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TEXT
OS MEUS AMORES
TRINDADE COELHO
OS MEUS AMORES
(Contos e Balladas)
2.ª
edição
LISBOA
Livraria de Antonio Maria Pereira
50, 52―Rua Augusta―52, 54
1894
LISBOA
Typographia e Stereotypia Moderna
11―Apostolos―11
Ao
Doutor
Antonio Xavier PERESTRELLO
«Os Meus Amores»
Folhas dispersas dos meus
annos de oiro,
Vivo enxame das minhas alvoradas,
Tenho zelos de vós, folhas sagradas,
As Desdémonas sois de um outro moiro.
As brancas horas que eu em sonhos doiro,
Essas horas febris, illuminadas,
Eil-as fugindo, em tristes debandadas...
Levaes nas azas todo o meu thesoiro.
Folhas: subi, voae ao céo tão alto,
Que o ceo em estrellas vos converta e mude,
Lá nas longinquas illusões que exalto;
Como as frementes aguas d'um açude,
Levae a Deus, no derradeiro salto,
O derradeiro adeus da juventude...
Luiz Osorio.
[1]
IDYLLIO RUSTICO
A Fialho d'Almeida.
Quando atravessou a
povoação, rua abaixo, com o
rebanho atraz d'elle, era ainda muito cedo. Ao longo das ruas
tortuosas, as portas conservavam-se fechadas, e não vinha
das
habitações o mais insignificante ruido. Dormia-se
a somno solto por todas aquellas casas.
Apenas algum cão, subitamente acordado em sobresalto pelo
chocalhar do rebanho, ladrava do alto dos escadorios de pedra onde
ficara de sentinella, ou de dentro das curraladas, onde levara a noite
fazendo companhia aos novilhos. D'onde em onde, gallos madrugadores
entoavam matinas sonoras, que eram como risadas vibrantes de bohemios,
n'alguma esturdia, a deshoras...
Mas passadas as ultimas casas, o silencio condensava-se para toda a
banda, n'uma grande pacificação de templo
adormecido. Nem viv'alma pela ladeira que levava ao rio, por um caminho
em zig-zags. Fulgiam no
céo
[2]
azul-escuro cardumes prateados de estrellas. A toda a
largura, a paizagem era torva e indecisa, immersa n'uma luz muito
mortiça que nem era bem a da madrugada, nem era bem a da
noite. No emtanto a
manhã era calma; nem rumores de briza pela rama das
azinheiras velhas que faziam guarda ao corrego por onde o rebanho
tomara. Cigarras, grillos nas hervagens, rãs que coaxavam
nas regueiras, era o mais que se
ouvia acima do rumor brando dos chocalhos. Nem um balido de ovelha em
todo o
rebanho que se ia submissamente á mercê do pequeno
pastor,
parando se elle parava a colher as amoras frescas dos silvados,
recomeçando
marcha se de novo elle se punha a caminhar.
Quando passou rente ao meloal da fidalga, ouviu-se o ruido de um tiro,
que o echo levou para longe.
―Não gastes polvora, Antonio!―recommendou o
pastor.―Ouviste?
E logo a voz do guardador:
―Madrugas hoje, Gonçalo!
―P'ra que saibas: cá um homem não tem medo.
―Está bem. Adeus!
―Saudinha.
A esse tempo ia-se já definindo a manhã, na luz,
no som, na côr. Invadia a amplidão da cupula
celeste uma tinta alvacenta, onde as
estrellas feneciam no seu brilho. Ao alto, na ladeira
d'além, entravam
de fazer-se nitidas as linhas sinuosas das cristas, onde enormes
rochedos tinham altitudes de uma immobilidade mysteriosa e sinistra...
[3]
N'este assomo d'alvorada, as coisas iam despertando lentamente para a
alacridade vigorosa da luz. Das moitas e sebes, calhandras era bandos
levantavam-se repentinamente, em vôo perpendicular, e
cortavam ares
fóra, chilreantes e alegres, até se perderem de
vista por de traz dos
arvoredos e cabeços. De cauda em riste e orelhas immoveis, o
rafeiro espreitava as hervagens
seccas, onde algum reptil passasse vagaroso.
―Busca, Turco!―fazia-lhe o Gonçalo que tinha medo
ás cobras.―Busca, valente!
Á medida que descia a ladeira, um marulhar monotono de aguas
ouvia-se, mais e mais distincto. Era o rio que parecia perto; mas
primeiro que
lá se chegasse ainda era preciso andar... Era um poder de
passos e de paciencia,―reflectia o pastor, a quem aborreciam de morte
os interminaveis torcicollos da vereda. Ia andando, descendo sempre,
á frente do rebanho silencioso. E quando os sapatos
começaram
de calcar areia, e ali, perto, o rio lampejava, sob aquelle
céo ainda
estrellado, o Gonçalo desabafou:
―Uff! até que emfim!―E pensava aliviado:―Nada mais facil
do que terem-me sahido os lobos!...
Mas vista áquella hora, e no meio de tal silencio, a
corrente liquida tinha o que quer que fosse de sinistro, que evocava
lembranças aterradoras, espectros dos que ali mesmo tinham
morrido afogados, n'uma
lucta desesperada com as aguas, clamando em vão que lhes
acudissem, em tamanho transe afflictivo. A margem de lá,
especialmente,
era toda accidentada de rochedos informes, blocos medonhos, por entre
os quaes
no inverno o vento assobiava lugubre, e as aguas faziam remoinho, o que
era um perigo para os pobres barcos que se aventurassem
[4]
incautos, n'um
descuido involuntario―simples remadela pouco a tempo, manobra menos
segura de leme, ou impulso errado de vara.
E então, cabeços enormes d'um lado e d'outro,
projectando sobre o largo leito do rio a sua sombra pesada e
desconforme, que mais triste fazia o
sitio e parece que mais solitario, pois fechavam-no bruscamente,
fazendo limitada a paizagem.
A todo o comprimento da margem, o rebanho pôz-se
então a beber manso e manso, e sem o minimo ruido.
Foi quando o Gonçalo acabou de se convencer que na margem de
lá, um pouco mais abaixo, outro rebanho bebia tambem.
―Táte, Gonçalo! Aquella chocalhada...
E immovel, remordendo o labio, com o ouvido á escuta,
pensava:
―Ora se será ella?...
Subito, estremeceu. Ante o seu espirito infantil perpassou, como um
clarão de relampago, a imagem de uma rapariga, pastora como
elle, com quem se havia encontrado mais vezes, mas que havia muito
não
vira.
―Ai, se fosse a Rosaria!... dizia comsigo.
E impondo silencio ao rebanho, que acabara de beber, pôz-se
attentamente á escuta do tilintar dos chocalhos na margem
opposta.
[5]
«O rebanho parecia o mesmo, lá isso... Agora o
pastor é que podia ser outro que não a
Rosaria...»
Senão quando, uma ideia lhe acudiu que o fez sorrir de
contente. Atirou ao chão a manta e o marmeleiro, e puxando
para deante o
bornal, feito da pelle de uma ovelha branca, morta pelas segadas, tirou
de lá
a sua flauta e pôz-se a tocar apressadamente um trecho de
cantiga
rustica.
No mesmo instante, uma voz muito sonora gritou-lhe:
―Ehlà, Gonçalo, és?
O pastor desatou a rir.
―Uhlá, Rosaria, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona!
E logo a voz fresca da rapariga lembrou:
―Não te esqueceu a moda, rapaz!
―Isso esquece ella!... Ouviste, Rosaria?―Se outra fosse que m'a
tivesse ensinado...
N'este meio tempo já o Gonçalo retomara a manta e
o marmeleiro para ir ter com a Rosaria. Mas primeiro perguntou:
―Boto pela ponte, ou és tu que vens, ó cachopa?
―Vem tu d'ahi. Por cá sempre é outra coisa
p'r'as ovelhas. Han?
―Basta!
[6]
E dando o signal da partida, o Gonçalo pôz-se em
marcha. D'ahi a pouco, entrava mais o rebanho pela velha ponte
moirisca, toda severa de
construcção nos seus tres arcos
lançados sem elegancia, atufados de parasitas seculares que
a faziam pittoresca, heras, silvas, ortigas bravas.
A meio da ponte, mão piedosa fizera construir pequeno
oratorio ao Senhor Salvador, cujo rosto sereno, espreitando por grades
de arame, diziam
dar coragem a barqueiros e almocreves, que ante o pequeno e humilde
nicho com respeito se descobrissem, e com devoção
rezassem uma velha prece que era como um talisman precioso para livrar
de maiores desgraças―naufragios no rio, e então
maus
encontros por aquelles caminhos escabrosos, que eram um perigo
constante para homens e
animaes.
D'ahi a pouco, as duas creanças estavam perto uma da outra,
cada qual seguida do seu rebanho.
―Ora viva a Rosaria!―disse o pastor muito alegre, parando defronte da
cachopa.
―Bons dias, Gonçalo; então que ventos?
Entre os dois travou-se então um longo dialogo em que se
contaram tudo o que haviam feito desde aquelle dia em que ambos tinham
voltado juntos
da feira dos Caniços.
―Por signal que nem rez se vendeu!―lembrou o Gonçalo.
―Por signal!―disse com pena a Rosaria.
[7]
Mas elle contou que viera por ali muitas vezes, muitas, sempre na
fé que a encontrava. «Vêl-a agora,
só por
milagre de santo; quem o havia de sonhar! Nanja elle...»
―Mas se eu estive tão doente!―volveu triste a Rosaria.
E como o outro acudiu a informar-se, ella explicou:
―Umas quartãs que me tiveram mondada! A peste as mate!
Febre que era mesmo lume desde manhã até ao
escurecer... Uma
assim!
E na sua ingenuidade infantil, contou ao Gonçalo que muitas
vezes, na febre, sonhara com elle, que se encontravam os dois por
montes e
prados, como agora tinha acontecido, «tal e qual».
―Assim te Deus salve, ó Rosaria?―atalhou rapido o pastor,
a quem enchiam de orgulho os sonhos d'aquella pequena amiga.
―Assim; pois que duvida?―tornou-lhe confiada a Rosaria.
―Não!―disse agastado o Gonçalo.―Não
has-de dizer assim... Diz certo, has-de jurar direito.
―Pois assim me Deus salve...
―Como é verdade...―Diz tudo, Rosaria!―supplicava o
pastor.
―Sim, volveu-lhe paciente a companheira,―como é verdade
que sonhava que nos encontravamos―concluiu por fim, muito risonha.
[8]
E sem disfarçar o jubilo, prestes o Gonçalo a
certificou de que tambem não a esquecera. «Tanto
é que tirava da
frauta as cantigas todas que ella lhe tinha ensinado.»
―Lembras-te?
A Rosaria faz que sim com a cabeça. E logo, batendo na
frauta de sabugueiro, o pastor apressou-se a declarar:
―Sahem d'aqui sem falhar uma.―E resoluto:―Vá feito,
Rosaria, pede por bocca!
A Rosaria pediu então a
Pastorinha.
―Eu é da que mais gosto,―explicou.―É a mais
linda.
―E é!―concordou o Gonçalo.―Ora escuta
lá.
E levando aos labios a avena, pôz-se a tocar a
Pastorinha,
emquanto a Rosaria, com a sua vozita em surdina, entrava a tempo com a
lettra:
Onde vás,
ó
Pastorinha,
Ai-li, ai-li, ai-li,
ai-lé...
―Sabes essa! É mesmo assim!―disse-lhe a Rosaria a rir-se.
―É como vês!―affirmou contente o
Gonçalo.
Aos seus pés tinham-se deitado os rafeiros, e já
os dois rebanhos, confundidos, andavam na pastagem.
―Olha as ovelhas juntas!―notou o Gonçalo.
[9] ―Tambem nós nos quedámos juntos,―volveu-lhe a
pequena, sorrindo.―As pobres dão-se bem, são
amigas...―continuou com
jubilo.
―E nós tambem, ora tambem, Rosaria?
―Tambem―respondeu afoita a pastora.
E foram-se ter conta no rebanho, que choviam as coimas e as denuncias.
A esse tempo, no céo alto e lavado a estrella d'alva
fenecera por fim, e o horisonte começava de carminar-se ao
de leve. Por todo o
céo em cupula, a luz fresca e viva da manhã
vibrava harmonias
extranhas que iam despertar tudo, a côr da paizagem e a
musica dos ninhos,
cantigas de perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos.
Manhã de
verão, serena, tranquilla, dulcissima. Ia pelo ar um
movimento extraordinario de azas―passarada alegre que sahia agora dos
ninhos e voava a matar a
sêde á borda das ribeiras, andorinhas que deixavam
as suas
casinholas em reconcavos de rocha e tomavam para hortejos convisinhos
onde a
vegetação era mais rica de seiva e mais facil a
presa dos insectos, perdizes gralhadoras que iam de monte em monte,
tordos, poupas, melros. Nos vinhedos das encostas, por entre os renques
verdejantes, gente em
mangas de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos caminhos, em
torcicóllos, viam-se os que desciam aos moinhos, tangendo
machos carregados de taleigos, e berrando-lhes cada
chó!
que se ouvia na outra
ladeira. Já nas povoações proximas
sinos chamavam para a
missa d'alva ou tocavam a Ave-Marias. Nas quintas e casas fumegavam os
tectos, dizendo
[10]
horas de almoço. De modo que o sol quando
rompeu, solemne e
triumphante no céo immaculado, encontrou muita vida pelos
campos, toda a natureza acordada
para a labuta interminavel do dia. N'uma clareira elevada, dominando o
rio e um trecho de paizagem para sul, tinham-se sentado os dois
pastores e continuavam conversa.
Ao pastor parecia-lhe agora mais bonita a pequena amiga, com a sua
côr trigueira levemente pallida desde que tivera as maleitas.
Não se lembrava com que santa que elle tinha visto se lhe
parecia agora a Rosaria...
―Mas o cabello assim cortado...―disse com magua, mirando-lhe a
cabeça nua, e passando a mão pela
d'elle,―é que te
não fica bem!
«Melhor fôra que lhe tivessem deixado as
tranças. Negras, de mais a mais, que era como elle
gostava...»
―Promessa da mãe se eu melhorasse―explicou a
Rosaria―Lembranças... A gente quando está
afflicta...
―...Quando está afflicta...―repetiu como um echo o
pequeno. E depois, amuado:―Se promette os olhos...
A rapariga fitou-o, espantada.
―...é porque t'os tirava!―concluiu convicto.
Houve um momento de silencio, em que o Gonçalo se
pôz a escavar o chão com uma pedra, e a Rosaria a
torcer um fio saliente do seu vestido grosseiro. Ouviam-se as ovelhas
chocalhando nas pastagens, ia a passar na rodeira, longe, um carro que
chiava, com uvas para algum lagar.
[11] ―Não fallas, Rosaria?―perguntou o pastor sem levantar os
olhos para ella.
―Tambem tu...―começou com medo a pequena,―logo te zangas!
Olhem a lembrança dos olhos! Se a mãe fazia isso,
credo!―E depois animando-se:―Já foste á Senhora
dos Remedios?
O Gonçalo fez signal que não tinha ido.
―Pois foi lá que deixámos as tranças,
eu mais a mãe. N'um prego ao lado do altar, um lacinho verde
nas pontas. Ficou lindo.
O pastor teve um movimento de enfado, não lhe agradava a
conversa. E para acabar com ella:
―Que emfim como melhoraste...―fez que concordava, pondo o bilro a
girar.―Olha como dança...―E depois, mais pensativo,
batendo com o bilro nos dentes:
―Que ás vezes as promessas pouco fazem...―E
interrompendo:―Sabes quem fez este bilro?
―Foste tu, aposto.
Bateu no peito e fez com a cabeça que sim, mostrando-lh'o
orgulhoso―«que visse os
torneados.»
Depois
continuou:
―Vae uma pessoa andando e os santos não se importam. Ora,
os santos!―Olha a minha Joaquina, tu não conheceste. A
gente
bem resou e bem promessas fez, mas ella foi-se.
[12]
E pondo-se de joelhos, começou a procurar pelo rebanho.
―Aquella ovelha, a branca, não vês? A que se vae
agora deitar... Pois era p'ra Nossa Senhora, repara que é a
melhor.―E
deitando-se para traz:―Lá anda ella a pastar!―concluiu
desalentado.
―Mas tinha de ser,―volveu-lhe triste a Rosaria,―que as promessas
sempre fazem, lá isso...
E convicta, a pequena contou casos acontecidos para convencer o
Gonçalo de que sempre valiam as promessas. No emtanto,
deitado de costas, com a
jaqueta a fazer de travesseiro, as pernas em angulo tocando-se com os
joelhos, o Gonçalo soprava pela palha o bugalhinho que
constantemente ia subindo e descendo, acompanhado pelo olhar bondoso do
cão
que ali perto se deixara estar sentado. E contando, contando casos, a
Rosaria ia entretendo o pastor. Mas quando ella fazia pausa, logo o
rapaz acudia, firme na sua objecção:
―Ora! mas a nossa Joaquina morreu-se! Coitadinha da Joaquina!
Á medida que o sol ia subindo, no céo glorioso e
fulvo, iam os dois conduzindo as ovelhas para sitios mais ensombrados,
para se livrarem da
estiagem que ia valente. Calor de rachar, ali por volta do meio dia,
que foi quando tomaram para a banda das azinheiras, e para os
pinheiraes, depois. E sempre ao lado um do outro, os dois companheiros
levaram de conversa quasi o dia inteiro. Nunca tinham dado
fé que as
horas passassem tão depressa.
[13]
Ainda armaram aos passaros,
mas foi
o mesmo que nada, os demonios andavam espantados e já
conheciam as
esparrellas.
―Olha lá não caiam,―tinha dito o
Gonçalo, já cançado de estar
á espreita, agachado, com o fio da armadilha preso ao
dedo.―Se elles fossem tolos...
E foi-se a recolher as esparrellas, dando ao demonio os passaros. Ella
então propoz que jogassem a pocinha.
―E o fito, ó Rosaria? Sabes jogar ao fito? No adro, aos
domingos de tarde, bato-me com qualquer, sabias?
E generoso:―Mas a ti dou te partido: vinte e cinco ás
quarenta...
Como o tempo rendia, jogaram tudo―a pocinha, o fito, as necas, a
bilharda. Na bilharda, como o rafeiro trazia á
mão, era elle que ia buscar o pausinho, quando zinia longe.
―Turco, traz cá!
No emtamto, ia descaindo a tarde. Ao alto, o largo céo
esmorecia no seu azul suavissimo. Em todo o espaço o ar
estava tranquillo e
sereno, e já começava para poente a
decoração
phantastica do occaso. Parece que se ouvia mais distincto o marulhar
das aguas no rio; já
não faiscava assim tão viva a areia branca das
margens.
Foi quando o Gonçalo lembrou que era melhor irem-se
chegando, mais as ovelhas, para as terras onde tinham de
[14]
pernoitar. E
fitando fixamente
os olhos negros da Rosaria, disse-lhe assim:
―Mas olha o que prometteste... Inda vaes feita no que disseste?
«Ora que lhe custava a ella! Já que as ovelhas
tinham andado juntas todo o santo dia, que mais era que dormissem no
mesmo curral, essa
noite?»
―E o mais, ó Rosaria?―perguntou de novo com interesse.
A pequena ficou perplexa. Mas como o pastor não cessava de a
olhar, respondeu:
―Tambem.―E sorriu-se.―Pois eu...
Só depois d'esta segunda promessa o Gonçalo se
levantou, e deu o signal de partida, assobiando aos cães.
D'ahi a pouco, estavam de marcha para o curral, Quando passavam a velha
ponte, a obliquidade dos raios do sol fazia alongar desmedidamente pelo
areal a sombra dos tres arcos. Nas rugas da corrente, uma luz
alaranjada tremeluzia, tirando á agua a sua translucidez
normal.
―É bonito!―fez notar o pastor.
A Rosaria explicou logo:
―São as moiras a caçar com redes d'oiro, sabias?
Para a outra banda, um pouco mais abaixo, assomavam á
flôr da corrente as cabeças dos dois rapazotes do
moleiro. Dentro da
chata
que vogava serenamente, a mãe
[15]
com o mais novito ao collo
não
os perdia de vista, emquanto o pae, em mangas de camisa, de
pé n'um topo de
fraga, lhes ia ensinando as
manobras. Ao fundo,
tres vitellas
passavam o rio a vau, muito devagar, parando a espaços,
alongando o
pescoço para a veia d'agua serena, bebendo mansamente. Sobre
o vitello das malhas brancas, o guardador cantarolava, acenando com o
chapeu ao
moleiro―«boas tardes! boas tardes!» Ao sahir da
ponte, o rebanho teve de se
affastar um pouco do caminho: aproximava-se um almocreve com a longa
fila de machos carregados, tilintando campainhas.
―Adeus pequenos! cumprimentou.
―Venha com Deus!―tornaram-lhe ambos.
E de novo se pozeram em marcha. As ovelhas continuavam confundidas,
confraternisavam os cães como bons e leaes amigos.
Á frente, o Gonçalo ia tocando na flauta o mesmo
que a Rosaria cantava. O brando rumor dos chocalhos, que se levantava
de todo o rebanho, casava-se com a musica, fundindo-se n'uma nota
subtil, d'um pittoresco ingenuo de ballada...
Até que chegaram a um topo de serra, escurentado de matagal
rasteiro, e então, parando um momento, o Gonçalo
perguntou,
collocando na sua frente a Rosaria, e pondo-lhe á cara a
flauta, na
direcção em que devia olhar.
―Vês além... n'este direito? Rez-vez do
castanheiro, não enxergas?
A outra fez que sim com um gesto, e interrogou:
―Então é ali?
[16] ―Ali mesmo―volveu-lhe já de marcha.
E repoisando a mão direita sobre o hombro esquerdo da
rapariga, repetiu-lhe muito contente:
―É mesmo além.
N'uma terra de restolho, um largo quadrado de cancellas marcava o
espaço que as ovelhas tinham de occupar essa noite.
―Falta pouco; a gente vae pelo atalho que é só
mau p'ra quem passa a cavallo.
E como elle ia expansivo, e a companheira não dava palavra,
quiz então saber:
―Estás triste, ó Rosaria?
―Triste... não. Já agora... tem de
ser―volveu-lhe cabisbaixa.
―Huum! Arrependeu-se...―volveu comsigo o pastor.
Até que por fim chegaram, tinha anoitecido havia instantes.
Gado para dentro e toca a merendar; o que era d'um era d'outro: elle
ainda trazia
azeitonas, um naco de queijo, pão. Mal acabaram de comer, o
Gonçalo apontou para a cabana que ficava alli perto, e
propoz que se deitassem:
estavam moídos da soalheira de todo o dia e da caminhada
agora.
[17]
Quando o Gonçalo e a Rosaria entraram na cabana e se
deitaram sobre o colmo, cobrindo-se com as mantas, e achegando para a
cabeça
um do outro os bornaes que faziam de travesseiro, cerrára de
todo a
noite, e formigueiros de estrellas scintillavam vivezas de prata polida
no azul indefinido do céo.
―E os lobos?―perguntou a Rosaria com medo.
―Não ha perigo―tranquilisou-a o Gonçalo.―Isso
é lá com os cães.
Pouco a pouco, foi-se extinguindo no curral a musica triste dos
chocalhos. A ladrar, os cães faziam echo. O rebanho devia
dormir profundamente, immerso no mesmo somno em que jazia prostrada
toda a Natureza, ao largo. Dentro da cabana, os dois conversaram algum
tempo, n'um ciciar brando de vozes, até que por fim,
vencidos da
fadiga, se deixaram adormecer,―quando a historia das moiras encantadas
ia no seu melhor episodio...
E lá no alto céo, mesmo sobre a cabana, a
estrella da tarde não era nem mais pura nem mais luminosa do
que a alma simples e boa d'aquellas duas
creanças...
Quando ao repontar da manhã se levantaram, e sahiram a
vêr o céo...
―Bonito dia, Gonçalo!
―Bonito dia, Rosaria! Olha...
...na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas iam voando...
voando...
SULTÃO
(Copiado do Natural)
Ao meu Henrique e a
Beldemonio, seu amigo.
I
Ao cair da tarde, o Thomé da Eira entrava em casa,
cançado, esfalfado de andar um dia inteiro a mourejar no
campo.
―Meus peccados, boa tarde!―dizia elle para a mulher, com um sorriso a
affectar seriedade.
Vinha logo o pequeno, o Manuel, de mãos postas pedindo-lhe a
benção.
―Deus te abençoe.
―Pae, olhe que o «Sultão»... ia a dizer
o pequeno.
―Bem sei! atalhava logo o Thomé.―O
«Sultão» é um maroto e tu
és outro.
[20]
E emquanto procurava no bolso da jaqueta a sua bella navalha de
meia-lua, que lhe custara um pinto havia bons
quinze annos, e abria a
gaveta do pão, o Thomé punha-se a fazer de
interesseiro comsigo mesmo, resmungando alto p'ra que a mulher o
ouvisse:
―É que por este caminho não tenho um dia
descançado... Nem uma hora...
Vinha a mulher com as azeitonas, com o queijo, sem dar palavra.
―...Pois vamos já que já era tempo... Porque
p'ra mim ha de chegar... A modos que vou já
cançando...
Mas o Thomé não era homem que dissesse estas
coisas de coração. Pareciam-lhe longos,
interminaveis, os aborrecidos domingos que passava
sem ir campos fóra, madrugador como um melro.
―Uma aquella como outra qualquer! dizia o bom do Thomé
encolhendo os hombros, como quem está desgostoso com um
genio assim.
Partiu uma ampla fatia, um naco de queijo muito branco, do leite da sua
cabrada, e veiu sentar-se, consolado, ao fundo da larga escada de pedra
que dava para a rua, arregaçado, em mangas de camisa, muito
á vontade.
Costume velho do Thomé:―mal se sentava, mastigando o
«boccado», dizia logo para o filho:
―Ouves, Manuel? Bota cá fóra o
«Sultão».
[21]
O rapazito corria o caravelho de uma pequena porta lateral, que rangia
nos gonzos ao impulso dos seus bracitos roliços, e punha-se
a pular de contente, dizendo cá da rua:
―«Sultão»! Sae cá p'ra
fóra, «Sultão»!
No fundo negro do pequeno cortelho, na moldura rectangular da porta
baixa, destacava-se então a cabecita parda de um jumento,
orelhas em riste, grandes olhos de uma tristeza perpetua, n'um
movimento moroso de
palpebras pestanudas...
E ali se quedava parado, absorto, muito bem posto nas suas pequeninas
pernas delgadas, a olhar o Thomé que o chamava,―um grande
riso de alegria nas feições amorenadas, contente
de ver o
seu «Sultão».
Mas o pequeno jumento não avançava um passo,
divertindo-se em arreliar o Thomé, fitando-o com um ar
estagnado. Altivo na sua nobre
linha de quadrupede de boa raça, alguem lhe poderia
lêr no
olhar, mole e impassivel, o frio, gelado despreso a que parecia votar o
dono...
Mas era áquillo mesmo que o bom do lavrador achava
graça. E punha-se então a fallar muito serio,
entre resignado e cortez, para o
pequeno e desdenhoso jumento―o pão e o queijo esquecidos
n'uma das
mãos, na outra a navalha de
meia-lua:
―Então, «Sultão»,
não vens?
―Não! parecia responder-lhe o animal. E abstracto,
continuava a envolvel-o no seu olhar profundo. A quebrar a harmonia
d'aquella immobilidade de estatua, apenas
[22]
de quando em quando uma
pequenina
patada na soleira, zap!
―Zangado, «Sultão»? perguntava o
lavrador.―De mal comigo?
E prestes voltava a cara para a outra banda, para se rir á
vontade...―que não fosse vel-o o
«Sultão»... Mettia entre dentes um
pedacito de queijo, logo uma codea de pão, e fazendo umas
grandes rugas na testa, de quem começa a zangar-se,
voltava-se
então muito serio:
―Ficas ahi, «Sultão»? Já
não és meu amigo?
O gerico abatia um pouco as orelhas, inclinava o pescoço,
parece que fazendo-se humilde...
―Então se és, anda d'ahi. Olha...―E mostrava um
pedacito de pão.―P'ra ti se vieres...
O «Sultão» dava tres passos, e ficava
fóra do cortelho. E por se vingar, o Thomé
carregava o semblante n'uma seriedade muito pesada,
e erguendo o rosto iracundo chamava-lhe interesseiro, maroto,
affirmando que
já lhe não dava o pão. E
desfechando-lhe emfim a
ameaça de o vender a um cigano, entrava a tratal-o por
senhor―
sôr
«Sultão»...
Mas o pequeno jumento ia andando muito devagar... andando... orelhas
baixas, pescoço cahido, a modo de arrependido, parece que
pedindo perdão da arrelia.
Nervoso, sapateando, o Thomé voltava a cara para a outra
banda, a rir como um perdido.
―Diabo do gerico! diabo do ratão! Capaz é elle
de
[23]
fazer rir as pedras, o mariola!―E tossia de engasgado, uma
migalhita de queijo na guela.
No emtanto, o «Sultão» ia
avançando, muito ronceiro, até que tocava com o
focinho, levemente, nos joelhos do lavrador. O Thomé
sacudia-o:
―Sae-te p'ra lá! dizia elle muito amuado, sem se
voltar.―Cuidas talvez que te não conheço,
cuidas? Já te
não quero, vae-te!
Mas como que irreflectidamente, fingindo não querer,
chegava-lhe ao focinho um pedacito do pão, o melhor da
fatia.
«Sultão» lançava um olhar
obliquo, entre surrateiro e medroso, levantava cautelosamente o
beiço superior, a tremer, e roubava-lh'o da mão.
Pazes feitas! Era então rir a perder, n'umas casquinadas
agudas, muito estridulas.
―Credo, homem! dizia de cima, da janella, a sr.
a
Josefa.―Até pareces doido!
―Você assim rouba seu dono? Diga! Você assim rouba
seu dono? perguntava o Thomé, n'uns grandes gestos.―Vamos
que eu lhe
não queria dar da merenda? Ladrão, de mais a
mais!... Ora bem! agora brinque.
Era precisamente o que o Thomé queria:―ver o
«Sultão» a brincar.
...Nada, com effeito, meus amigos, que mais divertisse o bom do
lavrador, e melhor o indemnizasse d'aquellas fainas laboriosas que lhe
consummiam os dias, imperturbavelmente, perpetuamente, sob soes
causticantes e chuvas torrenciaes.
[24]
Por isso, era de ver como elle ria, com uma boa vontade deliciosa, das
«partidas» e «diabruras» do
«Sultão»! Ás vezes, o pequeno
jumento, ferido não sei por que vespa invisivel, despedia
sem mais
nem menos n'uma carreira aberta, focinho entre as pernas deanteiras,
agitando a cauda, por aquella rua fóra. Rompia de toda a
banda n'um
alarido o rancho pacifico das galinhas, que já no ar andavam
como
doidas, cacarejando, como se um pé de vento as levasse.
Accudia
gente aos postigos, ás portas, ás janellas, a ver
a
polvorosa; e subito se inundava a rua de rapazes, rotos,
descalços, alguns quasi
nús, correndo atraz do burro, gritando-lhe, acenando-lhe,
espantando-o―como se o mesmo vento de folia os houvesse varrido a
todos, varrendo a propria rua... E um lá ia a terra, e sobre
esse passavam os outros,
e sobre todos voava o «Sultão», apupado,
perseguido, acclamado, na malta espavorida dos inimigos...
―«Sultão»! eh lá!
«Sultão»!
Subito, como se lhe estalasse a corda, o animal estacava, e logo de
volta d'elle postava-se a rapaziada, mas n'um alor de nova fuga,
não lhe desse na bôlha atacal-os... E abriam alas
de repente, quando
elle, tomado de novo accesso, voava para as bandas do dono, que por se
não deixar atropellar investia com o
«Sultão» de braços abertos, o
que era, já se vê, um modo de o
abraçar,
fingindo medo. E vinham as gargalhadas estridulas, os rogos para que
pozesse treguas, as supplicas para que se
accommodasse, recuando o lavrador até ao ultimo degrau da
escada, onde se deixava cair,―derrotado!
