Title: Contos d'Aldeia
Author: Alberto Leal Barradas Monteiro Braga
Release date: May 23, 2007 [eBook #21581]
Language: Portuguese
Original publication: Porto: Companhia Portugueza Editora, 1916
Credits: Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online
Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net
Produced by Ricardo F. Diogo, Rita Farinha and the Online
Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net
2.^a EDIÇÃO
PORTO COMPANHIA PORTUGUESA EDITORA 1916
Logo abaixo dos açudes, ficava de uma banda do rio a azenha do Euzebio moleiro, e da margem opposta, um pouco mais abaixo, a azenha do tio Anselmo.
Eram dous velhotes viuvos, de bons sessenta annos, e amigos desde creanças. Para contradicção do anexim popular, estes dois moleiros queriam-se como dois irmãos, a despeito de serem do mesmo officio.
Parece que o rio, n'aquelle sitio, era até mais pittoresco! Por detraz das azenhas descia a enfesta de uma cerrada deveza de carvalhos e sobreiros, com o atalho aberto ao meio, que era por onde seguiam os machos carregados com os taleigos da fornada. Mesmo á ourela havia alguns amieiros e choupos, que se debruçavam sobre o rio. As aguas cahidas nos açudes, vinham costeando uma gandara, escondiam-se em meio de um canavial, e surgiam depois mais limpidas até ás rodas do moinho, que as marulhavam e batiam constantemente.
No verão, quando a levada era minguada, os dois velhotes visitavam-se a miudo, atravessando destemidamente pelas poldras; mas, quando as chuvas do outomno principiavam a tornar o rio caudaloso, limitavam-se então a falar d'um lado para o outro. Era triste! Já tão velhotes! E depois dizia o Euzebio:
—Anselmo, fala mais alto, que te não oiço.
—O que é?—perguntava o outro, inclinando o pavilhão da orelha.
O Euzebio fazia um porta-voz com as mãos, e gritava:
—Não te intendo.
Quando chegavam a falar, concordavam sempre que era o barulho das rodas do moinho, que os não deixava ouvir. Isso sim! Era o peso dos annos que os tinha quasi surdos de todo. Pobres velhos!
O Euzebio tinha um filho, que era um rapagão de vinte e dois annos, como um castello! Ainda o dia vinha longe, já elle estava a trabalhar, que era um regalo a gente vel-o.
—Lida como um moiro!—diziam os conhecidos.
E se havia esfolhada, ou espadellada, quem lá não faltava era elle.
O pae, que, n'outros tempos, tinha sido um folião, dizia-lhe, á bôcca da noite:
—Simão, se tens de ir a algures, parte, que eu cá fico, para aviar os freguezes.
—Estava arranjado!—respondia o moço a rir.—Vocemecê já deu o que tinha a dar. Agora coma e beba, e deixe-me cá com a vida!
Primeiro que tudo estava a sua obrigação. O rapaz assim que não tinha mais freguezes a aviar, fechava a ucha do moinho, e partia então para a brincadeira.
E o velhote do pae, quando alguem lhe contava as diabruras do filho, parece que até a alma se lhe ria na menina dos olhos.
O Anselmo tinha uma filha. Chamava-se ella Margarida, e era formosa, d'aquella formusura campesinha, sem artificio, jovial e expansiva. Em dotes do coração—que é a principal belleza!—nem as mais virtuosas a excediam.
Desde pequenina foi Margarida creada com Simão. Se não ficasse mal estabelecer agora parallelos já sabidos e repetidos, estava em dizer que os dois se queriam e estimavam como Paulo e Virginia.
Quando os quinze annos de Margarida, que era mais nova dois do que Simão, vieram pôr termo aos brinquedos d'infancia, então principiou elle a olhal-a com aquelle respeito com que se olha para uma irmã mais velha.
Mas vá-se desde já sabendo que esse respeito não estorvava, antes acrysolava um outro sentimento, que principiava a exercer e a avultar no generoso coração do rapaz.
Margarida, quando Simão lhe falava na sua tristeza e no seu amor, fingia-se contrariada, carregava o sobr'olho e mudava de conversa. D'estas esquivanças repetidas ateou-se o fogo da paixão na alma do moleiro.
—Margarida—dizia-lhe elle d'uma vez—se não quizeres casar comigo, hei de morrer solteiro.
—Não te faltam mulheres, Simão.
—E se te vejo ser d'outro—protestava o rapaz com as lagrimas nos olhos—não sei que faça, que me não mate.
E Margarida era tão cruel, que assim despresasse o seu amigo e companheiro d'infancia?!
Nós veremos já até onde vae a dedicação de uma mulher.
* * * * *
Isto passava-se no tempo em que se guerreavam os partidos de D. Pedro e de D. Miguel.
Quando ás aldeias chegavam noticias aterradoras, as mães estremeciam ao contemplar os filhos afadigados na lavoura.
—De mortos nem a conta se sabe!—diziam os mensageiros. Vae por ahi a fim do mundo!
—Jesus, Senhor! E então diz que é guerra d'irmão contra irmão!
Valha-nos Deus!
De uma vez, oito soldados e um furriel pararam á porta da azenha do Euzebio. Passado um instante, a gente da aldeia chorava com brados afflictivos, vendo o Simão do moleiro atravessar no meio da escolta com os braços presos, como um degredado! O velho, assim que lhe arrebataram o filho, ainda tentou abraçal-o; mas—coitadinho!—como já lhe custava a andar, quando chegou á porta, ia o rapaz a subir a encosta.
Aos gritos da visinhança acudiu Margarida ao postigo da azenha. Perguntou o que tinha acontecido da outra banda; e, quando lhe disseram que o Simão tinha sido levado para a guerra, a pobre rapariga soltou um grito agonisante e cahiu desfallecida nos braços do pae.
As aguas tinham engrossado com as ultimas chuvas, e os dois velhos, quando se avistavam de longe, desatavam a chorar, como duas creancinhas!
Decorridos oito dias, a gente da aldeia acordou sobresaltada com o tiroteio, com o rufo das caixas e o som dos clarins. Feria-se uma batalha a pequena distancia.
Quando a tropa alli passou, todos viram o Simão moleiro, que parecia outro! Ia magro, esfalfado, com os sapatos rotos, coberto de pó, a espingarda ao hombro, a mochila ás costas e a chorar! Ao passar rente das casas ia saudando os conhecidos, e dizia ás raparigas que pedissem a Deus por elle.
Sahiu do povoado sem ter visto o pae nem Margarida. Levava o coração retalhado!
Assim que a filha do Anselmo o soube, quiz logo ir ter aonde podesse falar-lhe.
—Isso, Deus te livre!—disse-lhe do lado uma visinha.—Se lá vaes, lá ficas! E, de mais a mais, teres de falar com soldados! credo!
—Lá isso—atalhou a moça—tambem o Simão é soldado, tia Joaquina!
Ao fim da tarde principiaram a chegar as ambulancias dos mortos e feridos. Vinham apinhados, uns com as cabeças ligadas, com as faces empastadas de sangue, outros com os braços ao peito, mutilados, outros com as pernas partidas, quasi todos moribundos!
Nunca se tinha visto uma cousa assim! Aos gemidos dos feridos reuniam-se os clamores da gente que se agglomerava para os vêr. Destacavam-se algumas phrases das ambulancias:
—Ai! minha pobre mãe!
—Ai! meus ricos filhos!
E as mulheres, quando isto ouviam, de cada vez choravam mais.
Alguem d'entre o povo ouviu gemer de uma das carretas da ambulancia:
—Meu… pae! Marga… rida! Eu morro!
E viu-se que um dos feridos, que ia reclinado, deixou pender a cabeça sobre o peito, e descahir um braço fóra do carro.
Os artilheiros que levavam pela camba dos freios os cavallos insoffridos, voltaram-se para uma formosa rapariga que os interrogava afflicta. O retinir das molas da carreta, rodando nas lagens irregulares de uma vereda, não os deixou ouvir. Mas, de repente, a moça aproximou-se mais de um carro, pegou no braço que bambaleava, estendido fóra da ambulancia, á mercê dos solavancos, reparou attentamente n'um annel que o morto levava, e principiou a gritar:
—O Simão! Morreu! morreu!
E debatia-se angustiada nos braços das amigas que a seguravam.
Quando um visinho entrou na azenha do Euzebio, para lhe dar a noticia da morte do filho, encontrou o moleiro sentado na ilharga da cama, a resar, com os olhos postos n'um crucifixo, e um rosarío entre os dedos.
—Rese-lhe por alma!—disse o visinho a chorar.
O velhote, que estava muito mais surdo, ergueu-se, e perguntou espantado:
—O que é?—e applicou os quatro dedos da mão direita ao ouvido correspondente.
—Morreu!—gritou-lhe o outro.
O Euzebio empallideceu subitamente, aprumou-se, fitou os olhos no visinho; e, sem pestanejar, dirigiu-se apressadamente á cabeceira da cama, e tirou detraz uma espingarda.
—Isso para que é, tio Euzebio?—perguntou-lhe o outro ao ouvido.
—Vou matal-os!—respondeu o moleiro com uma voz convulsa.—Vou matal-os!
Mas quando ia, com a espingarda ao hombro, a transpôr a soleira da porta, cambaleou, e cahiu fulminado para a outra banda…
Na madrugada do dia seguinte, um moço de lavoura chegou afflicto a casa, a esbofar, dizendo que, pouco abaixo da azenha, vira um corpo de mulher levado na corrente do rio, a fugir, a fugir!…
* * * * *
Ainda conheci, ha muitos annos, o pae de Margarida.
Era por uma formosa manhã de abril.
O velho estava fóra da azenha, sentado n'uma cadeira de entrevado, com os pés estendidos a uma restea de sol. Em volta d'elle, chilreavam os passarinhos na ramaria frondente do arvoredo.
Referia-me, ao certo, a morte do Simão e do seu amigo Euzebio; e, depois, quando chegava ao lance de ter perdido a filha, voltava a cabeça para o rio, e perguntava baixo, de si para si:
—E a Margarida?!…
E ficava como mentecapto, com os olhos turvos a contemplar as aguas do rio, que derivavam mansamente entre os salgueiros!
Ficava no beiral do meu telhado o ninho das andorinhas. Quando o trolha vinha remedear os estragos da invernia (e então, no Minho, quando o vento sopra do Gerez, oh! Pae do céo! por mais bem construida que seja uma casa, as telhas vão todas pelo ar, como se fosse um pobre telhado de levadia!) eu tinha sempre o cuidado de lhe recommendar:
—Se ainda lá topar o ninho, mestre, deixe-o ficar.
Imagine-se quanto custaria aquillo a um trolha, a um trolha que guarda sempre contra um passarinho o mesmo odio que um velho lobo de mar conserva implacavel contra um rato! Ter de remendar um telhado inteiro—façam ideia!—sem destruir um ninho fôfo, pendurado n'um beiral!
Como eu habitava só, aquelle ninho, ali, era quasi como um outro andar da casa, onde vinha passar o verão uma familia minha conhecida. E eu tinha tanto zelo e canceira em conserval-o no mesmo sitio, muito arranjado e prompto, como se fosse o caseiro d'aquelles alegres inquilinos!
As pessoas da cidade não dão valor nenhum a estas coisas, e até se riem d'ellas; mas nós, os que vivemos na aldeia, temos um grande affecto pelas andorinhas, pelos melros, pelas toutinegras, pelos pintasilgos, pelos rouxinoes, emfim, por toda a passarada.
Os pardaes, esses então, é que não gostam nada dos figurões da cidade. E a gente do campo, que lhes conhece o fraco, assim que elles espreitam cubiçosos as searas, d'entre os ramos folhudos dos carvalhos, dizem logo:
—Esperae, que já vos arranjo.
E espetam no meio do campo um pinheiro muito alto, penduram-lhe uma vestia e põem-lhe por cima, d'um modo arrogante, um pouco para o lado, como se aquillo fosse um grande janota—um enorme chapeo alto! Oh! fica admiravel!
Poucos pardaes, por mais audaciosos que sejam, se atrevem com o figurão.
E a gente, vendo-os, á tardinha, todos a chilrear na copa frondente do arvoredo, até parece que os ouve dizer:
—Ainda lá está o espantalho?
—E estará, compadre, e estará!
—Se ainda se conservar até ámanhã—accode o mais atrevido—diabos me levem, se lhe não prego uma peça!
—Sempre queriamos vêr isso!—desafiam os outros.
—Pois então…
No dia seguinte, quando o sol radiante innundava todo o trigal, ás onze horas da manhã, estava tudo a postos, tudo silencioso, para vêr a partida.
O arrojado observou attentamente pelos atalhos—que não fosse vir a rapaziada da escola—e voou rapido d'entre um sobreiro, como se o tivesse desferido o arco d'uma setta. Foi poisar direito na copa do chapéo alto do espantalho, e voltou-se depois para os amigos, a chilrear com uma grande troça.
Por toda a deveza estalou então uma gargalhada frenetica dos outros, que observavam, cheios de alegria, a immobilidade do janota!
D'ahi por meia hora—é sabido!—estava a sementeira desvastada!
Uma bella manhã, em meado de março, quando abri a janella do meu quarto, ouvi pipilar em cima. Debrucei-me no peitoril, olhei para o beiral, e lá vi a andorinha, que tinha chegado na vespera, á bocca da noite, emquanto eu andava por fóra.
—Bem!—disse eu comigo—já sei que tenho d'ir fazer uma visita.
Ao cabo de meia hora, peguei no meu bordão, e puz-me a caminho pelo meio de uma bouça, que ia dar á estrada.
Eu ia visitar a sr.^a viscondessa, uma gentil viscondessa minha amiga, que chegava sempre quando chegavam as andorinhas e floresciam as amendoeiras.
Ao atravessar o pateo lageado, que precedia o velho sollar da fidalga, estavam ainda os criados, vestidos com blusas de riscadinho azul, atarefados na limpeza da carruagem e dos cavallos. As janellas da casa estavam todas abertas. Sentia-se que havia lá dentro uma creatura delicada, sequiosa dos perfumes balsamicos dos pinheiraes, do ar puro, da luz, como aquellas plantas aquaticas, as nympheas, que sobem do fundo escuro dos lagos á tôna d'agua para receber os raios quentes do sol do meio dia!
Apenas entrei no pateo, deparou-se-me a sr.^a viscondessa; e era mesmo uma pintura vel-a, como eu a vi então, com a cabeça lançada para traz, os braços muito erguidos, os seios afflantes, a aprumar-se, a subir, fincada no bico dos pés, para lançar o painço na gaiolla doirada d'um canario, que estava pendurada, em cima, entre os cortinados da janella!
Era lindo! lindo!
Quem primeiro apparecia a cumprimentar a fidalga era o sr. abbade. E, então, conhecia-se logo que havia novidade na terra, porque o viam sair da residencia todo aceiado, de chapéo alto, cabeção de renda, a sua antiga sobrecasaca muito comprida a bater-lhe no canno das botas, e apanhado na mão direita, d'um modo solemne, o enorme lenço de sêda da India com ramalhoças amarellas.
Feitos os cumprimentos do estylo, o sr. abbade sacava da algibeira a sua caixa de tartaruga, e offerecia-a respeitosamente á viscondessa, como signal da maxima etiqueta.
E depois, ia falando e cheirando alternadamente.
—Pois minha senhora…
E fungava pela venta esquerda uma pitada de simonte, continuando:
—Este anno, o inverno, minha senhora, correu mal! E Jesus! muito mal!
Depois, ao outro dia, vinha a sr.^a morgada do areial flanqueada das suas duas filhas. Aquillo é que era luxo! chapéos de plumas, vestidos de nobreza com tres folhos, mantelletes de moir antique, e então o bonito era a profusão de pulseiras, de broches, de brincos, tudo oiro antigo, oiro de lei, massiço, mas muito feio!
As meninas não tiravam os olhos da viscondessa; e, como ficavam uma junto da outra, acotovelavam-se ás vezes, e segredavam:
—Vê, mana?…
—O que é?—perguntava a mais velha por entre dentes.
—Agora já se não usa cuia! Ora repare.
A morgada falava do amanho das terras, do pezo da derrama, e ás vezes para variar, dizia:
—Ora não estar cá pelo Santo Amaro! Havia de gostar. É uma festa como poucas! Faça ideia, viscondessa: ha arraial tres días, ha fogo preso, missa cantada, sermão…
E arregalando os olhos, e meneando pausadamente a cabeça, exclamava:
—Sermão! mas que sermão!…
Quando chegava a vez da minha visita, já a sr.^a viscondessa sabia todas as grandes novidades da terra. Era assim castigada a minha preguiça!
—Então já sabe—principiava eu—o commendador Antunes este anno despica-se!
—Ah! já me disseram—atalhava logo a viscondessa—é elle o juiz da festa.
—É isso, minha senhora, é isso…
Vêem? Sabia sempre tudo aquillo que eu tinha para lhe dizer!
Ora succedeu, que de uma vez, indo lá passar a noite, encontrei a viscondessa sentada n'uma voltaire, com a cabeça reclinada no espaldar, as pernas estendidas e os seus pés graciosos poisados no rebordo de um brazeiro.
—V. ex.^a contradiz as tradições da primavera!—principiei eu, sentando-me ao seu lado.
—Não contradigo, meu caro—respondeu ella, removendo com a pá o rescaldo esmorecido—a primavera é que está agora conspirando contra os poetas, que lhe attribuem doçuras que não tem! Se o kalendario me não desmentisse, estava em jurar que o janeiro d'este anno augmentou, pelo menos, mais sessenta dias!
