria eterna o teu desgôsto
Corporeo, transitorio! Seja aurora
De idilio o teu dramatico sol-pôsto!
A alma ajoelha e resa, mas não chora.
Memoria, Elisios Campos, Paraiso,
Espirituaes Paisagens!
Vales de luz, outeiros de sorriso,
Onde vivem as misticas Imagens.
Jardim florido de Almas que o estortôr
Da Morte libertou! Jardim povoado
De luminosas Sombras que em amôr
E sonho iluminado,
Dando-se as mãos de luz e intimidade,
Vagueiam pelas verdes avenidas,
Ao luar misterioso da Saudade,
Evocando outros mundos, outras vidas…
Vejo, em grupos, os velhos conversando…
E murmuram palavras… voz de outomno
Que se vae em silencios desfolhando
Num êrmo chão doirado, ao abandono.
Mais adeante, em dôce companhia,
Caminha enamorada a gente nova:
O Heroe caido, morto, á luz do dia,
A Noiva que baixou á fria cova!
E mais adeante ainda, em mais ruidosos
E alvoroçados grupos, as Creanças
Falam alto, têm gestos luminosos…
São bandos de esperanças,
Tão cêdo á luz do mundo arrebatadas
E aos braços maternaes!
E brincam a sorrir, inda molhadas
Das lagrimas eternas de seus Paes…
E com um ar de riso,
As beija o Sol do Alem…
Nem se lembram das mães, no Paraiso;
São Almas, sim, e as Almas não têm Mãe!
Ao Sol espiritual que as faz corar
Durante os seus brinquedos,
Somente Deus as pode contemplar
Do seu trôno de trevas e segrêdos.
Deus contempla as Creanças que roubou
Ao fundo amôr materno… E bem se vê
Nos seus olhos a nuvem que os toldou…
E a si mesmo pergunta: Para quê?
E á luz do eterno dia,
Os Phantasmas divinos das Creanças
Fazem os seus bailados de alegria,
Elas que são tristissimas Lembranças!
E a nova formosura que elas têm!
O novo e estranho encanto!
Assim tocadas já do sol do Alem,
Até aos pés vestidas do meu Canto!
Memoria, Jardim de Almas todo em flôr
Que as canções e os perfumes enevôam,
Se para mim és dôr, és luz e amôr,
Para os sêres amados que o povoam!
E eis tudo quanto resta á Creatura:
Saber que o seu tormento
É perfeita alegria, alta ventura,
Em outro Firmamento!
Quando os meus olhos intimos, em sonho,
Esse mundo ideal conseguem vêr,
Fico tão deslumbrado que suponho
Haver morrido já sem o saber!
E eis que sou na Paisagem da Memoria!
Lembrança de mim mesmo, eu já penetro
Na cidade phantastica e ilusoria…
Já sou Aparição, Visão, Espectro!
Que é da minha Presença? Não me vejo!
Ah, não me encontro em mim! Sou a Oração
Redimida, sem Deus e sem desejo;
Amôr sem coração!
Sonho liberto, ascendo no Infinito.
A propria Altura é já profundidade!
Onde estás? onde estás? ó corpo aflicto!
Meu sêr perdeu-se em alma: ei-lo saudade!
Outubro de 1912
Prefacio
Dedicatoria
Mãe dolorosa
Junto dele
Nas trevas
Olhar eterno
No seu tumulo
Delirio
Remorsos
No crepusculo
Sobresalto
Encantamento
O que eu sou
Minha alegria
Tristêsa
A minha dôr
A Mãe e o Filho
Ausencia
Tragica recordação
Idilio
De noite
Noites em claro
Duas sombras
Lagrima
Meditação
Esperança e tristêsa
Sósinho
Depois da vida
O encontro com o retrato
Na minha soledade
A tua imagem
A nossa dôr
Vida eterna
Memoria