―P'ra lá, «Sultão»! p'ra
lá! fazia então o Thomé, oppondo-lhe
os pés, desviando-o, apoiando-se nos cotovelos, muito
inclinado para traz, a
rir como um perdido.
[25]
Então o pequeno jumento estacava, offegante. Mas prestes
rompia a girandola dos coices, em que era eximio, sacudindo muito as
patas,
cauda no ar, muito direita, ao mesmo tempo que o Thomé
solicito
dava aos rapazes o aviso de se arredarem―«porque era doido,
aquelle
demonio»!...
Outras vezes, parece que variando de tactica, entrava de seguir muito
cauteloso, n'um ronceirismo perfido, como um borrego ou como um
cão, certa mulher que passava. Até que
lá ia uma
focinhada, e logo após os saltos do costume, respondendo com
uma ameaça de pinotes
á surpresa da viandante.
―Dê, tia Luiza! bata n'esse maroto! fazia de lá o
Thomé, com ares de zangado. E depois, batendo o
pé, pedindo que lhe dessem uma
verdasca:―«Sultão»! venha já
p'r'aqui! intimava.
E se encontrava um cão? Se encontrava um cão, ia
logo direito a elle, muito de vagar, cauda caida, orelhas murchas, n'um
cumprimento humilde de focinho. O cão regougava,
desconfiado, entreabrindo a
dentuça, preparando a sua dentada. Não dava o
«Sultão» signaes de medo, e humilde
proseguia para o outro, propondo paz. Mas ao primeiro latido, recuava
um passo, espertando da sua indolencia passiva; e de espinha arqueada
ganhava o terreno perdido―fitando impassivel o cão... O
bruto formava então o salto, regougando forte, o
pêllo
eriçado; e ao investir para a primeira dentada, salvava-o de
um pulo o
«Sultão», evitando-o, até que
por compaixão lhe dava um pequenino coice, «mais
feitio que outra coisa», pondo em fuga o mastim, corrido,
ganindo, vencido:
―Eh! valente! gritava-lhe então o Thomé.
[26]
E com duas palmadas na anca, espantava-o emfim para o cortelho, dizendo
ao correr a caravelha:
―Não ha dinheiro que te pague, assim me Deus salve!
E comido o caldo verde da ceia, nunca o Thomé da Eira ia
para a cama sem primeiro descer a vêr o
«Sultão»,―de candeia na mão
esquerda, e na direita, contra o sovaco, a bella quarta do
grão, acogulada.
Muitas vezes acontecia esquecer-se o Thomé a vel-o comer, de
candeia attenta, encostado á mangedoira, sorrindo: e, de
cima, a
sr.
a Josefa tinha de intervir então,
gritando-lhe pelas
frinchas do
sobrado:
―Thomé, vê se te vens deitar, meu pasmado! olha
que são horas.
E piamente, como fanatico, achava verosimil a lenda da burra que
fallou,―historia que uma tarde, passando, o abbade lhe contara. Tanto
que mais de uma vez, dando ao burro as boas-noites, extranhou com certo
desgosto que o «Sultão» lhe
não respondesse:
―Boas noites!
Mas o demonio, que sempre as arma, armou-lh'a tambem um dia! Foi ao
cortelho, de manhã cedo, e não encontrou o burro.
Ficou parvo! Poz-se a mirar, espantado, a loja que lhe pareceu enorme,
e além de enorme―gelada...
[27] ―Ó Josefa! Josefa! entrou de gritar da rua.―Ó
Josefa!
A mulher assomou á janella, sobresaltada.
―Queres apostar que me roubaram o burro, ó mulher?!
―Que te roubaram o quê? fez a sr.
a
Josefa, muito attonita.
―O burro, o «Sultão»! Vem cá
ver que m'o roubaram!
E como ao tempo acudira já o Manoel, em camisa,
descalço, romperam todos tres na gritaria, defronte do
cortelho vazio:
―Á d'el-rei! Á d'el-rei! Á d'el-rei!
Até que o regedor, que era compadre, intervindo
estremunhado, poz na peugada do burro, mais dos larapios, os cabos que
compareceram.
Mas em vão! Um a um foram regressando, pelo dia adeante, e
desfechando ao peito abatido do Thomé a negra e vazia
palavra:
―Nada!...
II
Dois annos depois. Tarde d'agosto. Ao longe, fechando o horizonte que a
eira dominava, as arestas dos montes quebravam-se n'uma sombra egual, e
embaciavam
[28]
ainda o poente as suaves, brandas
pulverisações doiradas da ultima luz do sol.
Riscos vermelhos de nuvens, como grandes vergas de ferro levadas ao
rubro, destacavam immoveis n'um fundo verde-mar, esvaecido e meigo,
raiado de listrões de uma
coloração leve de laranja. Pequenos
algodões transparentes, com alvuras de neve,
cortavam aqui e além, alegremente, a monotonia profunda do
azul. N'um
deslado, sob os castanheiros proximos, surgiam os telhados da aldeia, a
torre branca da
igreja, as paredes caiadas da escola.
A vasta eira commum, levemente accidentada, apresentava
áquella hora o aspecto tranquillo e de paz de uma grande
officina em repouso. Poucas «mêdas», iam
no fim as colheitas: mais
uma semana, duas quando muito, e estaria tudo recolhido. Já
sobre a palha das
«parvas» ou ao sopé das
«mêdas» altas, entre os utensilios da
trilha e a creançada estridula que brincava, os da lavoura
descançavam―vermelhos da soalheira
intensa de todo o dia, alguns deitados, em mangas de camisa, peito
nú,
arregaçados os braços musculosos, n'uma
prostração
regalada de matilha que alfim tem a sua hora de socego, após
um dia de caçada.
Parecem prostrados da fadiga os proprios malhos, os trilhos, as
pás, os
«baleios» que levaram todo o santo dia varrendo o
chão em volta das
«parvas». E aqui e ali, dando uma
sensação agradavel de fartura,
perfilam-se os altos saccos no meio das rasas, extravasando de
grão. Além, gente
em mangas de camisa, ao redor de um grande montão de palha
triturada, vae
«limpando»―visto que sopra um
«ventinho». E sente-se sobre as
pás a chuva do grão, ao mesmo tempo que a palha,
voando, faz monte da outra banda, e os «baleios»,
em mãos de mulheres,
não cessam de arrebanhar o grão, varrendo em roda
n'um afan... Em certo ponto, carros vasios; um
além, de altissimas «angarellas», vae-se
enchendo de palha;
emquanto outros, atulhados de saccos, em rimas entre as cancellas
[29]
mais
baixas, estridulamente chiando abalam para as tulhas, levados pelos
bois gigantes.
Eiras além, livres dos trilhos que ficavam em cima da palha,
levas de bois caminhavam vagarosamente, as largas orelhas pendentes,
caudas oscilantes afagando nas ancas espaçosas o luzidio
pêllo. E lá vão encosta abaixo,
roçando pelos troncos asperos dos
castanheiros a enorme corpolencia, fartar o largo bandulho á
serena agua das
ribeiras, sorvendo vagarosamente, impando a cada sorvo, pesadamente,
monotonamente, parece que insaciaveis no meio da agua em que se atolam,
submissa...
Ao fundo da eira, rente aos castanheiros escuros, um rancho de mulheres
cantava alegremente, em côro. Acabara de ensacar-se o ultimo
grão da farta colheita do Thomé da Eira.
―Colheita rica, sim senhor! vinham dizer-lhe os visinhos.―A primeira
da aldeia!
―Qual? isso sim! vão vocês vêr a tulha.
Muita palha, é que vocês hão de dizer,
muita palha e pouco grão...
E muito azafamado, sem prosapias de maioral nem geitos de soberba, as
mangas arregaçadas pelos cotovelos, O Thomé ia e
vinha, dando ordens, repetindo avisos, distribuindo aqui e
além as ultimas
tarefas.
―Ahi vae um sacco, ó tu! É p'r'as
«rabeiras». Que não fique nem um
grão, ouviram? É aviar, toca a aviar! Cautela que
não fique por ahi alguma coisa esquecida: essas
pás, esses
«baleios», tudo isso. Margarida! ó
Margarida! qu'é da tua rasa? Deixa!
se vae no carro está bem.
E era como um doido a metter-se no serviço de todos,
[30]
muito
expedito, loquaz, alegre, pedindo pelas bentas almas que se
não
deixassem agora dormir...
―Vamos lá! vamos lá! As pás,
ó tu que cantas? Deixa-me por ahi alguma, que eu depois te
ensinarei, ouviste?―Que faz ahi no chão
esse «rasouro», ó coisa?―Olha p'r'o que
estás a fazer, tu: esses saccos que fiquem bem atados.
O criado, que ia abalar com a carrada, perguntou, já de
«aguilhada» no ar, se era preciso mais alguma
coisa.
―Não, pódes ir. Ouves? lá em casa que
tenham a ceia a horas. Avia-te. Ouves, Francisco? Não piques
os bois, a carrada é
valente. A passo, deixa ir os animaes a passo. Vae-te.
Como o carro chiava, levantou a voz para dizer:
―Olha, descarrega na tulha do meio. Na tulha do meio, não
ouves? Os bois para o lameiro.
Mas o Francisco apontou dois saccos que ficavam:―«seria
preciso vir por elles?»
―Não vale a pena, lá irão.
E depois, para aquella gente, observou que bem sabia elle quem os
levava, aquelles dois saccos...
―Com mil demonios! Apostar que vocês não
adivinham?
«Elles sabiam lá?... Quem quer podia levar os dois
saccos, olhem agora!»
[31] ―O «Sultão», sabem? o
«Sultão»! Esse é que os
levava. E digo-vos então que valia o dobro a colheita, assim
me Deus salve!
Alguns riram da lembrança. «Tinha graça
que a scisma do animal não lhe passava nem á
mão de Deus Padre!»
―A modos que isso é já mania, ó sr.
Thomé?
Nisto, porém, o lavrador soltou um «oh!»
de surpreza. Voltaram-se todos―«que era?» Na
estrada que a eira dominava,
um homem ia passando, a cavallo.
―Vocês não querem vêr, ó
rapazes?! perguntou o lavrador, fazendo-se pallido.―Aquelle burro,
hein? se não é o
«Sultão» é o diabo por
elle...
Recordaram:―«estrella malhada na testa, a mão
direita branca»...
―É elle, com um milhão de diabos! não
ha que vêr! E aquelle é o ladrão!
E cuspindo nas mãos, e arregaçando mais as mangas
da camisa, arrancou, d'um abanão, o cabo d'uma
«espalhadoura»
e botou a fugir direito á estrada.
Prestes ouviu-se um berreiro, as mulheres do rancho em alarido:
―Que o mata! gritavam todas.―Ai que o mata! Acudam! Ai a
desgraça! Nem a alma lhe deixa! Acudam!
Os homens deitaram a correr atraz d'elle, affluia gente de todas as
bandas da eira, os cães ladravam.
[32] ―Então, sr. Thomé? olhe que se perde, sr.
Thomé! diziam-lhe, já agarrados a elle.―Largue o
cabo, que se desgraça! Tudo se
faz a bem, sr. Thomé, largue vossemecê o cabo!
―Qual bem nem qual diabo! Qual larga? Arreda! Racho-lhe as costellas,
mais a vocês, se me não largam! Arreda!
E esbracejava furioso, levando-os de roldão, agarrados a
elle mais ao cabo. Chegou a ferir um, os outros desanimaram por
instantes.
―Vê, sr. Thomé?!
«Não via nada, não queria ver cousa
nenhuma! Arreda!» E n'um rompante de ira, abrindo brecha com
um «sarilho», de um pulo
saltou á estrada, aos tropeções nas
pedras que encontrava, mal se
equilibrando.
―Abaixo! intimou.―Você é um ladrão!
―Um quê?
―Um ladrão! É meu esse burro! Hei-de matal-o
aqui, seu patife! Deixem-me! larguem-me! Ha-de ahi ficar estendido,
como um
cão!
E no meio da malta em alvoroço, com a arreata do burro na
mão esquerda, e na direita o minacissimo cacete, berrava que
o deixassem, que ia tudo
razo―«com seiscentos milhões de
diabos!»
Seguiu-se altercação, vieram razões de
parte a parte, insultos.
[33] ―Já lhe disse que você é um
ladrão!
―Ladrão será você!―tornou-lhe o outro
já de pé, avançando de punhos
cerrados.―E não m'o diga outra vez, que o racho!
Afflictas, algumas mulheres voltavam-se, de mãos postas,
para a capellinha proxima, rogando o soccorro da Virgem. O lavrador
entrava de
tremer como varas verdes, desfigurava-o a raiva, uma saliva muito
branca bordejava-lhe os cantos da bocca. Pela camisa rota, via-se-lhe
já um pedaço de hombro. Tinham, alfim, conseguido
arrancar-lhe o
cacete, mas agora esbracejava, punhos no ar sobre aquellas
cabeças em
desordem.
Já, para uns certos do grupo, o homem do burro se
desculpava:―«tinha-o comprado a uns ciganos, fossem
lá adivinhar que o burro era
roubado...»
―Vê, sr. Thomé? acudiram logo uns poucos.―O
homem não tem culpa.―E gritavam-lhe aos
ouvidos:―Não tem culpa! Comprou o animal
na boa fé. Vês-ahi está!
―Mente! objectava incredulo o Thomé, cada vez mais
irado.―Mente!
―Mente?! perguntava o outro de lá, assanhado.
―Como um judeu! cuspia-lhe da outra banda o Thomé.
De modo que para o convencerem, foi preciso afinal leval-o quasi
á má cara, chamar-lhe homem de rixas,
despropositado, bulhento. Elle
então, abrindo os braços como se fosse para
nadar, socegou um
pouco, amainou,―prometteu levar aquillo com paciencia, ás
boas.
Chegou
[34]
quasi a pedir desculpa, limpando com a manga branca as bagas das
camarinhas.―«Mas tinha perdido a cabeça, que lhe
queriam?»
Chegou-se por fim a um accordo. «Sim, senhores,
accommodava-se, mas punha uma condição: largasse
elle o burro, e o
burro é que havia de resolver...»
―Serve-lhe o contracto?
―Qual contracto?
―Mau! Larga-se o burro, você entende? deixa se o burro
ás soltas. Depois, é p'ra onde elle
fôr. Se o burro larga
p'ra traz, lá p'r'as bandas d'onde você vem...
Você d'onde vem?
―Dos Casaes.
―Pois ahi está. Se o burro tomar p'r'os Casaes, o burro
fica seu...
―E tomando direito á aldeia, é do sr.
Thomé,―concluiram alguns do grupo, conciliadores.
―Nem mais! Serve-lhe assim? Diga se lhe serve assim.
Por um desfastio, o outro concordou. Mas lá lhe parecia
historia que o burro tomasse para a aldeia... Vinha de tão
má
vontade, que até lhe custara tiral-o de casa.
―Olhe que vae pr'os Casaes! Digo-lhe então que vae pr'os
Casaes...―affirmou.
[35] ―Melhor p'ra você. Mas nós veremos p'ra onde vae.
Você está pelo dito?―quiz saber o
Thomé.
―Sim senhor, estou! Pois que duvida tem que estou? disse-lhe o outro
n'um rompante. Olhe: uma, duas, tres; ás tres largo-lhe a
arreata.
Ia já a abrir a bocca para dizer―«uma!»
―Alto! fez o Thomé. Espere lá um pouco. Primeiro
hei-de fazer duas festas ao animal.
E pôz-se a bater-lhe na anca, no pescoço, no
peito, demorando-se um pouco a fital-o de frente, «para que o
animal o
conhecesse.»
―«Sultão»! gritou-lhe de repente. Eh!
«Sultão»!
O burro estremeceu... Dir-se-hia que no fundo da sua memoria, a
lembrança porventura adormecida d'aquelle nome despertara
subitamente...
―Eh! Eh! riu-se muito satisfeito o lavrador. O burro, agora, vira-se
p'ra ali. Isso. Nem é p'r'os Casaes nem p'r'o logar. Assim.
Eh! Eh!
E afastou-se para o lado, aguardando.
Uma anciedade dominava n'aquelle momento os do grupo; o
Thomé pôz-se a roer as unhas, nervoso...
―Então você porque espera? perguntou.
Ouviu-se logo a voz do outro, dizendo:
―Á uma!...
[36]
O Thomé sentiu um calafrio; sapateava nervoso, cheio de
medo, o olhar de esguelha, e entre os dentes ferrados o pollegar da
mão
direita...
―...ás duas!
―Ih! c'um raio!... dizia baixo o Thomé.
E sem querer, os olhos cerraram-se-lhe com força.
―...ás tres!
Foi então um barulho de palmas, um berreiro atroador de
vivas e gargalhadas! O Thomé vencera: corriam todos a
abraçal-o, affirmando que o caso era para foguetes.
―Viva o sr. Thomé! Viva o
«Sultão»! Aquillo é que
é burro!
―Aquillo é que é amigo, hão-de
vocês dizer!―emendava o Thomé a rir. Tenho-os com
dois pés, que não valem metade...
―Oh! sr. Thomé! protestavam alguns.
―Isto não é com vocês, mas
é como quem se confessa... Está visto que
não é com vocês.
E ria, ria como um perdido, emquanto, estrada fóra, o
«Sultão» corria que voava, cauda no ar,
corda de rastos, perdendo-se por fim
lá ao fundo, na poeirada immensa da estrada, como que
nimbado n'um resplendor
de apotheose. E na peugada do burro, esbaforido e como doido, seguia
agora o lavrador, após o fraternal abraço,
pregado no dos Casaes...
[37]
Quando o Thomé chegou a casa, offegante, a suar, cheio de
gestos e de palavras entrecortadas de riso, já o
«Sultão», relinchando, pateava
á porta do antigo cortelho, n'uma grande impaciencia, um
«rap-rap» continuo na soleira.
―Venham vêr! Venham cá vêr! berrava o
Thomé para a vizinhança. Ó Antonio!
Ó compadre! Ó Maria Engracia!
Ás janellas assomava gente, perguntando se era fogo.
―Qual fogo, nem qual carapuça! É o
«Sultão», mas é! Este
inimigo! Ó Josepha! Josepha! cá temos o burro,
este demonio. Assoma.
Ora imaginem agora os senhores, se podem, a effusão do
lavrador. Abraços? E até beijos. Aquillo era um
thesoiro
perdido que reapparecia alfim. A mulher, do alto da escada, benzia-se,
perguntando se o seu homem teria endoidecido...
―Palavra de rei, «Sultão», palavra de
rei! Anda d'ahi pelos saccos. São só dois.
Ó Josepha! Ouves? p'ra cá
esse garrafão que está ao pé da arca,
avia-te. A caneca tambem, ouviste? Essa das riscas vermelhas, a maior.
E atirando as mãos ambas para a albarda, montou muito
regalado, de um pulo.
―Ah!
A senhora Josepha assomava, ajoujada com o enorme garrafão.
―Anda, mulher, põe aqui deante de mim. Avia-te.
[38]
Ia a boa da senhora Josepha arriscar uma
observação, um conselho, qualquer coisa de
tomo...
―Adeus, minhas encommendas! Não me fanfes, mulher,
não me fanfes. Põe aqui, que mando eu, avia-te.
Assim. Está bem.
―Nome do Padre...
―Então que lhe queres? Deu-me agora p'r'aqui!
―Nome do Padre, nome do Filho...
―A caneca! Venha de lá agora a caneca!
―...nome do Espirito Santo!
―Passa bem, ó mulher,―concluiu ás gargalhadas,
entre as gargalhadas dos demais.―Ouves? Quando o Manoel vier dos
ninhos, esse maroto, manda-m'o ás eiras. A trote,
«Sultão»! Eh! valente!
E lá parte, veloz como uma setta. Já de longe
volta-se do repente:
―Josepha! ó Josepha! n'esse alguidar do meio umas sopas de
vinho p'r'o «Sultão», ouviste? No do
meio. O grande
é muito grande, e esse pequeno não presta. Ouves?
mas quer-se coisa que farte, bem
entendido.
E de novo despediu como uma flecha, abraçado ao
garrafão. Arreata para a direita, arreata para a esquerda,
pernas a dar a dar, elle
lá vae n'uma corrida, sumido n'uma onda de poeira,
até chegar
ás primeiras «mêdas».
―Vinho, rapaziada! Ó Maria do Carmo, toma lá uma
[39]
pinga, mulher! Lá por andarmos de mal ha 15 annos isso
acabou-se!
E o Thomé atravessou a eira sempre a cavallo no
«Sultão», caneca de vinho para a
direita, caneca de vinho para a esquerda.
Meia hora depois regressava, o «Sultão»
pela arreata, o Manoel no meio dos saccos, e adeante do Manoel o bello
garrafão―sem
pinga...
Pelo caminho, a todos o Thomé contava a historia, a rir como
um perdido, n'um ah! ah! de gargalhadas sonoras, muito intimas.
―Colheita rica, sim senhores, um colheitão!
E parando á porta, ainda a mulher se benzia do alto da
escada, mexendo e remexendo o alguidar de barro:
―Nome do Padre, do Filho, do Espirito Santo.
...Ao mesmo tempo que o Thomé, abrindo os braços,
respondia reclamando as sopas:
―Amen!
ULTIMA DADIVA
Ao dr. A.A. da Fonseca
Pinto.
Distante do rio
apenas um tiro de bala ficava o horto do
José Cosme, bello horto ainda que pequeno, todo mimoso de
fructas e
hortaliças, fechado entre velhas paredes musgosas, atufadas
em silvedo,
communicando com a estrada por um pequeno portelo mal seguro. E eis ali
quanto ao pobre homem restava dos seus antigos haveres:―o horto, a um
canto a nora, e perto da nora, sob a umbella tufada e virente da antiga
magnolia gigantesca, a misera casinhola de alpendre, apenas com uma
porta e duas
janellitas lateraes mas toda pittoresca das heras que a revestiam, que
lhe pendiam dos beiraes enlaçadas com as trepadeiras.
De modo que na primavera, quando as parasitas abriam
[42]
serenamente os
seus melindrosos calices sobre esse fundo de verdura reluzente, e a
magnolia
toda se toucava de flores fazendo docel á vivenda, aquelle
pequeno canto d'horto, com a sua nora e com a sua agua espelhante e
limpida, tomava a
feição ingenua de uma delicadissima tela de
paizagista, aquarella deliciosa, alegre e idyllica, cheia de encantos
na poesia rustica da
sua simplicidade.
No verão, ás horas de calor, quando o sol
caía a pino sobre a larga paizagem adormecida e turva, e as
arvores da estrada não
davam sombra que aliviasse, aquella tranquillidade com que o
José Cosme
ressonava sob o alpendre, braços nús e peito
nú, o
chapeirão de palha grossa resguardando-lhe a cara, fazia
inveja aos que por ali passavam,
cançados e cheios de poeira, flagellados por aquella
estiagem inclemente.
―Ó tio José!―gritavam-lhe do caminho.―Tio
José! Ó regalado!
Mas os que entendiam de lavoura, proprietarios e maioraes, esses
deixavam dormir o José Cosme e ficavam-se a admirar o horto.
Ora na verdade!... Bello horto, sim senhores! Por aquellas redondezas
não havia outro que se lhe comparasse, tão
esmerada era a sua cultura―tão esmerada e tão
completa, pois que de
mais a mais nem palmo de terra ficara inculto. Nas leiras, dispostas
com symetria agradavel, verdejavam cheios de viço, frescos e
medrados, legumes de
todas as castas―desde a alface muito tenra, de folhas verde-claras,
toda acaçapada no chão humido das regas,
até ás trepadeiras das vagens que enroscadas
ascendiam pela basta «rodriga» de
castanho aparada com todo o esmero, formando massiços de
verdura
[43]
sombria que os casulos
esguios dos feijões crivavam de alto a baixo. Arvores,
apenas as
precisas para aformosearem o horto, sem prejudicarem com a sombra a
vegetação franca das hortaliças. Mas
todas as que havia eram mimosas de
fructas nas estações competentes―cerejas, peras,
maçãs, pecegos mesmo.
Poucas flôres: uma coisa que todos notavam com estranheza.
Mas desde que lhe morrera a mulher mais a filha, o José
Cosme deixara-se
de as cultivar, e nos canteiros assim devolutos tinha semeado repolhos,
que por signal vinham enfezados. Só teve o cuidado de
não deixar morrer os goivos. Uma vez por anno, em fins de
Maio, colhia-os todos de uma vez,
e ia leval-os em braçado á sepultura rasa das
suas
defunctas.
Exactamente n'essa tarde tinha elle ido ao cemiterio fazer a funebre
visita. Quando se recolheu era já noite. Mal acabou de cear
levantou-se bruscamente da mesa e foi-se para o horto, com uma grande
vontade de chorar. Estava nas suas horas tristes, n'essas horas em que
as energias
todas da sua alma e até as do seu corpo vergavam sob o
flagello de uma dôr violenta, exacerbada agora pela saudade
dos que lhe
tinham morrido... E para maior desgraça fugira-lhe o bem das
lagrimas. De modo que sem esse lenitivo, aquellas medonhas tempestades
custavam o dobro a
supportar. Abstracto, n'uma especie de entorpecimento idiota, percorria
sem descanço todas as ruas do horto, cabisbaixo,
acabrunhado, automato. Se por vezes parava, recolhendo-se n'uma
quietação attenta, logo um gesto brusco
desmanchava a sua immobilidade de estatua, soltava um
fundo gemido, e punha-se de novo a andar.
―Vens ou não vens?―perguntava elle, evocando com dorido
esforço a imagem da mulher ou da filha. Não
vinha;
[44]
e quando apparecia
era como se fosse um relampago, apagava-se logo.
N'esta lucta com a sua dôr as horas iam passando longas. Era
já tarde, talvez a uma da noite. Luz, apenas a das
estrellas, pois que o luar nascia tarde. Pesava sobre toda a paizagem o
largo silencio da noite, apenas cortado, ao longe, pela melopeia
somnolenta do rio.
Um rapaz que ia na estrada olhou por acaso para o horto do
José Cosmo e viu um vulto perpassar de repente e de repente
sumir-se n'um recanto onde a sombra era mais densa.
―Temos historia...―resmungou comsigo o rapaz.
E, rente a uma arvore, quedou-se alapardado, á espreita.
Não desconfiou que fosse o José Cosme: aquillo
era mariola de larapio que
vinha por ali fazer das suas. Agachou-se então, e poz-se a
procurar uma
pedra. Apanhou duas, para o caso de não acertar a primeira.
―Cão do diabo!―exclamou baixo o rapaz, pondo-se em
posição de jogar a pedra.―Espera que eu te
arranjo...―E já ia arremessal-a na
direcção do canto, quando o vulto saiu da sombra
e tomou por um carreiro, direito
ao logar onde o rapaz estava.
―Melhor! Mais a geito ficas...
E debruçando-se um pouco na parede, poz-se a fixar o vulto
que avançava, para ver se o conhecia. Quem quer que era
trazia a jaqueta sobre os hombros, alvejavam-lhe as mangas da camisa. A
meio do carreiro, mesmo defronte d'elle, parou. Foi então
que o rapaz se lembrou do
José Cosme. O vulto parecia, com effeito, ser o
[45]
d'elle;
lembrava-se agora de ter ouvido que o pobre homem, quando o ralavam
saudades da mulher e da filha, levava noites em claro, a percorrer como
doido aquelles
carreiros por onde ellas tinham andado.
Quando ouviu soluçar, acabou então de se
convencer. Insensivelmente, deixou cair as pedras e perguntou:
―Tio José! Ó tio José! Sou eu, o
Luiz... Vossemecê que tem?
O lavrador não respondeu, parece que nem tinha ouvido. O
rapaz insistiu:
―Doe-lhe alguma coisa, ó tio José?
―Não dóe, não. Sabes que mais?
peço-te pelas alminhas que me deixes. Bem me bondam as
minhas afflicções. Vae com Deus,
vae.
O rapaz ficou surprehendido, triste do tom de supplica dorida que o
José Cosme dera áquellas palavras, e retirou-se
silencioso, quasi
aterrado agora com a ideia de que poderia ter matado o pobre homem,
caso jogasse
a pedrada.
No emtanto a noite ia avançando, grave, soturna, sem outro
ruido que não fosse o das aguas do rio. E o José
Cosme, sem despegar do
seu fadario, ia e vinha pelas ruas do horto, lembrando um automato ou
um somnambulo.
Ás vezes abeirava-se da porta de casa e punha-se a escutar.
Como não sentia nada, voltava de novo ao seu passeio.
N'isto, de uma vez que passava em frente do cancello, pareceu-lhe ouvir
passos.
―Ó Thomaz!
[46] ―Sr. José!―respondeu o que entrava, n'uma voz que era
mesmo voz de barqueiro.
O Cosme sentiu então uma grande vontade de chorar, mas
remordendo os beiços dominou-a. Como o barqueiro estranhasse
encontral-o a
pé, elle então redarguiu-lhe que nem se tinha
deitado.
―Como tinha de madrugar...
―Pois são horas de largar, sr. José; isto vae
p'r'as duas. Não tarda que comece a amanhecer.―E como
estavam á porta de
casa:―Será bom acordar já o pequeno: veste,
não veste,
é tempo que se vae.―Iam á vela se o tempo
não mudasse. Era bom aviar, por isso.
Mas á ideia de ter de acordar o pequeno, o José
Cosme deixou-se cair sobre o banco que estava debaixo do alpendre, e
desatou a chorar violentamente.
O barqueiro tentou animal-o, constrangido.
―Então, sr. José?... O chorar é
lá para as mulheres. Olhem agora que homem!―E tentava
levantal-o, pol-o de pé.―Limpe
lá essas lagrimas, que vae affligir o pequeno! Ou quer que
elle vá a chorar todo o
caminho?
O Cosme fez que não com a cabeça, violentamente,
e poz-se a enxugar os olhos com a manga da camisa.
―Pois então levante-se lá.―E segurou-o com
força por baixo dos braços.―Assim! Lá
porque o pequeno vae para o
Brazil não fique vossemecê a pensar que o
não torna a ver.
Mas era isso mesmo o que elle pensava...
[47] ―Porque não sei que me adivinha que não torno a
ver o pequeno―concluiu a chorar o José Cosme.
―Scismas! lembranças que veem á gente quando
está afflicta. Mas ha-de vel-o que o não ha-de
conhecer, digo-lh'o eu. Mais anno
menos anno, apparece-lhe ahi rico...
Rico! bem lhe importava a elle que o pequeno viesse rico. O que
desejava era que voltasse e que elle ainda fosse vivo só
para o
abraçar.
Pois sim, mas era preciso aviar, que tivesse paciencia: o
José Cosme que se animasse para animar o
pequeno―recommendava o barqueiro.
―Sim... sim...―tartamudeava o Cosme.―Vamos lá com Deus!
Com'assim..
E n'um profundo ai dolorosissimo, foi-se direito á porta
para chamar a pequeno. Não havia remedio, tinha nascido em
má
hora, havia de ser desgraçado até que o levassem
para a cova...
Sobre a estreita e humilde cama o filho dormia profundamente. Que
dôr, ter do o acordar!
Vieram-lhe tentações de mandar embora o Thomaz e
deixar
dormir a creança. Quem sabe se a sua sorte futura, se toda a
sua vida, valeria a boa tranquillidade
d'aquelle somno! Não tinha coragem para o acordar, fazel-o
vestir: era quasi um peccado quebrar aquelle ultimo somno dormido sob o
tecto paterno... O ultimo somno! o ultimo somno!
―Ainda se o deixassemos acordar...―aventurou-se a dizer o triste.
Mas o Thomaz que estava com pressa, lembrou seccamente que eram horas
de pôr o barco a andar.
[48]
O José Cosme accendeu então a candeia, reccioso
de que a luz o acordasse, e achegando-se do filho poz-se a escutar-lhe
a
respiração. Dormia!... Mas brandamente pousou-lhe
a mão sobre a
cabeça e chamou baixinho, quasi ao ouvido, beijando-o,
sobresaltado como se fosse praticar um grande crime:
―Filho, olha que são horas, meu filho...