—Mas não está tanto frio, que se não prescinda do fogão!
—Não está calor que o dispense.
—Pois não é das melhores coisas para a saude!
—Ora que ideia!—oppoz ella, a rir—Não me consta que o fogão tenha sido o assassino de ninguem, tirante nos velhos dramas, em que a heroina ludibriada pelo amante, procurava no acido carbonico a solução do problema.
Supponham como eu fiquei radiante de jubilo! Até que se me deparava ensejo de contar á sr.^a viscondessa uma historia que ella desconhecia!
—Pois, minha senhora,—principiei eu com desvanecida firmeza—Filippe III, de Hespanha, foi victima do calôr d'um fogão! E, se v. ex.^a me permitte, eu vou referir-lhe como o caso se passou.
Approximei a minha cadeira do brazeiro, expuz os meus pés ao calor do rescaldo, para contradizer com a postura o que affirmava com a palavra, e prosegui:
Estava el-rei, assistindo a um conselho de ministros. Como fazia muito frio, diante de Sua Magestade tinham collocado um brazero enorme. Passado pouco tempo, principiou el-rei a transpirar, a transpirar cada vez mais e as faces a tornarem-se-lhe? muito vermelhas. O conde de Pobar, que viu no rosto de Sua Magestade a afflicção que elle sentia, dirigiu-se ao duque d'Alba, gentil-homem, e disse-lhe baixo que mandasse retirar o brazero.
—É contra a etiqueta—respondeu serenamente o duque d'Alba.—Isso compete ao duque d'Uzeda.
—Filippe III voltava para o lado os olhos supplicantes; mas não se atrevia a quebrar as regras da etiqueta atirando um ponta-pé ao brazero e aos cortezãos que o cercavam.
Mandou-se chamar á pressa o duque d'Uzeda; mas, por fatalidade, o duque d'Uzeda n'esse dia não estava no palacio!
—E depois?—perguntou afflicta a sr.^a viscondessa, afastando-se do brazeiro.
—Depois—continuei eu pausadamente estirando mais as pernas—quando o duque d'Uzeda chegou ao palacio…
—Hein?—perguntou de subito a fidalga, pondo-se de pé.
—El-rei estava morto!—conclui eu com voz sinistra.
Apenas proferi esta phrase, abriu-se de repente a porta e entrou na sala o criado com a bandeja do chá.
A sr.^a viscondessa ordenou logo:
—André, amanhã não accenda o brazeiro.
E eu, offerecendo-lhe uma chavena, disse-lhe então baixinho:
—Já vê que se devem apagar os fogões, quando voltam as andorinhas!
Ha quatro dias, vejo todas as tardes, quando chego á janella, o meu visinho a passeiar em frente da casa, amparado ao braço da nétinha.
O avô é já muito velho, muito velho, com a face coberta de rugas, os olhos pequenos, as mãos encarquilhadas, as pernas tremulas, e a dobrarem-se nos joelhos. E a neta, que se chama Izaura, e é linda como os amôres, tem doze annos, os cabellos loiros, como fios de ouro, e os olhos muito azues, como duas saphiras.
Elle chama-se Macario; mas eu, quando lhe falo, dou á minha voz um tom marcial e digo-lhe alto ao ouvido:
—Como vae o nosso bravo capitão? Como passa o meu valente capitão?
E então, na visinhança é mais conhecido pelo capitão Feroz, que foi a alcunha que lhe ficou, por ter sido um militar valente e corajoso como poucos!
Quando os francezes vieram a Portugal…—Ai!—disse-me elle um dia, referindo-me as façanhas da guerra—quem me cassara n'aquelle tempo! Eu tinha então desoito annos, umas pernas rijas, o ôlho fino!… Olhe, só d'uma vez me falhou a pontaria. Eu lhe conto. No convento de Santa Clara, de Thomar, estava recolhida uma menina, de que eu gostava muito e com a qual depois casei. Um official francez, passando-lhe debaixo da grade, disse-lhe um galanteio, e piscou-lhe o ôlho direito. Ora eu, que estava ao longe a observar tudo, disse commigo: espera, que já t'arranjo. E metti a espingarda á cara, fiz pontaria para o ôlho direito do francez, e…
—E, truz! metti-lhe a bala no ôlho esquerdo! Errei d'essa vez!
E ainda lhe fulguravam os olhos e o rosto se lhe illuminava, quando contava d'estas coisas.
Depois proseguiu:
—A final, chegou-me a vez de ser vencido! Eu, que nunca tremi na guerra, a primeira vez que falei á minha santa, que Deus tenha, dei em tremer como varas verdes! Mas aquillo sim! Era formosa d'uma vez! O senhor vê a minha filha! É a cara da mãe.
O capitão não se enganava. A filha era realmente formosa; mas duma formosura, que é menos dos contornos do rosto, do que da graça interior da alma.
Havia um anno que era viuva d'um industrial trabalhador, honesto e intelligente. Ficára a viver na companhia do pae e com dois filhos:—a Izaura, e o mais pequenino, o Abel, que tinha pouco mais d'um anno e uma cabecinha loira de cherubim.
Que santa vida a d'aquella familia obscura!
A viuva repartia pelos tres todo o generoso affecto do seu coração; e, até, como o pae era tão velhinho, quasi que já carecia dos cuidados d'uma creança. Que os bons velhos, coitadinhos! são faceis de contentar! Basta-lhes uma restea de sol, uns carinhos de filha e umas historias da neta!
Quando perguntei ao Macario, porque passeiava depois do jantar, respondeu-me:
—O somno é bom para a noite. Quando durmo depois de jantar, tenho sonhos maus.
E, beijando a cabeça de Izaura, accrescentou:
—Quero antes passeiar com a minha neta, que me conta historias muito lindas.
E continuaram os dois, o velho pelo braço de Izaura, arrastando vagarosamente os pés nas lagens do passeio.
* * * * *
Depois do jantar, o velho arrastava-se até á poltrona, que tinha ao canto da janella; e, bem refastellado, com os pés estendidos, as mãos cruzadas sobre o ventre e a cabeça encostada no espaldar, dormia patriarchalmente a boa sonata da sésta.
De uma vez, era em julho, e, ás duas horas da tarde, fazia um calor insupportavel. Até parece que a natureza tambem dormia a sésta! Lá fóra, no quinteiro, as folhas das arvores pendiam desfallecidas. Ouvia-se o murmurio monotono da bica d'agua a cahir, como uma lagrima, sobre uma pia de pedra, debaixo d'uma latada. As portas das janellas estavam entre-abertas para deixar entrar na sala uma fita de sol, que se estendia aos pés do velhinho, como uma esteira de luz.
No outro canto da sala, a filha do capitão, sentada n'uma cadeirinha de pau, pospontava uma camisa de creança, mas tão pequenina, que parecia uma camisa de boneca! Ouviam-se até uns pequenos estalidos secos da agulha, atravessando a gomma do morim novo e em folha. O Abel!… Era um regalo vel-o sentado no chão, em camisa, com as pernas roliças á mostra, um ventre redondinho de abbade feliz, e os pésinhos côr de rosa!
Aos pés do avô, na restea do sol, tremia a sombra d'umas folhas do platano do jardim. A creança engatinhou para lá. Como uma pequenina féra, atirando-se de golpe sobre a presa, o Abel lançou-se rapidamente sobre a sombra tremula das folhas; mas—que ludibrio!—ficou triste, espantado, com os olhos muito abertos, a contemplar a palma da mão vasia!
Ao lado estavam os grandes pés do avô, mettidos nos dois grandes chinellos de tapete. Oh! eram duas colinas! E as pernas? As pernas pareciam dois enormes castellos roqueiros.
No espirito bellicoso da creança surgiu a ideia terrivel de os assaltar. Fincou as mãositas nos chinellos do avô, levantou-se valentemente nos pés, e upa! upa! arriba!
N'essa occasião o velho sonhava:
Tinha remoçado cincoenta annos! Os francezes invadiam Portugal! Quando elle estava na tenda de campanha, a dormir no dia seguinte ao de uma batalha, viu entrar inesperadamente o exercito de Bonaparte. As paredes de lôna da tenda iam recuando, recuando, para dar entrada ás hostes immensas do inimigo. Os esquadrões insoffridos da cavallaria corriam sobre elle. Em volta da tenda levantou-se rapidamente—como nas magicas do theatro!—uma bateria, com as boccas dos canhões apontadas para o leito. Os piquetes de infanteria corriam a marche-marche, de bayonetas caladas, para o surprehenderem no somno. Ao fundo, no viso de um outeiro, Bonaparte, o terrivel Bonaparte, com as suas botas de escudeiro e o seu chapeu de bicos posto de travez, como o chapeu de um estudante de Salamanca, assestava sobre elle o oculo de alcance, sorrindo alegremente da victoria!
O capitão Macario via tudo aquillo, ouvia o estrepito dos cavallos, o tropido da infanteria, as gargalhadas de Bonaparte, e sentia-se preso ao leito, impotente, inerme, anciado, sem poder gritar!… Façam ideia!
De repente, todo aquelle exercito enorme se transformou n'um gigante, que lhe prendeu brutalmente as pernas com dois grilhões de ferro!
O capitão esforçou-se ainda por se levantar; mas conseguiu, apenas, depois de muito custo, soltar este brado afflictivo, com uma voz convulsa:
—Ás armas!
E despertou, ouvindo as gargalhadas de… Bonaparte!
O velho abriu desmesuradamente os olhos, volveu-os espantado em torno de si; e, quando um instante depois, se sentiu completamente acordado, deu com o nétinho, que lhe puxava pelas pernas, para lhe subir ao collo!
A creancinha estava com os olhos levantados para o avô, a sorrir, muito alegre, porque julgou que tinha sido para ella, como brincadeira, aquelle grito suffocado—Ás armas!
Havia d'antes em Penajoia—terra que ninguem é capaz de ver no mappa geographico de Portugal—uma aula regia de primeiras letras.
A aula era n'uma casa de um só andar, rente do chão. Ficava no meio de uma clareíra, e tinha ao lado dois grandes sobreiros, que a abrigavam do sol, no estio, e que rangiam, no inverno, quando sopravam as rajadas do nordeste.
Os alumnos entravam ás oito horas da manhã, saíam ao meio-dia, para jantar; e voltavam depois ás duas horas, para sairem ás cinco da tarde. Alguns d'elles vinham de longe, meia legua, tres quartos de legua de distancia. Eram todos pequeninos e pobres. Saíam ao romper da manhã de suas casas, com o livro debaixo do braço, e a louza das contas pendente de um cordão, lançado a tiracollo. No caminho, os que vinham de mais longe, iam-se reunindo aos condiscipulos que encontravam; jogavam o botão, ou, se era tempo, trepavam aos castanheiros para cruelmente roubarem os ninhos dos melros e verdelhões.
O mestre, que tinha sido um valente cabo de milicianos, era um velhote rabujo, de pellos nas orelhas, e que pouco mais sabia do que os alumnos, que ensinava.
Um dia perguntei-lhe eu:
—Diga-me cá, sr. Joaquim, que methodo adopta?
—Que methodo?!—exclamou elle, estranhando a pergunta. E depois, levantando as sobrancelhas, e com as sobrancelhas os oculos, fitou-me desconfiado, e respondeu com ar solemne:
—Adopto o methodo do Achiles (do Axiles, foi como elle dísse).
Mas, a despeito de tudo isto, era um tyranno, como o são quasi todos os ignorantes.
A aula, como já disse, ficava ao rez do chão. A luz entrava por duas frestas, que ficavam acima dois palmos da cabeça de um homem; porque assim era preciso—explicava o mestre—para que os rapazitos se não distrahissem, a olhar para fóra. Ao fundo da sala ficava uma meza de pinho e uma cadeira, que era o logar do mestre. Depois seguiam-se bancadas de pau, collocadas como uma platéa, duas a duas, deixando ao meio um intervallo, por onde entravam os alumnos; e, quando todos tinham entrado, por onde passeiava gravemente o professor, com o livro n'uma das mãos, e na outra um junco.
Os pequenos, assim que se aproximavam da aula, impallideciam.
E antes de entrarem, quem ali passasse, via-os muitas vezes ainda a repetirem a lição, trémulos, enfiados e com a mesma coragem de quem tem de subir a uma forca!
O Gabriel era ainda um pequenote de sete annos. Morava ao pé do abbade. E o abbade, que era um santo velhinho, é quem muitas vezes lhe ensinava a lição. Por isso, e como o pequeno era esperto—ui! diziam os conhecidos, o Gabriel? esperto como um alho!—era o Gabriel que quasi sempre ensinava a lição aos outros.
—Como se lê esta palavra, Gabriel? dizes-me?—pedia-lhe de uma vez o
João do moleiro.
—Soletra lá.
E principiou o outro:
—P-h-i, pi.
—Qual pi! Tambem eu cuidava! P-h-i, fi—emendou o Gabriel.
—Fi!—exclamou o João,—Fi! Pêta! Tu enganas-me, Gabriel.
—Não engano, João; lê fi, que foi como me ensinou o sr. abbade.
N'isto, chegou á porta da aula o mestre.
Vinha a palitar-se, e com a face e orelha direita mais vermelhas, porque tinha dormido a sésta.
Chegou á porta e gritou:
—Canzuada, salta para dentro!
E lá entram todos de chapeusinho na mão, cheios de medo, como um rebanho de ovelhas a entrar para um matadouro.
Assim que o mestre tirou o livro da gaveta, em seguida a palmatoria, e depois o lenço escarlate, de chita, fez-se um silencio lugubre na sala.
—Lê tu, João—principiou elle.
O João do moleiro foi lendo, mas cada vez que se ia aproximando da terrivel palavra, ia-lhe faltando o animo.
Dizer que P-h-i diz fi, que temeridade! Emfim continuou írremediavelmente:
—E como a sciencia chama… chama…
E ergueu supplicante os olhos para o verdugo.
O mestre tossiu para se dar ao respeito, e bradou:
—Lê para bai-xo, me-ni-no—accentuando as syllabas com um sorriso ameaçador.
—Chamada—continuou o pequeno indeciso—chamada… e terminou em tom mais baixo, com a incerteza de quem não sabe o que diz—Philosophia.
—Como?—bradou o mestre, descarregando-lhe com o junco pelas orelhas.—Como?
O pequeno fechou os olhos, encolheu os hombros, e emendou a chorar:
—Pi-lo-so-pi-a.
O professor descarregou segunda juncada, e berrou:
—Pilosópia, burro, pilosópia!
—Pilosópia,—repetiu o pequeno.
Apenas o João do moleiro disse a palavra, levantou-se o Gabriel do seu logar e declarou com a voz serena e com as lagrimas a saltarem-lhe dos olhos:
—Snr. mestre, quem ensinou a dizer assim ao João do moleiro fui eu.
Oh! que escandalo, Santo Deus! O mestre ergueu-se de golpe. Os discipulos tremiam como varas verdes; e os mais pequeninos até choravam! Podéra! O que iria acontecer, Nossa Senhora! O mestre ia correr tudo a bolaria, não ha duvida.
—O que é lá?—gritou o mestre Joaquim com uma voz convulsa.—O que é?
E ficou a olhar para o Gabriel, inclinando com o indicador o pavilhão da orelha direita.
—Fui eu que ensinei assim—repetiu o Gabriel assustado.
—Vem cá—chamou de afogadilho o mestre—já aqui, seu atrevido. E bateu com a palmatoria na mesa. O Gabriel poisou o livro no logar e aproximou-se.
—Aqui já.
O mestre descarregou-lhe nas mãosinhas tenras meia duzia de furiosas palmatoadas.
Foi muito bem feito! Apre! Offender a sabedoria do seu mestre!
* * * * *
De uma outra vez, de tarde, aconteceu passar o abbade pela aula do mestre regio. Fóra ouvia-se uma gritaria, que eu sei lá! parecia que o mundo ia acabar.
Á porta da aula estavam tres pobres mulheres, cada uma com um filhinho ao collo.
—Ahi vem o sr. abbade—disse uma d'ellas.—Vamos pedir-lhe, mulheres.
Aquillo foi Nosso Senhor que o trouxe por aqui.
Abeiraram-se do abbade, e imploraram-lhe que fosse elle pedir ao mestre que perdoasse por esta vez aos rapazinhos.
—Então o que aconteceu?—perguntou o reitor.
—Quem sabe lá, sr. abbade! Elles berregam, que parece que os matam!
—Se eu já até ouvi o meu Manoel, que é tam fraquinho!
—E o meu João, sr. abbade, que tam doentinho tem andado.
—E o meu José! aquelle que foi este anno á primeira confissão, sr. abbade; sabe?
O abbade dirigiu-se á porta e bateu.
—Quem é?—perguntou de dentro a voz aspera do mestre.
—Abra, mestre Joaquim, faz favor?
O abbade entrou. Para os pequenos foi como se vissem a Providencia.
—Então o que lhe fizeram estes mariolas, sr. Joaquim?—perguntou o abbade, olhando em roda para os alumnos.
—O que me fizeram? Roubaram-me dois lapis!
—Oh! que grande peccado!—exclamou o abbade, arregalando os olhos.
—E é que nenhum confessa—explicou o mestre. E bradou, voltado para os pequenos—nenhum confessa, mas eu ra a i xo-os, aqui, todos.