Quando o pequeno se sentou na cama, estremunhado, ainda sob o
estonteamento do somno, cerrando os olhos áquella
hostilidade viva da luz, o pae agarrou-se a elle n'um
abraço, e ambos romperam a
chorar.
―Adeus, pae!
―Adeus, filho!
Confrangido, o Thomaz que se deixara ficar á porta,
avançou para desatar aquelle abraço.
―Olhe que é tarde, sr. José. Perdoe, mas olhe
que é tarde!
O pae vestiu o pequeno, beijou-o ainda muito, e sairam. Debaixo do
alpendre, o Joaquimsito ficou-se um instante a olhar o tecto.
―A andorinha, filho?―perguntou o José Cosme.―Deixa que eu
hei-de olhar por ella, mais pelos filhos quando os tiver. Vae socegado.
Mas o pequeno quiz vel-a, pediu ao pae que o erguesse, era
só um instante. Lá estava ella, coitadinha!
sentiu-a estremecer
quando lhe tocou com as pontas dos dedos...
[49] ―Adeus!―disse-lhe o pequeno afagando-a.
A esta palavra, o pae retrahiu os braços e tomando o filho
no collo seguiu. Atraz, o barqueiro levava ao hombro a misera arca de
pinho:
toda a bagagem do Joaquim.
Ao transpor o cancello o José Cosme deteve-se um pouco e
perguntou soluçando:
―Quando voltarás ao horto, meu filho?
O pequeno não respondeu. Chorava constantemente de ver que o
separavam de tudo o que adorava―a andorinha, depois da andorinha o
horto, as arvores, a velha nora, o cancello, tudo emfim.
Atravessaram então a estrada e tomaram para a banda do rio.
Quando o sentiram murmurar, aperraram mais o abraço,
deram-se um
longo beijo, humido das lagrimas que ambos derramavam. Ah, como o
triste pae
desejava que o rio ficasse ainda longe, mui longe, que fugisse deante
d'elles,
de modo que nunca o alcançassem! Mas eis que a areia
principiava, divisava-se já perto o vulto escuro do barco
onde os da
tripulação fallavam alto.
―Prompto?―perguntou ainda de longe o Thomaz.
Do barco responderam que era só marchar, de mais a mais ia
romper a lua.
Chegaram emfim. N'um leve silencio d'acaso ouviam-se os
soluços dos dois, parece que prolongados infinitamente, na
sua expressão
de angustia, pelo deslisar monotono das aguas... Aquillo confrangia o
barqueiro, elle tambem era pae... Por isso, mal chegaram á
beira do rio, apressou-se a dizer para o pequeno:
[50] ―Ora bem, Joaquimsinho, beija a mão a teu pae e dize-lhe
adeus.
Ouviu-se um chorar lancinante, a voz do pobre José Cosme a
querer animar o filho:
―Então, meu filho?... Deus te abençoe, meu
amor... Nossa Senhora te veja ir.―E fez-lhe prometter que havia de
resar sempre a Nossa
Senhora, elle tambem lhe resaria, pois era ella quem dava saude, quem
fazia a gente feliz.
―Não te esqueças d'ella mais da alminha de tua
mãe e de tua irmã...
Mas o pequeno chorava cada vez mais, agarrado ao pescoço do
pae, beijando-o sofregamente, acarinhando-o, sem forças para
dizer palavra. Então o José Cosme, perdida a
esperança de animar o filho, só exclamava
desvairado:
―Valha-me Deus! O Senhor me valha pela sua infinita misericordia!
E o Joaquim sempre agarrado a elle, beijava-o na cara, na
cabeça, nas mãos. Até que o Thomaz
teve de intervir, era
preciso despegar d'ali por uma vez.
―Com'assim, sr. José, isto tem de ser...―E segurando o
pequeno com força puxou-o para elle. Quando já o
tinha nos
braços, ouviu-se o José Cosme que supplicava de
mãos postas:
―Só um instante, só um quasinadinha, Thomaz!―E
o pobre pae caia de joelhos na areia, n'uma attitude de supplica.
[51]
Mas n'esse momento, o barqueiro saltou de um pulo para o barco, levando
ao colo a creança.
―Rema!―intimou em voz rapida.
O barco recuou então subitamente, ao mesmo tempo que os
remos fizeram
plhau! sobre a agua.
Então o choro do José Cosme tornou-se de uma
violencia desesperada, ao ouvir a voz lacrimosa do pequeno dizendo-lhe
adeus lá do
barco.
―Adeus, Joaquim, adeus!
―Adeus, pae!
―Adeus!
Mas repentinamente, com voz resoluta e firme, o José Cosme
gritou na direcção do barco:
―Thomaz! ó Thomaz! por alma de teu pae faz lá
alto um instante.
Acabou-se! custara-lhe tomar aquella resolução,
mas já agora era melhor ficar sósinho de todo. E
segurando nos dentes um pequeno
objecto, arremessou a jaqueta ao areal e d'um lance deitou-se a nado. O
Thomaz que ouvira o mergulho do corpo, fez recuar o barco; mas o
José Cosme, velho nadador destemido, com meia duzia de
braçadas
ganhou-lhe de prompto a quilha. O filho tinha-se debruçado,
na ancia de
esperar o pae, de o ver ainda outra vez. N'um movimento rapido, o
José
Cosme entregou ao pequeno o que levava entre os dentes, dizendo-lhe a
chorar:
[52] ―É a medalha, Joaquim; é a medalhinha de tua
mãe, meu filho!... Reza-lhe, sim?!
E chorando cada vez mais, o pobre José Cosme pediu ao
barqueiro que lhe chegasse o pequeno para o ultimo beijo...
Dado o ultimo beijo, o barco poz-se de novo em marcha. Vinha a romper a
lua, enorme, torva, afogueada, como se viesse de algum banho de sangue
em região mysteriosa de lagrimas... E no silencio agoireiro
da noite, apenas cortado pelo bater monotono dos remos e pelo bracejar
desalentado do triste nadador, á voz do filho que chamava
respondia cada
vez de mais longe―longe como se fôra do Infinito! a voz
lacrimosa do
pae―com o seu funebre
adeus! que elle bem sabia
ser eterno...
...Só quando o echo do ultimo adeus do Joaquim, perdido na
distancia, diluido no luar que surgia, desfeito no lugente murmurio das
aguas, fundido no derradeiro suspiro da brisa matinal, deixou de chegar
á praia, é que o pobre abandonou o areal e se
foi, sempre a
chorar, tiritando ao frio da sua desgraça, como a um vento
agudissimo do Polo, na direcção do horto
silencioso...
COMEDIA
DA
PROVINCIA
A Alberto Braga.
I
PRELUDIOS DE FESTA
Esse anno, a festa da
senhora das Dôres devia ser coisa de
estalo. A começar pelo juiz, todos os da mesa eram de
respeito―abonados e decididos. Tanto assim, que o fogo preso, que
afinal era o melhor da festa, vinha lá de Chaves, longe que
nem seiscentos diabos.
Mas era obra de geito, acabou-se! Tinha-se dito ao homem que trouxesse
coisa que representasse uma cegonha. O homem respondera que sim, e dava
mesmo a entender que traria mais animalejos, uma bicharada, talvez um
macaco,
se tivesse tempo de o acabar.
―Homem de uma canna! resumiu o juiz quando acabou de lêr a
carta. E correu a espalhar a noticia, orgulhoso de que «no
seu
anno» a
coisa fosse de arromba! Depois,
era um despique. No
anno atraz, o
José da Loja, que tinha sido o juiz, gabara-se do seu fogo,
só
porque
[56]
vinha lá uma peça que era um castello a
dar tiros, assim: Fff! Pum!
―Ora deixa estar que eu te arranjo... murmurou com os seus
botões o Antonio Fagote. E sorria satisfeito, de se lembrar
que na noite do arraial todo o povo o havia de acclamar, dar-lhe vivas
pelo fogo que apresentára. Espalhou-se a novidade. Uma hora
depois, na
villa, ninguem fallava n'outra coisa.
―Então você já sabe?
―Já sei. A cegonha.
―A cegonha e o mais: um cavallo, um bezerro...
―O que eu quero vêr é o camello. Feio bicho,
já viu?
―Pintado. No Monteverde se me não engano. Logo adeante do
Valente Rei Arauto Fiel.
Enganava-se.
O escrivão da camara, que tinha laracha, encontrou-se na rua
com o Alves aferidor.
―Até que emfim, amigo Alves. Até que emfim vou
ter o gosto de o ver arder.
O outro não percebeu. «Que se
explicasse...»
―Um urso, no arraial queima-se um urso.
―Então ardemos ambos, redarguiu embezerrado o
Alves.―Tambem se lá queima um burro.
[57]
Ás duas por tres, o Antonio Fagote viu a casa cheia de
gente. Quem não ia, mandava recado: todos queriam saber se
vinha o animalejo da sua predilecção.
O homem começava a azedar-se. Chegou mesmo a mandar fechar a
porta, por dentro.
―Põe a tranca, se fôr preciso.
Mas então era cá da rua:
―Ó sr. Antonio!
E na porta as pancadas ferviam:
―Truz! truz! truz! Sr. Antonio!
―Éna! c'um raio de diabos!―fazia lá de dentro o
homem, furioso.
―O senhor faz favor? É só uma palavrinha.
Á janella assomava então o Antonio Fagote, com os
oculos na ponta do nariz e a carta do foguetorio na mão.
―O camello? perguntava zangado.―O urso?! Camellos me parecem
vocês, ouviram? O que o homem diz é isto.
E lia a carta, rematando:
―Uma cegonha, outros animalejos, quem sabe lá o que
serão, e talvez o macaco, se houver tempo de o acabar. E
agora, sabem que mais?... Tirava
os oculos e ia-se embora, capaz de os trincar a todos.―Irra!
[58]
E lá de si para si pensava que era melhor ter guardado
segredo. Não fosse elle burro... Mesmo porque cada um
começou logo a
inventar animaes, e todos é que não podiam vir.
Claro! E
não vindo todos, ahi tinhamos nós descontentes. E
havendo descontentes, quem
lucrava era o José da Loja.
―Temos o caldo entornado! pensava afflicto o Fagote, amedrontado com
aquelle espectro do José da Loja, o seu rival! De mais a
mais, já lhe tinha chegado aos ouvidos que o outro agoirava
mal do negocio...
―Farofias! tinha dito o José da Loja. Farofias!
―Pois se m'o diz na cara, arrebento-o! vociferava o Fagote, quando tal
soube.
E arrebentava, que o Fagote era homem para isso, tinha pulso. Desde
rapaz que uma lenda de valentia se fizera na sua vida: contavam-se
proezas, desde uma vez que varrera uma feira, por causa de
eleições. Depois, bom olho para a
caçadeira. D'uma
occasião, que foi preciso dar montaria aos
ladrões, portou-se como um leão, foi
elle que deu voz de preso ao chefe da quadrilha. E como foi que lh'a
deu? A phrase ficou lendaria:
―Como-te a alma se te mexes!
―E o outro não se mexeu, que elle comia-lhe a alma!
commentavam convictos.
Como esta, muitas outras. E foi talvez por estas proezas que a sua
figura adquiriu para a velhice o geito desempenado que tinha. Estava
com 60 annos e a sua attitude viril impressionava ainda agora.
Não era nutrido, mas era sanguineo, tez morena, cara rapada,
olhos pequenos,
[59]
uma largura de hombros que era o principal indicio de força.
Pescoço curto. Mesmo a brincar, quando cerrava os punhos e
arremettia com
força, conhecia-se-lhe a rijeza dos musculos n'aquelle
movimento sacudido.
―Safa! que isso ahi é de ferro! diziam os rapazes. D'uma
canna, hein?
Mas bom homem, d'uma grande franqueza de modos, simples e affavel. Para
se sair era preciso pical-o. E uma vez, quando era juiz ordinario, uma
testemunha tanto o picou em audiencia, que elle desceu lá da
cadeira, foi-se a ella e quebrou-lhe a cara. Por isso fallava
sério
quando promettia arrebentar o José da Loja. A mulher
interveio
pacificadora:
«Que não desse ouvidos a ditos. Deixasse o homem,
que não era tão mau como o pintavam.»
―Ó mulher! cala a caixa e não me defendas esse
velhaco! redarguiu o Fagote. Do que elle é capaz sei eu.
Mas n'esta occasião, de todas as velhacarias do
José da Loja, só lhe lembrava uma: ter sido juiz
o anno atraz!
Isto parecia-lhe com effeito uma velhacaria, feita a elle que era juiz
este anno.
―Pois tu que pensas? dizia elle para a mulher. Quem me metteu a festa
em casa foi elle. Elle é que se lembrou de me escolher, como
quem diz: «entrego-te a vara, sempre quero vêr como
te
arranjas...»
―Nome do Padre, do Filho... A mulher benzia-se «das
idéas do seu Antonio.»
[60] ―Sejam idéas, que não sejam! teimou o Fagote.
Isto foi tal e qual, assim me Deus salve!
―Mas quem t'o disse, homem? Quem foi que t'o disse?
―Quem m'o disse? Olha! E mostrou-lhe o dedo minimo da mão
direita.―Foi este mindinho. Não falha.
E então desabafou: «que não pensasse o
José da Loja, que o havia de levar á parede.
Agora levava! A festa ha-de se fazer, e
festa de arromba;
nanja como a d'elle que
só levava seis
anjos, e
não sei quantos andores, acho que meia duzia!»
―Ó mulher, então é para que saibas
onde chega o brio d'um homem! Caramba! Sendo preciso, ouves? sendo
preciso até vendia a
camisa do corpo. Nem trinta sanfonas como o sanfona do José
da Loja! E
espipava olhos de colera para a mulher que remendava uns saccos,
compungida de ver assim o seu Antonio.
E poz-se então a renovar ordens,
recommendações que a mulher já estava
farta de ouvir. «Mas com tempo é que as coisas se
pensavam, não era ao atar das sangrias!»
―Leitões se os cá não houver,
manda-se o Miguel á cata d'elles por esses povos
á roda. Querem-se de 7 semanas, tres pelo menos.
A mulher contraveio:―«dois seriam bastantes...»
―Mau que ahi principiamos nós!―E poz-se a assobiar e a
rufar com o pé no soalho, arreliado.―Tres é que
hão de ser.
Não quero cá dois, porque dois eram os do
outro, o anno passado.
[61]
A esta razão, a mulher calou-se. O Antonio Fagote gostou do
silencio da mulher, que o lisongeava nos seus despeitos contra o
outro.
―Agora não fanfas tu... insistiu elle, risonho.
É assim mesmo que eu gosto. Signal é que tens
vergonha. A
outra tamem
não é mais que a ti.
A
outra era a mulher do José da Loja,
está
visto.
―Nem mais, nem tanto, emendou a Luiza Fagote, abespinhada.
―Isso mesmo! abundou o juiz da festa. Não me lembrava agora
que antes de casarem...
―E olha que depois de casada... insinuou a sr.
a
Luiza, de venta no
ar, enfiando a agulha. Cala-te bocca.
Façamos de conta que a bocca se calou, com effeito. Que
não se calou. Mas n'este particular, o resto do dialogo
convém que se
omitta, mesmo porque afinal nem eu nem os senhores queremos mal
á mulher
do José da Loja. Ha-de perdoar-me o Antonio Fagote, mas
n'isto não lhe
faço a vontade. O pudor acima de tudo! E ademais elle bem
sabe que eu sou conhecido da mulher. Adeante. Basta que lhes diga que
por uma
associação logica de idéas a conversa
veio parar em vitellas...
―É preciso vermos como ha-de ser isso da vitella, disse o
Antonio Fagote. Sem vitella é que se não faz
nada. Uma
perna sempre se gasta.
Combinaram fallar com tempo ao Manoel Cortador, segurar esse negocio.
De mais a mais sabia-se que o prégador dava o cavaco por um
bom
pedaço de vitella assada.
[62] ―O prégador é que arrasta ahi muita gente,
observou a sr.
a Luiza. Para um boccado de
sentimento não ha
como elle. Quando foi das
missões, o que elle dizia d'aquelle pulpito abaixo!
É quanto se
póde!
―A mim o devem, se cá vem!―disse orgulhoso o Fagote. Que o
homem não queria vir, desculpava-se com a saude: que tinha
de ir a umas caldas, e
14 leguas a cavallo por estas caniculas eram de acabar com elle.
―Isso desaba ahi o poder do mundo! Em se sabendo que é o
missionario...
Estavam n'isto, quando bateram á porta. O Fagote foi ver
á janella.
―Bem, muito obrigado. E a senhora mestra? Estimo, estimo.
Era a creada da mestra regia, foram abrir.
―A senhora mestra manda muitos recadinhos, saber como está
a sr.
a Luiza, e este bilhetinho para o sr.
Antonio.
Entraram todos na saleta. Como era já tarde, o Antonio
Fagote foi accender uma luz.
«Que conversassem, emquanto elle via se tinha
resposta.»
―Muito calor, começou a sr.
a Luiza.
―E então a casa da sr.
a mestra que
é mesmo um
forno, disse por demais a creada.
[63]
E antes que a conversa pegasse, avisou a sr.
a
Luiza, ao ouvido, de que
lhe queria uma palavrinha.
Foram para uma varanda que havia nas trazeiras. A tarde descahia, n'uma
serenidade calma. Sentaram-se uma junto da outra, muito familiares.
―Está se aqui bem! exclamou consolada a sr.
a
Luiza.
―Está. E então bonitas vistas. Mas o que eu
queria dizer era pedir-lhe um favor, disse atrapalhada a creada.
―Se estiver na minha mão...
A outra começou: «A sr.
a
Luiza estava ao facto do
que se dizia d'ella com o criado do inglez. Decerto estava ao facto.
Mas era mentira. Jurava-lhe pelo que havia de mais sagrado que era
redonda mentira.»―Estamos para casar! é o que
estamos!
«Elle já mandara vir os papeis lá da
terra, não podiam
tardar».―Está claro que eu tenho
affeição ao rapaz...
―Elle esteve ahi doente uma temporada, interveio a sr.
a
Luiza, para
dizer alguma coisa.
―Esteve. Umas quartans que o iam arrebanhando. Mas é ahi
que eu quero chegar.
―Que experimente o limão azedo, aconselhou a sr.
a
Luiza.
É milagroso nas quartans. Não se afflija, que
isso não ha-de
ser nada.―E dispunha-se a consolar a rapariga, a dizer-lhe tudo o que
sabia de bom para matar quartans, pensando que era o que ella queria,
afinal.
―Não senhora. O rapaz está melhor. Caso
é que não
[64]
recáia. Mas é por
via d'isso que eu lhe quero pedir um favor.
Chegou para ella o banco de cortiça e confidenciou:
―Já o andam a desinquietar para ir com os mais furtar a
bandeira, qualquer noite. E elle vae, prometteu que sim. Mas veja,
n'aquelle estado! inda não ha nada que sahiu da cama.
―Pelos modos, os rapazes vão este anno longe pelo pau,
disse com pompa a sr.
a Luiza.―Muito longe!
―Ouvi que á Ribeira Velha, ao lameiro do Canellas. E logo
com quem elles se vão metter, o Canellas! Se desconfia,
vae-se para
lá de clavina e faz alguma desgraça. Mais elle,
que é atrevido!
Cautelosa, a mulher do juiz redarguiu que lá onde elles iam
pelo pau é que ella não sabia.
―A outra noite é que para ahi estiveram a combinar, o meu
Antonio mais os mordomos. Não ouvi.
―Pois é lá! exclamou a creada. Mas o que eu
queria, sr.
a Luiza, é que o seu
marido me não
deixasse ir o rapaz na malta,―supplicou
afflicta a rapariga.
―Lá isso, esteja descançada, não vae!
prometteu com grande auctoridade a sr.
a
Luiza.―Digo-lhe eu que
não vae. E se não
quer mais nada...
―Era só isto, muito agradecida á senhora.
N'esse momento entrava o Fagote, em mangas de camisa, os oculos para a
testa.
[65] ―Ora pois então aqui vae a resposta. Má letra, a
sr.
a mestra que desculpe. Mas emfim que leia
como podér.
―Então muita massada co'a festa? inquiriu solicita a
rapariga.
―Muita. Faz lá ideia? Massada e despesa. Olhe que se faz
despesa. Todos os dias são precisas coisas, mais isto, mais
aquillo. Ahi
está que já hoje mandei pedir para o Porto uma
palheta para o clarinete do Alves.
―Chh! fez admirada a rapariga.
―Pois é verdade. Fóra o mais! fóra o
mais! Nicas! E depois d'uma pausa:―Só com o que se gasta no
jantar, e é
verdade que ha muita coisa de casa, mas só com o que se
gasta no jantar, a bem dizer
que se fazia uma horta, além no prado.
―Muita gente... disse a rapariga.
―Muita! e depois de certa aquella... Á meza talvez vinte e
quatro pessoas...
A rapariga benzeu-se!
―Vinte e quatro, p'ra mais que não p'ra menos, insistiu o
Antonio Fagote.―Olhe: o prégador...
―Isso dizem que é coisa asseada! interrompeu a rapariga.
―É. Não o ha melhor. Missionario...―explicou o
juiz. Pois o prégador, um; com mais quatro padres, cinco;
com quatro musicos, nove; o
compadre, os pequenos, dois, doze.
[66] ―A comadre não vem! que pena! fez do lado a sr.
a
Luiza.
―Não. O compadre e os pequenos já disse. Doze. O
Morgado da Fonte e o Antonio Capador, quatorze. O Telles, é
verdade, Telles
escrivão, quinze. (
Pausa). Com mais
alguem que venha,
vinte e quatro.
Póde-se contar com mais de vinte e quatro pessoas
á mesa.―E a rir-se: Mas
ha-de sobrar muita coisa, graças a Deus... E depois os
pobres?
―Isso então é uma praga! exclamou a sr.
a
Luiza.
Até parece que veem do chão assim... E collocava
em pinha os dedos todos das
mãos ambas. Assim...
Mas fazia-se tarde, a rapariga despediu-se.―«Adeusinho! o
que havia de estimar é que tudo corresse como
desejavam.»―E se
fôr preciso qualquer coisa... offereceu-se. As minhas fracas
posses...
―Obrigada. Não faltarão occasiões.
Muitos recadinhos á senhora mestra...
―E que hei-de estimar que o mano chegue de saude, concluiu o Antonio
Fagote.
E então explicou á mulher: «Aquelle
bilhete da mestra era a mandar-lhe perguntar se sempre era certo vir o
macaco de fogo».
―Diz que o irmão, o brazileiro, assim que souber que ha
macaco de fogo no arraial, não tem mão em si que
não
venha. E Deus o queira, porque o ponho ao pallio. Como tres e dois
serem cinco.
[67]
A senhora Luiza quiz saber a resposta que lhe mandára.
―Disse-lhe que sim. Pois?! O que eu quero cá é o
brazileiro. Sempre é homem que sabe dar o merecimento
ás coisas... Mas o diabo
agora é o macaco! ponderou muito apprehensivo.
Está para ahi meio
mundo á espera do macaco...
A senhora Luiza quedou-se pensativa, absorta no seu receio de que o
bicho não viesse.
―Táte! fez o Antonio Fagote, batendo uma palmada rija na
testa.―Dá cá d'ahi a minha vestia. Manda-se uma
«parte» ao
homem.
―Tambem póde ser, concordou a senhora Luiza. Mas hoje
é que não, aquillo já está
fechado, o fio.
―Vae ámanhã. «Agradeço
favores. Traga macaco sem falta». Isto. Talvez accrescente:
«Não se olha a dinheiro».
Mas é que accrescento, por via das duvidas.
Então, a senhora Luiza confidenciou quasi ao ouvido do
homem:
―Ouves? já se não póde ir ao lameiro
do Canellas pelo pau.
―Han? qual pau?
―O da bandeira. Todo o mundo já o sabe.
Elle riu-se.
[68] ―Todo o mundo, hein? Melhor! Oh! oh! todo o mundo!...
E como ella ficasse estupefacta.
―Nunca ouviste dizer que se põe o ramo n'uma porta e que se
vende o vinho n'outra?
―Ah!...
―Mas são verdes. Pois ahi é que vae a historia,
e cantarolou, satisfeito:
O ladrão do negro melro
Onde foi fazer o ninho
Mas o melhor do caso foi no dia seguinte, quando logo de
manhãsinha o Antonio Fagote sentiu bater á porta,
de rijo.
―Vae lá ver o que será, ó
Luiza!―disse da cama o Fagote sobresaltado.
Não tardou nada que o José Manco lhe entrasse de
rompante pelo quarto.
―Vista-se, homem! Ande d'ahi depressa! Vista-se.
―Ha novidade? perguntou logo o Fagote, sobresaltado.
―Vista-se! com dez milhões de diabos! Insistiu o outro.
[69] ―Hom'essa! fez espantado o Fagote. Alguem á morte?
―Peor do que isso! resumiu o José Manco.
―Peor do que isso, então não sei...
―Não tardará que o saiba. Avie-se, que eu
cá o espero na rua.
O Antonio Fagote vestiu-se á toa, aparvalhado. Foi
já na rua que acabou de enfiar a jaqueta. As correias dos
sapatos iam de rastos,
não levava chapeu.
―Prompto! cá estou!
―Venha comigo, avie-se. Abotôe as calças, se faz
favor.
E rodaram rua acima.
―Diabo! mas então...? ia perguntando o Fagote.
―Aguarde, que já vae saber. Não tarda.
De quatro escanchadas foram dar ao adro da egreja.
―Roubaram Nosso Pae, aposto?!
―Peor! redarguiu o outro. Peior! Alto ahi! Ora arregale-me esses olhos
e veja vossemecê isto, esta porcaria!
E tragicamente, o José Manco apontou para meia folha de
papel, pregada na torre com miolo de pão centeio mastigado.
Era um pasquim!
Varios desenhos de
[70]
animaes, sobresaindo um burro de grandes orelhas,
aos coices. E no fundo, em grandes caracteres, isto:―
Farofia!
Por um pouco, Antonio Fagote, de mãos atraz das costas,
amarasmou-se, com os olhos fitos no papel.
E quando o outro pensava que elle ia romper desaustinadamente n'uma
escamação, aos labios do Antonio Fagote aflorou
apenas um sorriso.
―Hum! resmungou. Bem sei...
―Não tem que saber,―fez o outro.
―O patife do Jose da Loja...
―Pois está visto.
―Bem, levará quatro lambadas, epilogou com grande socego o
Fagote.―Arranque lá isso, e venha você d'ahi, se
quer ver.
O José Manco não queria ver, fazia ideia. Mas
opinou prudentemente que era melhor botar o patife ao desprezo.
―Pois sim, disse o Antonio Fagote, dobrando em quatro o papel e
mettendo-o na algibeira de dentro.―Pois sim!
Mas o outro que o conhecia, insistiu no pedido, com certos argumentos
arrancados do codigo penal. «Que não fosse agora
pagar por bom semelhante estafermo. Como mordomo, tambem era com elle a
offensa, com elle José Manco. Mas fazia de conta... Como o
outro que diz,
vozes de burro não chegam ao céo».
[71] ―Bem, levará só uma lambada, attendendo a que
mais ninguem viu isto, disse n'um grande ar de condescendencia o
Fagote.―E você
vá lá regar a horta.
Foi-se d'alli direito á casa do José da Loja.
Estava ainda fechada. Poz-se á cóca, de longe,
com a ira muito
exulcerada pela arrelia d'aquella demora.
―Grande cão! grande cão! monologava.
Até que emfim reparou que a porta se abria. Era o rendeiro
em pessoa, de casaco de lona e chinelos de trança, muito
fresco.
Não deu pelo Antonio Fagote senão quando se viu
ao pé d'elle, cara a
cara entre o balcão e a porta.
―Ó sr. José.
―Dirá.
―Venho aqui saber d'um caso.
Tirou do bolso o papel, desdobrou-o, devagar, e depois de lh'o
pôr ao pé da cara:
―Foi o sr. José que fez isto?
O outro olhou-o, attonito.
―Sim! se foi o sr. José que fez isto?
―Nada, eu não senhor.
[72] ―Jura pela boa sorte dos seus filhos?
Aqui, o tendeiro entupiu, desconfiado.
―Jura pela boa sorte dos seus filhos? repetiu mais de rijo o Fagote.
O José da Loja, moita! Então o juiz explicou-lhe:
―É porque se jura, muito bem. Se não jura o caso
é outro.
―É outro, que outro?!―disse arrogante o José da
Loja, n'um impeto, barriga panda sob o casacorio de lona.
―Isto!―E foi-lhe uma bofetada para a cara.―E muito caladinho, que eu
tambem não digo nada. Agora o papel, olhe! Fel-o em
pedaços, e atirou-lhe com elles á cara
aparvalhada.
Sahiu d'alli e foi
matar o bicho,
tranquillamente, como quem vem de
cumprir uma obra de misericordia.
Na vespera da festa, um sabbado ás 10 horas da
manhã, o fogueteiro passava emfim n'um deslado da villa
direito á capella da
Senhora das Dôres. Largou um foguete, que estrondeou no ar,
galhardamente.
―O fogueteiro! chegou o fogueteiro!
Por toda a villa passou um longo fremito d'enthusiasmo quando se ouviu
o foguete. Deshabituados, os cães ladravam, em correria
doida
pelas ruas. O rapazio levantou-se em algazarra, e correu ao encontro do
fogueteiro,
[73]
a admiral-o, a offerecer-se. Na labuta viva das casas renovavam-se
ordens já dadas. Aquelle foguete era a bem dizer o primeiro
ruido da festa, não havia tempo a perder. De casa dos
mordomos saiam
esbaforidas as creadas, com ordem de se informarem do que precisaria
«o
sr. fogueteiro». Alguns mais previdentes mandaram
almoço, e que dissesse o que queria para o jantar.
Solemnemente, o juiz da festa atravessou quasi a correr a villa,
perguntando a todo o mundo se o que estoirára tinha sido
effectivamente um foguete.
―Foi foguete! pois que duvida! diziam-lhe radiantes. Promettia, sim
senhor! promettia! Se fossem todos assim... Caramba! que estoiro! Pum!
―P'ra que saibam! clamava o Antonio Fagote. E então isto? e
punha-se a girar de volta com o braço―o que é
fogo do
chão?―Mas tinha-se visto em calças pardas para
que o homem não faltasse.
Complicações! Pelos modos tinham-no convidado
para outra festa, com mais bagalhoça,
está claro. O caso tinha estado sério!
Mentia.
―Hein? mas não o enganavam?
―Qual! era o fogueteiro sem tirar nem pôr. Lá ia
elle a atravessar as eiras, com duas bestas carregadas. Caramba! duas
cargas de fogo!
O juiz botou a fugir. Quando passou pela porta do abbade, gritou
cá da rua:
―Senhor abbade! ó senhor abbade!
[74] ―Que é lá?
―Chegue á janella, faz favor?
―Mas está muito sol, entre você, se quer.
―Só duas palavras:
O abbade, um rapaz novo, assomou á janella.
―Que é?
―Chegou o homem!
―O homem! que homem?
―O fogueteiro, quem ha-de ser?
―Ah, sim, disse o abbade a rir-se, velhaco. E você vae ter
com elle?
―De cara.
―Faz-me então um favor?
―Dirá.
―Dê-lhe recados meus.
E retirou-se da janella, a rir, emquanto o Antonio Fagote proseguia no
seu caminho, esbaforido, espalhafatoso, perguntando a toda a gente se
aquillo tinha sido o fogueteiro.
―Grande homem! com seiscentos diabos!
[75]
Quando chegou ao adro estava tudo cheio de rapazes, em redor dos dois
machos carregados. O Fagote cuidou morrer de contente. Foi-se ao
fogueteiro, com furia.
―Esses ossos! e abraçou-o arrebatado, enternecido,
chamando-lhe «seu amigo, seu grande amigo».
―Rapazes! gritou elle então. E tirou o chapeu da
cabeça, muito solemne.―Viva o senhor fogueteiro!
―Viva!
...Isso não juro, porque não reparei. Mas estou
em dizer aos senhores que o Antonio Fagote―chorou!...
I
TYPOS DA TERRA
Desembocaram n'um
largo. Era o
ponto mais central da
terra,―«
a praça.»―Aqui
e alli, ao
acaso, algumas arvores
enfezadas, quasi tudo olmos brancos, vegetavam a medo, com os troncos
protegidos por velhas grades de madeira, desmanteladas. Era um terreiro
vasto, muito chato, com casas em volta,―o que na villa havia de melhor
em
construcções. Ficava ao meio o pelourinho,
exotico, mutilado, d'uma pedra grosseira e
muito negra. Era uma alta columna de oito faces, com o seu annel de
ferro ao meio, e uma argola pendente do annel. A columna, que se eleva
sobre um pedestal de tres degraus, em hexagono, terminava ao alto n'um
grande
X de pedra deitado horizontalmente. Um
espigão de
ferro, de tres gumes como os floretes de esgrima, irrompia hostilmente
do meio do
X, perfurando o espaço. Em volta, a
casaria era triste,
sem estylo,
[78]
sem gosto, sem cal. Algumas
pedras d'armas
em velhas
paredes decrepitas, desequilibradas, hydropicas, attestavam
aristocracias remotas, agora de todo extinctas. Ao alto, dominando a
negrura chamuscada dos telhados, o velho castello, romano de origem,
fazia tristeza com as suas ameias derrocadas, e as grossas paredes em
ruinas.
Ao lado do castello erguia-se destacadamente a velha torre do relogio,
d'uma architectura primitiva. Tinham dado onze horas, mas eram apenas
as sete: aquelle―«
estafermo»―é
que
não andava nunca direito. De dia ninguem o entendia, com o
seu ponteiro de ferro girando n'um mostrador sem lettras, d'uma pedra
azulada. De noite fartava-se de badalar, alvoroçando a
povoação como se fosse a
fogo, ora atrazado ora adeantado, dando meia noite quando eram quatro
da tarde, e meio dia mal despontava
o sol.
Eram as sete. Áquella hora é que
os―«
figuros»―da terra, quasi
tudo empregados
publicos, vinham para o largo, á fresca. Alguns
passeavam,―seu fraque, sua bengala de canna com castão,
chapelinho á banda, sapato branco um ou outro. Nas escadas
do pelourinho, sentados, outros do mesmo feitio cavaqueavam,―colletes
desabotoados, perna cruzada, chapeu para a nuca, ás tres
pancadas. Um de pera
comprida, no degrau superior, contava facecias. Os outros riam
alarvemente, chamavam-lhe intrujão.
Algumas―«
madamas»―pelas
janellas em volta,
nostalgicas, anafadas, de claro. Á porta do estanco, em
cima, havia outra roda,―uns de pé, outros sentados em
caixas, alguns
montando cadeiras de pinho. Era a―
roda mais forte,―quasi
tudo
maiores burocratas:―o Mello da Administração, o
Antunes
da Camara, o Escrivão de Fazenda, o Rodrigues do Real
d'Agua. E outros. Á porta,
perfilado e muito cerimonioso, o dono do estanco, alto, esguio,
flexivel, com a sua
cara rapada e o seu chinó castanho, eriçado e
velho. Era de maneiras
[79]
feminis, uma tallinha melliflua, cantante, viva,
muito desempenado quando andava, saracoteando-se todo, em biquinhos de
pés
como se fosse levantar vôo. Chamavam-lhe Ernestinho.
Não se
podia fallar deante d'elle n'um rato morto, n'uma carocha. Aquillo
«fazia-lhe
nervoso», enojava-o, ficava-se a cuspinhar meia hora, dizendo
constantemente:
―Ai Jesus! ai Jesus! Caticha! Nossa Senhora do Carmo! Nem sei como
não lanço fóra.»
E se riam, elle exasperava-se: não comprehendia como
podessem fallar em taes coisas... De resto, bom sujeito, finorio para o
seu negocio,―um poucochinho beato,―diziam-lhe.
―Meu proveito. Não que eu não quero a minha alma
nas penas do inferno, a arder. Leiam a
Missão
Abreviada,
leiam esse rico livro.
E as palavras sahiam-lhe a correr, espremidas nos seus labios delgados,
um poucochinho sibiladas nos
ss.
―Cigarros, Ernestinho, um vintem d'elles. Querem-se dos de Lima,
d'esses fortes.
Declarou que tambem havia dos «especiaes.» Algum
senhor queria? Tinham chegado tres massos, p'ra ver. Oito por um
vintem.
―Pois guarde-os!―disseram alguns, horrorisados com a idéa
de dar um vintem por oito cigarros.―Guarde-os!
«O senhor engenheiro, quando vinha á villa,
perguntava-lhe sempre por elles. Dos de Lima nem o cheiro,
não gostava.»
[80] ―Olha o figurão!―disseram a rir. Por esse mundo fora
sempre ha muito idiota! forte cavalgadura!
O Ernestinho veio com os cigarros, em feixe nas pontinhas dos dedos.
Á porta, antes de os entregar contou-os de novo. Doze.
Estavam certos.
―O senhor Ernesto, se faz favor, ponha isto lá no caderno,
ao pé dos outros.
Ernestinho foi para dentro, contrafeito, fazer o apontamento. Houve um
silencio opprimido, o dos cigarros tossiu para o quebrar, ao mesmo
tempo que n'um gesto acanhado, receoso, fazia
menção de
offerecer:―«alguem era servido?»
Dentro do balcão, ao pé das garrafas com
licôr, e das botijas de genebra, Ernestinho sommava a conta.
Era já
taluda.―«E vão dois e dois quatro e dois seis,
seiscentos e vinte! Sabe Deus quando os receberia!»―E
suspirava, arrumando os massos encetados, sob
o olhar tranquillo e indifferente do Santo Antoninho que lá
estava
em cima, ao alto das estantes quasi vazias, no seu nicho feito d'um
caixote forrado
a verde, com flores artificiaes muito sujas e duas velinhas dos lados.
Mas resignava-se, que não tinha outro remedio. Eram os ossos
do officio...
Cá fóra tinham dado fé,
acotovellavam-se chamando asno ao Ernestinho,―um pulha a quem ajudavam
a viver... Se hoje não
ha dinheiro, ha-o amanhã, essa é boa! E
pagava-se,
c'os diabos! E pagava-se. Mas não senhor! aquella besta
mostrava sempre
má cara, o alarve! A culpa tinham-na elles, afinal que o
procuravam, que o preferiam. Tomaram os outros ter aquella freguezia...
[81]
O dos cigarros fiados annuia, assobiando baixo o
Agua leva o
regadinho. Por fim levantou-se, lentamente, com um ar de
enfado, um
sorrisinho de despeito nos labios, encolhendo os hombros.
―Estender as pernas,―disse. Quem vem d'ahi?
Todos ficavam, era uma estopada andar p'ra traz p'ra deante, n'aquella
semsaboria da praça.
―Até logo. Você apparece no
sitio,
á
noite?
―Appareço, vou á desforra.
E cumprimentando em roda:
―Meus caros! Muito boa tarde, sr. Ernesto.
Foi-se, puxando para baixo as pernas da calça, alisando as
joelheiras.
―Que tal está o asno, hein? Quer, ainda por cima, que o
Ernestinho lhe diga
bem-haja...
Era um parvo.―Era um tolo.―Tinha dividas nos outros estancos.―Em
toda a parte.―Lá em casa a familia passava fomes.―Um
batoteiro
de marca.
Houve agitação, alguns pozeram-se de
pé, outros mudaram de logares. Ia a passar um grande carro
de palha chiando muito. Ernestinho chegava-se de
novo, muito ronceiro, roendo as unhas.
―Com que então...
ponha lá ao
pé dos
outros?―disseram-lhe, para o lisongear nos seus
despeitos.―Bem bom
freguez!
[82]
Elle encolheu os hombros e cerrou os olhos, beatificamente, n'um gesto
de martyr resignado. E não disse palavra―p'ra fallar
d'aquelle tinha de fallar tambem d'elles...
Mandaram vir limonadas,―tres limonadas!
―Ahi vão trinta réis!
Diabo! era preciso animar aquillo. Assim não tinha geito. E
pozeram-se a fallar do tempo, das moscas, d'aquelles idiotas que
andavam na
praça a dar-se ares. Ensoberbecia-os a ideia de que iam
tomar tres
limonadas,―e sentiam-se felizes, alegres, um tanto estroinas.
O Ernestinho deu dois passos fóra da porta, e chamou para a
varanda, onde grandes mangericões floriam:
―Ó Emilia! Emilinha!
A mulher assomou, gorducha, muito molle.
―Tres limonadas, ouves? Tres limonadinhas, depressa.
As conversas animavam-se. Pois senhores! havia de ser difficil
encontrar uma collecção d'asnos assim. Falavam
dos que
passeavam na praça, aos grupos.―Deus os faz, Deus os
ajunta. O palerma do Fernandinho dera-lhe
agora para cantar. Lá andava elle. Volta meia volta,
Vai alta a lua
na
mansão da morte
com umas tremuras na voz, que eram mesmo de o esbofetear. Estava
antipathico, aborrecido, desde que andava de namoro com a Marques.
Só tinha uma coisa boa―a
[83]
caligraphia.―Um talhe de letra
bonito,―confessavam.―E as calças, hein? reparem
vocês n'aquellas calças, vae flammante.
Casualmente, Fernandinho olhou de
longe para os do estanco, disse-lhes
adeus com a
mão,
affavel.
Corresponderam todos, muito risonhos, mas a chamar-lhe nomes por entre
os dentes:―idiota, palerma, pechisbeque...
Sósinho, n'uma lentidão moribunda, olhos nas
botas, olhos no céo, o Telles escrivão passava ao
largo, ruminando alguma poesia.
Ás vezes quedava-se extatico, suspenso, o pollegar esquerdo
entre os dentes, um olho cerrado fortemente, a meditar. Vinha um gesto
e punha-se de novo
em marcha, contrafeito.
―Ó senhores! mas não me dirão em que
anda a parafusar o Telles, aquelle telhudo? E isto:―e poz-se a imitar
o escrivão.
Riram. O Mello imitava-o bem, o alma do diabo, no andar especialmente.
Mas aquillo era um logogripho. Ha uma semana ás turras a um
logogripho em acrostico.
―Isso é o Telles!―fez um que vinha da
praça.―Aquillo é um intrujão. Na rua
não é que se adivinham logogriphos.
Ó Ernestinho, você ainda tem d'aquillo que
ferve?
O Ernestinho deixou descair o labio, não percebia...
―Homem! d'aquillo que vinha n'umas garraforias escuras, compridotas...
―Quer dizer gazosas. Uma rolha segura com guitas...
[84] ―Ora é isso mesmo, nem mais.
―Bem sei.
Mas não tinha já. Nem mesmo queria mais, p'ra
que? Achavam caro um tostão...
―Eram aos tres para beber uma garrafa...
―Podera! Por um pataco, trinta réis levando o assucar,
fazia o
Hervas uma sóda,―objectaram
alguns. Ponha
lá que em
gosto é a mesma coisa.
―E aquella porcaria, ó Ernestinho, e aquella porcaria
amarella que sujava tudo de escuma?
Alguns cuspiram, disseram ao Alves que se calasse, que vomitavam, com
seiscentos diabos!
―Cerveja!―disse o Ernestinho―cerveja! uma coisa que lá
p'ra baixo toda a gente bebe por gosto, as senhoras mesmo.
E com um sorriso de desdem, exclamou:
―O que é ser do calcanhar do mundo! Em nome do Padre, e do
Filho...
Mas na praça um grupo altercava. Ouviu-se distinctamente a
palavra―«
pulha»―pronunciada
com
força. Sahiram em tropel, ficaram só tres.―O que
pagava as limonadas exultou:―Homem! nem de proposito! Ficava
exactamente quem elle queria, estava mesmo a ver que aquella sucia lhe
chupava o refresco:
―Tó Russa! já lá vae esse tempo.
[85]
Precisamente, a senhora Emilia chegava, com os copos n'uma
bandeja:―Que provassem, diriam se precisava mais assucar. Mas
parecia-lhe que devia estar bom...
Beberam d'um trago, estava optima. A senhora Emilia tinha dedo para
aquellas coisas.
―Obrigado, ó Mello!
―Obrigado, ó menino!
E os dois sairam de rompante, chamando
pato ao
Mello, rindo-se d'elle
e limpando os beiços.
Quando o Mello ia sahir,―a ver o que ia na praça,―o
Ernestinho, muito cortez, objectou-lhe que faltavam trinta
réis:―Se alli
não tinha, depois. Isso era o mesmo...
―Mas trinta réis?!... De que são os trinta
réis?―perguntou desconfiado o Mello.
―Do assucar, foi do refinado,―explicou o Ernestinho. O mascavado
acabou-se. Amanhã ou depois já devo ter mais. O
senhor Mello desculpe.
Não tinha que desculpar; sómente notava que
aquellas coisas diziam-se no principio.―E sahiu sem dar mais palavra,
furioso:―Uma ladroeira! Tres
vintens não valiam os dois que lhe tinham chupado o
refresco...
Na praça tinha cessado a altercação,
os grupos, reunidos, formavam uma grande roda, commentava-se. O Mello
quiz informar-se:―que lhe contassem―«
o
escandalo».
Ora! não fôra nada: o Veiga que se tinha lembrado
[86]
que as correspondencias na
Voz do Districto eram
escriptas pelo
Albano. Disse-lh'o na cara. O Albano negou, deu a palavra de honra. O
Veiga que
é casmurro, teimou:―que não acreditava, ainda
assim!―Vae o outro chama-lhe pulha, iam-se pegando. Ora ahi
está!
―Mas afinal, quem diabo escreve aquillo?―quiz saber o Mello. Aquillo
ha-de ser escripto por alguem, está claro.
Dez réis pela novidade! Que havia de ser escripto por alguem
sabiam elles...
―Quem, então?
Divergiam as opiniões. Podia ser Fulano, podia ser Beltrano.
Um ou outro dava a sua palavra de honra que tambem não era
elle,
jurava-o. Houve um que se lembrou se aquillo seria do padre
Mendonça.
―Qual! Do padre Mendonça não é. Fazia
coisa melhor, se se mettesse n'isso. Olha o padre Mendonça,
o da
gibreira de Braga...
Mas o da idéa insistiu, renitente:―havia alli suas coisas
que o faziam lembrar, certas facecias, como a de chamar
Frei
Asneira
ao Reitor e
Cabeça de Comarca ao
Felisberto.
―Pois se é elle, que se regale, póde limpar as
mãos á parede. Mente como um alarve, mente da
primeira linha até á
ultima!―disse firmemente o verdadeiro auctor das correspondencias.
Olhem o que elle diz do juiz de direito, só calumnias! O
juiz! um homem teso! Tem
lá o seu fraco pelas saias, mas isso, que diabo! isso
não é
defeito.
[87]
De resto, eram todos accordes em que as correspondencias eram uma
infamia. O que se chama uma infamia pegada. Mexericos e mais nada, uma
coisa de soalheiro. E depois, o dizer-se lá que entre os
rapazes não havia duas amizades leaes, que era tudo uma
impostura...
Houve um silencio significativo, talvez de
approvação.
―Só de pulha!―rematou, por fim o Nunes da Fazenda, o tal
que escrevia as correspondencias com o pseudonymo de
Aramis.
Vejam
vocês
aquellas gallegadas ao commendador. Aquillo chama-se lá
fazer
politica?! Discuta-se o homem como presidente da camara, sim senhor,
discuta-se o homem publico, o funccionario; mas deixe-se-lhe em paz a
marreca, os fundilhos das calças;
ninguem quer saber se os
creados lhe
param em casa ou se não. E depois, aquellas
allusões
á família, aquellas piadas á D.
Engracia, pobre velha...
―A quem?―interrogaram uns poucos. Á Dona quê?
―Á D. Engracia, está bem de ver. Aquella beata
que fazia piugas de lã aos missionarios é ella.
Presumo eu que é
ella—fazia o Nunes das correspondencias com um
grande ar de
supposição.
Eu cá foi para onde deitei.
Os outros não. E como o das correspondencias tinha
promettido explorar a chronica beata, aguardariam mais
informações.
Suppunham, no emtanto, ser com a D. Joanna, a
do―«
chá de herva
cidreira.»―Outra canalhice! A D. Joanna, para
festejar os
annos da filha, convidára tudo,
lazarões e penicheiros, não
fizera politica.
Depois foi aquella tareia
que se viu:―que o chá era herva cidreira, que tinham bolor
os
doces de ovos, que ella parecia a quaresma e a filha o entrudo. Ora
isto
não se diz, a pobre mulher doeu-se. Citavam-se de
cór phrases inteiras
[88]
da correspondencia. Por exemplo:―
A
deusa da festa dizem que recebeu telegrammas de... amor.―Uma
facecia
de mau gosto alludindo ao
Proença telegraphista. Depois do que por ahi se diz,
é forte... Que
afinal, quem sabe lá? Entre os dois que diabo
póde haver?
Namoro?
No grupo alguns tossiram forte, rindo. O Nunes interveio:
―Não senhores! Isto agora alto lá. A Amelia
é uma rapariga séria...
Riram ás gargalhadas, foi um barulho com a tosse.
―Quando digo uma rapariga séria... Mau! Accommodem-se
lá com o
banzé,
vocês deixem
fallar,―tornou o Nunes, formalisado. Quando
digo uma rapariga séria, quero dizer... sim... quero
dizer...―e
procurava a phrase, entalado,―por exemplo, que ella não
é
capaz de receber ninguem, alta noite, lá pelos quintaes,
como o tal das
correspondencias quer fazer suspeitar.
Iam replicar-lhe, mas elle atalhou:
―Chama-se áquillo ser canalha ás direitas, arre!
Isto agora é fallar franco.
Saltaram-lhe:
―E você jura, ó Nunes? você
jura?―perguntou, com gesto perfurante, o Alves dos Pesos e Medidas.
Não... isso agora...Jurar, não jurava, mas, c'os
diabos! pelo que se via, pelo que se podia julgar...
―Léria!―disseram todos.
[89]
O Nunes parece que estava com os beiços com que
mamára. Com que então, para elle era tudo uma
récua de
santas? Desenganasse-se,
que era tudo uma canalha, uma corja de sonsas. Que diabo de
ingenuidade!
O Nunes observou modesto, quasi agradecido:
―Ingenuidade, eu te digo... Não é bem isso... O
que sou é prudente. Desconto sempre noventa por cento
áquillo que
vocês dizem, ahi é que está...
―Vocês é um modo de fallar,―emendaram alguns.
―Vocês, digo eu, vocês... quando escrevem
correspondencias,―explicou sophisticamente o Nunes.
Calaram-se, disfarçaram. Proximo d'elles, a Amelia toda de
verde, com guarnições de fita preta, caminhava ao
lado da
mãe, solemnemente. Tiraram todos o chapeu, cortejando
risonhos, respeitosos. O Nunes foi cumprimental-as, submisso.
―Dar o seu passeio, não é verdade?―E
apertando-lhes a mão:―Vosselencia como passou? A senhora D.
Amelia?
Obrigadissimo. Assim... assim...
Então? que diziam áquelle calor?
―Abafava-se, alli pelas duas. Que forno!
―O Brazil tal e qual―reforçou o Nunes.
Mas que fôra feito, que as não tornara a ver desde
os annos? Uma noite de truz, aquillo sim!
[90] ―Olhe, senhora D. Amelia, a flauta... a flauta é que nem
por isso, foi pena! O Abelsito andava constipado.
A D. Amelia explicou. A mãe ficara doente, já
não era para aquellas noitadas.―E em voz mais baixa, quasi
dolente:
―Depois, veio a
Voz do Districto, aquillo
chocou-a muito.
―Não ha tal!―fez a mãe. Metteu-se-te isso na
cabeça. Deixe-a fallar, senhor Nunes.
E por pouco que não chorava ao dizer isto.
O Nunes affectou um sentimento profundo:―Era melhor não
fallar n'isso, não pensar em tal; todos as conheciam, todos
lhes faziam
justiça. Tinham acabado de fallar na tal correspondencia,
agora mesmo. Uma garotada!―resumiu o Nunes.―E em tom confidencial:
―Anda-se na pista do garoto. Elle ha-de apparecer. E depois... e
depois... Muito boa tarde, minhas senhoras! O que fôr
soará. É preciso dar um exemplo,―concluiu
terminantemente. Uma severa
lição!
Despediram-se, ellas agradeceram ao Nunes―«a parte que
tomava no seu desgosto.»―E seguiram cumprimentando para as
janellas,
perguntando se vinham d'ahi, um boccadinho até á
capella,
espairecer.
As Silvas pediram que subissem. Um boccadinho só. Ficava
muito bem aquelle vestido á Amelia.
Não podiam subir, talvez á volta.
[91] ―Pois sim, has-de ver o meu bordado a missanga. O papagaio
está quasi prompto, que trabalhão!
Estava na duvida se lhe poria o bico assim, de gancho. Não
gostava. O risco era do Fernandinho. Já lhes fizera outro,
talvez mais
bonito. Coisas de anjinhos:
―Verás.
Os grupos tinham-se reunido em volta do Pelourinho. Passava gente que
vinha do trabalho, da labuta aspera da eira,―homens com malhos, e
mulheres de cestas á cabeça. A tarde descahia
n'uma serenidade calma. No degrau de cima, o Paula, official da
administração, com fama de typo de
chalaça, cantava em surdina umas cantigas de caserna,
obscenas, zaranzando na barriga como se fosse uma guitarra. De volta,
os outros formavam roda. Todos riam, pediam
bis.
―Tu has-de conhecer isto, ó Chico,―dizia o Paula para o
Francisco Maria, um cabo que estava de licença. Tu has-de
conhecer
isto.
O administrador do concelho, um pobre diabo desmazeladão e
philosopho, affirmava que lhe lembrava Coimbra, a pandega das viellas.
Ao Paula valia-lhe a prenda, palavra de honra que lhe valia a prenda,
senão já o tinha demittido, ás vezes
que lhe entrava borracho pela
repartição. E pedia a rir, boçalmente:
―Ó Paula, aquella do
bate-bate, canta
lá.
E trauteava as primeiras notas, castanholando com os dedos.―Se era
preciso, o Fernandinho ia pelo violão.
[92] ―É verdade, você que fez hoje que não
me appareceu na repartição, ó
Fernando?
―Dormi, está claro. Ao senhor doutor acontece-lhe o mesmo
ás vezes. Olhem que pergunta!
Mas o Paula tinha-se calado, bocejava.
―Então, ó Paula...―supplicava o administrador.
―Está fechado o realejo... Depois.
Quem lhe dera que fossem as nove para irem até ao
«sitio». Ou perder ou ganhar; tinha alli seis
tostões que eram para um
mico.
―Mas eu não lhe dizia, sr. doutor? eu não lhe
dizia hontem que a
dama se negava? Eu estava
mesmo a ver aquillo...
Bem feito!
«gramou» um entalão que se consolou.
―Quatro corôas.―Na vespera tinha ganho um quartinho.
N'esse momento passava o juiz, sósinho como sempre. Todos
tiraram o chapeu, elle passou gravemente, cortejando.
―Quem eu te quero á perna é o
Aramis...―rosnou o Telles escrivão que
embirrava com o
juiz desde que o suspendera uma vez.―E ainda elle
não sabe tudo...―insinuava perfidamente.
―Pois o resto diga-lh'o você, diga-lh'o no
Almanach
de
Lembranças, em verso―fez d'um lado o Rodrigues
do Real
d'agua.
[93]
O Telles, com famas de litterato, redarguiu que não dava
confiança a analphabetos.
―E eu a brutos, sabe você?
Mau! que elles lá começavam. Officiaes do mesmo
officio... Ó senhores, lá porque ambos faziam
versos não se seguia que
devessem embirrar um com o outro. Pelo contrario.
O Telles, furioso, disse que não embirrava com o outro, que
nem lhe dava essa importancia, essa honra.
O Rodrigues ia saltar-lhe, tiveram mão n'elle. Mas jurou que
d'outra vez seria, que fizesse de conta que já lá
tinha na
cara quatro bofetadas tesas.
―Tesas, hein? olá! quatro bofetadas tesas.
Havia de dar-lh'as, tão certo como dois e dois serem quatro,
só para ter o gosto de dizer depois, n'um communicado, que
desaffrontara as lettras
portuguezas,―elle, o Rodrigues, elle, um simples fiscal do Real
d'Agua.
Aquillo fez surpreza, convidaram-no a explicar-se.
―Não senhores! dizia colerico o Rodrigues, com grandes
gestos.―Bem sei que não valho nada. Escrevi, é
verdade que
escrevi; faço ainda o meu verso quando me dá na
cabeça. Uma rapaziada!
Estão maus? Concordo. Mas não ha de ser aquelle
négalhé que o
ha-de dizer. Não o julgo habilitado. Lá porque
tem soletrado dois romances,
não se segue. Mas o que mando para publico sim, o que
entrego aos prelos―é
meu!―E batia no peito com a larga mão espalmada, furioso,
n'umas raivas, de
orgulho triumphante.―Não roubo! nunca roubarei!―affirmou
[94]
mais alto
o Rodrigues, para que o Telles que se ia retirando, no meio de dois
amigos, conciliadores, o ouvisse.―Repito: não roubo,
não faço como elle!―E as palavras sahiam-lhe
salivadas, violentas, por entre os labios espumantes, atiradas ao
Telles como pedradas.
Os outros escutavam agora com interesse. Estavam a dar razão
ao Rodrigues, instinctivamente, sem comprehender bem o que elle queria
dizer.
―As provas...―e metteu a mão no bolso do seu casaco de
lona, com impeto:―as provas, vel-as aqui estão!
Mostrou no ar a brochura verde do
Almanach de
Lembranças.―Era do anno que vem, tinha-lhe
chegado hoje.
Alli estava o Peres do correio que
lh'o tinha entregado elle mesmo.
―Sou testemunha―confirmou do lado não sei quem.
O Rodrigues, então, affirmou que era preciso historiar,
contaria a coisa em duas palavras. O sr. Telles, o borrabotas do sr.
Telles, lembrara-se
um dia de ser escriptor, de ser poeta. O alarve! Todos os
annos―zás! versalhada para o
Lembranças...
―Era collaborador―disse o Antunes da Camara que admirava o talento de
Telles.―Era collaborador.
―Era quê?―interrogou logo o Rodrigues, de mão
atraz da orelha.―Massador, massador é que elle era. Nunca
lhe
admittiram as asneiras, se me faz favor, nunca! Na
correspondencia
troçavam-no, chegaram a dizer-lhe que podia fazer fortuna
pelas tombas, que o
não chamava Deus para as lettras. Aquelle
Serei
ousado?
é
elle, sei que é elle. Nunca o admittiram.
[95] ―Lembro-lhe a
Flor do Campo, sr. Rodrigues,
lembro-lhe esses
versos―insistiu o Antunes.
O Rodrigues teve um risinho feroz, fitando o Escrivão da
Camara. Não lhe respondeu. Subiu os tres degraus do
pelourinho, pausadamente, com pompa, e chamou a
attenção dos amigos. Ia ler.
Abriu o
Almanach de Lembranças, onde
trazia um papel, e
rompeu:―«Indignidade».
―Em lettras bem graúdas, queiram inspeccionar.
E colou ao peito o
Almanach, voltando para
fóra na pagina
onde o seu dedo reboludo apontava a terrivel palavra, escripta ao alto
em epigraphe.
Houve um sussurro, alguns pediram silencio. O Rodrigues que
lêsse.
«Os versos intitulados
Flor do Campo,
que viram a luz no
Almanach de Lembranças do anno
extincto, foram-nos
remettidos pelo sr.
José Maria Telles, escrivão.»
―Copiados por mim, uma letra floreada―esclareceu o Fernandinho.―Elle
depois assignou―e fez no ar, com o dedo, o traço complicado
da firma complicada do Telles.
Pediram silencio outra vez. O Rodrigues continuou:
«Publicámol-os na convicção
de que eram da lavra d'aquelle senhor, pois que elle os
assignava.»
―E então?―perguntaram uns poucos, sem comprehender ainda.
―«Pura illusão!»―continuou
solemnemente o Rodrigues.―«Escreve-nos
[96]
o mimoso e assaz
conhecido poeta sr. Alfredo Mendonça, dizendo
que os versos lhe pertencem, e que o sr. Telles os roubara (sic) do seu
volume
Lyra Matutina.»
Foi uma estupefacção! O Rodrigues proseguiu mais
alto, fugindo aos commentarios:
«Averiguámos, e d'isso alfim nos convencemos. Os
leitores avaliarão a probidade do sr. Telles, a quem mais de
uma vez tinhamos fechado a
nossa porta por incapaz. Hoje damos-lhe com ella na cara―por
indigno.»
E o Rodrigues fechou o livro com estrondo, como os outros fechariam a
porta na cara do Telles escrivão; tomou praça
fóra, o livro debaixo do braço, e foi-se para o
estanco do Ernestinho, altivo,
solemne,―vingado!
Os da roda seguiram-no silenciosos, corridos de vergonha, desnorteados,
porque além de sempre terem julgado o Telles muito superior
ao Rodrigues―e o Rodrigues bem o sabia, olha elle!...―tinham dado uma
sorte de mil demonios, agora é que elles viam! distribuindo
no theatro, por occasião da festa de Santa Barbara, a
Flor
do Campo
que elles tinham mandado imprimir avulso―para lisongear o Telles que
tivera o trabalho de os ensaiar no
Santo Antonio.
Hein? quem diabo
havia de dizer que aquelles papelinhos de côr, uns verdes,
outros
amarellos, chovendo sobre a plateia entre o segundo e o terceiro acto,
e quasi disputados a murro, n'um alvoroço de seiscentos
diabos,
encerravam uma insidia,―um logro á boa-fé,
á
credulidade ingenua de toda a comarca!
E relembravam episodios, particularidades quasi extinctas: o
Fernandinho vestido da menino do côro, batina vermelha e
roquete de
rendas, cobrindo-se de teias de aranha
[97]
lá pelo
fôrro do
theatro, de gatinhas e com um «tôco» de
vela na mão,
aos tropeções, só para ter o gosto de
ser elle a despejar do
oculo aquella papelada; o
Mello da
administração, vestido de Frei Antonio, sandalias
e grande chinó de calva
redonda, feita d'uma bexiga de porco, com o Telles em triumpho por
entre os bastidores, seguido pela turbamulta dos companheiros, em
habitos de frade e fardetas de galuchos, dando vivas ao
poeta!
ao
grande Telles,
ensaiador da rapaziada!
Que desastre! Afinal tinha-lhes sahido um intrujão! E quasi
se regalavam da sorte que tinham dado, pelo prazer que sentiam de o ver
agora humilhado, corrido, esbofeteado pelo ridículo. Bem
feito!
O Antunes da Camara, sobretudo, estava furioso. Fôra elle o
da lembrança de se mandar imprimir a versalhada. Escrevera
para Coimbra ao Manuel Caetano, ao Manuel Caetano da Silva,
Praça Velha n.º 11,
que mandava os impressos para a camara, e pedira-lhe aquillo como
especial favor. O homem―prompto. Duzentos exemplares, quinze
tostões. Quinze
tostões que se tinha combinado dividir por todos, contas do
Porto, mas que desembolsara elle só, afinal. Bem feito!
ninguem o mandava
ser burro. Arre! cavalgadura!
E dava patadas no chão, cada vez mais furioso, apopletico.
―Mas a bem dizer, tudo isso é nada!―continuou commovido o
Antunes.―Ó senhores! e a figura que eu fiz... sim, a figura
que eu fiz n'aquelle intervallo do drama para a farça?...
Todos desataram a rir, tinha sido fresca... Elle sempre acontece cada
uma! E relembravam:―levantara-se
[98]
o panno quando os ouvintes menos o
esperavam. Os que tinham sabido lá fora, ás
doceiras, voltaram apressadamente com os cartuchos na mão,
ensacando os
rebuçados. Ia um reboliço pela plateia. Na
«galeria dos
camarotes» para onde só iam senhoras, gente fina,
começavam a apparecer caras barbadas
de sujeitos que iam saber «que tal», perguntar se
ia uma
pinguinha de licôr, um docinho. Em cima, na galeria alta,
creadas e raparigas do povo, debruçadas no parapeito,
apontavam para o palco, d'olhar
attonito.