O abbade poz-lhe a mão no hombro e serenou-o, dizendo-lhe:
—Pois se nenhum confessa, é o mesmo; que vamos já saber quem foi.
Espere ahi que volto já.
Saíu o abbade, e, passados instantes, entrou na aula, precedido de uma rapariga.
Aproximou-se da mesa e disse:
—Põe tudo aqui em cima, Josephinha. Assim. Agora vai-te embora.
A pequena poisou uma panella de folha, e tirou debaixo do avental um gallo preto. O abbade metteu o gallo dentro da panella, cobriu-a com o testo, e principiou assim:
—Fez-se um grande peccado! Roubaram um lapis! Quem rouba um lapis, é muito capaz de roubar tudo! Meus filhos, um de vós commetteu o crime; e não o confessa por vergonha. Ora, por causa d'aquelle que roubou os lapis, vão padecer todos os mais. Ahi teem! Em vez de só fazer um peccado, que Nosso Senhor lhe perdoava, se o confessasse e se arrependesse, vae commetter muitos: faltar á verdade, que é tão feio, e depois deixar que os outros soffram injustamente.
Os pequeninos ouviam o abbade com religiosa veneração.
O abbade proseguiu:
—Hão de vir todos, cada um por sua vez, pôr a mão sobre esta panella. O gallo preto ha de cantar logo que sinta sobre o testo a mão criminosa do que roubou o lapis. E fica assim conhecido o ladrão; o sr. mestre Joaquim ha de castigal-o, e eu não o quero ver mais. Ora, torno a dizer, se confessar está perdoado.
Na aula, silencio profundo.
—Nenhum se accusa?—disse o abbade.—Venha o numero 1.
Foi o numero 1 e poisou a mão sobre o testo. O gallo não cantou.
Foi o numero 2, foi o numero 3 e chegou até ao numero 4.
Antes de chegar a vez ao numero 5, todos os olhares convergiram para um canto da aula, d'onde partiam uns soluços afflictivos.
—Quem chora ahi?—perguntou o abbade.
Ergueu-se o Eusebio da Entrevada.
Era um pequenino de oito annos, muito pobresinho, com um palmito de cara que estava mesmo a pedir pão.
Era um cinco reis de gente, o Eusebio.
—É o da Emprégada—explicou o do Moleiro.
—Anda cá, menino—chamou o abbade—anda cá. Tu porque choras?
O pequeno aproximou-se para justificar as suas lagrimas, mostrou ao reitor os dois lapis roubados.
—Ah! foste tu, Eusebio?!
E Jesus! O pequeno chorava que era um dó do coração! E nem podia responder; apenas acenava.
—Então foste tu. E, olha, para que os tiraste?
—É que o sr. mestre—balbuciou o criminoso—disse-me que trouxesse eu um lapis, e eu não quiz pedir o dinheiro á minha mãe, que está emprégadinha na cama, e nem tem dinheiro para o caldo. E depois com medo de que o sr. mestre me batesse…
—Pegaste n'um lapis. Foi assim?—concluiu o parocho.
—Foi, sim, senhor.
—Mas tu tiraste dois!
O pequeno desatou a chorar.
—Para que tiraste dois?—insistia o padre.
—Era—explicou o Eusebio—para quando se acabasse um!…
O mestre estava já de palmatoria prompta.
O Eusebio estendeu resignado a mãosinha trémula.
—Basta—terminou o abbade.—Eu prometti que se perdoava a quem confessasse. Para outra vez, querendo alguma coisa, vae-me pedir, ouviste? Que eu não tenho tempo de saber o que vos falta. Ora vae para o teu logar, e promette que não tornas a fazer outra.
O mestre Joaquim sentiu muito não applicar o correctivo.
—Deixe lá, sr. Joaquim—dizia-lhe o abbade.—É preciso muita misericordia para tratar as creanças. Lembre-se do que dizia Jesus: Sinite parvulos venire ad me.
O mestre, que não sabia latim, mas que diante do curso quiz occultar a ignorancia, respondeu a sorrir com ares de quem percebia:
—Et cum spiritu tuo!
Um sargento de atiradores, que, desde a madrugada, tinha percorrido oito leguas, a pé, sem descançar, entrou n'uma taberna que ficava á beira da estrada, e perguntou se era por ali que morava Maria La Courdaye.
O taberneiro descobriu-se respeitosamente deante do soldado, e, saindo á porta, estendeu o braço, e indicou-lhe:
—É ali, do lado direito. Abra uma cancella e entre.
—Obrigado! Boa noite—agradeceu o militar. E dirigiu-se apressadamente para lá.
* * * * *
No muro da estrada havia uma cancella de pau; e aberta a cancella, atravessando-se por um caminho assombreado de algumas arvores frondentes, via-se ao fundo a modesta casinha branca, escondida entre a verde ramaria de uns carvalhos.
Tinha ao lado uma leirita plantada de horta; e, á sombra de um choupo, mais no fundo, uma pia de pedra, onde murmurava uma veia de agua muito crystalina. Do esgalho de uma arvore prendia-se ao tronco de outra uma corda, estendidas na qual alvejavam, expostas á luz perpendicular do sol do meio-dia, umas roupinhas brancas de creança. No cunhal da casa havia uma parreira, que subia encostada á parede, com as suas largas folhas de um verde accentuado d'entre as quaes pendiam os cachos escuros com os bagos cobertos de pó luzente e subtil das estradas. Da chaminé desenrolava-se serenamente uma espiral branca de fumo, que se expandia pelo ar. A casinha branca, de um só andar, apparecia encastoada no fundo escuro de uma collina. E no cabeço do outeiro, a espessura immovel e macia de um pinheiral fechava o horisonte, como um largo reposteiro de velludo verde.
N'essa casa vivia uma formosa mulher na companhia de dois filhos.
Coitadita da pobre! Ficava viuva aos vinte e cinco annos e com dois filhinhos que eram o seu encanto. O mais velho tinha sete annos e chamava-se Miguel, que era o nome do pae; o mais pequenino contava apenas onze mezes, e tinha nascido pouco depois que o pae partiu para a terrivel guerra da Criméa.
De uma vez, depois de cearem, a mãe, para que o Miguel não fizesse bulha e acordasse o menino, chamou-o para ao pé de si, abriu a carta geographica, e disse-lhe:
—Olha, meu filho, onde está o teu querido papá?
O pequenino abriu muito os olhos, e respondeu a sorrir:
—Na guerra! Pum! Pum!
—Anda vêr onde elle está.
E, pegando-lhe na mãosinha, fechou-lhe os trez dedos mais pequenos, estendeu-lhe o indicador, e foi-lh'o levando por todas as terras por onde o pae tinha seguido. O dedo da creança ia subindo montanhas, descendo aos valles, atravessando as planicies, costeando pelo litoral e cortando o mar. O pequeno balbuciava todos os nomes que a mãe proferia. Quando chegou á Criméa parou. Ergueu a sua cabecinha loura, e levantou os olhos para a luz do candieiro, a vêr se elle lhe fazia a mercê de o alumiar bem. Depois levou a mão ao abat-jour e tirou-o para o lado.
—Deixa o candieiro, meu filho.
—Ora, ora—exclamou o Miguel, fazendo biquinho.
—Deixa, meu filho—pedia a mãe.
—Eu quero vêr o papá.
E debruçou-se outra vez sobre a carta, a procurar com o olhar investigador um ponto qualquer.
A mãe, n'esse instante, com o mais novinho adormecido nos braços, olhou para o crucifixo, que tinha pendurado á cabeceira, e principiou a rezar baixinho, com duas grossas lagrimas a tremerem-lhe á flôr das palpebras.
—Está aqui o papá?—perguntou o Miguel.
—Está, meu filho, está.
—Na guerra?
—Sim, meu rico amor, na guerra.
O Miguel ficou pasmado a olhar para a Criméa, e exclamou:
—Eu quero ir á guerra dar um beijo ao papá.
—Oh! meu filho!
—O que é a guerra, mamã?
—Não sei, Miguel. O teu papá, quando vier ha de contar-nos, sim?
No dia seguinte, logo depois da ceia, quando o menino já dormia no regaço da mãe, o Miguel pediu:
—Eu quero ver outra vez o papá.
E foi procurando, pouco a pouco, pelo mappa. Assim que apontou a Criméa, exclamou radiante:
—Ah! aqui está elle!
E depois, no outro dia, logo á bocca da noite, bateram apressadamente á porta. Quem seria, Jesus! A mãe do Miguel até tremeu. Pegou na creancinha e foi vêr quem era. O Miguel—aquillo era já um homem ás direitas!—ía ao lado da mãe, segurando-se-lhe a uma das prégas do vestido.
—Ha-de ser o papá—disse elle.
Abriu-se a porta, e no fundo estrellado da noite, sobresaiu a elevada corpolencia de um soldado. A claridade do luar batia-lhe em cheio no rosto avincado da fadiga e queimado do sol, com grandes bigodes espessos. Os botões da fardeta reluziam.
—É aqui que móra a sr.^a Maria La Courdaye?—perguntou elle, enxugando ao canhão o suor copioso que lhe escorria na testa.
—Sou eu—respondeu a mãe de Miguel.
—É a mulher do Miguel La Courdaye?
—É o papá—disse do lado o pequenito, fitando o soldado com os seus grandes olhos azues.
—Pois, senhora…
O soldado olhou em redor, peturbado, afflicto, e continuou:
—Pois o Miguel, o 26 dos atiradores, o meu querido e bravo camarada…
—Hein?—balbuciou a pobre mulher.
O sargento apontou com o indicador para o céo, e, approximando-se da porta, terminou:
—Morreu!
E deitou a correr pela estrada fóra, porque não tinha coragem de assistir áquelle lance angustioso. Não tinha animo, elle, que no calor da refrega, affrontára os maiores perigos!
Depois da ceia, o Miguel quiz ainda ver o seu papá. Abriu o mappa, e quando chegou á Criméa, disse:
—Eh! aqui está elle!
—Já não está, meu filho—respondeu-lhe a mãe a chorar.
O pequenito olhou para ella, e perguntou:
—Então?
—Está no céo!
—Está no… céo? Então vou procurar o céo.
E ficou, por muito tempo, debruçado sobre o mappa, a procurar onde ficaria o céo para ver o seu papá, até que deixou pender a sua loira cabecinha sobre o livro, e adormeceu.
A mala-posta, que seguia do Porto para Braga, passava, ás 7 horas da manhã, defronte da Izabellinha—aldeola obscura, que fica emboscada n'uma deveza cerrada de carvalheiras, entre Santiago da Cruz e a estrada de Barcellos.
Como era subida, os cavallos iam a passo, de redeas bambas, com as cabeças pendentes, saccudindo com as caudas os moscardos teimosos, que lhes afferretoavam nos ilhaes. Na imperial do tejadilho os passageiros cabeceavam com somno. O cocheiro, com o chapéo desabado cahido para o sobr'ôlho esquerdo, por causa do sol, e com as redeas entaladas nos joelhos, petiscava lume da pederneira e acendia pachorrentamente no morrão um cigarro de Xabregas.
—Ainda não enxergo o manco—disse o conductor, com os olhos fitos n'um atalho, que vinha sahir á estrada.
—Toque-lhe a busina, homem—alvitrou do lado o cocheiro, com a voz rouca da aguardente—toque-lhe a busina; que, se não apparecer, adeus! a culpa é d'elles.
O conductor limpou com a palma da mão o boccal da corneta, que levava ao tiracollo, applicou-o aos beiços, inchou as bochechas d'ar, e soprou de rijo, tirando um som roufenho, prolongado, com intermittencias, que se ouvia de longe.
O manco, que estava encostado no cunhal do muro, á sombra d'um castanheiro, sahiu a meio da estrada.
Ao passar a mala-posta, o conductor atirou-lhe d'alto com uma sacca de brim, surrada, suja e fechada com uma vareta de ferro, em cuja extremidade pendia um aluquete triangular. O manco estendeu os braços para a suspender no ar. Assim que a aparou, sopesou-a duas vezes, com os braços esticados, e observou:
—Hoje pesa!
—Hoje ha paquete—explicou succintamente o conductor.
E, como a estrada principiava a descer n'uma ladeira ingreme, volteou com força e á pressa a manivella do travão, e disse para o manco:
—Adeus.
A mala-posta seguiu a trote largo pelo meio da estrada, aos solavancos, levantando nuvens densas de poeira, com grande ruido das rodas, fremito das vidraças e o tilintar constante dos guisos das colleiras.
O manco atirou para o hombro com a mala das cartas, fincou o braço concavo da mulêta no sovaco direito, e desandou pelo atalho fóra, a coxear, para casa do Bento do correio.
Ao fundo do atalho, em continuação do muro tosco dos campos, ficava uma estacada já velha, combalida, esverdengada das chuvas da invernia a resguardar uma leira hortada de couves e cebollinho. Tinha dentro uma casita de telha vã com porta e postigo sem vidraça. Dirigiu-se o manco á cancella da palliçada, correu-lhe o ferrôlho pêrro na armella, e gritou:
—Ó tia Anna! tia Anna!
Abriu-se a porta da casa, e appareceu no limiar uma velhinha tremula, curvada para diante, com uma roca enfiada á cinta, a fiar estopa.
—Que é lá, manco?—perguntou ella, inclinando-se para fóra, com a mão fincada na humbreira.
—Correio!—gritou o manco com um grande berro.
A velha fez-lhe com a mão signal de que esperasse. Poisou dentro a roca e o fuso, e sahiu á horta ageitando com os dedos as farripas brancas do cabello, que lhe espreitavam por debaixo do lenço. O rapaz transpoz a cancella, foi ao encontro da tia Anna, e gritou-lhe com a bocca muito aberta:
—Correio! ouviu?
A mulher fitou-o com os olhos espantados, e perguntou:
—Que é? Não oiço.
O manco sorriu-se resignado; collando então a bocca ao ouvido da tia
Anna, repetiu com maior brado:
—Correio! correio! ouviu agora?
—Ah!—exclamou a velhinha, esfregando as mãos de jubilo radiante—ouvi, meu filho, ouvi:—é correio!
—É correio, é—confirmou elle com um aceno affirmativo.
E, pondo-lhe a mão no hombro, disse-lhe adeus até logo, correu de novo o ferrôlho, e tomou á direita, pelo carreiro de um milharal, caminho do correio.
* * * * *
Não se imagina o que é a chegada do correio a uma aldeia qualquer do
Minho! Cartas dos filhos ausentes!
Que anciedade em vêr realisadas as esperanças e…
Deixemos estas considerações, e relatemos os factos.
D'aquella mesma porta, vinte annos antes, sahira uma vez a tia Anna, ainda forte, robusta e sadia, para acompanhar ao Porto o seu querido e unico filho, que teimou em embarcar para o Brazil. O homem da tia Anna não se oppoz.
—Deixa-o lá, mulher—disia-lhe elle—se o rapaz tem inclinação, em Deus o ajudando, melhor amanhará a vida por lá do que por cá. Elle sabe lêr, elle sabe escrever, elle sabe contas, está mesmo a calhar.
—Ai! meu rico filho—soluçava a pobre mãe, a chorar, com o rosto escondido no avental.
—Não chores, mulher. Partir, tinha elle de partir, mais hoje, mais ámanhã. Eu que o mandei ao mestre, não foi para ficar na lavoura. Assim com'assim tanto monta estar o rapaz n'uma loja no Porto, como no Brazil. Vem a dar na mesma.
Estas e outras razões do marido venceram as saudades da mãe.
Foi preciso vender dois grilhões e um par d'arrecadas, venderam-se; foi preciso vender tambem uns novilhos, que se engordavam para embarque, venderam-se na feira de Villa-Nova; e apuradas sete moedas e meia, impoz-se o rapaz para o Brazil. No Porto, a tia Anna tomou passagem para o filho, á prôa, na galera Constancia, da casa dos Pennas; mercou-lhe uma caixa de pinho nova; vestiu-o com dois fatos baratos n'um algibebe da Ponte-Nova; escolheu-lhe um par de chinellas nas sapateiras das Carmelitas; guardou-lhe e ageitou-lhe tudo na arca, e poz-lhe a um canto, com a maior devoção, o registo do Bom Jesus do Monte.
Pobre mulher! Liquidou as parcas economias, que representavam privações e sacrificios, afadigou-se de trabalho, ralou-se de saudades, chorou muito; e, quando viu de terra a galera Constancia seguir lentamente rio abaixo, com as vellas enfunadas pelo nordeste e a prôa inclinada á barra, cahiu de joelhos e de bruços no caes de Massarellos, com as mãos tremulas atadas na cabeça, a soluçar afflictivamente pelo filho da sua alma, que lhe acenava com o lenço, debruçado na amurada do navio, a chorar!
* * * * *
Chegou a primeira carta a Izabellinha decorridos tres mezes da partida do rapaz. Foi um alegrão que os paes tiveram! A carta era escripta em papel paquete, muito fino, pautado; e até como os portos do Brazil estavam suspeitos de febre amarella, vinha o papel todo golpeado. Foi lida a carta pelo Bento do correio, foi lida pelo boticario, foi lida pelo snr. cura, antes de ser delida pelo calôr do seio da mãe, que a guardava junto do coração, como reliquia; e, de cada vez que ella ouvia as palavras do filho, era um chorar copioso, que retalhava o coração. O brazileiro da Granja, que indusira o rapaz a embarcar, esse sorria-se, e consolava-a d'este modo:
—Deixe lá, tia Anna! Ali é que um home se faz gente. Está aqui, está um brazilêro como a mim. Lhi garanto, tia Anna, que o rapaz se tiver tento na boia, hem? arranja pátácária gorda, e, em pouco tempo, átiça baixella em casa.