―Elle que dianho é?―perguntavam.
De baixo, da plateia, todos faziam
chut! voltados
lá para
cima:
―Caluda, sua gentalha!
No palco estavam todos perfilados, trajando como na peça. O
Freitas da recebedoria com o seu fato de Marco Aurelio; o Paula de
cardeal, baculo
em punho e a cara mettida n'uma estriga; o Fernandinho de menino de
côro, todo lépido; a Anna Pisca muito acanhada no
seu fatinho de Olivia; a Margarida que tinha feito de anjo no quadro
final da
Gloria, em que
ella subira n'um cesto vindimo á
«região sidéra dos astros»; o
pae de Santo Antonio, em ceroilas e de saia branca pelo
pescoço,
livido como saira do tumulo; aquella canalha da tropa―todos emfim!
N'isto, entra pelo fundo o Telles todo de preto, no meio do Mello
vestido de Santo Antonio e do Proença telegraphista que
fazia de Frei Ignacio. Avançaram. Em baixo, o Felisberto
mandou tocar o
Hymno da Carta á meia duzia de musicos que não
entravam na
peça. O hynmo rompeu com grande estampido de pratos, n'uma
[99]
cadencia funebre. No palco, tudo immovel. Ninguem sabia o que era
aquillo, não estava no
cartaz. Esquecimento do Fernandinho, talvez... pensavam.
Mas ao acabar o hymno, o Antunes da camara, com farda de
centurião, durindana e botas d'agua, irrompe furioso do
buraco do ponto e
préga um discurso na bochecha extatica do Telles:
«Não era elle o mais competente, de certo, o
mais... etc. Mas tinham-no encarregado, obedecia... e tal.
Só sentia não ter
phrases, oratoria, porque emfim estava falando a um
poeta...―collaborador do
Almanach de
Lembranças para Portugal e Brazil―accrescentou
voltado
para o publico, esclarecendo. Emfim, finalmente... vinha para aquillo:
dar-lhe um
abraço em nome de todos...―e abraçou-o
commovido, emquanto os
espectadores berravam
apoiados, dando
palmas―«... e para
isto»―accrescentou fazendo com a mão que se
calassem, que se calassem depressa.
Houve um sussuro de applauso, dos camarotes creanças
gritavam―«ó Emilinha!» Era com effeito
a Emilinha, a filha do Alves dos
Pesos e Medidas, que sahia tambem do buraco do ponto, vestida de anjo,
tules verdes e muita lentejoula a brilhar.
Ficou-se a olhar a plateia, immovel, muito fria, ensaiada, emquanto o
Felisberto preludiava na flauta. Em certa altura, n'um requebro doce da
«melodia», elle fez-lhe com a cabeça
«que entrasse», e a Emilinha rompeu n'uns guinchos,
cantando a
Flor do Campo, com musica da
Muchagateira original do Peres do correio.
O Telles sorria, entre glorioso e modesto, fallando a Santo Antonio e a
Frei Ignacio:―Era de mais, era de
[100]
mais, elle não
merecia...―Ora essa! pareciam dizer-lhe os outros―seriamos ingratos
se...
A «cantoria» acabou, o theatro parecia desabar com
palmas, tudo berrava, um ou outro cão latia. Se
não quando, os do palco
desataram a rir, cosendo-se uns aos outros, fingindo um grande medo de
que as bambolinas
do tecto desabassem.
Todos olhavam, curiosos. E n'aquella espectação
viram de repente descer do alto, sobre o palco, agarrado a uma corda, o
Freixedas da Mercearia vestido de Lusbel, rubro e com chavelhos.
Cuidaram de estoirar a rir.
Da bocca muito inchada sahiam-lhe faulhas, do algodão a
arder
que lá trazia dentro. Fazia caretas horrendas, arremedando
Satanaz nos impetos da colera. O panno começou a descer,
obliquo, esfarrapado d'uma
banda. O Freixedas, suspenso, atirou fóra o
algodão e
gritou, furibundo:
―Alto! suas bestas! Inda não!...
Voltou-se de costas para o publico, e um letreiro que trazia d'hombro a
hombro dizia em caracteres amarellos―
C'est fini!
O panno desceu
então, estabalhoadamente. Os espectadores olharam uns para
os outros, não tinham percebido... Foi n'esse momento que o
sr.
Antoninho, que tinha estudado em Braga, traduziu d'um camarote, em voz
alta:
―
É findo!
VAE VICTORIBUS!
A Maria Lucilla.
Em dezembro,
ás seis é noite cerrada. Mais
boccado, menos boccado, a essa hora recolhia do monte o José
Gaio, sósinho,
sachola ao hombro, um pouco atarantado com a trovoada que rugia ao
longe, em surdina. Por
cima d'elle, o céo ia-se fazendo cada vez mais negro, d'essa
negrura espessa de tempestade que infunde pavôr á
gente, e da qual
os proprios passaros teem medo. Cessara de chover. Mas o vento do sul
principiava agora, agitando os grandes ramos despidos dos castanheiros,
fazendo-os
murmurar não sei que extranha elegia... A um relampago mais
vivo, o
José
[102]
Gaio apressou o passo, e, benzendo-se, rezou a
Magnificat. O
trovão chegou, depois, lugubre, cavernoso, alastrando-se em
roldões na
larga amplitude do céo. Debaixo dos pés, o
José Gaio
sentia o caminho lamacento, encharcado das enxurradas valentes de todo
o dia. Mas a ponte
já não ficava longe. Depois, a ladeira, e no meio
da ladeira a casa.
―Vamo' lá com Deus! fazia elle animando se.
Um clarão subito de relampago deslumbrou-o. Deante d'elle
surgiu de repente a paizagem, e de repente desappareceu, feericamente
illuminada.
Deitou então a correr, aterrado; mas tão forte
veio em seguida o trovão, que elle instinctivamente parou e
levou ao céo as
mãos afflictas, n'um gesto de quem implora misericordia.
N'aquella imminencia de perigo as proprias arvores lhe pareciam
immobilisadas pelo terror, á
beira do caminho. E atravez dos castanhaes, o surdo rumor do vento era
como a
voz implorativa da natureza, unindo-se á voz d'elle n'um
longo
côro de supplicas...
O José Gaio ia transido. Mas peor ficou quando de repente,
sem saber d'onde, alguem chamou por elle, lugubremente:
―Ó José Gaio!
O homem parou. E como perto d'elle apenas enxergasse os
braços da cruz negra, que era o signal de alli terem matado
o José
Tendeiro, ha annos, apertou o passo e tomou por um atalho, direito
á ponte. Mas
então a mesma voz tornou-lhe mais de perto:
―Ó José Gaio!
Quiz fugir, mas o medo parece que lhe tolhia as pernas. N'isto veio um
relampago que illuminou a mil côres a paizagem. Elle cerrou
os olhos com força, nervosamente, ferido por aquelle
deslumbramento que
por milagre
[103]
o não prostrou. E quando o trovão
bramiu,
rudemente, uma immobilidade de estatua prendia o camponez á
terra. Foi então que
veio de novo aquella voz, como um prolongamento do trovão:
―Ó José Gaio!
Ia avançar para ganhar a ponte. Parecia-lhe que, uma vez
transposta, galgaria a ladeira n'um instante. Mas involuntariamente,
cedendo a uma força violentissima, entrou de retroceder,
cambaleando.
Aquelle rugir da agua que logo abaixo da ponte fazia cachão,
rugir violento
mas monotono, infundiu-lhe um grande pavor. Teve medo e deixou-se
retroceder...
Senão quando, estacou ouvindo a mesma voz:
―Ó José Gaio!
E logo atraz da voz, com um rastro, um intensissimo relampago
côr de sangue. Viu tudo vermelho, afogueado, tudo menos
aquella cruz preta de longos braços, sempre abertos e sempre
firmes, que pareciam
desafiar a tempestade...
Aquella serenidade da cruz estonteou-o. Dir-se-hia que esse nobre
exemplo de altivez vinha agora humilhar mais a sua fraqueza. Desviou os
olhos e cerrou violentamente as palpebras. Mas em vão! que
fôra tão vivo o deslumbramento, e tanto lhe ferira
o cerebro, que n'um fundo
côr de sangue, como n'um transparente de magica, elle via
nitidamente desenhada, sempre firme e sempre altiva, a cruz que o
estonteara.
Então deram-lhe impetos de fugir; uma onda de coragem
parecia dilatar-lhe o peito impellindo-o. Precisamente n'esse momento,
a voz tornou a chamar:
[104] ―Ó José Gaio!
Sentiu-se alquebrado, transido até ao mais intimo do seu
ser. Um longo desfallecimento invadiu-o todo, quebrando-lhe a ultima
fibra de
energia, como se quebra um vime secco. Aquella paralysia atacou-lhe
tambem o cerebro: não formava um só raciocinio
nem
elaborava sequer uma idéa, a mais simples. E foi preciso um
grande trovão para todo elle
tremer, abalado como a propria terra. Depois, outro relampago fez
reviver
n'elle a vida do espirito; sentiu um grande pavôr
áquelle
aspecto subito do campo que deante d'elle se perdia de vista, afogueado
como se estivesse
todo em chammas. Aqui, um pinhal, uma ermida além, para toda
a banda casaes, surgiam de repente, nitidos nos seus contornos,
definidos maravilhosamente nas suas attitudes. As grandes arvores
despidas, sobretudo, tinham um ar phantastico, n'essa pureza nitida de
recorte
que traçava na luz as sinuosidades mais delicadas dos
troncos e
ramarias. No meio d'este scenario de magica, a um tempo magestoso e
tetrico, o
triste camponez sentia-se apavorado, jactitante e quasi inerte, alli
chumbado
á terra, hirto como a cruz que tinha deante. E nem um
só gesto
implorativo, e nem uma só palavra de supplica lhe sahia dos
labios crispados. Porque uma vez que tentára uma palavra, o
mais
formidavel trovão cortara-lh'a na primeira syllaba. Depois,
aquella voz
não o largava, imperturbavel e monotona:
―Ó José Gaio!
E elle, não respondendo nem fallando, pensava esconjural-a,
exorcismal-a como se fosse a voz d'um duende. E para esta
evocação do sobrenatural muito concorria, como os
senhores comprehendem, esse aspecto sereno da cruz negra, inabalavel
sob a aza agitada da procella.
[105]
N'isto veio a chuva, em grossas gottas a principio, em cordas d'agua
depois. Ella varejava-o inclemente, impellida agora por um vento sul
furioso. Não deu um passo para procurar um abrigo,
não se mexeu sequer. Como todo elle ardia em febre, aquelle
diluvio era quasi um celeste beneficio para a sua cabeça
n'um vulcão. Mas
quando os relampagos vieram, aquella reverberação
da luz nas cordas
d'agua fez-lhe um deslumbramento mais forte. E cahiu inerte sobre o
caminho lamacento por
onde a agua escorria impetuosa, ao mesmo tempo que a voz do costume,
sobrelevando o trovão, repetia do lado da cruz:
―Ó José Gaio!
Cobarde, sujo como um sapo, encharcado até aos ossos, como
cahiu assim ficou―de bôrco. Depois, quando abriu os olhos,
na larga
poça onde quasi tinha a cara, via reflectir-se a cruz, a
cada relampago. Ella
lá estava no seu posto, altiva, serena, intemerata, recta
como um exemplo... E pois que parara o diluvio, dos seus
braços abertos as gottas
da chuva cahiam, vermelhas á luz, como grossas lagrimas de
sangue...
Cobarde! Nenhuma comparação póde dar
idéa do estado de prostração d'esse
miseravel, reduzido pelo terror a uma quasi
inacção de besta morta. Dir-se-hia um immundo
trapo alli cahido, abandonado alli na lama
ignobil de um caminho, á espera da enxurrada que o
levasse... Era
abjecto!... E emquanto esse animal assim jazia, atordoado, como boi que
uma malhoada prostrou, ao fundo do horizonte, para sul, o
encastellamento
phantastico das grandes nuvens plumbeas, listradas de negro e roxo,
metralhando com
furia o largo espaço, aos quatro ventos, era tudo quanto o
nosso espirito póde conceber
[106]
de mais grandioso e de mais
sublime,
epico e tragico a um tempo, soberbo, magestoso, imponente.
Mas a voz sempre a ouvia, por cima do vento e por cima dos
trovões, aquella voz:
―Ó José Gaio!
Assim largo tempo, horas talvez. O torpor do frio aggravava-lhe o
outro, o do medo. Parecia colado á lama, preso ao caminho
como se
fosse uma rocha. No emtanto, a espaços, tinha a
comprehensão clara da sua posição e do
seu estado. E então uma raiva subita galvanisava-o:
queria erguer-se, fugir, desapparecer―erguer-se como aquella cruz,
fugir como
aquelle vento, desapparecer como esses relampagos, que nem deixam
rastro na treva...
Taes rebates de coragem eram, porém, ephemeros, impotentes
para lhe provocarem um movimento. Aquelle diabo tinha de morrer alli,
miseravelmente, ignobilmente, como um cão a que houvessem
amputado as quatro pernas. E esta idéa, que o instincto de
viver lhe
suggeriu, apavorou-o ainda mais que a propria tempestade. Morrer alli!
Mas que duvida, se ninguem lhe vinha acudir, se não passava
por alli
viv'alma, a taes deshoras! Era horrivel! No meio de um caminho, n'uma
noite medonha
de tempestade, ao pé d'aquella cruz negra de longos
braços hirtos―morrer alli!... Eram então
já por elle as
lagrimas que essa cruz parecia chorar?...
Estava n'isto, quando n'um silencio de acaso ouviu passos a distancia.
Vinha gente. Quem quer que era tinha de passar por alli, de
tropeçar n'elle, talvez. Subitamente, sentiu-se reviver.
Estava salvo. Em breve estaria de pé,―de pé como
essa cruz que um
relampago muito vivo
[107]
acabava de lhe mostrar... No emtanto, a voz
é que se não
importava:
―Ó José Gaio!
Mas os passos vinham-se chegando; e então, como se receasse
que o calcassem, reuniu n'um supremo esforço as maximas
energias,
e rebolou-se para um lado, até ficar detraz d'umas urzes.
Coisa notavel
foi, senhores, que esse miseravel em vez de gritar calou-se, e todo se
recolheu n'uma absoluta quietação, com medo que o
surprehendessem... E quem quer que era passou, cabeça nua,
deante da cruz
gottejante... Aos ouvidos do miseravel chegou um como murmurio de
prece... Não
ia só a rezar; ia tambem chorando, aquelle homem...
...Quem seria?
Um clarão branco de relampago fez irromper da treva, livido
como um espectro, o filho do José Tendeiro...
O desgraçado ia a chorar pelo pae, alli assassinado havia
annos, por uma noite como aquella...
Passou, ladeira abaixo, na direcção da velha
ponte. Só aquelle cobarde não se mexeu, prostrado
sobre as urzes, quasi arrumado
á cruz.
E assim esteve horas e horas, até que, noite velha, cessou a
tempestade, perdida n'um murmurio longiquo, lá na extrema
fimbria do
horizonte... Quando a lua rompeu, livida n'um céo de anil,
nem a grande
sombra da cruz, incidindo sobre aquelle corpo, como um beijo ou uma
benção, logrou reanimal-o. Tinha morrido, o
estafermo!
[108]
Ao outro dia, está claro, foram lá os da
justiça. O velho abbade foi depois, buscar o corpo. Os
medicos nem lhe tinham mexido.
―Sangue pelos olhos, sangue pela bocca, sangue pelo nariz, uma
congestão muito linda―dissera um a rir.
―E muito mal empregada―fizera o outro do lado, indifferente.
Mas quando os da maca disseram a um tempo―
Upa!―esse
bom velho do
abbade cahiu de joelhos deante da cruz, n'uma convulsão
agudissima de choro. E elevando ao céo as mãos
mirradas―ao
céo que um divino azul fazia diaphano―elle exclamou,
soluçando:
―Senhor! Senhor! a vossa justiça é tremenda,
como é infinita a vossa misericordia!
...Segredo de confissão...―mas o abbade bem sabia quem
tinha alli matado o José Tendeiro...
BALLADAS
A Luiz Osorio
I
MARICAS
Vocês
lembram-se da Maricas, aquella magrita de cabellos
muito castanhos, quasi louros, que morava defronte da
redacção, lembram-se? A boa da rapariga era nossa
amiga, pois não era? Sempre
benevola e complacente para as nossas balburdias e algazarras de todo o
dia e de toda a noite. E vocês bem sabem que taes ellas eram,
as
nossas balburdias e algazarras...
Eu, na Maricas, admirava uma virtude rara, toda original e
encantadora―a de não mostrar jamais na sua amisade
preferencia por algum de nós. Dir-se-hia que era nossa
irmã, ou
mesmo nossa mãe, pois que nos queria a todos por igual, a
pobre Maricas de olhar azul e brando...
[112]
Não sei se já vos disse: adivinho o interesse com
que ella vos perguntaria por mim, nos meus dias de cabula, pela
solicitude e interesse com que me perguntava por vocês,
quando faziam
gazeta ao escriptorio.
―Então esses cabulas? então esses marotinhos?
Doente, algum?
―Na esturdia, Maricas. Andam todos por lá...
―Ora vejam!―fazia ella quasi escandalisada.
Ah, como eu me lembro n'este momento da vivacidade franca dos sorrisos
que nos mandava, quando todos em pinha, furando pelos hombros uns dos
outros, palreiros conversavamos com ella de janella para janella, n'um
tête-à-tête que
durava horas, muito
familiares, muito dados, quasi que chamando-lhe por tu e ella a
nós!
Como eu me lembro!
Ella tinha sempre uma resposta e um sorriso para cada uma das mil
perguntas que lhe faziamos, e então uma grande paciencia
inexhaurivel. Nós, os estroinas, quasi que chegavamos a
adorar aquella
ingenuidade singela do seu coração de vinte
annos. A boa da
Maricas era adoravel, toda ella bondade e paciencia para os nossos
disturbios e para as
nossas algazarras de toda a hora e de todo o instante.
Mas como se familiarisou ella comnosco e nós com ella,
é que me não lembra, e porventura a nenhum de
vocês, acho eu. O que
é certo, rapazes, é que nós como que a
consideravamos uma
companheira de redacção, especie de directora com
casa áparte e viver independente pois que
se entravamos no escriptorio (parece mesmo
[113]
que estou a ver aquella
barafunda d'escriptorio!) e, assomando á janella, a
não
viamos na sua, diziamos quasi sem querer, mas invariavelmente:
―Mau! falta hoje a Maricas! Diacho! mas onde iria a Maricas?
E passados instantes debandavamos todos, um agora, outro logo,
á formiga, mal nos convenciamos de que ella passava a tarde
fóra, em casa da
freira de
Quebra-Costas―d'essa
lembram-se vocês... No
emtanto, deveis recordar-vos que ella, no dia
seguinte...―coitada!―...a primeira cousa que fazia era justificar a
sua falta, «estive
aqui, estive alli, fui a umas compras com a mamã»,
um
pouco ruborisada e confusa, como se na realidade a sua
obrigação
fosse estar alli a aturar-nos. Por pouco ella nos não pedia
de mãos
postas que lhe perdoassemos, a boa da rapariga.
E nós então galhofeiros, brincalhões:
―Sem mais
aquellas, D. Maricas! A
congregação
risca-lhe a falta, ora essa!...
E ella mais confusa, fazendo girar no dedo o seu annelzito de cobra:
―Pois sim, mas é que ás vezes...
―Ás vezes quê?...
«Não! ora adeus! Ninguem desconfiava que ella
estivesse zangada comnosco. Saíra, porque tinha de sair,
essa é
boa...»
―Pois não era verdade―perguntavamos-lhe―que ella adorava
aquella
troupe de bohemios?
[114] ―São todos muito bons rapazes―dizia já a
sorrir.―Todos me tractam muito bem...
E quando dizia isto, o seu rosto miudinho e muito pallido todo se
illuminava de prazer e sorria de intima gratidão. Mas porque
sympathisava ella comnosco, a pobre Maricas?
Quando nos via em palestras interminaveis, nas
libações do
congnac e do
café,
ouvia-se lá da janella um
pschiu!
muito sibilado.
―Que manda a D. Maricas? É servida?
E ella, levantando os olhos da costura, com ares de formalisada:
―Mando que escrevam, que trabalhem! Já fizeram o jornal?
O cuidado que lhe dava o jornal!
―Ora faz favor de não fallar em coisas tristes? Olhem agora
que lembrança, o jornal!
Ella então, por unica resposta, dizia-nos ás
vezes que na semana passada o typographo viera queixar-se de que havia
falta de originaes, quantas vezes o garoto da imprensa viera pedir as
provas emendadas.
E por fallar em provas:―a Maricas sabia todos os signaes das emendas,
todos.
―Olhe lá, Maricas, está aqui uma letra a mais
n'esta palavra.
[115] ―Risco por cima, risco á margem, e um
d
cortado;
é facil.
―Um
m de pernas para o ar, e esta?
―Risca-se, e um tres cortado, á margem. Está
farto de o saber...
Quando via algum sentado á meza, a rabiscar, pedia sempre
que lhe fosse mostrando as tiras, á medida que as
escrevesse, talvez
porque adivinhava que isso era um estimulo. A gente fazia-lhe
então a vontade,
e mal escrevia a derradeira lettra pegava da tira e dizia-lhe para a
janella,
acenando-lhe com o papel:
―Maricas, cá está uma, vá contando.
Veja: escripta d'alto a baixo.
Á terceira que se lhe mostrava, ella saía-se de
lá com um
bravo! e recommendava,
solicita, cinco minutos
de folga, emquanto se fumava um cigarro.
A Maricas era quem nos cortava as cintas para o jornal e quem nos fazia
a gomma nos dias de expedição. Que ricas cintas e
que bella gomma! Em paga, quando o jornal chegava da imprensa, quasi
sempre nos sabbados
á noite, o primeiro exemplar era para ella. Como a rua era
estreita atirava-se-lhe da janella.
―Maricas, ahi vae ainda fresquinho!
―'stá bem, obrigada. Vou lêr, até
ámanhã.
Corriamos todos á janella, a dar as boas noites á
nossa amiga.
[116] ―Durma bem, ouviu?
E no dia seguinte, a Maricas repetia a cada auctor phrases e phrases do
artigo publicado, jurava que nos conheceria no estylo ainda que
mudassemos de pseudonymo. De resto, sempre benevola: achava tudo muito
bom, «escripto com muita graça e muito
bem», como ella dizia.
Nos serões que faziamos e que por via de regra
não passavam de um interminavel cavaco, dizia-se mal das
mulheres, discutiam-se
escandalos, desvendavam-se segredos, tal e qual como em todas as
redacções... Mas da Maricas ninguem tinha que
dizer senão bem; era a
privilegiada n'aquellas sessões de má lingua.
Quasi sempre a conversa
degenerava em algazarra―um que se lembrava de cantar, outro que ia
pela guitarra e gemia fados com acompanhamento de violão. E
era de
vêr o Santos Mello, d'olhos cerrados e cabeça
á banda, como cantava a
sua quadra predilecta:
Sei cantigas mysteriosas,
Cantigas de endoidecer,
Que os lirios dizem
ás rosas,
Que as rosas me vêm dizer.
Mas no meio d'esta inferneira havia sempre um que recommendava
silencio.
«Com mil demonios! não viam que a Maricas
não podia pregar olho...»
Todavia...―ó suprema bondade!―...ella nunca se queixava
quando no dia seguinte nos vinha dizer até que horas durara
a estroinice,
o que se tinha tocado, o que se cantara, quem tinha rido mais, e,
até, as vezes que as cadeiras tinham caido.
[117]
«Ora viam?! Não a tinhamos deixado dormir! A
Maricas que desculpasse; palavra d'honra! d'óra
ávante...»
Ella então acudia logo, como a remediar uma grande
desgraça:
―Não, não, eu até gósto.
Entretem-me vel-os alegres, faz-me bem, ora essa...
Pois, meus amigos, a boa da Maricas―morreu! vocês
não sabiam! E morreu tysica, a desgraçada
Maricas! Só depois que o
soube, é que eu comecei a pensar n'aquella tossesinha muito
secca em que ás vezes a surprehendiamos, n'aquelle branco
pallido das suas faces, no bistre das
suas olheiras, n'aquella magresa transparente das suas
mãositas de marfim...
Pobre Maricas!
Haverá tres mezes que ella me desappareceu da sua janella,
onde continuei a vêl-a depois que o jornal acabou. Eu sabia
lá para onde ella tinha ido?!...
Mal diria eu que estavas no cemiterio, tão longe e
tão só! porventura na valla commum, sem umas
folhas de rosa sobre a tua sepultura humilde,―onde n'este instante
cáe chuva e chuva! Ainda se
as noites fossem todas de luar... Minha triste amiga! como eu agora
relembro
cheio de magua a tua phrase de infinita bondade e de infinita
resignação:
[118] ―...«Entretem-me vêl-os alegres, até me
faz bem»...
Comprehendo agora tudo: vivias da nossa alegria, já que a
tua alma era triste... Mas porque foi que nos não disseste,
pobresinha!
que n'essa phrase singela ia a revelação do
presentimento
que tinhas da tua morte prematura?! Triste creança que
nós não
mais veremos!
Olha, Maricas, escrevi quatro tiras. Já me não
dizes―
bravo!―ora não?...
...Bom Deus! bom Deus! para que a terra produza diamantes, e d'ella
rebentem flôres, são talvez precisos estes corpos
a avigorar-lhe as seivas...
II
PARA A ESCOLA
No velho
casarão do convento é que era a aula.
Aula de primeiras lettras. A porta lá estava, amarella com
fortes pinceladas
vermelhas, ao cima da grande escadaria de pedra, tão suave
que era um
regalo subil-a. Obra de frades, os senhores calculam... Já
tinha principiado
a aula quando a Helena entrou commigo pela mão. Fez-se um
silencio
nas bancadas, onde os rapazes mastigavam as suas
lições e a sua taboada, n'um rithmo cadenciado e
monotono, cantarolando. E ouviu-se
então a voz da Helena dizer para o senhor professor, um
d'oculos e cara rapada, falripas brancas por baixo do lenço
vermelho, atado em
nó sobre a testa:
―Muito bons dias. Lá de casa mandam dizer que aqui
está a encommendinha.
[120]
Oh! oh! a encommendinha era eu, que ia pela primeira vez á
escola. Ali estava a encommendinha!
―Está bem, que fica entregue. E lá em casa como
vão?
E emquanto o velho professor me tomava sobre os joelhos, a Helena
enfiava-me no braço o cordão da saquinha
vermelha, com borlas, onde ia mettido nem eu sabia o quê. Meu
pae é que
lá sabia... E alli estava eu entre os joelhos do senhor
professor, com o
bonnet n'uma das
mãos e a saquinha vermelha na outra, muito compromettido. A
Helena, que sorria contrafeita, baixou-se para me dar um beijo, e
disse-me adeus.
―Adeus, Josésinho, logo venho cá pelo menino.
Choraminguei, quiz sair na companhia d'ella.
―Não, agora o menino fica―disse-me a Helena.―Isto aqui
é a escola, é onde se aprende a ler.―E
agachando-se, deante de mim:―Olhe tanto menino, vê?
―Mas fica tu tambem―disse-lhe eu então.
Nas bancadas houve hilaridade geral. O mestre teve de intervir,
iracundo:
―Caluda, sua canalha! Não veem que está gente de
fóra? Caluda, que vae tudo razo com bolaria!
Foi então que reparei em toda aquella rapaziada. Ah, elles
eram todos meus conhecidos! Vivam lá vocês! E
estavam todos
alegres, p'los modos. Reanimei-me. Então já eu
podia ficar, estavam ali
os meus amigalhotes, cheguei mesmo a rir das caretas que me faziam
alguns, o
Estevão principalmente.
[121] ―Isto é preciso muita paciencia, senhora Helena, muita
somma de paciencia. Um mestre precisa de ser um santo.―(Pausa. Olho
duro sobre as bancadas.)―Mas está bem, diga lá
que a
encommendinha cá fica. Em boa hora entrasse...
―Entrou, elle ha-de estudar. Ora ha-de, Josésinho?
Das bancadas alguns acenavam-me que não, arregalando muito
os olhos.
―É verdade,―insistiu por sua vez o professor―o menino
ha-de estudar as suas lições, não
é
assim?
―Diga, sim senhor―ensinou-me então a Helena.―Hei-de
estudar muito e ser socegadinho na aula, diga.―E a meia voz para o
professor:―isto em
casa é o vivo mafarrico; faz lá ideia?
Elle riu, já sabia; as creanças são
todas assim, emquanto estão no mimo das mães. Mas
uma vez mettidas na escola, as cousas mudavam
um pouco. E piscando o olho, designou a palmatoria. A Helena ficou
transida.
―Faz milagres, sr.
a Helena. Digam lá
o que disserem, olhe
que faz milagres.
Eu tinha percebido. Começava de novo a
embezerrar,
com
vontade de sair quando a Helena saisse. Aquillo sabia eu para que
servia, a palmatoria...
―Mas para o nosso Zézito não ha de ser precisa,
ora não?
―Diga assim: não senhor, porque eu hei de cumprir com as
minhas obrigações, diga.
[122] ―Ora ahi é que está―atalhou o
professor.―Vê, sr.
a Helena? Aqui
já os pequenos
tem a sua obrigaçãosinha, os seus
deveres a cumprir, as suas coisas...
―Sim senhor, sim, emquanto que em casa...
―Em casa é o que nós sabemos. Tudo
são mimos, meu menino isto, meu menino aquillo.
Vão assim creados á lei da
natureza, sabe vossemecê? É mau isso, pessimo!
Porque é que os rapazes são
todos teimosos?―E bateu n'um «Monteverde» pousado
sobre a mesa,
dizendo:―Olhe, aqui está n'este livro: «
de
pequenino...
―...
é que se torce o pepino»―concluiu
rapida a
Helena, orgulhosa de saber o que estava no livro, coitada!
―Nem mais. A modos que isto faz rir. Um pepino é uma cousa
que se cria na horta...
Risota dos rapazes!
―Ora vê isto, sr.
a Helena?
vê estes brutinhos?―E
com entono, de palmatoria alta, fazendo-se carrancudo:
―Caluda, seus fedelhos! Caluda, porque se peço
licença á sr.
a Helena,
começo n'uma
ponta e levo tudo a eito, corro tudo a bolos,
tudo, mas o que se chama tudo!
E fitou-os altivo, sereno, minaz. Sob aquella ameaça, os
rapazes ficaram transidos, cabisbaixos, olhos pregados nos livros.
É verdade
que elle podia pedir licença á sr.
a
Helena, e
mesmo
deante d'ella
cascar de rijo... Uma sombra de
terror passou por toda
a sala, socegaram;
até o Estevão deixou de me fazer caretas.
―É o que vê, sr.
a
Helena―disse então
victorioso, a
[123]
sorrir-se, o bom do professor.―É o que
vê! Um mestre sem
palmatoria é um artista sem ferramenta, não faz
nada.
Santa Luzia milagrosa! Aqui onde
a vê tem feito muitos doutores.
―Essa?―perguntou ingenuamente a Helena, disposta a venerar aquelle
pedaço de pau de buxo, se na verdade elle tivesse feito
muitos doutores.
―Não, mulher, se não foi esta, outras como esta,
essa é boa! Isso não faz ao caso.
Pela resposta bem se vê que foi indiscreta a pergunta da
pobre Helena. Tambem elle, velho n'aquelle officio, muitas vezes
investigara com
magua o motivo por que a sua palmatoria não fazia um unico
doutor... Morreria sem ter essa «gloria,» decerto!
Forte martyrio que
a Helena veio recordar-lhe!...
Houve uma interrupção, um rapaz que se levantou e
de braço no ar pedia para ir lá fóra.
―
Licéte!―foi como elle disse,
arremedando o latim
licet. Outros havia que diziam, por
troça,
Aniceto!