Nenhumas d'estas consoladoras esperanças, nem até a de átiçar baixella em casa, leniam as saudades d'aquelle coração attribulado da tia Anna.
—Ora!—oppunha ella com a voz nazal e soluçante de quem suspende as lagrimas para falar.—Em um homem tendo saude e a graça de Nosso Senhor, em toda a parte do mundo é Brazil! Riquezas são o demonio.
—Não diga pátácuádas, mulher—contestava o brazileiro azedo e carrancudo—não diga pátácuádas.
Depois, passados mais annos, á proporção que as saudades da aldeia se desvaneciam no animo do rapaz, as cartas iam rareando.
De quatro em quatro mezes escrevia para a terra, dizendo que o trabalho lhe roubava o tempo de o fazer amiudadas vezes. Que não tivessem cuidado, que ia bem de saude e que esperava ser feliz em poucos annos.
A tia Anna, quando não tinha carta no correio, ia da Izabellinha a Braga, a pé, entrava no Carmo, ajoelhava á beira da campa do milagroso Frei Joãosinho da Neiva; e, com as mãos postas em supplica junto da bocca, implorava com ancioso fervor pela saude e prosperidade do filho ausente. Ao passar pela caixa das esmollas, á entrada da egreja, lançava algum dinheiro no gazufilacio. Pedia a Nossa Senhora da Conceição dos Congregados pelo filho do seu coração. Entrava em Santa Cruz, ajoelhava em frente do altar do Senhor dos Passos, e rezava uma estação e um rozario com as faces de rojos; subia a beijar os pés da sagrada imagem; e benzendo-se tres vezes com a corda d'esparto puido e lustrosa, que cingia a tunica do Senhor, retirava-se ás recuadas, rezando a meia-voz, até sahir do templo!
* * * * *
Seis mezes antes do manco annunciar á tia Anna que tinha chegado o correio, recebeu ella uma carta do filho, dando-lhe parte de que ia casar com menina rica, de nascimento—dizia elle—prendada. Queria o retrato dos paes, e enviava-lhes dez moedas para as despezas necessarias.
Quando isto constou na Izabellinha, houve geral regosijo.
—Eu não lhe dizia, tia Anna—lembrava-lhe uma visinha.—Se eu logo vi!
Aquelle seu Joaquim nunca me enganou. Eu futurei aquillo!
—Pois isso bastava uma pessoa olhar para elle—acudia outra, aleitando um filhinho gordo, que tinha no regaço—Aquelle ôlho d'elle, lembra-se, tia Josepha?
—Pois não alembra? O rapaz era fino, que nem um alho! Se aquelle não se arranjava por lá, então—bôa te vae!—não sei o que ha-de ser d'outros que foram depois. Olhe vocemecê, tia Anna, aquelle filho da moleira, o zerôlho; aquillo é um morcão, que não serve para nada.
A tia Anna, sem attentar no confronto, que lhe realçava as qualidades do filho, ria e chorava simultaneamente. E não se sabia dizer se aquellas lagrimas serenas illuminavam o sorriso, se o sorriso mais entristecia as lagrimas!
Dois dias depois da recepção da carta, resolveram-se, ella e o marido, a ir a Braga para tirarem o retrato. Vestiram-se com a melhor roupa domingueira, que servia para a romaria do Espirito Santo, no Bom Jesus do Monte. Ella ia toda sécia de saia escura de serguilha, com tomado e muitas pregas miudas no coz, collete de chita amarella salpicada de florinhas verdes, camisa branca de linho com mangas enfunadas e abotoadas no pulso, meias finas, e sóquinhas de panno azul com ponteiras de verniz.
Atou na cabeça um lenço branco de cambraia bordado, lançou aos hombros o capotilho novo de baeta escarlate debruado de fita larga de velludo preto com as pontas cahidas á frente, até á cintura, e tomou na mão enrugada e secca um lenço engommado de franja e entremeios de renda.
O marido enfiou as melhores calças de panno, avincadas, com abertura em baixo a apolainarem o tamanco, collete de fostão amarello com duas ordens de botões de vidro, niza azul de abas curtas, golla alta, botões amarellos, as mangas justas de canhão até á raiz dos dedos, e collarinho muito engommado e teso apontado ao lóbo das orelhas.
Poz na cabeça chapéo de feltro de copa afunilada, e sobraçou o guarda sol de panninho escarlate com espigão de metal lustroso e um cabo de ôsso representando um punho, toscamente esculpido nos torneiros da Bainharia do Porto.
Atravessaram assim o Arco da cidade em Braga; e seguiram pelo meio da rua do Souto, um ao lado do outro, radiantes, em busca do retratista.
Adiante da galeria do paço episcopal, deparou-se-lhes pendurado na humbreira de uma porta um quadro grande de caixilho doirado com muitas photographias em exhibição.
Perguntaram na loja de pannos, que havia ao lado, onde se tiravam os retratos; e, devidamente encaminhados, subiram ao segundo andar, onde ficava o atelier.
O photographo retratou-os em grupo, um junto do outro, ambos de pé, o marido com a mão direita espalmada assente sobre a espadoa descahida da mulher.
Ficaram com as cabeças muíto levantadas, os olhos arregalados e espantadiços, os beiços franzidos, os membros hirtos e constrangidos, n'uma attitude lôrpa, grotesca e ridicula!
* * * * *
Logo que o manco partiu, a tia Anna seguiu-lhe no encalço para procurar carta do filho.
No dia em que chegava a mala do Brazil, iam as mulheres da Izabellinha pedir ao Thomé boticario, que deixasse ir o filho ao correio para lhes lêr as cartas.
Se não havia freguezes a aviar, o pae mandava-o, e o Andrésinho partia alegre, porque gostava da brincadeira.
Era lindo vêr aquelle quadro!
O rapaz sentava-se no espigão d'um muro baixo, á sombra d'um sobreiro. Em volta d'elle, mulheres e homens apinhados, com as bôccas abertas, escutavam-no com religioso silencio.
O filho do boticario ia lendo uma por uma, muito vagarosamente, as cartas que lhe entregavam.
Não havia segredos para ninguem.
Como o rapaz lia d'alto e bom som ouviam todos as cartas uns dos outros, como se fossem uma só familia. E alguma noticia triste ou noticia alegre era egualmente sentida e commentada por todo o auditorio.
A tia Anna, como já lhe custava a andar, chegava no fim de todas.
Cediam-lhe logo passagem.
—Deixae, que eu tenho tempo—dizia ella, com a carta do filho apertada na mão.
Por fim, chegou-lhe a sua vez.
O filho accusava a recepção dos retratos, mas dizia que não tinha gostado. A tia Anna entristeceu.
A carta proseguia no mesmo assumpto e terminava assim:
«Vão vocemecês a casa do meu correspondente, os srs. Nogueira & Sá, da rua das Flôres, e perguntem pelo meu amigo e socio Joaquim da Silva Ferreira, que lhes dará as instrucções precisas».
O André, depois de lêr, explicava sempre:
—Percebeu, tia Anna? Quer que vocemecê e o seu homem vão ao Porto, á rua das Flôres, a casa dos srs. (e recorria á carta), dos srs… Nogueira & Sá, e lá procurem o sr…, o sr… (recorria de novo ao papel) Joaquim Ferreira da Silva, que, pelos modos, vem a ser o socio do seu José. Percebeu?
—Percebi, percebi.
—Pois é o que teem a fazer; e adeusinho, até outra vez.
O rapaz restituiu a carta; e, como não havia mais ninguem por ali, saltou do muro, e voltou para a botica.
* * * * *
Na loja de ferragens da firma commercial Nogueira & Sá, estavam, havia cerca de uma hora, a tia Anna da Izabellinha e o marido á espera do socio do filho, que os mandára esperar ali.
Era meio-dia, quando o brazileiro entrou.
O patrão Nogueira apresentou-os ao recem-chegado. A tia Anna e o homem levantaram-se humildes, com os braços cahidos, conturbados d'acanhamento.
—Então são vocemecês os paes do meu socio, hein?
—Saiba v. s.^a que sim—responderam ambos em côro.
—Pois por muitos annos, e bons—disse-lhes o brazileiro.
Tirou da algibeira do collete branco um relogio d'oiro, viu as horas, e voltando-se para o Nogueira:
—São horas. Tem lá cima tudo preparado, hein?
—Está tudo prompto—respondeu o ferragista.
O Silva voltou-se para os lavradores, e disse-lhes:
—Subam lá cima com este senhor, que eu espero-os aqui. Não si démorem, hein?
A tia Anna seguida do homem subiram a uma sala do primeiro andar. Sobre um canapé de palhinha estava estendido um casaco preto, um par de calças, um par de botas e um chapéo alto de seda. Ao lado havia um vestido de seda preta com folhos, um chale de cachemira, uns sapatos de duraque, um chapéo de velludo carmezim com flores amarellas e plumas brancas.
Entrou na sala uma criada velha das manas do Nogueira, tomou nos braços o vestido de seda, o chapéo, o chale e os sapatos, e pediu á tia Anna que a seguisse ao gabinete proximo.
O caixeiro da loja ficou só com o lavrador. Disse-lhe que mudasse o fato d'aldeão que trajava e o substituisse por aquelle que via ali.
—Mas… oppoz timidamente o pobre do homem.
—Eu ajudo-o, eu ajudo-o. Ande depressa.
E, á pressa, atabalhoadamente, tirou-lhe a niza, o collete amarello e as calças de saragoça.
Quando o homem se sentou n'uma cadeira para enfiar o canno das botas, cahiam-lhe da testa bagas de suor copioso.
Estava afflicto, quasi apopletico, com o laço da gravata a apertar-lhe a garganta, como a corda d'um enforcado.
Aquelle casaco pesava-lhe nos hombros como uma armadura d'aço de D. João
II.
Abriu-se a porta do gabinete e appareceu a tia Anna vestida de senhora. Oh! Os pés estorciam-se-lhes nos sapatos, o chapéo cahia-lhe para a nuca! A criada vinha atraz, a passo, como aia que segue uma rainha; e, lançando um olhar e sorriso maliciosos ao caixeiro, dizia:
—Hein? Estão que nem dois fidalgos!
Marido e mulher empallideceram e tremeram quando se viram n'aquelles trajes. Despertou-lhes na consciencia o sentimento do ridiculo.
Entreolharam-se mudos, contrafeitos, e desceram ambos, com muito custo, amparados ao corrimão, os degraus da escada até á loja.
E a criada e o caixeiro, que os viam do patamar, abafavam com a mão na bôcca as gargalhadas da troça.
—Ai o diacho da velha—exclamava a creada a rir—que me parece mesmo um entrudo!
* * * * *
Entraram ambos na photographia Fritz, da rua do Almada.
O socio do filho explicou ao retratista como desejava o grupo.
Passaram ao atelier, muito desconfiados, a olharem-se de soslaio.
O homem bofava, a suar constantemente.
Foram colocados no fóco, um ao pé do outro, com uma meza de permeio, e por detraz com um reposteiro azul, que cahia em amplas dobras sobre o tapete. Quando o photographo assestou sobre elles a lente da machina, retirou de repente a cabeça de sob o panno de velludo preto que o cobria, e observou espantado:
—Então vocemecês estão a chorar?!
Enxugaram os olhos á pressa, e collocaram-se na mesma posição.
Á segunda tentativa, porém, as lagrimas e os soluços irromperam violentos; e o homem da tia Anna, afastando-se da meza, dirigiu-se ao socio do filho, e expoz-lhe, a chorar:
—Com'assim, meu senhor, nós não tiramos o retrato. E, enxugando as lagrimas ao canhão do casaco, continuou:
—Nada; escreva v. s.^a ao meu José, e diga-lhe que não senhor, que… não pode ser!… Se elle não quer mostrar á senhora o retrato que lhe mandamos, é o mesmo, que diga… que já não tem pae, nem mãe!
Aqui foi um soluçar afflictivo e um abanar convulsivo de cabeça, que deixou estarrecido o brazileiro.
A tia Anna concordava com o marido:
—Diga-lhe, meu senhor, que nós—dizia ella com voz tremula—que… morremos, sim que já morremos… ambos!
* * * * *
Na tarde d'esse mesmo dia, quando os ultimos raios do sol poente purpurisavam a cumiada das montanhas, e pelos respaldos dos outeiros vinham descendo as sombras esfumadas do crepusculo, voltavam ambos para a Izabellinha.
Sentavam-se repetidas vezes na orla do caminho, a fingir que a distancia os fatigava! Permaneciam silenciosos durante alguns minutos, um ao lado do outro, com os olhos esmorecidos e roxos de chorar.
Mas o homem, quando via rebentar as lagrimas nos olhos da mulher, fazia-se forte, continha a commoção, e dizia-lhe baixo, a sorrir contrafeito, acotovellando-a d'esguelha:
—Então, ó Anna! Ai! que já não tenho companheira para as romarias!
E era triste vêr então aquelles dois velhos seguirem para a sua aldeia, a pé, cabisbaixos, a suspirarem de quando em quando, com o coração retalhado pela mais cruel das decepções!
Era um dia de festa e de grande romaria.
Desde madrugada, que eu estava debruçado no muro do meu quintal, á sombra de uma acacia, onde trinava um rouxinol, para ver passar os romeiros, que se dirigiam, em bandos, para o arraial.
Antes de chegar ao adro, passava-se por dois arcos de murta com flôres, dos quaes pendiam bandeiras e galhardetes de côres garridas.
Ás onze horas da manhã ouvia-se o murmurinho surdo do ajuntamento no logar da romaria. Pela estrada já pouca gente passava; e a que ainda vinha á festa, caminhava de vagar, fatigada, rente dos muros das quintas, para se abrigar do calôr ardente e abafadiço de julho.
De repente, na curva que a estrada faz, junto do pinheiral, appareceu a carruagem da sr.^a viscondessa, que era, n'esse anno, a juiza da festa.
Os transeuntes paravam, encostados aos muros, e voltavam-se para ella, com os chapéos na mão, como se abrissem passagem respeitosa a uma rainha. A carruagem descoberta era tirada por duas egoas inglezas, que esbofavam com ruido, batendo as patas a compasso na areia fina e reluzente da estrada. O cocheiro vinha aprumado na almofada, com as pernas esticadas, e na mão direita levantada suspenso o pingalim. Dentro, reclinada no estofo escuro da carruagem, a sr.^a viscondessa sorria affavel para os lados, agitando levemente a cabeça. Uma marquezinha côr de perola abrigava-a do sol. No logar da frente ia o sr. abbade, um abbade ainda novo, muito escanhoado, vestido com batina lustrosa, cabeção de renda, barrete de setim levemente inclinado na corôa da cabeça. Levava as mãos crusadas sobre o ventre e os olhos fitos no vestido da viscondessa, um vestido verde-mar, com guarnições de renda, que se abria diante d'elle, como um leque.
Os romeiros, só depois da carruagem passar, é que continuavam o caminho, e, olhando entre si d'um lado e d'outro da estrada, sorriam gloriosos.
Quando a sr.^a viscondessa apeou á porta da egreja, estalou no ar uma girandola de foguetes; e eu, que não tencionava assistir á festa, acendi um charuto, e dirigi-me vagarosamente para o logar da egreja, antes que principiasse o sermão.
* * * * *
Estava a egreja armada com sanefas e cortinas de damasco escarlate, onde as luzes das tocheiras de prata do altar punham reflexos vermelhos.
Fóra da têa gradeada do altar-mór, via-se o povo, de pé, apinhado, com o olhar espantado e perdido na decoração ostentosa do templo. A pedra do altar-mór estava revestida com toalha franjada de rendas. Um tapete largo de variegadas côres cobria o estrado do altar, descia os tres degráos preso por varões de metal lustroso, e estendia-se na capella-mór até á grade. Tres padres velhos, avergados sob o peso das capas d'asperges com brocados d'oiro, estavam sentados ao lado, com os pés unidos e estendidos para a frente. Sentia-se um cheiro forte a incenso; e, no côro, soavam as ultimas notas plangentes das rabecas acompanhadas a orgão e rabecão.
A sr.^a viscondessa entrou apressada pela porta lateral, que dava para a sachristia, e ajoelhou-se em frente do altar, com a cabeça muito levantada e os olhos pregados na imagem do Christo crucificado em meio de luzes e ramos de flôres. Depois de rezar, com as mãos postas em supplica junto do seio, persignou-se lentamente e sentou-se.
N'esse instante, houve um rumôr vago entre os fieis, que enchiam o templo.
O prégador apparecêra no pulpito. O seu rosto oval de uma pallidez maviosa, fronte larga, barba escanhoada e azulada no queixo, destacava-se da alvura da sobrepeliz de cambraia bordada.
As suas mãos estreitas e brancas sahiam d'entre as rendas aniladas das mangas, que lhe chegavam até á raiz dos dedos.