―Ora já a mim me admirava,―tornou-lhe o professor.―Se tu
não havias de pedir para ir lá fóra,
tu...―E ficou-se a
fital-o, meneando pausadamente a cabeça.―Ora vá
você
lá fóra.
O rapaz saiu apressado, com grande estrupido de pés.
―Olá?―chamou zangado o sr. professor.
O outro assomou á porta, contrafeito.
[124] ―Para a outra vez faz-se menos barulho com esses pés,
ouviu? Não sei se percebes... Ora já que tem
tanta pressa, eu não
tenho nenhuma; faça favor de esperar um pouco.
Poz-se então a correr a vista pelas bancadas, resmungando:
―Tu não... tu não... tu não... Tu,
olá, venha cá!
Levantaram-se uns poucos, foi um barulho.
―Canalha!―gritou-lhes então, batendo o
pé.―Corja de atrevidos! Sentados, já!
Grande silencio nas bancadas. Um perguntou de lá, humilde,
se era elle, apontando para o peito.
―Sim, és tu, p'ra que queres os olhos? Avance e perfile-se.
Mediu-o d'alto a baixo. Depois:
―Isso mesmo. Essa mão no bolso é que
não é do
regulamento,
fóra com ella.
Agora, sim senhor. Ora vês além aquelle
sujeito? o tal das pressas?...
―Vejo, sim senhor.
―Bem sei que vês, se o não vissem é
porque eras cego; que tal está o palerma? Ora acompanhe-o,
já sabe p'ra que. E sempre quero
ver se tenho de vos ir lá buscar pelas orelhas.
Sairam. Mal tinham salvado a porta, gritou-lhes o sr. professor:
[125] ―Olá?
Elles assomaram, outra vez, atrapalhados.
―Então, seus cabeças d'avelã, torres
de vento, então não falta nada?
Os dois pozeram-se a coçar a cabeça, muito
compromettidos. Faltava com effeito alguma coisa...
―Então é ahi?
Elles avançaram até ao meio da sala,
tropeçando um no outro.
―Ora passa por esta vez, em attenção a estar
aqui a sr.
a Helena.―E enrugando o sobr'olho,
commandou em tom
marcial:―Ordinario! marche!
Faltava aquillo. Em obediencia aos seus velhos habitos de militar, dava
o sr. professor aquella voz, sempre que mandava algum alumno cumprir
ordens suas:
―Ordinario! marche!
Sentou-me então no joelho e perguntou:
―Olha lá, Josésinho, tu queres ser militar,
queres? Assim como o sr. capitão do destacamento, que
lá está
aboletado em casa, queres?
―Corneta, mais queria ser corneta. Ou então como o sr.
prior, dizer missas.
Riram-se. Quem sabia lá o que d'ali sairia? Mas o sr.
professor fez notar que era bom que os pequenos tivessem
[126]
já
assim uma
tendencia qualquer. E poz-se a puxar-me o nariz, a dar-me palmadinhas
nas bochechas.
―Corneta ou prior, hein? Pois isso é que é
preciso escolher.―E para a Helena:―Pois olhe que os tenho conhecido,
sr.
a Helena, que respondem
a pés junctos que não querem ser nada. Mau
signal,
pessimo, sr.
a Helena! Quando elles assim dizem,
de ordinario assim
fazem, depois. Nunca
são gente.―E virando-se para mim:―Mas então,
Josésinho, em que ficamos? Corneta ou prior?
Preferia ser prior. Sempre me parecia melhor, mais bonito,
especialmente em dias de festa, com aquella capa toda doirada...
―Muito bem, escolheste bem. «
Telha de egreja...
―...
sempre gotteja»―concluiu a Helena
que ainda hoje
é forte em adagios.
O bom do professor tinha finalmente chegado onde queria.
―Prior, então! Está muito bem, seu reverendo.
Pois olha, Josésinho, para ser prior é preciso
estudar, saber ler no missal, ora
é?
―É.
―Ah!... Não é assim que se diz. É,
sim senhor―emendou a Helena.
O sr. professor teve um gesto de indulgencia.
―Mas tu não sabes ainda, ora não?
[127] ―Não senhor.
Elle então, fingindo uma grande surpresa, perguntou se o que
eu trazia na sacca era um livro.
―Querem ver que é um livro?...
―Diga―ensinou a Helena―é o meu livro para aprender a ler.
Mostre-o lá ao sr. professor, tome.
Houve na sala um murmurio, ao verem a capinha verde, toda lustrosa, do
meu livro.
―Muito bem! muito bem!―applaudiu o sr. professor.―Mas este livro
é mesmo para aprender a prior... O menino já
tinha dito
lá em casa que queria ser prior, ora já?
Fiz que sim com a cabeça. Era verdade aquillo; mas como
é que elle o sabia?
―Bem se vê por este livro. É livro para prior.
Queres então principiar, não queres?
―Quero, sim senhor,―ensinou ainda a Helena e eu repeti.―O que eu
quero é dizer missa quanto mais cedo melhor, diga.
―Primeiro do que aquelles?―perguntou voltando-me para as bancadas.
Então fui eu mesmo que respondi:―«Sim
senhor!»―contente com a lembrança de vir a dizer
missa, e de a vir a dizer primeiro
do que todos aquelles. Até podia acontecer que o
Estevão das
caretas me ajudasse a alguma...
[128] ―Ora então está muito bem, estamos
entendidos.―E com intenção, ferindo muito as
palavras, para m'as gravar no espirito:―A primeira coisa que
é precisa para prior é saber bem isto,
vês?―E
punha-me deante dos olhos o livro aberto na primeira pagina.―Isto aqui
é já
missa, chama-se o
a b c, e é aquillo
que os priores dizem
quando vão
para o altar.
―
Ito?―inquiri curioso, furando a pagina com o
dedo.
―Sim, isto. E amanha já me has-de trazer sabido d'aqui
até ali. Hein? valeu?
―Diga que sim, menino, diga. Valeu, sim senhor.
Eram as seis primeiras lettras, ainda me lembro bem. A minha primeira
lição!
A B C D E F!
A minha primeira lição!
―Ora sabe vossemecê o que isto é, sr.
a
Helena?
isto que eu tenho estado a fazer?
―Sim senhor, sei... é assim... como quem diz...
é...
―Não sabe, não admira,―disse complacente o sr.
professor.―Puxar o gosto, sr.
a Helena, puxar o
gosto é que
isto é.
Nem todos os mestres o fazem, todos o deviam fazer. O pequeno, assim,
até
já vae estudar com mais gosto, digo-lh'o eu; olé
se vae!
«Mas elle não a queria demorar mais, tinha
lá em casa as suas obrigações, as suas
voltas, e deviam ser
horas.»
[129] ―Pois isso é verdade, sr. professor; mas não sei
que é, custa-me a separar do menino...―disse a boa da
Helena, quasi a chorar.
―Foi ama, deu-lhe o seu leite, ahi é que está a
coisa. Pois tenha paciencia. Aprender é tão
preciso como
mamar―concluiu n'uma prosa que é mesmo poesia.
―Pois é preciso, é!...
E a pobre Helena beijou-me, para se ir embora. Quando me beijou, senti
na minha cara as lagrimas d'aquella boa amiga. Retirava-se, deixando-me
ainda sobre o joelho do meu velho professor, quando este a chamou:
―sr.
a Helena!
―Meu senhor!―respondeu, levando aos olhos o avental.
―Já agora, espere mais um instante.
Percorreu com a vista, minuciosamente, as bancadas todas da aula.
Depois, intimou:
―Tu, Francisco, olá, chega acima. E tu do lado, como te
chamas, abaixo um pouco.―E virando-se para a pobre mulher
lacrimosa:―Ora
é alli, sr.
a Helena, alli
é que é o
logar do pequeno.
Leve-o lá, ande, que lhe não deve pesar.
E dos braços do meu professor passei para os
braços da ama. Novo beijo, lagrimas mais quentes, e saiu a
boa da Helena, deixando-me no meu logar...―o meu primeiro posto na
arriscada milicia das lettras...
[130]
Depois, só vi isto: o mestre a sorrir-se para a porta e a
conversar por acenos com a pessoa que estava de fóra.
Pequeno como era,
percebi, no emtanto. O mestre vinha a dizer na sua mimica:
―Bolos?... Não?!... Perdoe a sr.
a
Helena, mas isso, quando
forem precisos... Pois sim... lá isso sim... pequeninos...
Han?
mesmo com a mão?... Está bem... Descance... Mesmo
com a
mão...
E ella devia sorrir por entre lagrimas, porque foi tambem por entre
lagrimas que o bom velho se sorriu, dizendo adeus...
...Helena, minha boa amiga! Acabo de chegar ao fim da viagem que
principiei n'esse dia. Não volto mais á escola!
Venho hoje restituir-te, querida amiga, aquelle beijo―dulcissimo beijo
aquelle!―que tu
então me déste. E afinal não fui
prior, ora
vê!... Mas ainda bem. Se o fosse, acho que parecia mal
beijar-te, minha boa e santa amiga! Pois ainda bem
que não fui prior, ainda bem... Não é
verdade, Helena?
Em Coimbra,
no dia do meu acto de formatura.
TRAGEDIA RUSTICA
I
Madrugada de
segunda feira de entrudo, tapada dos Nobres, Alemtejo,
á porta do José Grillo
Truz! truz! truz!
Os de casa acordaram, sobresaltados.
―Schiu! nem pio!―fez o José Grillo para a mulher.―Moita!
―Truz! truz! truz!
Do seu cubiculo, a Anna, filha do José Grillo, poz-se a
chamar pelo pae.―Bem ouvia, que deixasse bater. Algum bruto que se
queria divertir...
Mas logo outra vez na porta:
―Truz! truz!
―Arre que é bruto! vá bater ao inferno, quem
é! gritou
[132]
de dentro o José Grillo, zangado. E
pois que se poz á cóca, de
orelha fita, olhos cravados na telha-van do casebre, sentiu
distinctamente os passos de alguem que fugia.
―Eu não te disse? aquillo foi bruto que se quiz
divertir―explicou elle para a mulher.
Mas palavras não eram ditas, pareceu-lhe ouvir o vagir de um
cachorrinho, mesmo rente á porta. Veio-lhe logo á
ideia que lhe tinham vindo pôr zôrro...
―Ó mulher, queres tu ver que ha novidade?
De um pulo saltou da cama, embrulhou-se na manta e abriu a porta do
casebre.
―Elle que demonio de embrulho...?
Pegou-lhe com muito geito. Era effectivamente uma creança,
envolta em dois trapinhos muito velhos.
―Coitadinho! fez o ganhão achegando ao peito a creancinha.
―Grandes cadellas!―E poz-se logo a fazer uma algazarra, alarmando a
gente da casa.
―Andem! a pé! levantem-se! está aqui este
innocentinho que vem dar os bons dias á gente!
Correu a filha, veiu a mulher. Mas ao tempo, já o bom do
José Grillo mettera a creança na cama, visto que
a pobresinha estava
gelada...
―Elle quem diabo ha por ahi que tenha leite? A filha
[133]
do Antonio das
Varedas, é verdade, a Brites que lhe morreu o cachopo.
Despediu immediatamente a filha, a Anna, á procura da Brites
que chegasse o peito ao innocentinho. E da porta, gritando para a
rapariga que ia correndo:
―Que se não demore, ouves? que se lhe paga aquillo que
fôr.
Mas a mulher do José Grillo, a senhora Joanna, de
pé no meio da casa, a saia amarella deitada pela
cabeça, de braços
cruzados, muito embezerrada, permanecia sem dizer palavra.
―Ó mulher, nada de afflicções,
é tal e qual como se fosse nosso, faz de
conta...―observou-lhe logo o José Grillo que percebia o ar
taciturno da femea.
Ella só redarguiu que
nosso era um
modo de fallar. Seria
d'elle, mais de qualquer desavergonhada...
O José Grillo, que estava a enfiar as calças,
parou no serviço e pregou-lhe uma gargalhada.
―Ageita-me o pequeno, ouves? Vê lá que talvez
esteja molhado. E deixa-te de cantigas, que hoje é dia de
entrudo.
A mulher ia reguingar; mas elle, pegando-lhe de um braço,
levou-a ao pé da creança, affirmando-lhe
ás risadas que sim,
que o pequeno era filho d'elle.
―O pequeno?... mas é que pode ser cachopa―disse o
José Grillo para a mulher.―E certificando-se:―Nada!
é rapaz.
[134]
Seguiu-se uma altercação. A senhora Joanna, a
chorar, ia jurando pela sua salvação que
«o
crianço» era filho do seu homem.
―Ai Jesus que estou perdida! chamava ella muito comica,
braços no ar, o balandrau da saia amarella enfiado pelo
pescoço n'um geito
de sobrepeliz.―Má hora em que me eu casei! ai Jesus que vae
ser de mim!
―Olha que é rapaz, ouves? anda cá ver que
é rapaz―disse-lhe de lá o José
Grillo, muito fleugmatico, debruçado sobre a
creança.
Mas como visse que a mulher continuava n'um estardalhaço,
muito afflicta, desaustinada pelos cantos da casa, o José
Grillo
virou-se para ella e disse-lhe muito solemne:
―Pois assim me Deus salve como não é meu o
rapaz.
Ao ouvir assim fallar o seu José, a senhora Joanna voltou-se
logo para elle, olhos esbugalhados, muito suspensa.
―Juras pelas cinco chagas, ó homem?
―Juro pelas cinco chagas.
―Assim te Deus dê saude, ó José?
―Assim me Deus dê saude.
―Preto sejas tu como o teu chapeu?
―Preto seja eu como o meu chapeu.
[135]
A senhora Joanna botou-se logo a correr para um canto da casa, e
abrindo a arca de pinho, do bragal, entrou aos beijos a uma Nossa
Senhora da Conceição, pegada na face interna da
tampa, com
boccadinhos d'hostia.
Depois desabafou, muito aliviada:
―Ai!
O José Grillo poz-se a rir.―«O demonio da Joanna,
com ciumes!»
―Mas ciumes de quê, ó mulher? não
farás favor de me dizer de que diabo tens tu
ciumes?―perguntava muito casto o amigo José Grillo,
serenissimo deante da mulher desconfiada.
A outra, muito delambida, redarguiu com ironia―«que o seu
homem era um santinho...»―O José Grillo ia
defender-se. Mas
ella, atalhando logo, reguingou d'alto:
―Sabes tu que mais? estafermos é o que mais ha. Olha a
cadella que engeitou este...
Aqui, fez uma suspensão; depois perguntou, muito lampeira:
―Mas quem seria a grande cadella?
Poz-se então a mirar muito o pequeno, a ver se lhe dava ares
de alguem, murmurando phrases d'odio, moralistas:
―Precisava ser enforcada, a tua mãe; quem quer que
é tem mesmo entranhas de lobo.
[136]
O pequenino entrou a vagir, muito friorento, embrulhado n'uma camisa do
José Grillo.
―É fome, coitadinho! o infeliz inda não sabe que
coisa é mamar―disse contristado o lavrador.
Foi-se logo á porta, a ver se a Brites chegava. Mas quem
vinha com a Anna era a outra, a Dorotheia do Antonio das Veredas.
―Tua irmã, tua irmã é que se
cá precisava. Que demonio vens tu cá fazer?
Ouves? não me dirás que diabo vens tu
cá fazer?―E deu um bofetão na filha,
«para que soubesse dar o recado».
A Dorotheia poz-se a explicar que a rapariga não tinha
culpa. A irmã é que a mandara para levar a
creança, porque ella, adoentada,
fazia-lhe mal sair de casa assim cedo...
―Só se lhe queres tu dar de mamar―insistiu ainda o
José Grillo, virado para a Dorotheia, irreverente pelos seus
dezenove annos inda virgens.
A senhora Joanna fez-lhe de dentro que se calasse:
―Credo, homem! essas coisas não se dizem, nem por
graça.
―Eu sei lá se não se dizem?―observou o
lavrador, muito zangado.―Dá cá d'ahi o pequeno.
Veio a senhora Joanna com o embrulhinho, que entregou ao
José Grillo. O lavrador depol-o nos braços da
Dorotheia, com mil cuidados,
e depois elle mesmo ajudou
[137]
as mulheres a ageitar o pequenino, em termos
que
fosse bem quente.
―Roda forte, ouves? E diz lá a tua mãe que eu de
tarde por lá appareço, p'ra ver isto do ajuste.
A rapariga saiu. E como o lavrador désse fé que
tinham alli ficado os farrapos, gritou para a rapariga:
―Ó D'rotheia! espera que inda cá ficou isto.
Então poz-lhe os farrapos ao hombro―uns pedaços
miseraveis de velha chita―e a Dorotheia partiu onde á
irmã.
II
Quarta-feira
anterior a domingo gordo. Monte do Rosario. Em casa de
Antonio Palma, casado com Rufina Maria
O Antonio Palma tinha acabado de jantar, rodeado da pequenada. A
mulher, a Rufina, principiava a lavar a louça, quando
á
grade do quinchoso uma voz chamou:
―Ó sr.
a Rufina!
Vieram os pequenos, veio o Antonio Palma, a mulher com as
mãos fumegantes. Foi preciso fazer calar o
Farrusco
para
se poder ouvir o que dizia aquella mulher que lhes estava fallando do
caminho.
―Queria-lhe uma palavrinha, a si mais ao seu homem.
O Palma foi abrir o cancelorio. E foi com grande desgosto que deu de
cara com a Francisca Fortunata, de grande ventre alçado, uma
desavergonhada que tinha fugido ao marido, o José Thomaz
negociante de gado. Entrou, fizeram-lhe uma
recepção fria. Os
proprios pequenos olhavam desconfiados e silenciosos aquella grande
mulher gorda que
elles não conheciam. Ella sentou-se
[139]
logo n'um sacco, muito
esfalfada, emquanto o Palma e a mulher affectavam procurar ambos um
banco, acotovelando-se,
com tregeitos de quem se sentia arreliado com a visita. O
Farrusco
investiu com a mulher, achando-a extranha; mas uma vez enxotado com o
pontapé do Palma, fez-se na casa um grande silencio, e a
mulher começou assim:
―Venho pedir por caridade e esmola que me deixem aqui estar uns dias.
Já veem como eu ando, isto deve estar por pouco. Logo que
tenha o meu filho, em arribando da quebreira do parto, deixo-os e
vou-me embora.
Lá em casa de minha mãe aquillo é uma
grande
miseria, passam-se dias que não comemos. Não ha
uma cama, a gente dorme sobre
umas palhas, sem geitos de roupa com que se cubra. Mas eu ando n'este
estado, bem veem como eu ando...
Aqui desatou a chorar, levando aos olhos o avental miseravel. O Palma e
a mulher diziam não sei que monosyllabos, o
Farrusco
rosnava. A outra proseguiu:
―Não é por mim, sabem? não
é por mim. É este innocentinho que tem de nascer
no chão, como os cães... Bem sabem que
isto custa. Pouco se me dava de morrer, afinal, mas queria que o meu
filho vivesse... Coitadinho!
Ergueu-se n'um impeto, depois caiu de joelhos, mãos erguidas
para o Palma e para a mulher.
―Pelas cinco chagas de Nosso Senhor! exclamou.
O Palma fez para a mulher um gesto resignado e de lastima. Cada um de
seu lado, ajudaram-na a levantar-se,
[140]
dizendo-lhe submissamente que tudo
se havia de arranjar, que socegasse.
―Que a fallar os pontos de verdade, sr.
a
Fortunata,
vossemecê é que tem a culpa d'esses trabalhos,
disse-lhe logo o Palma.
Ella escondeu a cara no avental, fazendo-lhe com a mão que
se calasse.
―Má sorte d'aquelle pobre José Thomaz,
acabou-se! Quando elle casou com vossemecê antes tivesse
quebrado uma perna.
Ella chorava cada vez mais, parecendo muito afflicta.
―Agora ahi o tem, anda por esses caminhos que parece doido. Nem gado,
nem o diabo. Des'que vossemecê alvorou que o rapaz
não vae a uma feira. Pois olhe que era homem para junctar,
videiro como poucos.
Poz-se a fazer um cigarro, olhando os pequenos attonitos. Depois
continuou:
―Esteve aqui um d'estes dias, por signal que sentado n'esse mesmo
sacco...
A Fortunata levantou-se n'um impeto, como se o sacco a repelisse. O
Palma proseguiu:
―Sente se vossemecê, mulher, o sacco não faz ao
caso. Pois foi ahi mesmo que elle esteve, até parecia um
pobre de pedir. Nem
botões na camisa, coitado! Mas pela conversa bem se
vê que inda lhe
não quer mal. Que a bem dizer elle quasi não
conversa, anda a modos que
amalucado, sempre a levar a mão á
cabeça, como se
lá
[141]
dentro aquillo andasse azoado. E mais é que
bem póde o rapaz dar em doido...
A senhora Rufina foi de parecer que doido já elle andava.
Passavam-se dias que não apparecia em casa do tio
José
Garção, que o levára logo para elle,
mal a sr.
a Fortunata o deixára. Por
onde andava?
que fazia? Contava-se que uma noite dormira n'uma coutada, no mesmo
telheiro que
os porcos. Que d'outra vez fôra ter com o vigario para que
lhe
baptisasse o filho, dizendo que já tinha nascido.
―No filho inda elle aqui se poz a fallar, lembrou o Palma.―Anda com
ella ferrada que o filho já nasceu.
Aqui, a Fortunata, de pé junto á porta, rompeu
n'uma choradeira, ouvindo fallar no filho. O Palma interveio, condoido,
dizendo que se
não affligisse, que o filho sempre teria uma caminha onde
nascesse.
Ella ia ajoelhar, o Palma não deixou.
―Não é por vossemecê, mulher, assim me
Deus salve como não é por vossemecê.
Mas é que o innocentinho que ahi traz
esse é que não tem culpa. Faço de
conta que é o pae que me pede, o
pobre José Thomaz. Vossemecê bem sabe que eu era
amigo do José
Thomaz. Diabo! a gente já diz
era,
já falla
n'elle como se o pobre tivesse
morrido...
N'isto vieram chamar o Palma, que no lameiro alli embaixo andavam uns
bois que não eram d'elle. Foi-se a buscar um marmeleiro, e
depois, quando já ia para sair, disse em resumo:
―Fique vossemecê então, sr.
a
Fortunata. Ouves,
Rufina?
[142]
Talvez que ella inda não jantasse. Faz-lhe a cama
lá dentro, e o
resto arranjem-se.
Caso é que a Maria Fortunata, amanhecendo para domingo
gordo, desentupiu e teve um filho. Mas nem sequer o tinha ainda
beijado, nem lhe tinha feito uma caricia, quando por volta do meio dia
a avó do
pequeno alli chegou, vinda de longe. O Palma que estava no quinchoso, a
dar a bolota
aos cevados, ficou espantado:
―Pois senhores! havia de jurar que você adivinha, sr.
a
Anna!
Ella, sem mais rodeios, perguntou se a creança já
tinha nascido.
―Já nasceu, sim senhora, vá lá dentro
se a quer ver. Venha d'ahi.
Mas iam ainda á porta, quando a velha, filando o
braço do Palma, lhe perguntou n'um sobresalto:
―Vivo ou morto, sr. Antonio?
O Palma percebeu. O estafermo da velha queria que a creança
nascesse morta. Aquillo fez-lhe nojo, deram-lhe ganas de correr a
mulher a pontapés. Conteve-se. Mas todo elle vibrou de
colera, quando
em presença do pequenino a velha, sem o beijar, perguntou o
que se lhe havia de fazer.
O Palma, furioso, repelliu a mulher com despreso. E como ella
insistisse com a pergunta: «que se ha de agora fazer a
isto?»
elle redarguiu, irado;
―Dar-lhe de mamar, está bem visto. Inda você
pergunta
[143]
o que se ha de fazer á creança. Talvez
você queira que
o pequeno vá já cavar...
A velha ia fallar.
―Nem pio, seu estafermo! Que tal é o amor que
você lhe tem, que inda nem sequer a beijou. Nem a
mãe o beijou ainda, coitadinho!
Você já viu uma cadella quando tem os filhos,
já viu? Com mil diabos,
qualquer cadella vale mais que vocês duas.
O Palma ia-se pondo amarello, a sr.
a Rufina
interveio, aconselhando-o
a que saisse.
―Saio, e vou-me embora, ouviste? Ouviste? Aparelho a egua e vou-me de
vespera até á feira.
Poz-se a procurar pelos cantos, aqui os estribos, além o
freio da egua.
―Tanto faz ir ámanhã cedo, como ir já
agora. É já de cara. Mette-me qualquer coisa nos
alforges, que vou já aparelhar a egua.
D'ahi a meia hora, o Palma montava á porta, no meio do
rancho dos cevados, e chamando a mulher dizia-lhe com má
cara:
―Em estando capaz, rua!
―D'aqui a tres dias, talvez...
―Então até d'aqui a quatro. Ouves? E olha se
defumas a casa, quando esses estafermos sairem.
[144]
Ora o Antonio Palma a virar costas, e a velha a sair porta
fóra―com o embrulhinho do neto ao colo...
Como ella corre, a maldita! Parece que o leva roubado...
Onde passou ella o dia? Onde passou ella a noite? Não sei.
Caso é que na madrugada seguinte, a desavergonhada
abandonava o pequenino
á porta do José Grillo.
Madrugada de fevereiro, nevava...
III
Quando a Dorotheia saiu com o pequeno, para o levar á
irmã, tinha amanhecido havia pouco. A neve cessara; mas um
nordeste frigidissimo retalhava a cara da rapariga, encolhida sob
aquella atmosphera de gelo.
Nunca o souto que ia atravessando lhe parecera tão comprido
e tão triste. Os grandes castanheiros despidos, cheios de
neve até
ao alto, faziam-lhe mais viva e mais cortante aquella
impressão de
frio. O chão estava coberto de neve; e lá em
cima, muito alto, o
céo muito azul annunciava um dia de sol.
A rapariga ia triste. Dir-se-hia que a tristeza lhe nascia toda
d'aquelle lado em contacto com o pequenino...
Por isso quando passou pela azenha, e que a mulher do Paulo lhe
perguntou o que levava alli, erguendo a voz sobre o ruido forte da
levada, a rapariga entrou de chorar e respondeu que era um
engeitadinho.
―Um quê, mulher? que dizes tu? insistiu a outra.
[146]
Mas o moleiro, que vinha chegando, espécou deante da mulher,
e repetiu como um echo:
―...Um engeitadinho.
Entreolharam-se os tres, n'uma incerteza vaga.
―Sim, um engeitadinho, deve ser isso...―continuou o moleiro.―E
d'ahi... póde ser que não seja...
A rapariga, muito impaciente, perguntou se sabiam alguma coisa.
―Nada! pode ser que a historia seja outra―elucidou o moleiro.―Onde
foi que isso foi posto?
―Esta madrugada, á porta do José Grillo.
―Olá! isso então pode ser coisa d'elle―observou
a rir o moleiro.―Esse diabo não é seguro.
Pozeram-se a rir da lembrança. Já dentro do
moinho, o homem pôz-se a explicar á rapariga:
―É que hontem á noite veio aqui um homem pedir
pousada, um homem a modos que adoidado. Boa figura d'homem, por signal.
Assim ás
primeiras, tanto eu como a Luiza tivemos o nosso medo...
―Ó Dorotheia! interrompeu a mulher do moleiro,
dá cá o menino e senta-te. Vou-lhe dar de mamar,
que o pobresinho ha-de ter fome.
A Dorotheia passou a creança para os braços da
moleira. Foi uma alegria ao verem-no sugar no peito, minusculo, com os
olhitos inda fechados.
[147] ―Meu rico anjinho, meu amor! A fome que o desgraçadinho
tem! Quem seria a desavergonhada?...
―Mas depois? inquiriu a Dorotheia, voltando-se para o moleiro.
―Depois, dormiu cá, ahi lhe demos da ceia e ahi ficou. Mas
dá-se o caso que o homem não pregou olho em toda
a noite, sempre a
malucar, n'um fallatorio pegado. «Que o filho era d'elle, que
se a cabra da
mãe teimasse em o engeitar, elle ia dar parte á
justiça.» Um arrazoado assim, muito comprido.
Espantada, a Dorotheia ia fallar.
―Mas espera, que o melhor da festa é que o homem
tão depressa dizia isto, como dizia que o filho
já tinha nascido, que era muito
lindo, que onde elle o tinha escondido ninguem lh'o ia roubar.
Ficaram-se um instante a mirar consolados a creança.
A pobresinha vagia, mamando com sofreguidão.
―Mas então sempre elle sabe do filho, reatou com interesse
a Dorotheia.―Ora! assim este engeitadinho soubesse quem era o pae,
coitadinho!
A sr.
a Luiza, que não gostara que se
recolhesse o homem,
resumiu com ar compungido:
―Um doido, o pobre de Christo! Deixal-o ir!
Fez-se um silencio, mirando todos a creança. A taramella do
moinho batia, n'um rithmo vivo. Maquiando uns saccos, o moleiro
explicou ainda
que o homem alvorara
[148]
muito cedo, debaixo de neve, sem ao menos dizer
obrigado. Mas que perguntando-lhe onde ia aquellas horas, o outro lhe
respondera:―«Para a feira. Vender um gado.»
―Ora vá lá o diabo entender isto!―rematou por
fim o moleiro. Um doido a vender gado.
Conversaram sobre o caso, algum tempo. Até que a Dorotheia,
com pressa por causa da irmã, pegou outra vez na
creança e
abalou pela porta fóra, direita á casa do pae.
―Olha os trapos, ó Dorotheia! olha que deixas cá
isto.―E o Paulo correu a levar á rapariga os trapos segunda
vez esquecidos,
e que eram todo o enxoval do triste pequenino...
Ia mais contente, a Dorotheia. Ao menos levava a certeza de que a
creança não ia com fome. E para que tambem
não fosse com frio, a boa da rapariga achegava ao peito o
engeitadinho, n'uma solicitude toda materna.
―Louvado seja Deus! ia dizendo a rapariga. Como haverá
gente que seja capaz d'estas crueldades! A nevar, e deixa-se assim um
innocentinho, embrulhado em dois farrapos, na soleira de uma porta!
Vamos que o
José Grillo não dava fé! Alli se
morria de frio o
anjinho, capaz de virem depois os cães e comel-o.
E espreitando pela fenda estreita do chale:
―Meu anjinho! que ruim cadella que foi a tua mãe, ora foi?
―Foi! rugiu uma voz detraz d'ella, como um echo.
[149]
A Dorotheia deitou a fugir, espavorida. Mas aquelle homem que
já de longe a acompanhava, sem ella dar fé,
corria tambem atraz
d'ella, e não tardou que a filasse, como um lobo. A rapariga
soltou um grito, ia cair
com o susto; mas valeu-lhe que n'esse mesmo instante uma voz que ella
conhecia gritou alli de perto:
―Larga a rapariga, ó José Thomaz! Larga a
cachopa!
E de um pulo, o pastor caiu entre os dois, separando-os.
―É o José Thomaz que está
doido,―explicou o pastor.―Desde que a mulher lhe fugiu, que o pobre
anda assim, coitado!
Mas palavras não eram ditas, eis que o José
Thomaz de novo se arremessa á rapariga.
―Tu que levas ahi? Tu levas ahi o meu filho!―rugiu elle com voz
furiosa.
E como se sentisse agarrado, e visse que acudia mais gente, o pobre
lançou-se por terra, de joelhos sobre a neve, as
mãos erguidas, impetrando a chorar que lhe dessem o seu
filho...
A Dorotheia cobrou animo, ao ver-se rodeada de gente.
E fez-se luz no seu espirito, quando reparou que os trapos do
engeitadinho eram reconhecidos pelo doido que os estava mirando, a
rir-se...
―Conheces? perguntou-lhe a rapariga.
[150]
No extasi em que cahira, mirando e remirando os farrapos, o doido
não respondeu.
―Se conheces isso? perguntaram-lhe uns poucos.
Nem palavra. Nada a não ser um riso nervoso que o sacudia
todo. Como estava de joelhos, quizeram levantal-o; mas elle
então
oppoz-se, caindo sobre os calcanhares.
E ria... ria... emquanto dos olhos amortecidos, cravados no miseravel
farrapo, as lagrimas corriam, copiosas...