O abbade olhou attentamente o auditorio, e ajoelhou. Ergueu-se depois, arrepanhou os canhões da sobrepeliz, ageitou a estola, expigarrou com tom solemne e passou á flôr dos labios o lenço, que depôs cuidadosamente ao lado. Em seguida, fincando a palma das mãos no parapeito do pulpito, adiantou o busto para a frente e principiou com voz debil:
/# —«Mulierem fortem quis inveniet? Proverb. 31». #/
Era o sermão de Santa Izabel, rainha e martyr. O prégador historiou a vida da santa, desde o tempo em que, menina e môça, nos seus palacios de Aragão, o seu principal divertimento era a oração e o exercicio da caridade. Desposada por el-rei de Portugal, D. Diniz, em breve as leviandades amorosas do esposo lhe amarguraram o coração trahido.
/#
—«Porque—exclamava o prégador, alçando o braço—quantas vezes o
manto de uma rainha esconde um coração attribulado!? Em meio da
ostentação d'um palacio, cercada de todas as magnificencias reaes,
filha e esposa de rei, como a grande rainha de Lacedemonia, quae
Regis filia, Regis uxor, a princeza santa não tinha o socego, o
descanço, a alegria da mulher humilde d'um mechanico!
Era rainha, Regis uxor, era poderosa, era rica; mas a principal
riqueza era a da sua alma.
O oiro copioso dos seus cofres não tinha o grande valôr do oiro
d'alto quilate do seu coração,—oiro de lei, purissimo, sem liga,
que se não gasta e consome com o uso, antes se acrysola e
engrandece com o exercicio das boas acções!»
#/
Algumas mulheres soluçavam commovidas; e a sr.^a viscondessa, que o ouvia com attenção, fechava os olhos em signal de concordancia, e acenava affirmativamente a cabeça.
Proseguia o sermão. O prégador falava da santa, quando acudia pressurosa aos infelizes. Referiu o milagre da transformação dos pães em flôres, sendo surprehendida pelo rei, quando ia esmolar aos pobresinhos!
Depois, adiantando parallelas as mãos, como se quizesse attrahir n'um braçado o auditorio estupefacto, dizia:
—«Vêde para que serve o oiro! Não vos julgueis desgraçados, se vos não assistem grandes riquezas! Não deixeis que a inveja se enrosque, como serpente ardilosa do inferno, em vossos corações».
E, apontando o indicador para o céo, proseguia com voz mais solemne:
—«É ahi que se vê a previdencia de Deus! Concedeu o oiro aos ricos, para que o distribuissem pelos pobres! Pedir não é humilhação nem vergonha! Deu-nos o exemplo Jesus, o Divino Mestre, que ensinou aos discipulos a pedir com humildade!
E que maior consolação—continuava o prégador—que maior consolação do que soccorrer com a esmola áquelles que a fortuna fez menos abastados!? Apagar a fome, saciar a sêde, vestir os nús, enxugar as lagrimas das viuvas, amparar a orphandade, dar arrimo á velhice!»
E exclamava:
—«Oh! santa caridade! Oh! flôr sacrosanta do altar de Deus! A caridade…»
E retrahindo-se no pulpito, arqueando os braços á frente, aproximando as mãos com as cabeças do indicador e polegar delicadamente unidas, recitava com voz untuosa, repassada de mimo:
Á noite a virgem modesta,
A casta filha de Deus,
Furta-se aos hymnos da festa,
E envolta em candidos véos,
Desce a escada sumptuosa,
Mãe dos maus, irmã dos bons,
Lá vai levar carinhosa
A toda a parte os seus dons.
Foi de um effeito surprehendente! O auditorio sentia calefrios: passava n'elle a corrente magnetica do enthusiasmo!
O prégador rematou em tom familiar, com voz mais baixa, aconselhando aos pobres, que seguissem o exemplo de Jesus, que andou a pedir pelo mundo; e aos ricos, que se amoldassem pela Rainha Santa, que distribuia pelos desgraçados as riquezas do seu palacio.
—«Amen.»
E sahiu do pulpito açodado, vermelho, anhelante, a enxugar com o lenço o suor copioso, que lhe corria da testa.
* * * * *
N'esse dia, jantou o sr. abbade com a sr.^a viscondessa. Quando eu cheguei, tinham-se já levantado da mesa, e estavam sentados no terraço, á sombra do toldo listrado.
Defronte da viscondessa, o abbade, refestelado n'uma larga cadeira de vime, sorvia o café a pequeninos goles.
Cumprimentei o prégador pelo sermão; e a sr.^a viscondessa, levantando enthusiasticamente a cabeça, confirmou do lado:
—Admiravel! admiravel! Diga-me, sr. Alberto—continuou ella, batendo-me familiarmente no joelho—não acha que o abbade recitou a poesia com mais mimo e mais sentimento do que a Emilia Adelaide, em D. Maria?
—Ah!—exclamei eu, espantado do confronto—sem duvida!
O escudeiro entrou com uma bandeja de prata para receber as chavenas.
Aproximou-se da sr.^a viscondessa, e disse-lhe a meia voz:
—Está lá baixo uma pobre, que pede uma esmola a v. ex.^a.
—Que impertinencia!—exclamou ella, carregando o sobrôlho com gesto d'enfado.—Pois dê-lhe lá uma esmola, Francisco.
O sr. abbade, que ia para beber o ultimo gole de café, ouvindo aquillo, suspendeu a chicara no ar, e accudiu do lado, com modo insinuante:
—Isso! Costume-os, sr.^a viscondessa—dizia elle, meneando pausadamente a cabeça—costume-os mal, e verá que lhe não largam a porta!
Bateram as tres badaladas do meio dia na torre de Santa Eufemia. Os rapasinhos, que frequentavam a aula regia do José Sabino, começaram a sahir, com as lousas pendentes do pescoço e os livros debaixo do braço. O mestre escola esteve um instante á porta, a recommendar-lhes, com tom de voz ameaçador:
—Ora olhae agora se ides direitos e quêdos para casa, se não…
E agitava na mão pennujenta o junco punidor.
Emquanto o olhar austero do mestre os alcançava, bem iam elles, todos muito direitos, dois a dois, de mãos dadas, como uma leva de degredados; mas, apenas o caminho voltava para a direita, e entre o mestre e os discipulos ficava uma sebe muito alta e espessa, que os abrigava, adeus! corria tudo em debandada, como abelhas que irrompem d'um cortiço!
Eu, então, gostava immenso de ver a pequenada assim, a correr, a saltar, a rir ás gargalhadas, escalando os muros, invadindo os campos, como uma horda de vandalos terriveis. Só me custava ver, no tempo defeso, quando elles trepavam pelos castanheiros, para ir lá cima roubar entre os ramos as ninhadas dos passarinhos.
Assim que chegava o mez do S. João aquella enorme figueira do passal apparecia toda carregada. E os ramos que ficavam eminentes sobre o cunhal do muro, até vergavam para fóra, para o lado do atalho, com o peso dos figos!
Era um fartote para os pequenos!
O mais dextro marinhava pelas fendas do muro, escachava-se n'um galho mais consistente da arvore, e de lá ia atirando para baixo os figos maduros, a que podia chegar.
E o bonito era ver o abbade, o bom velho do abbade, que desatava a rir muito satisfeito, quando a criada lhe referia indignada o assalto dos pequenos.
—Coitaditos!—dizia elle—Ó Anna, quem me cassára a mim no tempo em que eu fazia o mesmo ás macieiras do parocho da minha terra!
De uma vez que os surprehendi na figueira do passal, lembrei-me com saudade de um assalto que eu dei tambem—vae isso ha um bom par d'annos!—a uma cerejeira…
Eu conto a historia:
* * * * *
Já me pennujava o buço; e como tinha a vida menos canceirosa e o sangue na guelra, dei em frequentar os theatros e em lêr romances! Foi a minha perdição! Por um capricho da sorte, quasi todos os romances falavam de janotas que se perdiam de amor por actrizes. De uma vez até se me deparou um dialogo entre Alexandre Dumas e outro escriptor francez. Dizia assim:
—Parece incrivel, Alexandre, que em Pariz andem cincoenta rapazes doidos d'amor por actrizes.
—Parece incrivel—oppôz o Papá Dumas, que era peccadoraço vezeiro n'este particular—que haja cincoenta que o não estejam!
Vão lá dizer-nos que tudo aquillo é ficção!
A gente principia a lêr romances e tem logo vontade de realisar na vida o que elles nos referem. Todos queremos ser Antonys, Werthers, Camors, Armandos…
Nos bastidores do theatro Baquet levantei eu o altar para o sacrificio do meu coração. Principiei a entabolar relações com os actores comicos,—que a gente se persuade estão sempre a rir, e que, por via de regra, são os mais sorumbaticos cá por fóra,—depois com os tyrannos e os galãs. Era isto indispensavel a um noviço, que, mais tarde, tivesse de cahir apaixonado aos pés mimosos de qualquer actriz sentimental.
Eu então tinha gosto e geito para o namoro—diziam-me os amigos! E esta fama veio de me ouvirem improvisar um madrigal á mais gentil e talentosa actriz d'esse tempo.
Estava eu á porta do camarim do Dias, que tem um filho chamado Josué. Como durante o espectaculo a actriz não tivesse correspondido á impertinencia dos meus olhares frechados por um binoculo, quando ella passou, voltei-lhe as costas e não a cumprimentei. Vejam que despeito!
Chegou-se ella ao pequenito, acariciou-o, e disse-lhe, a sorrir:
—Tu não voltas a cara á gente, não Josué?
E fitou-me com ar insinuante.
—Este Josué—accudi eu, soprando uma espiral de fumo do charuto—parece-se agora com o Josué da Biblia.
—Porquê?—perguntou Dias.
—Faz parar o sol!
Explendido!
D'ahi por diante, uns sujeitos que hoje são mais felizes e mais tolos do que eu, vinham pedir-me phrases para elles improvisarem á passagem das requestadas.
Chegou de uma vez, em meado de abril, uma companhia de zarzuella.
Ás primeiras damas não falava eu. Qual! Essas, via-as eu passar pelo braço d'uns figurões de bigodes espessos e suissas grisalhas, cabellos lustrosos puxados para as temporas, com ares serios e graves de diplomatas.
Eu só conhecia as comparsas, as que faziam de soldados rasos na Marina, de nymphas no Joven Telemaco, de camponezas na Catalina, e que no Relampago dançavam o tango, vestidas d'encarnado, com os rostos farruscados a fingirem pretos!
D'entre ellas havia uma, a Consuelo, que era muito formosa, muito elegante, e que eu preferia ás outras. Ainda me parece que a vejo, quando ella passava no meio dos adoradôres, saracoteando os quadris, o peito ancho, o tronco descahido para traz, na cintura, e a cabeça levantada e oscillante, como a cabeça esbelta d'um cavallo andaluz. Tinha os olhos pretos, humidos e azougados, que é como o povo diz d'uns olhos que teem a sclerotica levemente azulada, os labios côr de cereja, um pescôço de garça, como o dos retratos da Marie Antoinette, e um pé tão pequenino, gracioso e arqueado, que inspirava desejos de lhe dizer com o nosso Padre Manoel Bernardes: «Dá-me limpeza grande nos meus labios para calçar teus pésinhos de mil osculos santos!»
Ás vezes, tinha momentos de uma tal melancolia, de tão profunda magua, que me deu vontade de lhe saber a causa. Encontrei-a uma noite de beneficio, sósinha, a cantar a meia voz esta seguidilha:
En un ameno bosque
Mi niña duerme,
Cuidado, pajarillos,
No se despierte.
Decid al viento
Que mientras ella duerme,
Que sople quedo.
E ficou depois muito triste, encostada á porta do camarim, com os olhos fitos no bico de gaz, que se abria trémulo como o leque febril d'uma hespanhola. Tanto indaguei e com tão sincera simpathia o motivo d'aquella tristeza, que cheguei a sabel-o um dia.
Coitadinha! Consuelo era filha d'uns saltimbancos. A mãe—que já tinha morrido—dançava na corda bamba, o pae fazia jogos malabares, prestidigitação, sabia lêr a buena-dicha e era um tenor excellente em barracões de feira. Uma irmãsita mais nova, a Conchita—oh! que linda!—essa dançava boleros e fandangos, no meio das praças publicas, sobre um tapete esfarrapado, ao som de um tambôr, que o pae rufava para attrahir a multidão.
A Consuelo, com as mãos fincadas nos quadris, a cabeça levantada, e a sorrir, cantava malagueñas, emquanto o pae agitava uma pandeireta byscaia com soalhas de latão!
Como era bonita não lhe faltavam galanteios e bravos.
—Alza—Olé! olé! gritavam os espectadores, batendo as palmas—Alza, Consuelo!
Logo depois que a mãe morreu, principiou a ir lá por casa, emquanto o saltimbanco estava na taberna, uma velha esqualida a induzir a Consuelo que fugisse ao pae e que fosse para uma companhia de zarzuella, que um emprezario rico ia organizar. Tanto a velha lhe prégou, e sempre com prendas, com ramos de violetas e Que guapa que és! Caramba! que serás feliz! que a pobre rapariga, uma fria manhã de nevoeiro, levantou-se da cama, foi, pé ante pé, beijar a Conchita, que ainda dormia, e fugiu!
Vejam que desgraça!
Afinal, de terra em terra, de desillusão em desillusão, sem um raio benefico de esperança, que lhe fulgurasse na negrura da sorte, veio a Consuelo parar a Portugal!
—Hoje—disse-me ella—não me contentava o oiro, nem as palmas, nem nada! Trocaria tudo, por vêr meu pae e a minha Conchita!
E a voz trémula embargou-se-lhe na garganta suffocada pelas lagrimas!
—Mas que canção é essa que a faz entristecer?—perguntei eu.
Era uma canção popular, com que a mãe da Consuelo embalava nos braços a
Conchita, quando era ainda muito pequenina:
En un ameno bosque
Mi niña duerme,
Cuidado, pajarillos,
No se despierte.
Antes tres dias de partir a companhia para Sevilha, eu e uns amígos offerecemos a Consuelo um jantar, no campo, debaixo d'uma ramada.
Era pelos ultimos dias de maio.
Tinhamos partido de madrugada, emquanto as gottas do orvalho tremeluziam nas encostas floridas, para fugirmos ao calôr intenso do meio-dia.
A verdura tenra dos prados ondulava serenamente á mercê da viração fresca da manhã.
Quando a estrada costeava o sopé d'uma colina, nós saltavamos da carruagem e seguiamos então a pé, cortando a eito pelos atalhos, atravessando por meio de campos de milho e de extensos trigaes, abrigados pela sombra das carvalheiras, onde chilreavam os pintasilgos e rouxinoes.
Ás portas dos curraes encontravamos ainda as vaccas sahindo pausadamente para o pascigo. Na residencia do sr. abbade via-se o muro do passal coberto de trepadeiras; e por baixo do peitoril d'uma janella, n'uma gaiola de canna pendurada na parede, assobiava um melro.
Consuelo ia encantada!
O ar fresco, puro e sadio do campo abria-lhe appetites selvagens e contraditorios.
Ás vezes desejava ser como o boi manso, que vae pastando tranquillamente, n'um bosque, á beira d'agua corredia; outras, então, queria antes ser como a pôtra que se avistava, ao longe, n'um extenso prado, correndo, com as crinas esparsas, aos pulos, sobre os giestaes floridos!
Ao passar pelos silvados, Consuelo colhia as amoras maduras, e comi-as com soffreguidão.
Ao cabo de um quarto de hora de caminhada, avistou Consuelo, no fundo d'uma ladeira, que descia para um pomar, uma cerejeira carregada de fructo.
—Cerejas!—exclamou ella.—Ai! eu quero cerejas!
Descemos todos ao pomar; e então eu, que era o mais aldeão, trepei pela arvore acima, até aos ramos mais altos.
Consuelo ficou em baixo para aparar as cerejas. Os primeiros dois pés que eu lhe lancei, collocou-os ella sobre o pavilhão dos ouvidos, como dois brincos. Ficavam-lhe como duas contas enormes de coral! Em seguida apanhou na ponta dos dedos a roda do vestido, á frente, e disse-me que atirasse para ali as cerejas que fosse colhendo.
—Lá vae, Consuelo!—gritava eu de cima!
—Venham—dizia ella.
E, fechando os olhos, retezava e repuxava o vestido para as aparar ali todas.
Já Consuelo tinha uma bôa regaçada, quando, de repente, ouvimos, ao longe, uma voz trémula, que cantava assim:
En un ameno bosque
Mi niña duerme;
Cuidado, pajarillos,
No se despierte.
Consuelo foi deixando, pouco a pouco e quasi insensivelmente, cahir o vestido, cahir as cerejas, cahir os braços; e ficou a olhar para mim, com a cabeça erguida, na immobilidade de uma estatua.
Eu, que estava nos ultimos galhos da arvore, em ponto eminente, ainda pude alcançar a estrada.
E vi, então, sahir d'uma taberna, que se abria, uma companhia de saltimbancos.
Ia atraz um velho, vestido de malha, com lentejoulas, que relusiam ao sol. Levava, pela mão, uma pequenita, com uma saia curta de cambraia muito suja e remendada. O saltimbanco caminhava devagar, com a cabeça descahida para o peito, os olhos no chão, a cantarolar:
/*
Cuidado, pajarillos,
No se despierte…
*/
Depois, quando desci os olhos para a Consuelo, que permanecia em baixo, como estarrecida, vi-lhe á flôr das palpebras duas lagrimas enormes, que tremiam, como duas gottas d'orvalho nas pétalas d'uma rosa!
Até a natureza se enfeita para festejar tambem o Natal do Deus-Menino!