Mas d'ahi a pouco, pelas palavras soltas do doido, todos ficaram
percebendo. Os farrapos que embrulhavam a creança eram da
saia da mãe. A mãe era a mulher do
José Thomaz, e o pequenino
era filho d'elle... A grande cadella tinha abandonado o pequeno, depois
de ter fugido ao homem!
―Um raio venha que a parta! rogou do lado o pastor.―Ora vês
ahi um estafermo que precisava que a matassem!
O José Thomaz poz-se a rir muito, fitando aquella gente. Uma
forte impressão de piedade estampava-se em todos os rostos.
―Ó Dorotheia! chamou então um dos do grupo. Traz
aqui o menino. Um pae deve sempre beijar o seu filho. Traz
cá o pequeno,
ó rapariga.
Mas não foi preciso; que o José Thomaz, sempre de
joelhos sobre a neve, foi para ella de mãos postas humilde
[151]
como um rafeiro... E
como aos labios do pae a rapariga achegasse o pequenino, no silencio
que se fez ouvia-se o rir convulso do louco, beijando de joelhos o
filho.
Como se fôra uma chuva de petalas, do céo de
madreperola a neve cahia mais densa...―ao mesmo tempo que nos ramos
altos dos castanheiros,
como no seio immenso de um orgão, o vento sul―gemia...
ABYSSUS ABYSSUM...
N'esse dia, os dois pequenitos tinham jurado que haviam de ir ao rio.
Assim elles tivessem uma coisa boa!... Mas que
tentação para ambos, o rio! Ainda lhes soavam aos
ouvidos, com todo o seu entono vibrante de ameaça, aquellas
terriveis palavras com que a mãe
os intimidara, um dia que lhe appareceram em casa tarde e ás
más horas.
―Ouvistes?―ralhara-lhes a mãe.―Olhae se ouvistes: se
voltaes ao rio, mato-vos com pancada. Andae lá...
Ih! como ella dissera aquillo, Mãe Santissima! Colerica,
ameaçadora, com a mão em gume sobre as suas
cabecitas loiras... Lembravam-se
de haver tremido, cheios de susto, muito chegados um ao outro, humildes
sob aquella ameaça terminante. E então, n'esse
dia,
elles não tinham ido ao rio. Aos passaros
sim...―lá estavam as calças
rotas do Manuel a dizel-o―...aos passaros é
[154]
que elles
tinham ido. Ao rio era
bom! a mãe que o soubesse...
Ah, mas então não os deixassem dormir n'aquelle
quarto. Logo de manhã, mal abriam as janellas, a primeira
coisa que viam era o rio, uma corrente muito lisa e esverdeada,
serpeando entre os renques baixos dos
salgueiros. Lá estava a ponte velha, d'onde os rapazes se
atiravam despidos, de cabeça para baixo, e então
o
barquinho branco do fidalgo,―lindo barquinho!―sempre á
espera que o fidalgo o
desamarrasse para passar á grande quinta que tinha na margem
de
lá.
De modo que o primeiro desejo que logo pela manhã assaltava
os dois rapazes era o de irem por alli abaixo, muito madrugadores,
tão madrugadores como os melros, metterem-se dentro do
barco, desprendel-o da praia, e deixal-o ir então por onde
elle quizesse,
comtanto que fosse sempre para deante... Quando fechavam as janellas
para se deitar, a sua
vista seguia, mesmo atravez da escuridão da noite, a linha
que ia dar ao barco. Era o seu―«adeus até
ámanhã!»―áquelle pequeno
objecto que valia thesoiros, que para os dois valia mais que tudo,
tudo...
Ah! tivessem elles assim um barquinho, que não queriam mais
nada...
―Mais nada?
―Isso não... mais alguma coisa. E a mãe que
não ralhasse, está visto.
Mas n'essa manhã, bella manhã, na verdade! a
mãe viera acordal-os mais cedo. Ia já pela aldeia
um claro rumor de vida―gente que
passava para os campos, os
[155]
solavancos dos carros no empedrado pessimo
da rua, os patos da visinhança que saiam em rancho para a
digressão pelos prados, grasnando ruidosamente,
levantando-se em vôos curtos,
espantados da aggressão accintosa dos rapazes. Havia mais de
uma hora que
alli perto se ouvia o retimtim agudo do martello do ferrador
atarracando cravos na
bigorna. Já o reitor passara para a missa, em batina, muito
hirto e vagaroso, as chaves da egreja na mão esquerda e na
direita a
cabacita do vinho. E áquella hora, onde iria já a
missa! A
ultima beata, encapuchada e lenta, recolhera, trazendo comsigo a
esteira em que
ajoelhára na egreja. Havia mais de meia hora que o
João carpinteiro, no
meio da rua, dava com valentia n'um carro cujo eixo
ardera
na
vespera, e que era urgente compor, p'los modos. Até o
Ernestinho do estanco
abrira já a loja, e subira á varanda a regar os
mangericos.
Começos da labuta diaria, emfim; os senhores sabem.
Pois como lhes disse, a mãe viera n'essa manhã
acordar mais cedo os dois pequenos.
―Fóra, mandriões, vamos! É preciso
afazerem-se a madrugar, que tal está! Ai, ai, dia claro ha
que tempos, vem ahi o sol, e os
morgadinhos na cama.―E emquanto fallava, ia-lhes abrindo as
janellas.―Persignar e
vestir, vamos! Calças... colete... os
jaquetões... tomem.
E poz-lhes tudo sobre a cama.
―Mãe, a benção!―balbuciaram os dois,
tontos do somno ainda.
―Deus os abençôe. Que Deus não
abençôa mandriões, ouviram? Ora eu
já volto. Queira Deus que não vos encontre
cá
fóra, tendes que ver.
[156]
Os dois sentaram-se na cama para se vestir, contrafeitos, fechando os
olhos áquella hostilidade viva da luz que invadira o quarto
n'um jacto repentino e brutal. Pela abertura larga da camisa
assomava-lhes o peito
que elles afagavam n'uma ultima caricia, suavemente, docemente. Seria
tão bom tornar a adormecer, assim mesmo sentados! O mais
novito ainda tentou deitar-se outra vez, pesaroso de ter de abandonar
já
o aconchego morno da cama, onde se estava tão bem! onde os
sonhos eram
tão lindos!
Mas a mãe não tardava alli. Era preciso
vestirem-se, que remedio! Foi então que o Manuel, mais
esperto do somno, olhando para o
campo o achou encantador, todo resplandecente de verduras.
―Bonita manhã, não vês? As arvores
parecem mais lindas, repara. Porque será?
O outro encolheu os hombros, não sabia: só se
fosse por não haver nuvens...
Pela janella aberta, avistava-se um trecho de paizagem que a luz viva
da manhã fazia muito nitida. As vinhas tinham um verde
encantador, muito suave, trepando encosta acima, fazendo contraste com
a rama escura das laranjeiras que cerravam alas nos pomares humidos das
baixas.
Revestidos de folhagem, ascendiam ares fóra os olmos
gigantescos.
Pedaços d'horta estavam em toda a pompa do seu
viço e da sua frescura.
Viam-se as rodas das noras, latadas compridas a cuja sombra regalam as
merendas.
Um renque de choupos esguios marcava a borda do rio que n'essa
manhã deslisava muito sereno, esverdeado d'aguas, espelhante
sob aquelle
céo immaculado.
[157] ―Ah! ah!...―riu-se o Manuel, contemplando-o.―O rio! Que te parece?
Olha que é lindo, o rio; ora é, ó
Antonio?
―É, lá isso... Mas
tamem
de que
vale?―tornou-lhe com desalento o irmão.―A gente
não pode lá ir... Olha
se a mãe o soubesse, han?―E mirando por sua vez a paizagem
perguntou:―Já reparaste no
barco, ó Manuel?
―Tão bonito!
Os dois riram.
―Parece pintado de novo... E nem se mexe, repara.
―Podera!...―explicou o Manuel―...amarrado com uma corda...―E depois
radiante, gesticulando para o irmão:―Mas eu era capaz de o
desamarrar...
―Ai eras!―disse duvidoso o Antonio, para o incitar.
Calaram-se. Era bom podel-o desamarrar, lá isso era. Ambos
dentro d'elle, sósinhos, isso é que seria bom! E
elles
então que estavam mortos por ir ás azenhas, e
pelo rio era um instante emquanto
lá chegavam. O barco! Era tão bom andar no barco!
E aquelle
então era lindo, como não tinham ainda visto
outro. Nunca lhes haviam esquecido―olhem
lá não esquecessem!―aquellas tardes em que o
fidalgo os levara dentro do barquinho, ensinando-lhes como se remava.
O Manuel foi o primeiro que se vestiu, e foi logo direito á
janella. Passava n'aquelle instante um bando de andorinhas, chilreando.
[158] ―Está um dia lindo, avia-te.
―Olha avia-te! p'ra que?―perguntou o Antonio torcendo e retorcendo o
pé para enfiar o sapato, apoiado com as mãos
ambas na borda da cama.
O Manuel sorriu-se, triste.―Era verdade... Aviarem-se p'ra que? A
mãe não os deixava ir ao rio... E se
não que fossem!
«Mato-vos com pancada se desceis a ladeira.»
Já se vê que
depois d'isto...―E os dois suspiravam, desgostosos. Que pena serem
pequenos!
N'isto o Antonio chegou-se tambem para a janella. Que lindo, o campo!
Mas os olhos dos dois não se desfitavam do barco,
fascinados. Demonio de tentação! E para mais,
tinham-no pintado de novo:
sobre o branco, a todo o comprimento, uma faxa azul-clara destacava
nitidamente, parece que apenas meio palmo acima do nivel da agua.
―Táte, ó Manuel! E se fugissemos?
―Ora! se fugissemos!... E depois? A gente tinhamos de voltar...
Ora ahi esta! isso é que era o peor! A mãe,
depois, era capaz de fazer o que tinha promettido. E arregalando muito
os olhos, imitando a colera
da mãe:―«Se voltaes ao rio...» Ai, ai,
a
triste sorte!
Recahiram em silencio. Ficaram-se por instantes a ver o sol que rompia
ao nascente, n'uma explosão violenta de luz, accendendo
coloridos na largura muito ampla da paizagem.
[159] ―Mas palavra que o barco parece pintado de novo... relembrou com
alegria o Manuel.
―Mas é que está, palavra que está.
Agora é que ha-de ser bom andar dentro d'elle...
Os dois riram-se muito áquella ideia encantadora de andarem
no barquinho, assim pintado de novo. Diacho! e porque não?
Por
isso, cobrando animo, o Antonio disse resoluto:
―Olha agora o medo! Seguro que nos mata.―E puxando-o pela
jaqueta:―Vamos lá, ó Manuel?
O Manuel fez que não com a cabeça, e espreitou se
vinha a mãe. Como não vinha, disse baixo ao
irmão:
―Á tardinha, hein? dois pulos e estamos lá.
Não é tão facil dar pela nossa falta,
alli á tardinha. A gente finge que vae para o
adro. Levam-se os peões...
―Ha-de ser mesmo assim! á tardinha!―concordou o
Antonio.―Eh! eh! tu cá desatraco.
―E eu remo,―disse logo o Manuel com gesto de quem remava.
―Ao leme vou eu: o leme é aquillo que regula―explicou.
―Pois sim, mas á vinda pertence-me a mim, remas tu. Se
quizeres assim...
―Pois está bem, quero! Assim mesmo é que ha-de
ser!
[160]
E recapitulando, para melhor ficarem combinados:
―Ao p'ra baixo remo eu, ora remo?
―Remas.
―E tu regulas, ora regulas?
―Regúlo.
―Ao p'ra cima é ás avessas, ora é?
―É.
Muito bem, basta palavra! E ambos ao mesmo tempo, um ao outro se
impozeram segredo...
―Schiu!...
―Schiu!
A tarde descahia limpida. Na vasta cupula do céo, penachos
de nuvens alvejavam, immoveis.
Accesas n'aquella explosão rubra do occaso, as arestas dos
montes franjavam-se de purpura e oiro, na
decoração
magica dos poentes. Começava de cair sobre os campos a larga
paz tranquilla dos
crepusculos, e uma quietação dulcissima e
vagamente
melancolica entrava de adormecer a natureza para o grande somno
reparador de toda a noite.
...E a tarde ia descahindo, cada vez mais limpida.
[161]
N'aquella luz indecisa de crepusculo que mansamente se ia accentuando,
os montes do sul tomavam um torvo aspecto de sombras gigantescas,
immobilisados n'um fundo em que se iam apagando ao de leve todos os
cambiantes de luz. Os pormenores da paizagem perdiam-se n'aquella
indecisão vaga de noite que vinha descendo, e uma especie de
silencio confrangedor dominava a natureza toda, recolhida n'um como
spasmo amedrontador e sinistro que dentro de nós evoca a
essa hora
não sei que vagos receios ou medos inconscientes que fazem
com que na
imaginação as coisas criem vulto, e no mundo
exterior obrigam a retina a exagerar as formas ás coisas...
Muda de gorgeios, atravessando o espaço em vôos
muito rapidos, a passarada demandava os ninhos onde se acoitasse do
frio que acordava. Cahiam já pesadas sobre os valles as
sombras das montanhas,
e um fumosito subtilmente azulado nadava á flor das coisas,
velando-as para o tranquillo somno em que iam adormecer.
E a tal hora e no meio de tal silencio, o barquinho branco deslisava
mansamente sobre a agua tranquilla do rio, onde as primeiras estrellas
começavam de lampejar. Dentro d'elle, os dois
irmãositos silenciosos iam-se deixando enlevar n'aquelle
ruido suave dos remos abrindo fendo nas aguas... Não! era
bem certo que elles não
tinham jámais sentido uma tão poderosa e viva
alegria―alegria doida que lhes
trasvasava do peito, fundindo-se em energia nos musculos e
crystallisando-se nos labios em sorrisos.
Dentro d'aquelle adorado barco, assim no meio do rio, eram senhores
absolutos da sua vontade, poderiam ir para onde lhes parecesse, livres
de admoestações alheias, sósinhos,
independentes. E esta feliz convicção de
liberdade
[162]
alcançada, fazia-os agora orgulhosos,
além de os encher de alegria. Por certo elles nunca tinham
sido tão felizes, e
quem sabe se o seriam jámais?... No emtanto a noite
accentuava-se.
Espertava nas margens o marulho da agua nas raizes fundas dos
salgueiros. No
céo alto e sereno scintillavam as estrellas em cardumes.
―Remas, Antonio?―perguntou o do leme.―Olha se a vês...―E
apontava para Vesper, a estrella que mais brilhava.
Tinham os dois concebido o extranho desejo de alcançar a
estrella cujo brilho diamantino os fascinava. Tão linda!
―Anda-me tu com o leme!―tornou-lhe com intimativa o Manuel.―Ai a
estrellinha! Deixa que ella faz-se fina, mas havemos de passar-lhe
adeante, só por isso...
―Olha o milagre! Ella está quêda!―fez o outro,
convencido da facilidade da empreza.
―Está quêda, está quêda, mas
sempre na frente de nós; vae lá entendel-a. Olha
como brilha, ó Antonio.
―Mas rema que eu cá vou, falta pouco. Ao direito d'aquella
fraga é que ella está.
Não era difficil passar-lhe adeante, qual era? Era menos de
meia hora era certo alcançal-a.
E engastada no azul escuro do céo, a estrella parecia
brilhar mais, quanto mais a olhavam.
―De que são feitas as estrellas?―perguntou o mais novito.
[163] ―De prata, pois está visto.
Então o outro, lançando um amplo olhar
á vastidão infinita do céo, exclamou:
―Eh! tanta prata!
―O sol, esse é d'oiro―disse ainda o Manuel.
―Bem de ver!―volveu-lhe convencido o irmão.―Que eu, se me
dessem á escolha, antes queria as estrellas. Olha que
rebanho!
―Pois eu antes queria o sol. Com licença do teu querer,
sempre é mais grande.
E emquanto fallavam, os dois não desfitavam olhos da
estrella feiticeira que perseguiam. Os remos, no emtanto, iam abrindo
fenda na agua, com certo ruido muito doce... E lá no alto
céo,
dir-se-hia que de instante para instante a feiticeira estrella mais
brilhava, incitando-os.
―Vêl-a a fazer assim?―e poz-se a pestanejar, imitando a
palpitação crebra e irregular da luz sideral.
―É que tem somno―respondeu o outro.
―Olha que não. Aquillo é a fazer-nos
negaças,
tamem t'o digo.
―Ai é?! Pois que faça as negaças e
que se descuide: se malha cá baixo, bem se afoga...―E
apontando-lhe um punho cerrado, gritou a rir:―Eh,
boieira!
N'este momento, uma estrella cadente abriu esteira de prata no azul,
sumindo-se rapidamente. Os pequenos ficaram
[164]
com medo e ambos murmuraram
em tom de reza as palavras rituaes:
Deus te guie bem guiada,
Que no céo foste creada.
―Vês? disse o Manuel que era dos dois o mais
supersticioso.―Torna a apontar para ellas... Eu cá
não aponto, que
nascem «cravos» nas mãos.
―A ti talharam-te o ar, ó Manuel.
―Diz a mãe. Á meia noite levaram-me á
fonte e esparrinharam-me agua para o corpo. E a agua havia-de estar
fria... observou, encolhendo os hombros. Depois, viraram-me para as
estrellas e disse então
a mãe:
Ar vejo,
Lua vejo,
Estrellas vejo:
O mal do meu corpo
Pr'a
tráz das costas o despejo.
Riram muito. O Manuel, despidinho, coiracho ao colo da mãe,
havia-de ser engraçado. E então todos de volta, a
ver quando o
ar se talhava.
―Mas talhou-se. Agora, em paga, uma vez por anno, ao menos uma vez por
anno, tenho de olhar pelos ralos do lenço p'r'as
cinco
chagas, umas estrellas que além estão,
e rezar
uma Ave-Maria.
―Sempre, sempre?
―Até que morra. Depois de morrer vou morar tres dias com
tres noites dentro de uma.
―Ora! tornou-lhe incredulo o irmão.―Tu não
cabes lá...
[165] ―Não sei: assim é que anda nos livros.
...Mas os braços doiam já dos remos, doiam
muito...
Devia ser tarde, e elles sem darem fé, enlevados como iam no
desejo louco de alcançar a estrella.
A noite estava calma, não bulia nas ramagens ramo verde de
salgueiro, um silencio continuo dominava tudo em volta. E amolentadora
e
múrmura, a agua da corrente ia espumando na quilha, com
certo ruido de uma
brandura suavissima e doce.
...Mas os braços cada vez doiam mais!...
Agora, no céo, havia muitas estrellas brilhantes, muitas,
mas nenhuma como aquella, ainda assim. Entretanto os dois pequenos
entraram de
olhar menos para ella, pois que irresistivelmente a cabeça
lhes
pendia para o peito, e as palpebras se lhes cerravam, a despeito de
todo o
esforço.
...E os braços sempre a doerem!...
Por algum tempo, os remos foram com a pá mergulhada na
corrente, cortando-a com levissimo ruido. Immobilisara-se tambem o cabo
do leme, sem que nenhum dos dois irmãos desse fé
do subito
desleixo do outro.
...E os braços já não doiam, nem ao de
leve sequer...
O pequeno barco vogava agora á mercê da corrente,
sem impulso algum extranho. Dentro d'elle... a musica levissima das
respirações dos dois pequenos adormecidos...
[166]
Algum tempo assim. Senão quando, um ruido surdo, e logo um
movimento brusco de balanço, fez acordar o do leme.
Na grande allucinação do perigo, desvairado pelo
medo, gritou immediatamente:
―Manuel! Ó Manuel!
O remador acordou, sobresaltado.
―A estrella? Ainda lá está, olha!―disse
incoherente, estonteado pelo somno.
―Uma fraga de cada lado! Ouves o rio? É já muito
tarde!—-continuou afflicto o Antonio.
―Então não lhe passamos adeante?―perguntou
ingenuamente o Manuel, referindo-se ainda á estrella.
Mas o irmão, sacudindo-o convulsamente, procurando chamal-o
á realidade, de novo lhe gritou, com lagrimas na voz:
―Manuel, acorda! Olha que estamos perdidos, Manuel!
E mal conheceram o grande perigo em que estavam, ambos romperam n'um
choro muito convulso, agarrados um ao outro, feridos de um terrivel
susto que a hora e o logar augmentavam cruelmente. Parecia-lhes medonho
aquelle marulhar continuo da corrente, affligia-os como se fosse o
psalmodear monotono e rouco de uma legião de espiritos maus,
preludiando-lhes as agonias lentas da morte. Aos dois pequenos os
rochedos informes das margens affiguravam-se-lhes negros gigantes, que
n'um requinte
[167]
de malvada indifferença houvessem jurado
assistir impassiveis e mudos á escura tragedia da sua
desgraça.
E o barco sempre encalhado, não havia forças que
o arrancassem d'alli. Tinham perdido os remos. Teriam de esperar que
amanhecesse e alguem viesse acudir-lhes, alguem que ouvisse de longe os
seus afflictivos gritos.
Crudelissimo transe!...
E então os braços continuavam a doer, doia-lhes
agora o corpo todo, ao mesmo tempo que uma tristeza mais e mais pesada
lhes opprimia o espirito, parece que embrutecendo-os.
―Mas a estrella sempre além...―notou ainda o Manuel,
balbuciante de medo, como se quizesse increpar a propria estrella da
sua
indifferença criminosa, no meio d'aquelle enorme infortunio
em que por causa d'ella se haviam precipitado.―Se ella podesse
acudir-nos...
Até que por fim, prostrados da fadiga e das lagrimas de novo
se deixaram adormecer, era já alta noite.
Mas na sua furia constante, a corrente que alli era muito forte
não cessava de bater contra as pedras o pobre barco
indefeso.
Até que após tamanho lidar, o rio safou-o de
repente para um lado onde as aguas se contorciam em remoinho, e entrou
de girar com elle, violentamente. Quando a agua se precipitou para
dentro, os dois pequenos assim de subito acordados romperam em gritos
lancinantes:
―Ai quem acode! Ai Jesus, quem nos vale!
[168]
Tinha surgido a manhã, serena, tranquilla, cheia de gorgeios
e de azul. Mas como ninguem acudisse e a lucta no rio fosse desegual,
n'um
repelão mais violento o pobre barco esphacelado investiu de
proa com o abysmo e
lá se sumiu para sempre! Feridos de morte, no ultimo
paroxismo da sua enorme dor desesperada, os dois irmãositos
abraçados sumiram-se tambem com elle!...
...N'esse mesmo instante...―e mais longe do que nunca―...a estrella
feiticeira acabava de cerrar tambem a palpebra luminosa!...
MÃE!
Ao dr. J.C. da Moita Prego
Bella cabra, a
Russa!―posso dizel-o aos senhores. A melhor da manada,
luzida, de pello macio, sem saliencias de ossos como as outras, altiva
de porte quando á frente do rebanho parecia commandal-o,
badalando cadencialmente o seu chocalho enorme―tlão!
tlão!
Era no rebanho a que mais dava que fazer ao pastor, requerendo
vigilancias particulares no seu atrevimento, pois que se a deixassem
livre não havia
arvore a que não trepasse, oliveira especialmente, nem
rebento novo que
não triturasse esfomeada no seu dente acerado de roedora.
E depois, alli onde a viam, estava cara só pelas coimas, que
muitas vezes illudira ella a attenção do pastor,
e se
ficara por hortas e quintalorios, causando estragos que os louvados
depois avaliavam caro. Por isso Alipio José, pastor, a quem
doiam as denuncias, ao
pescoço da Russa prendera o chocalhão, para dar
do atrevido
[170]
animal mais
facil rumor, pois era de timbre muito distincto dos demais, e muito
mais grave.
Em pastagens pelos montados, a Russa era de uma audacia extrema. Fazia
gosto vel-a trepar ás ultimas cumiadas, subir destemidamente
ás arestas superiores dos rochedos, muito serena, erecta nas
suas pernas delgadas,
pescoço alto, ajoelhando destemida a retouçar as
hervas dos declives alcantilados e escorregadios, não
medindo perigos nem se
importando com abysmos, emquanto as companheiras se ficavam pelas
encostas e corregos,
saboreando as giestas, sem se atreverem a seguil-a nas suas
excursões arriscadas de
touriste.
Se a miravam de baixo, sentia-se orgulhosa de superiores audacias, e
então cabriolava em saltos funambulescos, de rochedo em
rochedo ou de garganta em garganta, pouco se lhe dando de perigos.
Cobra que encontrasse por essas paragens era para ella um
desespero―tamanha a furia com que a perseguia, e a insistencia com que
se ficava
ás marradas na lura onde se lhe acoitava. O chocalho
então badalava com
força, e o Alipio que dormia á sombra das
azinheiras, de chapeu sobre a
cara, levantava-se sobre um cotovello e intimava para o alto, com o seu
vozeirão que fazia echo:
―Toma tento, Russa!
E depois, de ventre para baixo, estirado sobre a manta, cotovellos
fincados no chão, os queixos entre as mãos
espalmadas, Alipio José ficava-se a olhar a cabra, invejoso
d'aquella facilidade em subir aos ultimos pinaculos, admirado dos
saltos que ella fazia para salvar gargantas pedregosas e
perpendiculares, onde, se caisse, a morte seria infallivel. E por
lá andava dias inteiros a Russa,
[171]
n'aquella
vagabundagem por sitios inaccessiveis ao resto do rebanho,
resguardando-se da chuva em reconcavos de rocha, onde as aguias faziam
ninho.
Foi n'um d'esses sitios que a Russa teve o primeiro filho, e por
lá se deixou ficar, acho que dormindo ou toda a noite
velando. Ao outro dia quiz ella descer, e vir para o rebanho que a
aguardava. Mais de cem vezes, fitando o topo da ladeira, Alipio
José gritara
cá debaixo, cada vez mais desesperado:
―Volta ao rebanho, Russa!
E, cuidando que mais lhe feria assim a attenção,
punha-se a agitar com furia o mólho dos chocalhos, gritando
sem cessar:
―Russa! torna ao rebanho, Russa!
Mas impossivel! que a não deixava a quebreira em que toda
ella ficara do parto, nem o pequeno poderia―pobresinho!―descer por
taes ladeiras, de
pedregosas e asperas que eram.
Mas de noite o frio era intenso n'aquellas alturas, e o pequeno
congelava unindo-se á mãe que o bafejava para o
aquecer, e a si o aconchegava mais e mais para lhe transmittir o
natural calor do seu corpo enfraquecido e doente.
Por altas horas da noite, na solidão lugubre d'aquelle
sitio, alcantilado e ingreme, entre penedias escarpadas
[172]
onde o vento
sibilava lugubremente, n'um como choro dolente e prolongado, o balido
da
mãe, traduzindo angustias e desesperos intimos, respondia ao
vagido fraco do
filhito, cuja vida parecia ir-se apagando de hora a hora e instante a
instante, inteiriçando-se-lhe com o frio os membros
delicados e tenros.
Eram assim as noitadas dos desgraçados. Por taes frios e
doenças, impossivel dormir. Toda a noite velavam e gemiam,
achegando-se mais e mais n'um como abraço de eterna
despedida―amigos que se iam
apartar para uma longa viagem de trevas, com o
coração
alanceado pela saudade, soluçando e gemendo, n'um adeus! que
era infinito, como o
infinito amor que os unia...
E a cada momento, como um dobre de finados, o chocalho badalava
lugubremente, assustando o animalsinho, como se aquelle fôra
o signal para o transe derradeiro...
Para maior desgraça, as noites eram sem lua. Encravadas na
abobada, as estrellas bocejavam dormentes, n'uma criminosa
indifferença
por aquella dôr suprema de que eram as unicas testemunhas.
E balando muito, e balando sempre, a pobre cabra imprecava ao
céo a vida do filho, ao menos,―ora supplice em balidos de
resignação que uma profundissima dôr
ungia, ora desvairada e louca, em gritos
que significavam blasphemias, blasphemias de desespero contra o
céo que a não ouvia, e contra a morte que bem
sentia aproximar-se para
lhe estrangular o filhinho que ella amava tanto.
E a fazer-lhe mais incruenta a sua enorme dôr―a ironia
acerba da chocalhada longinqua das companheiras,
[173]
que se iam pelos
montes da outra
banda, deixando-a a ella sósinha com o filho, á
espera da morte que era inevitavel.
Então ergueu-se por instantes! Agitou convulsamente o
pescoço, e pelo ar fóra o som triste do chocalho
espraiou-se lentamente, n'um
adeus! adeus! de despedida ás companheiras felizes que
lá iam,
n'um ruido longinquo de chocalhos...
N'aquella solidão os dias eram melhores. Com os primeiros
raios do sol entravam de reanimar-se os dois; pouco a pouco os membros
desentorpeciam e o sangue circulava.
E o cabritinho sem poder ainda descer!...
De pé, ao lado do filho, a pobre cabra lançava
olhos compungidos para as escarpas da ladeira, ia para um lado e outro,
desvairada e tremula,
como que a escolher o melhor caminho por onde levasse o filho. Mas eram
todas horriveis! Silvedos e rocha viva era o que mais se via. E depois
o rio,
lá baixo, rugia nas cachoeiras, augmentando-lhe o receio.
Impossivel! impossivel!
E sentia-se enfraquecer á mingua de sustento, pois a herva,
por alli, estava comida e recomida pela pastagem miseravel de tres
dias.
[174]
N'um momento de desespero, quando os gemidos do filho eram mais
dolentes e crebros, refez-se de coragem a cabra, e segurando entre os
dentes o chibo tentou o primeiro passo, arrastando-o pela ladeira, do
lado em
que o declive era menor. Mas em breve desanimou a pobre, que o filhito,
assim arrastado, mais e mais gemia, convulsionado e tremulo...
Impossivel! impossivel!
Nada que signifique a dôr d'aquella mãe, e
traduzir possa em linguagem toda a gamma de sentimentos e
emoções no seu
balar expressos. Atirou-se de joelhos sobre o corpinho do filho que
hirto chorava e tremia, estendido para alli, na
prostração pesada do
ultimo desalento; animava-o com caricias, aproximava-lhe da bocca os
uberes já flaccidos
e amolentados, convidando-o a mamar, como se aquelle leite podesse
levar ao filho a coragem que a ella propria faltava em tamanho transe
afflictivo...
Mas pouco a pouco a noite ia caindo. Tinha-se já apagado a
ultima cambiante do poente, e sobre as gargantas dos montes passavam
subtilmente as primeiras nevoas, alvadias e tenues. Á medida
que a treva se condensava, decresciam os ruidos em todo o horizonte,
accentuando-se
cada vez mais a melopéa somnolenta do rio nos
açudes. Perpassavam pelo ar as aves para os ninhos. Bandos
de pombas, como flocos volateis de arminho, cortavam em vôos
mansos a profundidade calma do
céo, demandando os pombaes e os povoados, onde se acolhessem
da noite que vinha caindo.
Revoadas de perdizes e de tordos passavam por alli alegremente, n'um
chilrear sonoro, caindo de chofre sobre o monte, a esconderem-se nos
estevaes e nas urzes. Pelas hervagens seccas
[175]
rastejavam apressados os
reptis, e sob os tojaes bravios a lebre buscava a cama...
...E tudo tinha ninho―pombas que voavam e perdizada sonora, quem
passava no ar e quem rastejava no monte, lagartos, sardões,
cobras, toda a colonia vagabunda de reptis e de aves, que passou
alegremente o seu dia, e se ia recolher agora para recomeçar
dia
ámanhã...
Só a desgraçada cabra, alli, junto do filho
tenro, não mais fizera passo. Com as brumas da noite, as
brumas da tristeza para o seu
coração alanceado de mãe. Ahi vinha o
frio inclemente flagelar-lhe o
filho...―o filho que já tremia a ella aconchegado―o triste
pobresinho!
Rompia de toda a banda o gri-gri sonoro dos grilos, vivo e cantante
n'aquelle silencio que se definia. Cerrou de todo a noite. O
céo era baixo e torvo de nuvens. Estrellejava a
espaços a abobada,
irradiando uma luz mortiça e alvadia, que levava a pensar em
ultimos
transes de creanças, em que a vida gradualmente se
extinguisse, n'um
latejar vagaroso de palpebras somnolentas...