Ao meio dia, quando o sol parece estacionar no zenith, como um viajante que pára no viso de uma montanha, para resfolegar da caminhada, estava o firmamento azul, de uma limpidez crystalina, tépido o ar, e d'entre as flôres silvestres dos prados e das encostas ascendia uma tenue vaporisação, como se a terra fosse um enorme thuribulo a incensar para o céo!
As vaccas descançavam nos curraes, os rebanhos nos redis; e, á sombra das arribanas, viam-se os carros com os cabeçalhos caídos, os arados com as rabiças por terra, e as cangas, os ensinhos, todo o utensilio da lavoura deposto a um canto, como armas valentes do trabalho nas feriadas e alegres horas do descanço.
As moças iam colher arregaçadas de violetas e rosas para inflorar o presépe. Nas cosinhas andava tudo n'uma roda viva! Tirava-se da arca a melhor toalha de linho, a melhor louça da copa, e punha-se na mesa que nem um palmito! Até o balaio do pão estava aberto e franco; porque não havia de haver pobresinho que fosse da porta sem a consoada!
E o presépe? Aquillo podia-se ver! Á frente, deitado sobre as palhas de um estabulo, via-se o Menino, de barriga para o ar, nusinho em pellote, a sorrir para Nossa Senhora, que o contemplava, de joelhos, com o radiante jubilo das mães. Da outra banda estava S. José com a enxó e o martello de carpinteiro postos ao lado. Mais atraz, uma vacca malhada fitava no Infante os seus grandes olhos redondos; e um jumento lanzudo, de orelha empinada, aproximava cubiçosamente o focinho, dilatando as ventas ao cheiro fresco da palha. Pelos atalhos da encosta, desciam á frente das bailadeiras, os pastores de Bethlem, um a soprar na gaita de folles, outro a rufar no tambor, outro a bater as castanholas. No cabeço do monte, appareciam já os tres reis magos, S. Balthazar, S. Belchior, que é o rei preto, e S. Gaspar; e todos elles cobertos de capas de arminho, com as corôas reluzentes, e montados em cavalos baios e russos, ajaezados de ouro e pedrarias. No cimo de tudo, entre nuvens, surgia uma pomba branca, de cujo bico côr de rosa se espargiam raios de luz celestial, que vinham aureolar o berço do Deus Menino! Era uma coisa rica!
Em volta do presépe, a pequenada cantava alegremente:
/*
Ó Infante suavissimo
Vinde, vinde já ao mundo…
*/
E interrompiam o cantico para correrem á porta a ouvir as raparigas da visinhança, que entoavam em côro:
/*
Vimos dar as boas festas
Á senhora morgada
E pedir-lhe que nos mande
Já a nossa consoada.
*/
Pois não? Lá entra aquella tropa fandanga na cosinha para ajudar a fazer os mexidos e a apurar as rabanadas com mel e vinho quente! Uma folia, que era mesmo um regalo ver!
Antes de se ir para a mesa, contaram-se os convivas; que não fosse chegar-se ao numero treze, e não houvesse mais alguem! Crédo! O numero treze é numero aziago! Estando treze pessoas ao jantar, no praso de um anno, tem de morrer uma. E deixem lá fallar quem falla, e quem diz que são historias! Até Alphonse Karr confessa que não gosta de jantar em mesa de treze pessoas!
—Tambem esse?—pergunta circumspectamente a sr.^a morgada, sem ter o gosto de o conhecer.
—Podéra, minha senhora!
—Então, vá vendo!
—Mas—atalha o sceptico—diz que não gosta de estar á mesa de treze pessoas, quando o jantar chega só para doze.
—Ah!—exclamou a companhia—olha o démo do homem!
Quando todos procuravam o seu logar respectivo, exclamou alguem:
—E o tio Simão?
—Ai! que falta o tio Simão!
E cada um se desculpava com o proximo.
—Esta gente traz a cabeça a juros!—exclama a senhora.
—Já viram? Ir-se jantar sem o velhinho!
—Quem chega aos açudes chamar pelo Simão?
—Vou eu.
—Eu vou.
—Eu tambem.
Afinal, vae tudo.
As raparigas ergueram-se todas de uma vez e deitaram a correr! Parecia mesmo uma revoada de pombas mansas, que ouvissem estoirar ali perto um tiro de espingarda! Fugiu tudo!
* * * * *
Morava o tio Simão da outra banda do rio. Tinha uma casita de telha vã, com o seu palminho de terra plantado de horta. Contava 75 annos, mas rijos, e tão rijos, que o deixavam ainda atravessar as poldras, todos os domingos, quando vinha jantar a casa da sr.^a morgada. Fôra elle casado, e tivera tres filhos; mas chamou Deus a si os tres filhos e a mulher, e deixou-o sósinho n'este mundo, a viver da caridade dos seus bemfeitores.
De uma vez que estava sentado ao sol, que—como diz o outro—é a roupa dos pobres, viu aproximar-se um cão amarello, pequeno, feio, rabudo, com duas malhas na cabeça. O Simão atirou-lhe pão; e, tanto que lhe foi dando de comer, conservou-se o cãosito junto d'elle. Depois já ninguem o retirava dos pés do seu bemfeitor.
Para quem vive sem companhia vejam lá que alegrão é encontrar junto de si um pequenino animal, que nos vê com olhos cheios de desinteressado carinho! Ficou o cãosito sendo o companheiro do tio Simão. Como viesse sem nome, que é como apparecem os engeitados, o tio Simão baptisou-o.
—Fiel!—exclamou elle—Fiel, anda aqui.
E aproximava-se o Fiel do velhinho, com a obediencia affectuosa de um filho amado. Para onde fosse o Simão ia o Fiel.
Assim que o sol lhe bateu no postigo—que era ao meio dia que tinha logar a visita—o Simão enfiou a jaqueta melhor que tinha, pegou no cajado a que se arrimava, chamou pelo Fiel, deu volta á chave e encaminhou-se para a residencia da morgada. Quando ia a poisar o pé na primeira pedra, viu o Fiel, que ia na frente, resvalar na pedra escorregadia, e cair ao rio!
O Simão recuou cheio de susto, de afflicção, com as mãos postas em supplica. O cão principiou a nadar para o seu dono; mas ia tão grossa a levada, que o não deixava vencer a corrente. Depois de muito esforço, conseguiu afinal abordar; mas todo alagado, a tremer, a ganir, com o corpinho coberto das contusões, que tinha recebido do embate das pedras.
—Anda, Fiel, anda, meu filho—dizia o pobre velho a chorar.
Tomou o cãosito nos braços, achegou-o do seio, e desandou para casa. No caminho ia dizendo:
—É o mesmo! Farei eu o caldito, que ha-de chegar para nós ambos!
* * * * *
As raparigas, que tinham saído da casa da sr.^a morgada, iam já perto do sinceiral do rio, e não tinham ainda visto o Simão. Desceram por uma vereda; e, quando chegaram á margem, gritaram algumas:
—Ó tio Simão! eh! tio Simão!
Ninguem lhe respondeu.
—Vamos topal-o em casa—propoz a mais expedita.
Arregaçaram as saias; e, pé aqui, pé ali, atravessaram cautelosamente para a outra banda.
Ao chegarem a casa do tio Simão, aldrabaram á porta; e a que bateu não ouvindo o ladrido do cão, exclamou para as companheiras:
—Querem vocês ver que o tio Simão já foi? O Fiel não dá signal!
Ao cabo de um instante, porém, appareceu o velhinho a abrir-lhes a porta. E Jesus! que gritaria! Fallavam todas a um tempo, e ninguem as entendia.
—Aposto que estava a ajanotar-se!—dizia uma.
—Ora, já viram? acudia outra. Como vae para o meio das moças, o tio
Simão enfeitou-se que nem um altar-mór!
—Hoje deita os rapazes todos a um canto! Olha, véstia nova, hein?!
E emquanto lhe diziam isto, uma ageitava-lhe a gola da jaqueta, outra laçava-lhe o lenço do pescoço!…
Quando conseguiu que ellas o ouvissem, o velhinho respondeu:
—Digam vocês á sr.^a morgada que hoje não vou lá.
—Como não vae, tio Simão? Dia de Natal e não ha-de ir? Isso tem lá logar!…
Elle então contou-lhes o que tinha havido.
—Ora, adeus. O Fiel o mais que tem é nada! É um mimalho, é o que elle é. Deixe que eu lá vou.
Entraram todas para ver o que tinha o Fiel. O cão estava deitado na enxerga do Simão, abafado com o cobertor da cama, a tremer.
Uma das raparigas tirou-o para fóra, enxugou-lhe o pello com geitoso carinho, embrulhou-o no avental e disse:
—Eu levo-o comigo, coitadinho!
Na lareira já cantava a panella, que estava sobre quatro achas accezas.
O tio Simão, que assistia a tudo aquillo com lagrimas nos olhos, disse:
—Deus vos pague no céo, minhas filhas, os beneficios que fazeis a este pobre velho.
Tornou a pegar no cajado, que tinha ao canto, e foi com as raparigas.
Como elle ia alegre, direito, valente no meio d'ellas!
Os visinhos diziam-lhe:
—Ó Simão, deram comtigo as moças, estás arranjado!
E elle fartava-se de rir como um perdido!
Outros, quando viram o Fiel no collo da moça, perguntaram com malicia:
—Ó menina, onde é o baptisado?
* * * * *
Ao cair da tarde, o velhinho voltou para casa. Vinha vermelho, e caminhava depressa, aprumado, como um rapaz. Como até vinha a cantarolar pelo caminho:
/*
Eu entro já na lapinha
Pois me não posso conter,
Porque a sua formosura
Me enche de gosto e prazer.
*/
Um visinho que o viu passar, disse comsigo:
—Hoje o Simão leva o seu grãosito na aza!
Á frente, o Fiel, ia seguindo pela estrada, voltando-se constantemente para traz, com medo de que o dono lhe fugisse, e se deixasse ficar com as raparigas!
E, então, o Fiel ia tão alegre, tão bom, tão esquecido do banho, que até já ladrava ás pernas dos transeuntes! Era um tiranno!
Quando entrei no cemiterio, lobriguei, ao fundo, por entre a rama de alguns cyprestes, que orlavam as ruas transversaes, o coveiro a levantar as ultimas pazadas de terra de uma valla.
O homem cantarolava assim:
/*
Menina, que está á janella,
A lançar goivos á rua…
*/
E, depois, agachado no cairel, media com o cabo da enxada a profundidade da cova, proseguindo alegremente:
/*
Se o coveiro aqui passa,
Vae pôr-lh'os na sepultura.
*/
Metteu a pá da enxada na leiva de terra, que lhe ficava ao lado, transpoz o comoro de outras sepulturas, e parou junto de um esquife pobre, de pau, sem fôrro, com os symbolos da morte pintados d'amarello.
Arrastou-o com esforço para a bôca da valla, escancarou as tampas; e, ao dar com o rosto do cadaver, exclamou de si para si:
—Ora espera! Eu conheço esta rapariga!
Entreabriu os labios com a unha do dedo polegar, concentrou-se um instante a meditar com os olhos fechados; e, por fim, continuou compadecido:
—Ah! És a Rosita do tecelão!
Á medida que retirava com geitosa piedade o cadaver do esquife, lamentava:
—Pobre rapariga! Eu logo vi que te não delatavas atraz da filha!
Depois, o resto foi rapido e breve.
Baldeou o cadaver ao fundo da cova, lançou-lhe por cima a terra que tinha levantado, recalcou bem com os pés juntos os ultimos torrões, e retirou-se para casa, com a enxada ao hombro!
* * * * *
Ahi vae lêr-se a historia d'essa mulher. A sua vida é a vida trivial de muitas desgraçadas.
Quando tinha apenas desoito annos, Rosa chorou as primeiras lagrimas do coração retalhado sobre o cadaver da mãe, que lhe expirou nos braços.
Ficava sósinha no mundo, a viver pobremente do seu trabalho honesto e incessante, sem uma voz consoladora que a alentasse a arrostar todas as adversidades, que a sorte lhe havia de deparar.
O grande perigo estava-lhe na peregrina formosura do rosto e na innocencia do coração, que é a formosura da alma.
Um dia o Benjamim tecelão, um rapaz alegre e bem parecido, que de ha muito lhe arrentava a porta, disse-lhe que a amava; e, para justificar a sua declaração, propoz-lhe com voz trémula a sua mão d'esposo. Mentiu-lhe.
Ao cabo de onze mezes, durante os quaes o tecelão ia inventando embargos á realisação da sua promessa, a pobre rapariga deu á luz uma filha. As primeiras alegrias da mãe deram tréguas ao sofrimento do coração ludibriado. A filha chamava-se Isabel, que era o nome da mãe de Rosa.
Depois, quando as lagrimas lhe rebentavam copiosas, Rosa tomava a creancinha nos braços, e um sorriso d'ella era-lhe um grato refrigerio para as amarguras da vida.
O operario entendeu que a filha era um vinculo mais apertado do que a estola d'um sacerdote. Propoz a vida em commum. Rosa accedeu de prompto, fiada em que o amor de pae talvez despertasse na consciencia de Benjamim a ideia do casamento, que a rehabilitasse.
O tecelão, vendo que o trabalho de Rosa bastava ás despezas da casa, deixou-se ficar uma semana sem ir á fabrica. Quando a ociosidade lhe era tediosa, ia procurar distracção na taberna mais proxima. Voltou de novo ao trabalho; mas o seu producto dispendia-o comsigo e com os amigos, ás mesas das tabernas e ás bancas do jogo, esquecendo-se de Rosa e da filha. Aconteceu Rosa adoecer da muita fadiga, e pedir algum dinheiro a Benjamim. Não teve elle coragem de lh'o negar; mas entregou-lh'o de um modo tão aspero, que offendeu o coração da desventurada mãe.
Foi ahi que principiou o calvario de Rosa!
Benjamim entrava em casa, por altas horas da noite, cambaleante e obsceno. Atirava quantos insultos lhe lembravam ao rosto da rapariga. Rosa amparava-o com brandura, soffria-lhe os escarneos com a mais santa resignação, auxiliava-o a deitar-se; e, depois, quando Benjamim, com os cabellos em desalinho, o rosto descórado, resomnava, prostrado com o peso da embriaguez, ella quedava-se a contemplal-o, com as faces cobertas de lagrimas.
O viço da sua formosura ia pouco a pouco desapparecendo. Já não tinha o mesmo brilho nos olhos, o mesmo setim na cutis, a mesma ondulação nos contornos do rosto. As lagrimas deixavam um vestigio indelevel da sua passagem, e Rosa envelhecia e esfeiava.
Benjamim, ao accordar do dia seguinte ao da embriaguez, sentia-se enfastiado da presença d'aquella velha, e sahia de casa sem lhe dirigir uma palavra de gratidão e carinho!
De uma vez—tinha Isabel sete annos—o tecelão chegou a casa n'um estado lastimoso. Dois amigos e consocios de taberna levaram-no nos braços, até á porta. Benjamim subiu a custo os degraus ingremes da escada; abriu de repellão a porta da sala, e appareceu hediondo, a tremer, com os olhos injectados, os labios convulsos, os cabellos empastados de um suor viscôso. Fez um esforço para se aproximar de Rosa. Estendeu os braços para se arrimar á parede; abriu as pernas para conservar o equilibrio; e, ao arriscar vacillante o primeiro passo, cahiu de bruços, com todo o peso do corpo, sobre o pavimento!
Isabel, que já dormia, acordou sobresaltada com o estrondo da quéda, e principiou a gritar de medo! Benjamim ergueu-se de golpe, dirigiu-se á enxerga, em que dormia a filha e espancou brutalmente a pobre creança, que emmudeceu de terror aos primeiros tratos. Accudiu Rosa, implorando com altos brados a Benjamim que perdoasse á filha; mas o bebado respondia ás supplicas da mãe com pancadas e empuxões.
Ao outro dia, a Isabel tinha o corpinho tão macerado, que mal se podia remover da cama. Rosa levantou-a carinhosamente nos braços, agasalhou-a n'umas saias de baeta, e, logo que o tecelão sahiu de casa, foi com a filha ao hospital da Misericordia. O facultativo, que observou a creança, viu, atravez das lagrimas da mãe, a causa d'aquellas contusões. A pequenita estava muito doente.
Ao terceiro dia, a filhinha chamou com voz debil pela mãe, pediu-lhe que se sentasse na enxerga, bem junto d'ella, encostou-lhe a sua loira cabecinha no regaço, e disse-lhe:
—O pae é muito mau! E a mãe chora tanto! Se eu morrer, hei de pedir a
Nossa Senhora que leve a mãe para junto de mim; quer?
Rosa não respondia, porque os soluços, que lhe estalavam o peito, lhe embargavam a voz.
A Isabelinha então, já com a vista turva, e a bocca entreaberta, lançou os braços ao pescoço da mãe, para a achegar mais de si, estremeceu da derradeira convulsão e… expirou!
Ao cabo de um mez, durante o qual o padecimento de Rosa fôra horrivel, o mesmo coveiro que enterrou a filha, abriu ao lado outra cova para receber a mãe.
* * * * *
O rosto d'aquella mulher, magro, livido, macerado, tinha a impressão indelevel das torturas por que passára. Não havia n'elle as contorsões da agonia dos delinquentes, que morrem convulsionados pelo terror de um castigo eterno. O derradeiro alento entreabriu-lhe nos labios um sorriso de bemaventurança!
É como ficam as creaturas, santificadas pelo martyrio, e que esperam na morte a hora do seu resgate!
E quem diria—pobre creança!—que tinhas apenas vinte e cinco annos, e que foste formosa, e que te julgaste feliz no dia em que poisaste pela vez primeira os labios convulsos de alegria na face côr de rosa de tua filha!?
E saber-se que o martyriologio é com certeza o unico elogio funebre de tantas desgraçadas como Rosa!
E Benjamim?
Benjamim, aquelle homem que seduziu impunemente uma mulher e que matou impunemente a filha, prosegue inflexivel na vida crapulosa, dominado pelo vicio da embriaguez, em que tem perdido, pouco a pouco, o vigor e a vida de todas as faculdades, a saude, a honra e a propria dignidade de um ser humano!
Resa a Folhinha que é a 26 de fevereiro o dia de S. Torquato—santo guerreiro, que recebeu na face esquerda um golpe d'alfange mahometano, em guerra de christandade;—mas a grande romaria tinha sempre logar ahi pelo meado de junho.
Fica a ermida situada em vasta esplanada, no alto de uma collina.
Logo ao romper d'alvorada, pelos atalhos da encosta vinha subindo a turba-multa dos romeiros foliões. Ha cinco annos, como estava um dia de muito sol e de grande calor, era bonito ver o rancho dos lavradores, que vinham abrigados debaixo dos enormes guarda-soes de paninho escarlate. Aquillo é por luxo! Olha quem! Elles que andam todo o santo dia do trabalho, no meio dos campos, a sachar, a lavrar, a podar, expostos á torreira, teem lá medo do calor! Pois assim que chega um dia de festa, fingem-se mimosos e abrem então os seus guarda-soes. Outros que são mais francos, nem sequer os abrem; qual! mettem-nos debaixo do braço assim como quem abrange um molho de varetas de baleia com paninho encarnado, e lá partem alegres para a romaria.
No logar do arraial havia arcos de buxo com flores, fluctuavam as bandeiras no topo dos mastros, estalavam no ar os foguetes de tres respostas; e, de quando em quando, para que a folia não arrefecesse nos animos, rebentava um morteiro, que atroava por todas aquellas serranias. Então, via-se uma revoada de passarinhos, que fugiam para longe, espavoridos pelo estrondo!
Por detraz da ermida ficava uma alameda, e era da alameda que se gosava um panorama delicioso.
Ainda me parece que estou a ver de aqui os excellentes campos de milho já maduro, as searas do trigo douradas do sol, e em alguns campos, como o trigo viera temporão, e já tinha havido a sega, apparecia apenas a resteva; dos ramos dos ulmeiros, pendiam as vides d'enforcado, e, àquem e além, em alguma herdade de proprietario abastado, destacava-se da ramaria escura dos castanhaes as folhas de um verde tenro e alegre das latadas. Ao fundo, pelo corrego abaixo, seguia uma levada que ia mover ali perto as rodas de uma azenha.
No arraial alvejavam as tendas de lona, onde se vendia o vinho verde e o savel frito. Era ali que estava a grande animação!
—Beba um quartilho, tio José—offerecia um freguez.
—Pois venha de lá.
E então a peixeira, com os braços arremangados e farruscados da fritura, servia um coparrão de vinho espumante.
—Vae outro?
—Nada—accudia o tio José, enxugando os beiços ás costas da mão—nada; eu quero beber, mas a modos. Se um homem lhe bebe de mais, como o outro que diz acaba por beber o juizo.
Como havia missa cantada e sermão, ouvia-se cá fóra a musica do côro e o canto arrastado e nazal dos padres. Os devotos entravam e saiam constantemente. De uma vez, á porta lateral da sachristia que deitava para o adro, appareceu o sachristão vestido de batina escarlate com sobrepeliz franjada de rendas, a agitar o thuribulo de prata para atear mais o fogo do incenso! Não faltava nada!
Em meio d'aquelle povileo houve um movimento extraordinario! Os romeiros que estavam ao longe a admirar os musicos do palanque, acudiram tambem a ver o que se passava! Havia apertões, recuadas, empuxões e gritaria. Formaram-se de repente duas alas de povo, para abrir uma passagem respeitosa; e, n'isto, a berlinda da senhora morgada, que era a juiza da festa, appareceu então, tirada por dois cavallos possantes, com criados de libré, chapeus de tope e agaloados, rodando vagarosamente em direcção á porta da capella. N'esse momento solemne subiu ao ar uma girandola triumphante!
* * * * *
Quem nunca faltava á romaria de S. Torquato era a tia Custodia da Moita, que lá ia sempre com o homem e o netinho. Ninguem havia por aquelles arredores mais estimado e bemquisto. A sympathia que elles inspiravam vinha de serem muito amigos do proximo, tementes a Deus e ao mesmo tempo serem muito felizes!
Ora façam uma idéa do que elles soffreriam! Tinham tido uma unica filha, bonita moça, amiga dos paes; mas como era muito amoravel e não podesse ouvir chorar ninguem que não acudisse logo a consolar, deixou-se levar pelas lamurias d'um fidalgote de Braga e…
A innocencia, a bem dizer, se não é de todo cega, trata o amor de lhe vendar os olhos!
No fidalgo—são baldas certas!—ao cabo de um mez de apaixonados amorios, nunca mais ninguem lhe tornou a pôr a vista em cima. A desgraçada rapariga não teve mão em si, e confessou tudo á mãe. A velhinha chorava, que era uma dôr de coração ouvil-a.
—Vocemecê anda doente?—perguntavam-lhe as visinhas.
—Não ando lá muito boa, não.
—Vá ter com o cirurgião, tia Custodia.
—A doença que eu tenho, filha—oppunha ella—são paixões d'alma, e não se curam na botica!
Decorridos alguns mezes, a rapariga expirou, depois de ter deixado no collo da mãe uma creança recem-nascida.
Ora vejam! Desgraças que acontecem!
Vae para tres annos que o mez de Dezembro foi para este pobre paiz um mez de calamidades! Ainda toda a gente se recorda com magoa d'aqueles dias e noites tempestuosas, em que a chuva caia copiosa e torrencial, levantando os rios do seu leito, alagando os campos e destruindo as sementeiras! Na manhã seguinte a uma d'essas noites terriveis, doia o coração a quem fosse pelas aldeias e visse tantos estragos do temporal. Uns riachos, que no verão parecem uma fita d'agua, que serve apenas de bebedouro ao gado, tomaram taes proporções, era tão forte a sua corrente, que levavam adiante de si as rodas dos moinhos, os telheiros, as arvores, o gado, tudo! Era uma desolação completa! Á porta dos curraes ficavam os pastores toda a noite de guarda com receio de que as enxurradas lhes levassem os bois e os rebanhos. De dia, encontravam-se os lavradores á entrada dos campos, a contemplarem pesarosos tamanhas ruinas; e alguns, com os braços cruzados, meneando tristemente a cabeça, exclamavam, abatidos pelo infortunio:
—Ora ahi está tanto trabalho perdido!…
Depois da chuva e das trovoadas vinham então as lufadas asperrimas do norte. Parecia mesmo que era castigo! A ventania varejava impetuosamente nos ramos nús do arvoredo; e, se algum sobreiro mais valente, que se tinha arreigado mais á terra, tentava resistir, soprava de rijo um pé de vento, arrancava-o, como se lhe mettesse pela raiz uma pá de ferro e… derribava-o! Imagine-se o que succederia ás arvores mais tenras!
A tia Custodia da Moita trazia arrendada a quinta d'um proprietario do Porto. Assim que chegava o mez das colheitas, a Custodia ou o marido vestiam-se com o fato domingueiro e iam á cidade pagar a renda. E que se não dilatassem muito tempo: quando não, era logo uma carta do senhorio ameaçando-os de os pôr fóra. Morava elle na Reboleira, uma casa de apparencia ordinaria, com uma escada muito ingreme, suja e pouco allumiada. Os caseiros encontravam-o sempre a passeiar ao longo da sala, que deitava para o rio, com as mãos enfiadas nos bolsos d'um casacão de saragoça já velho e remendado. Até a Custodia dizia ás visinhas:
—Tão rico, o sr. Torres, e anda que nem um pobre de pedir!
O Torres era um celibatario, egoista, magro, esguio, nariz adunco, olhos pequeninos e vivos como os de uma ave de rapina!
Depois da invernia, a primeira vez que se chegou o mez da renda é que era vêr o Torres!
Entrou a tia Custodia, levando o netinho pela mão. Expoz ao senhorio a sua desgraça, pedindo-lhe que por essa vez lhe perdoasse ou diminuisse a renda.
—Adeus, minhas encommendas!—exclamava o avarento—De cantigas não como eu! Se vocemecê não quizer, não falta por lá quem me amanhe as terras.
Para encurtar razões, a pobre mulhersinha saccou da algibeira um embrulho, e entregou-o ao Torres. Eram dois pares de arrecadas e um grilhão de ouro.
—Só o cordão, meu senhor,—dizia a caseira—tem quatro moedas!
O Torres observou o ouro, sopesou-o na mão; e, fechando-o n'uma gaveta, disse:
—Pois bem! Quando me trouxer a renda, levará o penhor. Adeus! até ao verão.
Depois que a Custodia saiu, um visinho tendeiro dizia contristado:
—A pobre de Christo até ia a chorar; e o rapazinho de vêr chorar a avó, chorava tambem! Aquelle Torres, diabos o carreguem, é assim…
E mostrava a mão fechada, explicando:
—Um unhas de fome!
* * * * *
No anno seguinte não appareceu na romaria de S. Torquato a tia Custodia da Moita. Coitada! Como não queria confessar ao marido que tinha empenhado as arrecadas e o grilhão, fingiu-se doente, e não houve forças humanas que a tirassem de casa sem o seu ouro.
—Não que o seu homem—pensava a tia Custodia—se tal soubesse, e Jesus! era capaz de ir ter com o senhorio e fazer alguma desordem.
—O meu Joaquim?—accrescentava ella.—Boa! Tem sessenta e cinco annos; mas aquillo para armar uma bulha parece um rapaz!…
* * * * *
Post-scriptum.
Agora veja-se o bom e o bonito!
Ha poucos mezes os jornaes do Porto prantearam a morte do sr. Torres, capitalista abastado, philantropo e respeitado por todos os conhecidos.
Esqueceu a confirmação das victimas, a quem elle emprestava a 28 por cento!
Oh! mas era boa pessoa e caritativa, que até deixou o retrato á ordem do
Terço e duzentos mil reis para missas de doze vintens pela sua alma!…
Ao declinar do dia, pela tortuosa vereda que ia dar á estrada, seguia vagarosamente o tio Ambrosio, que voltava dos campos, com a enxada ao hombro. Como áquella hora silenciosa estava o caminho deserto, ouvia-se-lhe de longe o bater compassado e sonoro dos tamancos nas pedras da calçada.
Logo adiante do carvalhal, e antes de chegar ao cruzeiro confinante ao adro, ficava a taberna. Eminente sobre a porta estava pendente o ramalho verde de loureiro, que a viração fresca da tarde agitava, raspando-o pelo cunhal da hombreira. Da frincha das portas mal cerradas sahia para a penumbra crepuscular exterior uma restea de luz amarella, que se estendia pela estrada até ao talude saibrento, que murava o caminho do outro lado.
O tio Ambrosio endireitou com a taberna, impelliu uma das portas, e entrou.
Dentro, abancados em torno da meza, estavam já os parceiros da bisca. A taberneira, matrona de papeira, seio farto e braços arremangados, assistia á conversa, sentada a um canto, com os cotovellos fincados no balcão. Junto d'ella dormia pachorrentamente um gato maltez, zebrado, encolhido sobre as patas, como um novello. Á entrada de Ambrosio o gato ergueu repentinamente a cabeça e abriu os olhos espantados; mas, depois, como a visita lhe não fosse estranha, foi deixando, pouco a pouco, descahir a cabeça, fechou os olhos, e permaneceu na mesma posição, a resonar.
Ao lado de cada freguez havia um copo de vinho; e a luz da candeia, pendurada em cima, refrangendo-se na superficie do vidro, projectava, em torno de cada copo, um circulo sanguineo.
* * * * *
O tio Ambrosio de Candemil levava a vida airada a cantar e a beber! Tinha já sessenta annos, cabellos brancos que nem uma estriga córada, voz tremula, nariz rubro e verrugoso; mas que lhe sahisse a desafio a cachopa mais palreira, que elle saltava logo:
/*
Não sei que mal deu agora
Nas uvas do parreiral;
Faz-me cantar toda a noite,
Como os melros do olival.
*/
E depois, com a jaqueta lançada ao hombro, o chapéo derrubado para a nuca, ainda o Ambrosio cantava e foliava, como um rapagão de vinte annos.
Em idade tenra e menos canceirosa, arraial em que elle não apparecesse, era como se faltasse o prégador em festa de romaria! Esperava-se por elle até ao fim. Espreitava um d'aqui, outro d'acolá; e, quando na azinhaga apparecia o chapéo de sol de paninho escarlate, era logo uma gritaria:
—Ahi chega o tio Ambrosio.
—Olha que tal elle vem!
E o guarda-sol oscillava de um e de outro lado, roçando pelos silvedos, como a vela de um navio que bordeja á tôa, perdido o rumo!
* * * * *
O tio Ambrosio entrára silencioso na taberna, accendeu um cigarro ao pavio da candeia, e encostou-se a vêr jogar. Um dos freguezes fallou-lhe em sentar-se.
—Hoje não—oppoz elle peremptoriamente.
—Só uma bisca, tio Ambrosio.
—Já disse—insistia elle, chupando o cigarro.—Nada; que eu bem sei como o jogo é. Uma comparação: é como quando um homem trepa acima d'uma cerejeira, que, em tirando por uma cereja, vem logo uma mão cheia d'ellas.
Os outros, que já lhe sabiam a balda, calavam-se. O silencio contrariava-o Precisava que insistissem, para assim desculpar a consciencia. Ao cabo de dez minutos, atirava fóra com a ponta do cigarro, e dizia:
—Com'assim vá lá. Mas só tres jogos, e arrumou.
Espevitava-se o morrão da candeia, cedia-se o logar respectivo, e então é que era vêr a partida.
O jogo corria silencioso até quasi ao fim; mas, depois, o tio Ambrosio, com as cartas abertas em leque na mão esquerda, e com uma carta levantada na outra mão, olhava de soslaio o adversario da direita, e principiava:
—Ora ponha-me aqui a bisca, ainda que lhe custe.
E batia com a carta sobre a meza de um modo triumphante.
O do lado jogava uma carta de trunfo. E o tio Ambrosio a tremer, irritado, com o punho cerrado suspenso sobre as cartas, supplicava ao jogador, que tinha defronte:
—Recorte, parceiro, recorte.
—Recorte—repetia o outro por entre dentes,—recorte o quê? olhe.
E jogava a bisca.
O Ambrosio, então bebia de um trago meio copo de vinho, e exclamava desesperado:
—As cartas teem o demo!
No fim perdia o jogo; e, como os adversarios renovavam o vinho, e elle enchia o copo que lhe pertencia, perdia o juizo.
Havia já muito tempo que lhe era difficil topar na terra um parceiro amigo para a sueca.
—Adeus!—diziam-lhe elles, encolhendo os hombros.—Quando você pega n'um baralho, até parece que lhe dá o trangulomangulo. Coisa assim!…
O vicio da jogatina passou-lhe ao cabo d'estes repelões; mas, por desgraça, foi procurando no copo a distracção que lhe faltava no baralho. D'ahi em diante, diga-se em abono da verdade, o tio Ambrosio só cantava e bebia.
Canta que logo bebes, diz o rifão.
Com o tio Ambrosio, porém, mudava o caso de figura. Bebia primeiro, bebia depois, bebia no fim; e desatava a cantar que nem um rouxinol.
Ora, depois d'isto, em que tenho a gloria de ser o Plutarcho d'este heroe, vejam se andei mal, chamando-lhe Anacreonte de Candemil.
A distancia que vae de Ambrosio a Anacreonte mede-se pela que vae do tamanco transmontano á sandalia grega, das cêpas tortas d'Amarante aos vinhaes racimosos de Chios, das faldas agrestes do Marão ás formosas marinhas da Jonia, provincia das violetas.
* * * * *
Pelos primeiros dias de maio, antes das festas do Espirito Santo, o céo estava sereno e azul, as arvores frondentes, e na ramaria dos bosques gorgeiavam os melros. Havia flôres nos prados, flôres nas encostas, flôres por toda a parte. A natureza enfeitava-se como noiva graciosa que se prepara alegre para o festim dos esponsaes.
Pois, quando havia tanta luz, tanta vida, tanto amôr, gorgeios pelos ninhos e rosas pelos silvados, era triste pensar que alguem estava para deixar a vida!
Logo de madrugada o sr. abbade atravessou da residencia para o adro, antes da primeira missa do dia. O sino principiou a dar o signal do Senhor fóra.
E d'ahi por alguns minutos, o Viatico seguia por um atalho, ao canto plangente do Bemdito, entoado em côro pelas mulheres, que caminhavam atraz, acompanhando o Sagrado.
O pallio parou á porta da casa em que morava o tio Ambrosio de Candemil.
Dentro, sobre uma arca de castanho, revestida com toalha de linho, estava um crucifixo ladeado de duas tocheiras de chumbo. A um canto da sala, o velho Ambrosio agonisava reclinado no espaldar do leito. Não tinha na face a alegria expansiva dos ultimos dias, em que cantarolava na taberna. Estava pallido, os olhos amortecidos, as faces descarnadas, a bocca enviezada de paralytico.
Foi confessado e sacramentado.
O abbade abeirou-se lentamente do enfermo, com o ciborio nas mãos.
Preparou-o solemnemente para o trespasse.
Quando lhe ungia os labios com os santos oleos, murmurando as palavras do ritual:—Per istam unctiouem indulgent tibi Dominus quid quid delinquisti per gustum, o Ambrosio fincou os punhos na enxerga, ergueu-se com esforço e ancia, volveu os olhos em torno do leito, como quem desperta de um sonho, e inclinando-se para o abbade, perguntou-lhe com voz debil e convulsa:
—É vinho?
E descahiu lentamente para traz, com um sorriso de bemaventurado a radiar-lhe a fronte—como um justo que morre na esperança de encontrar na vida d'além-tumulo as adegas bem providas d'Amarante!
Talis vita, finis ita.
Á porta da azenha estava o macho íntonso, preso pelo cabresto a uma argolla da parede.
Emquanto o não carregavam voltava melancolicamente a cabeça para o lado, estendia o pescoço lanudo, e ia tosando uma moita de silvas, que murava o atalho.
De entre o ruido trémulo da mó e o marulho da levada, caindo do cubo nas pennas do rodisio, em baixo, ouvia-se gritar lá dentro:
—Anda d'ahi, que são horas. Avia-te.
Depois, appareceu á porta o moleiro, com o chapéo enfarinhado caído para o hombro esquerdo, segurando no hombro direito o taleigo da fornada. Vinha ainda a gritar:
—Despacha-te, rapariga. Mexe-te, filha.
E atirou com o folle para cima da besta. A moça veio depois, e carregou-a com um folle do outro lado. Atiraram-lhe em seguida a cilha para cima; e o moleiro com o joelho fincado na barriga do macho, principiou a apertar a carga, torneando o arrocho com esforço.
—Prompto! Põe-te já a caminho, que eu não me delato, Therezinha.
Apenas se julgou fóra do alcance da vista do pae, que se deixou ficar á porta, com uma perna cruzada sobre a outra, o chapéo braguez derrubado para os olhos, a vel-a subir a encosta, a rapariga saltou para cima do macho, ageitou-se no meio dos taleigos, e continuou pelo atalho acima, a cantar:
/*
Ao passar hoje no rio
Vi nas aguas o teu rosto;
Cuidei que ias na levada…
Ai! coração que desgosto!
E ao vêr o teu rosto ali
(O que são coisas do mundo!)
Cuidei logo que uma estrella
Tivesse cahido ao fundo.
*/
O moleiro voltou para dentro, a prover a moega de grão; enfiou depois a jaqueta de cotim axadrezado, calçou as sapatas ferradas, que tinha a um canto, fechou por fóra a porta da azenha, arrecadou a chave, e abalou na piugada da filha.
Assim que chegou a meio do atalho, cortou á esquerda por uma quelha pedregosa, atravessou por um carreiro, que costeava uma bouça; e, fincando as mãos no muro tosco de rebos, saltou de um pulo para o meio da estrada.
Corriam os primeiros dias de março.
Como tinha descampado, havia pouco tempo, os caminhos estavam lamacentos, sulcados pelas rodas dos carros; e nas terras baixas viam-se ainda as aguas da chuva empoçadas e cobertas de limo. O céo era de um azul crystalino, a atmosphera muito limpida; e, ao meio dia, quando o sol cahia d'alto nos prados, até parece que as rôxas previncas, as flôres amarellas do trevo e as margaridas, retraíam as corollas ao peso abafadiço do calor! Nos ramos folhudos dos carvalhos e dos pecegueiros, que já floreciam, os melros assobiavam alegres, e no fundo azul do firmamento destacavam-se duas borboletas brancas que voavam d'entre os silvados, subindo, subindo sempre, a tremer, n'um raio de sol doirado! Oh! era encantador!
O moleiro apenas escalou o muro tosco da bouça, parou um instante, collocando a mão sobre os olhos, como uma palla, para vêr se lobrigava a filha. A distancia de trinta metros a estrada volteava para a direita. Uma copada deveza de sobreiros, ao fundo, não o deixava enxergar para além. Por isso, foi continuando por ali fóra, apertando mais o passo, com os braços bamboleantes e a esbofar de calor.
D'um lado e d'outro, nos campos, fazia-se a lavoura. Duas juntas de bois castanhos, aguilhoados pelo lavrador, tiravam lentamente o arado, que ia levantando e revolvendo a leiva. Áquem e além, no declive do monte, d'entre a verdura tenra da enfesta, alvejavam as frontarias caiadas d'alguns casalejos, batidos do sol do meio dia. Era um calor de rachar!
D'um atalho, que ia dar á egreja, surgiu o sr. abbade montado na sua egua, oh! uma boa egua d'abbade, gorda, pacifica e mansa que nem uma ovelha. Sua reverencia vinha abrigado por um enorme guarda-sol de panninho azul, e o seu ventre redondo e farto oscillava pachorrentamente ao chouto pesado da cavalgadura.
—Ó José moleiro,—chamou elle com voz de papo.—Eh! homem! Tu vaes á cata dos francezes?
O moleiro descobriu-se respeitosamente, e, enxugando o suor da testa á manga da vestia, respondeu-lhe:
—Vou vêr se topo a minha Thereza, que foi levar a fornada da outra banda, a casa da morgada.
O abbade, do alto da egua, continuou:
—Vi-a hontem; e olha que está féra e bonita.
—Escorreitinha é ella, graças a Deus,—disse o José, seguindo ao lado o passo da cavalgadura.
—E é moça de tino,—proseguiu o padre circumspectamente,—mas tem-me cuidado n'ella, que olha o demo, José, quando as arma, escolhe sempre do melhor, ouviste?
Mais adiante, ao passarem por um quinchoso, a cujo muro estava debruçada uma rapariga esguedelhada, com os braços pendentes para fóra, perguntou-lhe o abbade:
—Que é de teu pae, ó cachópa?
—Está a trabalhar nas obras do rio, sr. abbade,—respondeu ella córando.
O abbade esporeou a egua, e disse para si:
—Elle é bem melhor ganhar o pão ao pé da porta, lá isso não tem duvida.
—Pois quant'é!—concordou o moleiro, acenando affirmativamente a cabeça.
E continuaram ambos pela estrada, até a uma cangosta, por onde o abbade metteu, deixando só o José moleiro.
O caminho agora descia, até ao rio, onde andavam as obras da ponte nova.
Já de longe se avistavam os trabalhadores.
Havia ali um grande movimento de gente. Por entre o tronco nú dos salgueiros, viam-se já as primeiras pedras do arco, subindo pelo simples de madeira, que se levantava d'uma á outra margem.
Uma fileira de mulheres e creanças passavam constantemente da draga do areial com cestos carregados á cabeça. Antes de chegar ao rio, a estrada apparecia toda coberta de cascalho, que reluzia á luz intensa do meio-dia.
Como as aguas tinham diminuido, uma barca com linguetas levadiças á prôa e á pôpa, que servia de transporte, como uma jangada, no inverno, estava da outra banda, presa por amarras aos troncos de dois amieiros. As pessoas que tinham de atravessar o rio iam pelas alpondras desanegadas; mas quando acontecia apparecer uma cavalgadura, então era preciso que os trabalhadores lançassem sobre as pedras duas pranchas largas, que serviam de passadiço.
Quando a filha do moleiro chegou ao rio e ia a metter o macho na agua, um dos homens, que ali estava, gritou-lhe:
—Não mettas o burro á agua, rapariga; olha que te afogas e mais elle.
Espera que eu lá vou.
A rapariga soffreou o macho e esperou.
Ao aproximar-se o homem com a prancha de pinho levantada ao alto, o macho espantou-se, empinou as orelhas, recuou de subito e, de um salto, atirou comsigo e com a rapariga ao rio.
O trabalhador, que viu aquillo, principiou a gritar por socorro. Accudiram os outros; mas, quando chegaram, o macho tinha seguido para o meio, onde a corrente do rio era mais impetuosa e fazia redemoinho. A filha do moleiro caíu para o lado, estonteada do sobresalto e da sensação do frio; e os homens que lhe gritaram de terra viam-na seguir a cavalgadura com a mão presa na extremidade do cabresto.
N'esse momento, um homem que corria, muito afflicto, pela vereda abaixo, logo que chegou á margem, atirou com o chapéo para a banda, e lançou-se de repente ao rio; mas apenas a agua lhe bateu pelo tronco, estremeceu todo, bracejou um instante e appareceu estirado á flôr da agua, a boiar, com as faces rôxas da congestão.
* * * * *
Quando ia vêr as obras do rio—era esse o meu divertimento—façam ideia como eu fiquei!
Sobre uma escada de mão, trazida como uma padiola por quatro robustos trabalhadores do rio, vinha estendido de costas o pobre José moleiro, com a bocca entre-aberta, os olhos vidrados e os labios rôxos.
Mais adiante, a dez passos, no meio da agglomeração curiosa de homens, de mulheres e de creanças, que commentavam e lamentavam o caso, descobri a desgraçada Therezinha, morta, deitada sobre a terra, com a saia de chita collada ao corpo pelo peso da agua, deixando vêr o contorno juvenil dos seus membros inteiriçados.
Ao lado, o macho, a escorrer, com a cabeça pendida e os grandes olhos fitos no chão, estava n'aquelle doloroso abatimento, em que deve precisamente ficar um homem, depois de se lhe ter disparado a espingarda contra o peito de um amigo!
E até parece que, diante d'aquelle quadro funebre, os salgueiros do rio, debruçando-se melancholicos sobre as aguas, entoavam, balouçados pela aragem, uma vaga lamentação de tristeza!
* * * * *
Ao passar, alta noite, pelo atalho da azenha, ouvia-se lá dentro o ruido trémulo da mó, o marulho triste da levada; e, como fazia um luar de primavera, vi destacar-se claramente no fundo azul do céo, agachada sobre o esgalho nodoso de uma figueira, que ficava ao lado—em vez do alegre rouxinol, que ali cantava todas as noites—uma coruja muito grande, a piar, a piar…
Quando Gertrudes chegou á portaria acompanhada da tia e do primo, no relogio da torre do convento bateram pausadamente cinco horas da tarde.
O mosteiro de Santa Clara ficava situado no respaldo de uma collina e emboscado n'uma deveza de carvalhos.
Era nos primeiros dias de novembro. O céo, toldado de nuvens, que corriam para o norte batidas de um vento aspero, estava de uma tristeza indefinivel. Ás vezes, uma nuvem mais densa, côr de chumbo e pesada, escurecia o firmamento, e uma chuva miudinha, como um borrifo, cahia então obliquamente. Quando passava a chuva, um pé de vento forte e rasteiro levantava em redemoinho as folhas amarellecidas do outomno, que alastravam o chão.
A fabrica do convento era pobre, de frontaria humilde; e as paredes escuras e deterioradas pelo decurso dos annos accentuavam o conspecto melancholico e lugubre da clausura.
Em um nicho fronteiro á porta da entrada, apparecia a imagem de Santa Clara, vestida com o habito de freira, os olhos extacticos levantados para o céo, suspendendo, com fervor ascetico, nas mãos brancas, uma custodia doirada. Debaixo do habito appareciam os pés da santa, quasi nús, crusados no peito pelos atilhos amarellos das alpargatas.
Diante do nicho, uma lampada de ferro, pendente d'um carritel, oscillava como um thuribulo; e a luz tenue da lamparina bruxuleava a espaços, ainda esmorecida na claridade poente do dia.
Antes d'entrar, esteve Gertrudes com a cabeça descahida sobre o hombro da tia, a chorar; depois, cingiu-a estremecidamente no derradeiro abraço, soluçando:
—Adeus, minha tia, adeus!
Aproximou-se de Matheus, que assistia do lado, pallido e trémulo, áquella separação, abriu os braços para o apertar, e disse-lhe com voz debil, fitando n'elle os olhos rasos de lagrimas:
—Matheus!…
E transpoz soluçante e opprimida o limiar do convento.
* * * * *
A communidade viera receber á entrada, segundo as praxes conventuaes, a soluçante noviça. As freiras professas e as recolhidas estavam dispostas em duas filas, tendo á frente a madre-abbadessa, já muito velha, arrimada a um baculo de prata lavrado.
Aquella sala de recepção era humida, espaçosa, fria e soturna. Entrava-lhe a luz tenue coada pelas rexas oxidadas de duas frestas, que davam para o claustro. Ao fundo, sobre um altar e no meio de duas jarras com palmas e flôres artificiaes, estava a imagem de um Christo de metal amarello, com os braços abertos cravados nos braços de uma cruz de jacarandá. No peito nú e descarnado do Christo reflectia-se, como uma chaga viva, a luz vermelha da lampada de latão suspensa do docel.
A escrivã passou o braço com protectiva ternura á cinta de Gertrudes, e encaminhou-a para diante da abbadessa, dizendo-lhe a meia-voz:
—Beije a mão á nossa madre-abbadessa, menina.
Gertrudes baixou os labios á mão trémula da freira, e recebeu n'uma postura humilde, com os olhos fechados, o abraço receptivo. Em seguida abraçou-a a escrivã; e depois, de abraço em abraço, foi Gertrudes passando todas as freiras e senhoras recolhidas até á derradeira.
* * * * *
Abria para a cêrca a janella estreita da cella de Gertrudes.
Avistava-se ao longe, recortada no azul limpido do céo, a cumiada alvacenta e escalvada de uma serra.
Mais abaixo, por entre a verdura da encosta, descia a estrada em largas curvas, como uma fita que se vinha desenrolando e alargando pelo monte.
Ao meio-dia, quando o sol cahia perpendicular, a diligencia subia vagarosamente, levantando espessas nuvens de pó. Viam-se os almocreves, que vinham á cidade, trazendo pela arreata a recova dos machos.
Em madrugadas serenas, ouvia-se até o chiar longinquo dos carros de bois pelos atalhos das aldeias, o telintar monotono das campainhas dos machos e o estalido secco do chicote da mala-posta.
Um dia, logo que sahiu do refeitorio, emquanto as freiras se recolhiam ás cellas para dormir a somnata da sésta, dirigiu-se Gertrudes para a cêrca.
Era uma hora da tarde.
Na horta, as largas folhas das couves pendiam desmaiadas com o calôr intenso da estiagem. Na ramaria verde do pomar rumorejava uma viração agradavel. Em torno á folhagem escura das laranjeiras, na vibração da luz, agitava-se uma nuvem transparente de ephemeros.
Por debaixo das latadas passeiavam de braço dado algumas meninas recolhidas.
Gertrudes seguiu sósinha, cosida com o muro, por onde havia uma esteira de sombra. Ao fundo da cêrca, encostado ao tronco de uma magnolia, que projectava no saibro secco e faiscante da rua uma larga sombra, havia um banco de pedra.
Gertrudes sentou-se, tirou do bolso do avental um livro brochado, e abriu-o cuidadosamente, retirando com as pontas dos dedos, d'entre as folhas marcadas, um grande amôr-perfeito já mirrado e desbotado.
Ao cabo de alguns minutos de concentrada leitura, ouviu pipillar em cima.
Na extremidade de um ramo, que balouçava de leve, chilreava um passarinho, inclinado para baixo, entreabrindo assustado, com fremitos, as azas. Gertrudes poisou o livro de banda, subiu ao banco, e, fincando-se na ponta dos pés, aprumou-se para espreitar.
Entallado n'um esgalho e meio occulto na folhagem, havia um ninho fôfo e tépido, do qual surdiam duas cabecinhas pennujentas. Poisada no rebôrdo do ninho, estava uma toutinegra, ministrando o alimento aos filhos.
Gertrudes estava encantada! Até suspendia a respiração, com receio de perturbar a tranquillidade do ninho!
* * * * *
Á noite, com a cabeça deitada sobre a brancura virginal do travesseiro, a noviça suspirava e sorria, acalentada n'um sônho de creança!
Ora vejam!
Estava de pé, sobre o banco da cêrca, espreitando o ninho da magnolia. Os passarinhos implumes abriam soffregos o bico para receberem da mãe o alimento.
Gertrudes identificava-se tanto com o que via, que—em sonho—chegou a sentir o goso ineffavel da mãe que administra o sustento aos filhos. As cabeças pennujentas dos passaros do ninho—que graça!—já lhe pareciam duas cabecinhas loiras de creança deitadas no mesmo berço!
E o passaro que chilreava em cima, alcandorado no ramo superior, foi perdendo, pouco a pouco, a fórma que tinha e—como a gente vê n'um quadro dissolvente—foi transformando a cabeça pequenina de ave n'uma cabeça de homem, com cabellos annellados, os olhos pretos e vivos, o bigode farto, e um dôce sorriso de pae…
E entreviu, então, Gertrudes, atravez d'uma nuvem côr de rosa, em que o seu espirito se emballava, a imagem clara do primo Matheus, que a contemplava, a sorrir!…
A guerra
A volta das andorinhas
A sésta do avô
O Gallo preto
Está no céo!
O retrato dos paes
O sermão
Ás cerejas
O jantar do Natal
Vinhos e aguas-ardentes
As arrecadas da caseira
O anacreonte de Candemil
O abandono do moinho
O sonho da noviça
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