Mais algida fazia a noite, e mais pesada de melancolias, essa torva
apparencia da atmosphera e do céo. Noite peor do que as
outras, porém com menos balidos, pois que mãe e
filho estavam extenuados
de forças e nem gemer podiam. E a morte que não
vinha arrancal-os do
abraço em que se uniram, mal cerrara a noite!
A pequena distancia, o monte era cortado de profundissima garganta em
rocha viva. Do lado opposto, e quasi defronte dos moribundos,
accenderam-se na treva dois pontos phosphorescentes, de uma claridade
esverdeada rutila. E, immoveis, esses dois olhos estoirados de
[176]
lobo, a
que parecia terem arrancado as palpebras, projectavam a sua luz
sinistra na direcção do grupo que velava. A
natureza
inteira retrahia-se n'um como pavôr medonho, concentrado de
intimos terrores e
silencios lobregos d'horas altas. Cerrava-se mais no céo a
phalange muda das
nuvens, densificando-se em tintas negras, impenetraveis e caliginosas,
sem scintillas de estrellas, por fugidias e tenues que fossem...
E sempre, e constantemente immoveis na escuridão pesada,
aquelles dois olhos flammejavam, de instante a instante mais vivazes,
perscrutando a treva da direcção mais exacta do
grupo. Transida
de susto, arquejando convulsamente no ultimo paroxismo da sua enorme
dôr, a pobre
mãe não ousava arriscar um unico movimento e mais
e mais cerrava contra si o corpo inanimado do filhito que parecia
adormecido.
Assim durante horas que aquelle atrocissimo supplicio fez enormes,
quasi eternas, tumultuosas de acerbos soffrimentos e de indiziveis
angustias,
vasias de esperança na vida do seu pequenino filho.
De repente, aquelles dois pontos brilhantes apagaram-se na treva, e de
novo os viu brilhar a cabra, mas já a maior distancia.
Estremeceu a pobre de subita alegria,―e no abalo que soffreu o seu
corpo,
até então retrahido, o chocalho badalou. Voltou a
correr o lobo, e
então a desgraçada viu errarem na treva, como
dois grandes
coleoptéros de azas phosphorescentes, os olhos
até então immoveis do
inimigo. E por alli levou a noite toda, farejando e uivando,
até que
cançado de perscrutar o insondavel, se foi ladeira abaixo,
aos primeiros assomos da madrugada que vinha, docemente, alumiando
pincaros e arestas.
[177]
Ao romper d'alva o céo era azul. Apenas de longe em longe
pennachos de nuvens brancas ondulavam as suas cristas alvadias, que se
esfarpavam lentamente ao menor sopro da aragem. Pouco a pouco o azul ia
desmaiando, diluindo-se na luz esbranquiçada que vinha do
alto em
gradações imperceptiveis e suaves.
Começavam de animar-se os longes da paizagem, e a retina
accusava já as differenças mais salientes dos
campos e herdades,
pedaços esbranquiçados de restolhos, tons pardos
de olivaes, terras plantadas de vinhedo, e pinheiraes cerrados galgando
desfiladeiros e investindo com o
céo no alto dos montados.
Pelas ladeiras d'além, caminhos e atalhos corriam em
torcicolos até ao areal da margem. Em turbilhões
de espuma alvissima
precipitava-se a agua nos açudes, marulhando nos altos
penedos marginaes,
denegridos e informes, de uma mudez contemplativa e perpetua. Do tecto
do moinho,
lá em baixo, uma columna azulada de fumo elevava-se
tranquillamente no ar sereno e doce, até se desfazer no
espaço amplo e
benigno, como uma ambição ou como um sonho...
Foi então que Alipio José, á frente do
rebanho, de novo abordou áquellas paragens, no intuito de
procurar a cabra tresmalhada.
[178] ―Russa! torna ao rebanho, Russa!
Mas precisamente a essa hora, a Russa exhalava o ultimo alento, pendida
sobre o cadaver do pobre filhinho morto!...
E ao pino do meio dia, quando o sol faiscava causticando nos
rochedos―passava na direcção da montanha,
crocitando lugubremente, a esfaimada legião dos
amaldiçoados corvos...
ARRULHOS
A.M. da Silva Gayo.
Ao fundo do jardim
ficava o pombal―uma casinhola redonda, com
orificios triangulares no alto, em toda a volta, alegre na alvura
impeccavel do muro que fallava ao longe, muito ao longe, a leguas de
distancia.
―Pombal da Morgada! diziam.―Lá se vê
além...―E um gesto muito longo levava a vista horizontes
fóra, á cata do Pombal
da Morgada, que alvejava longe, muito distante, na meia sombra dos
montes sobranceiros,
como um pequenino ermiterio cheio de lendas, onde santos de carne e
osso provocassem romarias, promessas avultadas de pessoas ricas, e onde
seriam encantadoras as tardes quentes de estio, á sombra de
arvores seculares em cuja ramagem trinassem passaros em barda,
pardalada
sonora, gralhadora, rindo da nossa merenda e da nossa
semceremonia―frangãos assados e boa vinhaça da
terra.
[180]
Pombal da Morgada porque? Historia singular que vou contar-lhes. A
Morgada era uma senhora rica, muito rica, tinha vinte e cinco annos e
outras tantas quintas, viuva antes de casar, pesarosa da morte
desastrada do noivo―um trambulhão de um cavallo que o
matara logo alli, sem mais pio, n'um ai.
A recordar esse amor―um casal de pequeninos pombos que elle lhe dera
na vespera, symbolisando, dizia elle, a pureza da sua alma d'ella, e a
castidade das suas intenções d'elle...
Muito bem. Fez-se então o pombal, o casal procreou, vieram
pombos novos―todos brancos uns, rajados outros, de um
gris
delicadissimo alguns, todos encantadores, velludineos, muito mansos.
Bellos pombos, na verdade!
Todas as tardes, quando as tintas do crepusculo começavam de
esbater-se n'uma uniformidade vagarosa de tons, e a
percepção clara das coisas entrava de se desfazer
em imperceptiveis
nuances subtis, n'um
smorzando
melancholico onde
palpitavam vagos terrores de noite que
vem caindo, quando os valles se cobriam de uma sombra azulada e a vida
cessava no campo e começava no céo em
scintillações argenteas de estrellas―todas as
tardes, digo, quem quer poderia ver aberta a estreita porta do pombal,
e uma mulher nova, vestida de preto, espalhando no pavimento terreo,
com solicitudes de
menagère, as provisões de um
pequeno cabaz que
lhe pendia do
braço―milho em abundancia e fartura de alpista.
Assim todas as tardes, ia já em quatro annos, que
não havia forças que levassem a Morgada para
fóra do seu
[181]
pequeno solar, onde
vivia só, retirada de tudo, a tudo indifferente, impassivel
a pedidos de amigas que saiam para as praias, no inverno para Lisboa, e
que a queriam levar
para que se distrahisse, para que se alegrasse―«era nova
ainda, podia arranjar noivo, nada mais facil...»
―E as pombas? objectava.―Mas era peccado deixal-as, dizia comsigo.
Quando voltasse estaria deserto o pombal, umas que fugissem, outras que
matassem, haviam-de até roubal-as, entrar de noite no
pombal, leval-as todas.
―Que não e que não! insistia renitente;―que
tivessem paciencia, que se divertissem muito, ella ficava.
―Platonismos! gargalhavam depois as amigas.―Saudades do outro que
rebentou do trambolhão. Bem tola!
E partiam sós, rindo da Morgada e do seu amor pelas pombas,
achando-a ridicula com aquelle seu luto perpetuo, escarnecendo da
simplicidade habitual da sua
toilette―vestido
preto todo liso, muito
afogado, um pequeno
ruche no pescoço e
mangas, nem uma
préga, nem sequer um laço.
Muito respeitadas, as pombas da Morgada. Caçador que as
visse não desfechava sobre ellas. Assim, a manada crescia de
hoje para
ámanhã, desenvolvia a
propagação o bom tracto, a
habitação confortavel, muito abrigada de ventos,
onde a chuva não entrava e os ninhos
eram flaccidos―folhas de milho mudadas cada dois dias.
Que bom, ser pombo da Morgada!
A musica dos arrulhos, uma volata muito languida, começava
com o aclarar, muito cedo, depois do descanço
[182]
do somno na
placidez
do ninho, quando as forças eram sãs e as azas
pediam
vôos.
Hora dos amores!
Pombos atrevidos, sanguineos, de iris rutilante e indole impaciente,
lançavam-se sobre as pombas, forçavam-nas,
perseguiam-nas se voejavam, ameaçando-as de bicadas
primeiro, picando-as nas cabecitas
se resistiam, possuindo-as á força, a tremer,
azas em concha,
pennugem erriçada, arrulhando muito, arrulhando sempre,
cahindo desfallecidos depois, hirtos, palpebras cerradas, trementes,
frementes, em spasmos de luxuria
e paroxismos do goso; emquanto ellas, as pombas, se emplumavam agora de
contentes, sacudindo as azas, pescoço levantado, orgulhosas
talvez, muito felizes.
Outros então, mais meigos ou mais pachorrentos, mais velhos
por certo, quedavam-se horas seguidas, horas longas, defronte da sua
eleita, n'uma
doçura plangente de musicaes arrulhos, frementes de desejos,
mas pedindo ás boas, não querendo violencias,
detestando-as,
bem se via, supplicando, rogando, commovendo. E se logravam intentos,
redobravam os
carinhos, havia meiguices de geitos e friccionamentos leves de
pennugens, arrulhos mais doces e toques delicadissimos de bicos―beijos
com certeza.
Isto todos os dias, nas manhãs ennevoadas especialmente.
Imagine-se a vida do pombal áquellas horas:―pombas que
voejavam
assustadas, esquivas mesmo, e pombos que as perseguiam; pombas que
condescendiam e pombas
que queriam arrulhos: quem não voasse arrulhava, quem
não arrulhasse voava; e tudo gozava―quem era feliz e quem
estava para o ser, quem era sanguineo e quem era pachorrento.
[183]
Ar dos campos, depois; alegres, muito amigos, pousando todos quando um
pousava, retomando vôo se um voava, sempre juntos, sempre na
mesma direcção, a beber no mesmo ribeiro, em
linha,
todos a um tempo, n'um ruido muito doce de bicos que sorviam.
Ainda com sol, iam pousar de revoada no telhado da casa onde habitava a
Morgada, participar-lhe por certo que iam recolher, cumprimental-a ao
balcão da sua janella, alegre de trepadeiras em
flôr, pousar-lhe nos hombros, na cabeça as mais
ousadas ou as mais amigas,
segredando-lhe não sei que arrulhos que ora a faziam sorrir,
ora lhe traziam lagrimas, mas
que sempre provocavam novos affagos, affagos interminaveis:
―Minha pombinha... minha amiguinha... minha querida...
D'alli para o pombal, continuar aquella vida de bohemios
felisões, vida de concubinagem, n'uma promiscuidade sem
limites e n'uma libertinagem
de harem.
Polygamia desenfreada!
Excepção a ella, apenas um casal―a melhor pomba
da manada, pomba branca, de uma alvura impeccavel de neve, e
então um pombo
rajado, preto e cinzento, de
nuances
azues-escuras, ares aguerridos
de luctador vaidoso, um D. Juan emplumado, tentador.
Era o pombo mais atrevido do pombal, o de genio mais insoffrido e
spasmos menos longos, muita vida, n'uma mobilidade continua de
pescoço, nervoso, libertino. Pomba que desejasse possuia-a,
sem arrulhos
previos, sem pedidos, brutalmente se resistia, pacificamente porque
muitas se
lhe entregavam, preferiam-no, vinham deitarse-lhe
[184]
no ninho, disputando
primazias á força de bicadas.
E umas atraz de outras, e dias após dias, sempre assim!
Mas todas fugiam em seguida, não sei se de esfalfadas, se
para dar logar a outras; uma só, a pomba branca, se quedava
ao lado d'elle,
paciente, resignada, n'um arrulhar cada vez mais doce, cheio de
ternuras, muito meigo, idealmente brando, que agradava ao rajado, que o
ufanava, incitando-o, convidando-o, provocando-o. Por isso entrou de
aborrecer
as outras, achando-as menos pombas, umas desavergonhadas que se iam
entregar a outros, e de se affeiçoar á branca, a
ella só, acarinhando-a muito, arrulhando com ella,
alternadamente, ora um ora outro, gemendo amores.
Não imaginam os senhores nem ha nada que possa dar ideia da
desordem, da perturbação que isso levou ao rancho
tão dado a instinctos commodos de polygamia, tão
avesso a duetos d'aquella natureza, onde os
pombos eram de todos e as pombas eram communs.
E tal desordem subiu de ponto com o proceder do casal que levava dias
inteiros dentro do pombal, sem sair, n'uma concubinagem que revoltava
de egoista. E quando saíam não se juntavam com os
outros―uma desfeita! uma offensa!―tomavam rumo differente: para a
direita se os outros iam para
a esquerda, para a esquerda se os outros iam para a direita, sempre ao
contrario.
Recolhiam mais cedo, com sol ainda, e quando os outros vinham,
já os encontravam no pombal, em ninhos contiguos a
principio, no mesmo ninho depois!
[185]
Um escandalo! Um desaforo!
E planeavam-se ataques, desfeitas ao casal, muitas desfeitas.
Se os dois eram felizes arrulhando manso, entravam os outros a arrulhar
forte, troça talvez, desespero decerto, todos juntos,
combinados. E se isto não bastava, começavam
todos a voar, batendo
muito as azas, levantando a palha dos ninhos, precipitando-se sobre o
casal, fingindo quedas, dando bicadas os mais raivosos, ou
então os mais
despeitados...
Prestes o rajado saltava do ninho, oppunha defesas de azas sobre a
pomba branca e timida que o susto transia, inquieto, colerico; reagia
depois,
luctava por fim, levando-os não raro de vencida,
obrigando-os a fugir do pombal em vergonhoso tropel, muito assustados,
vencidos. E noite
além, entravam um a um, vagarosos, muito mansos, sem ruido
de azas, receiando
acordar o casal que dormia aconchegado, muito quente,
pescoço escondido sob a aza veludinea.
Dois mezes assim―dois mezes!―n'uma fidelidade conjugal ininterrupta,
digna de servir de exemplo a outros bipedes que eu conheço,
que os senhores conhecem, não?... Vida boa, na verdade,
perfumada
de arrulhos e esplendida de alegrias, passada em bellas
digressões campos
fóra, pousando no mesmo ramo, bebendo na mesma
poça, dormindo no
mesmo palmo de ninho, sonhando os mesmos sonhos, talvez...
Mas no fim d'esse tempo o rajado entrou de ter
desconfianças, suspeitas de inconstancias e receios de
infidelidades, de noite, emquanto dormia.
Havia certa frieza nos geitos da pomba, menos ternura nos arrulhos,
modos
[186]
de enfadada ás vezes, certas perrices, resistencias
mal disfarçadas. Ficava-se em casa se o rajado sahia,
impassivel
a supplicas, muito mona, com enlanguescimentos de palpebras e
quebramentos de azas, uma desleixada; e espreitando-lhe o
vôo, tomava para
norte se o rajado ia para sul, vinha tarde e ia aninhar-se
só, para lhe
fugir.
Estava farta, vê-se. E como os outros a não
queriam―rameira do rajado!―um dia levantou vôo e fez-se ao
largo.
Abbade d'aldeia, conhecem, d'esses mui dados aos latins e ao
vinagrinho de Xabregas, muito nacional e muito
fino, bons velhos de
quinzena e calça de
alçapão, feros,
muito rijos, á prova de rheumatismo e á prova de
vintem, felizes na sua pobreza,
amigos das creanças, bem humorados sempre, flôres
de uma
arvore que ora vae dando cardos. Perto do solar da Morgada, a tres
kilometros só,
havia um assim, o abbade das Donas, bom prégador n'outras
eras, com famas de
theologo ainda ao tempo.
―Disse-o o das Donas, collega! disse-o o das Donas!―era assim que
muitas vezes acabavam disputas acaloradas, salpicadas de varios latins,
sobre textos da Biblia e passagens dos apostolos.
―Theologia velha, diziam, a genuina!
A casa da residencia era uma casa muito antiga, portas em arco, paredes
a desabar,―uma invernada forte e ia abaixo. O pateo da entrada era
terreo, rimas de lenha
[187]
secca d'um lado e d'outro, seguia-se a cosinha,
um pequeno corredor, e ao fim uma velha varanda em ruinas que dava para
um quintalorio, e cujas pedras se deslocavam, de mal assentes que
estavam.
Preferia-a o bom do abbade para a reza das suas
devoções, e n'essa tarde quem quer o poderia ver
passeando-a a todo o comprimento, oculos na ponta do nariz, breviario
na mão direita, a dois palmos, a
esquerda a segurar a aba da
quinzena, e um
pequeno solideo com borla
resguardando-lhe a calvicie.
A interromper a leitura, de quando em quando, umas pequenas
exclamações de desgosto, arremessos de breviario,
e por fim levantando a voz:
―Fome as pombas, sr.
a Luiza: não
fazem senão
saltar...
―Bem fartas!―retorquiu de dentro, da labuta da cosinha,―mas
têm lá visita, pomba que arribou.
E depois informando:
―Pomba guapa, toda branca. São agora tres ao todo, e
então o pombo...
―Huum!... resmungou o abbade em voz de reticencias.―Percebo...
percebo perfeitamente...―E foi metter-se no quarto, continuar a
leitura.―Deixal-as! concluiu evangelico.
Era a pomba do rajado, adivinharam, que alli viera parar á
reles pelintragem d'aquelle metro de gaiola feita de um
caixão
velho, com grades só na frente, muito suja sempre, arrumada
p'r'alli ao
fundo da varanda, humida de aguas entornadas, exhalando maus cheiros,
um nojo.
[188]
Quando a mostrava á creada, o abbade dizia-lhe sempre:
―A sua vergonha, sr.
a Luiza; a vergonha da sua
cara. Como se os
animaes não fossem tambem creaturas de Deus...
As pombas eram magras e o pombo era esqueletico.
Fez-se de amores com elle, tomou-lhe os habitos canalhas, manchando a
alvura immaculada das pennas na immundicie fetida da gaiola em que
ambos se aninhavam, arrulhavam, se espojavam. E como ella era gorda e
bem tratada, flaccida de pennugens e de carnação
consistente, apetitosa, o pombo não a largava―genio de
libertino em corpo de tisico.
Em breve periodo entrou a pobre de emagrecer, sem forças
para voar se queria voar, quedando-se dias inteiros ao canto da gaiola,
encolhida, tristonha, arrependida talvez de ter deixado o
pombal,―saudosa do rajado, o seu primeiro amor, quem sabe!
E depois, o pombo sujo já não se importava com
ella, desprezava-a, tentara mesmo expulsal-a de parceiro com as outras,
dando-lhe maus tratos,―á intrusa. Dôr
incomparavel!
Mas um dia o ataque foi mais violento e ella teve de fugir, de voar,
descançando amiudadas vezes, porque lhe faltavam as
forças, arquejando sempre, arrastando-se em vôos
baixos, sentindo vertigens se
subia mais alto. Para passar um ribeiro descançou uma hora,
e quando
cobrou alento e começou o vôo, viu-se na agua e
estremeceu,
molhou ainda as azas, viu um corvo na sua propria imagem, um corvo
negro que a perseguia silencioso, traiçoeiramente,
[189]
que a ia
talvez devorar... O
que ella tinha sido e o que era!...
Lembrou-se então do pombal, do seu primeiro ninho, do
rajado... Oh! o rajado!... Receiou primeiro, quem sabe se elle a
quereria, tinha pomba,
decerto... Iria?... Não iria?... O pombal ficava perto, um
vôo valente e estava lá, acharia tudo em casa, era
cedo ainda.
Fez-se de vôo e partiu.
A manhã era calma e o céo era azul.
Canções de cotovias vibravam pelo ar que as
balseiras alastravam de aromas, perfumando-o. A estrella d'alva tinha
os ultimos bocejos para fechar de todo a palpebra
cançada e adormecer no azul; e o oriente começava
de animar-se de um
alaranjado esplendido―decoração triumphal com
que se orna
aguardando a visita de quem tem de rolar pela eclyptica, alumiando o
hemispherio e fecundando tudo―o cardo que rasteja e o cedro que
vê longe...
N'aquelle repontar da manhã, o alto céo era de
uma limpidez crystallina. Evolava-se de toda a banda um perfume
virginal de dulcissima paz, e pelas ramagens verdejantes a volata
suavissima dos ninhos
começava, como uma saudação ao dia que
vinha rompendo. No altar
das laranjeiras, florido como em Domingo de festa, o rouxinol cantava a
missa d'alva.
Em manhãs placidas como aquella, quantas vezes a branca
não fizera as suas excursões alegres de
touriste, na companhia do
rajado, perdendo-se com elle atravez
[190]
do horizonte áquella
hora
tranquillo e para toda a banda transparente!
Como tudo isto lembrava, agora!
Em todos esses pinheiraes, ao largo, os dois haviam
descançado muitas vezes, muitas, expandindo em arrulhos de
uma ternura ineffavel o amor extraordinario que os unia! Em toda a
largura não se
descobria um só campanario ou um só telhado onde
não tivessem
pousado ambos, alegres, contentes, doidos! E ella sempre ufana,
acompanhava o macho nos seus vôos ainda os mais arrojados,
perdia-se com elle para
além das serranias mais distantes, destemida com a companhia
que levava―um amigo que empenharia a vida só para salvar a
da amante.
E que bella manhã, aquella! Tudo tão alegre! Era
ver como as calhandras acordavam contentes, e se atiravam ares
além no seu
vôo perpendicular e rapido!
Entravam de animar-se cada vez mais as ramarias, com a vida dos ninhos;
melros ensaiavam solicitos a sua partitura vibrante. Mas a toda a
largura―nem uma aza de pomba palpitava. Ella só,
desalentada e cheia de maguas, ia para onde a levava o destino,―quem
sabe se para a morte...
Então chegou a branca ao pombal e voejou em torno
espadanando as azas contra o muro, arremettendo os buracos, desejando
entrar, faltando-lhe
a coragem, voejando de novo para arremetter em seguida. Os seus antigos
companheiros sentiram-na, conheceram-na, e arrulhando muito, e
arrulhando forte, sairam em tropel e foram pousar no telhado, batendo
muito as azas combinando ataque.
[191]
E como a pomba teimava em entrar, corriam a oppor-se, vedando-lhe a
passagem.
De repente, um pombo negro abriu muito as azas, agitando-as, tenteou
vôo n'uns pequeninos saltos nervosos e investiu com a pomba,
com a desgraçada pomba, e os mais apoz elle. Havia sangue
nos
bicos e pennas voando em elypsoides, um barulho de azas que se chocavam
com furia. Por
fim um baque, a pomba caiu no chão, toda sangrenta, um olho
arrebentado, bico aberto, n'um arquejar convulso, cortado de um arrulho
guttural de vida que se esvae lentamente, gradualmente, com
dôr. Um
estremecimento de membros por fim, uma agitação
geral repentina,
e―morta!
Ares além, os assassinos em bando voavam á busca
talvez de um ribeiro onde lavassem os bicos ensanguentados...
E o rajado?―hão-de os senhores perguntar. Demorem-se um
pouco e vel-o-hão sair da janella das trepadeiras, alegres,
felizão, bohemio, depois de uma noite passada na meia sombra
dos cortinados leves de um leito, a rir, a amar, beijando o colo da
Morgada, arrulhando com ella, arrulhando, ora um ora
outro,―debicando... debicando... debicando...
BATALHAS DOMESTICAS
BATALHAS DOMESTICAS[1]
A Luiz Trigueiros.
Para o meu proposito,
é inutil narrar-lhes esse pequenino e
perfumado idyllio, côr de roza, que foi na vida d'ambos,
durante um
anno, o seu mais vivo encanto. Isto em Lisboa, onde elle, Joaquim
Seabra, maior, empregado de escriptorio commercial, vivia desde pequeno
uma furiosa vida de trabalho. A mãe tinha-lhe morrido, ainda
elle era
fedelho: e passados poucos mezes, tinha o Joaquim sete annos, uma
doença complicada levara-lhe tambem o pae―homem
[196]
de lavoura,
pobre mas honrado, bronco
mas leal, que nascera e levara a vida não me lembra em que
aldeia da Beira, nas abas da serra da Estrella.
Sentindo-se morrer, o João Seabra pediu os sacramentos.
Deram-lh'os. E quando o reitor ia retirar-se, grave, revestido,
aconchegando ao largo peito o vaso sagrado das particulas, solemne sob
a umbella branca de grandes ramagens amarellas, o pobre homem preveniu
o padre de que em podendo lhe desejava uma palavra.
―Volto por aqui de caminho, dissera o reitor.
Assim fez. Mas caso é que ao abeirar-se de novo do catre do
doente, junto do qual estava o Joaquim, descalço, mal
remendado, o
velho, entreabrindo os olhos e cerrando-os logo para sempre, mal tivera
tempo de lhe murmurar, designando vagamente o filho:
―O pequeno, coitadinho!
De modo que foi o proprio reitor em pessoa, quem, passados dois annos,
veio metter o orphão, como marçano, n'uma loja de
ferragens da baixa, loja escura, funda, com uma ventana de
vidraças, combalida,
dando para uns saguões de predios contiguos. De
marçano
subiu com o tempo a caixeiro; e como era applicado, humilde,
supportando com uma placidez resignada de beirão um trabalho
por vezes superior
ás suas forças, pulou um dia para a escrevaninha
da casa, no andar de cima, vaga pela sahida para a cadeia do outro que
commettera umas falcatruas.
―Precisava um tiro nos miolos, esse cão! dissera deante dos
patrões o Joaquim.
[197]
E a incisiva phrase que fôra, emquanto remexia a papelada,
todo o seu commentario ao procedimento irregular do companheiro,
valera-lhe a involuntaria conquista do logar, como
revelação,
que era, das qualidades fundamentaes do seu caracter,―communs, de
resto, ao typo
beirão, profundamente animal, audaz, sobrio, musculoso, no
fundo generoso e
bom.
A vida começou então a ter para elle umas
entreabertas mais risonhas, livre d'essa prisão estreita da
escura loja, onde os seus
instinctos hereditarios de independencia, acordados no fundo de uma
natureza barbara de herminio, tinham, de quando em quando, uns bruscos,
violentos repelões de rebelião... Até
que um
dia, n'uma d'essas guinadas que mesmo á escrevaninha o
assaltavam, pensou em ir á terra
onde não voltara desde pequeno. Ainda lá tinha
uns tios, vivia ainda o reitor. E
n'uma introversão de momentos, mirando atravez da janella o
claro
céo azul, alto n'aquella manhã serena de maio, o
Seabra teve a remota
visão do seu passado―das coisas da sua infancia, da sua
pobre e humilde aldeia encravada n'um declive de serrania que ao longe
elevava o dorso,
nitente de neves eternas. E como se mirasse tudo atravez de um binoculo
invertido, elle lá via além, muito longe para as
suggestões do seu desejo, muito afastado para as debeis
reminiscencias da sua memoria, tudo isso que elle dizia em tres
palavras―«a minha
terra!»―isto é, esse montão informe de
velhos tectos chamuscados onde havia
um debaixo do qual nascera; o campanario alto e esguio; a igreja
oblonga; a fita branca do muro do cemiterio onde seu pae e sua
mãe jaziam; a
paizagem circumdante cortada de canaes e regueiras, que parecem fios de
prata serpeando na esmeralda das baixas, toda retalhada em hortejos; e
então a velha legião amiga das arvores―o zimbro
ao alto dos
môrros nús; depois, descendo, as urzes brancas; os
piornos; os bellos carvalhos
[198]
altivos; e já a meio da
encosta, estendendo sobre a zona agricola e
horticola o verde e tenro parasol das suas soberbas folhas―o
castanheiro, emfim.
Atravez da sua vida de balcão, duramente moirejada a mover
barras de ferro, feixes pesados de vergas, ceirões informes
de
pregaria, com intermittencias raras de descanço, algum
domingo, pelas
hortas dos arredores, ou ás vezes n'um bote, pelo Tejo,―a
sensação melancolica da sua paizagem nativa
não chegara a obliterar-se-lhe no
cerebro, nem tão pouco a lembrança dos seus
velhos conhecimentos de infancia,
dos seus companheiros de escola que iam todos os dias, de
manhã e de
tarde, á lição a casa do reitor,
n'aquelle velho
sotão da residencia, com paredes denegridas e tecto de
madeira com manchas...
E que seria feito d'elles? Talvez que os não conhecesse, que
o não reconhecessem, agora. Talvez. E esta duvida, esta
desconfiança, dava ao seu desejo de os ver, de se lhes
mostrar,―com o seu fraque, a sua bengala, a sua cadeia de oiro
escorrendo sobre o colete claro―o
encanto subtil e ingenuo de uma vaidade. E acabou de o decidir, emfim,
a propor
aos patrões essa viagem, certa imagem de rapariga loira,
olhos azues e toda rozada de cutis, que elle, sem quasi dar por isso,
espontaneamente, insensivelmente, fora sabendo, de longe, que se
conservava ainda solteira...
...a Emilia!
E porque seja extranho ao meu proposito, e quasi indifferente
á historia que lhes vou contando, a chronica preliminar
d'esse consorcio, direi
que a velha estola do reitor os uniu emfim uma
manhã―manhã de julho, na velha e ampla igreja da
freguezia, toda banhada de sol,
[199]
toda
rumorejante de vozes, e sobre a qual cahia sem despejar, como uma chuva
alegre de pétalas, a saraivada metalica dos sinos,
repicando...
Até que passados dias, eil-os emfim em Lisboa, installados
não sei em que
beco da Baixa, perto da
«obrigação» do
Joaquim, que era, como lhes disse, o escriptorio.
E aqui rompe a historia; e se é do agrado dos senhores,
comecemos.
Bem, aquelle primeiro anno. Por uma banda a Emilia a cuidar da casa,
toda se desvelando nos minimos pormenores do interior, na cosinha, no
amanho das roupas, no decorativo, mesmo, dos quartos e saletas que a
mobilia, comprada de novo, tornava alegres e confortaveis. Elle, por
outra banda, trazendo-lhe nos fins dos mezes intacto o seu ordenado, e
trazendo-lhe, cada dia, uma caricia mais fresca e mais suave. E dada a
homogeneidade dos seus temperamentos, a proveniencia commum das suas
naturezas, originarias do mesmo solo, filhas da mesma raça,
temperadas do mesmo sangue, ricas das mesmas
infiltrações de
seiva e de saude, explica-se logicamente esse parallelismo absoluto de
vontades que os dois levavam na vida, sem um choque nas suas
aspirações, sem um encontro avesso nos seus
desejos, sem a minima divergencia no seu modo de
vêr e de pensar. Educados em meios differentes, embora! o que
nas suas naturezas havia de fundamental, e até de
intensamente
uniforme no raio visual das suas intelligencias, tornara podemos dizer
nullo, sem consequencias no fio commum das suas vidas, esse largo
periodo passado em latitudes differentes:―ella, onde ambos tinham
nascido, debaixo do mesmo céo,
[200]
á luz do mesmo
sol, á
sombra das mesmas arvores; elle, sequestrado de tudo isso, mas n'um
meio sem côr para elle
definida, pardo, estreito como uma gaiola, e onde, portanto, a sua
natureza se conservara estagnada,―estagnada como uma pequena lagoa,
dormente debaixo do luar melancolico...
Vinha d'ahi, e do fundo ingenuo das suas almas, estrelladas das mesmas
superstições, povoadas das mesmas imagens,
embaladas, ao nascerem, ao rythmo da mesma
canção, essa forte, dulcissima
corrente de ternura espiritualisada que era o motor primeiro dos seus
abraços, o
mais vivo e fresco perfume dos seus beijos, a mais alta, a mais serena
e orvalhada efflorescencia do seu profundo amor... E pois que havia
tambem no
sangue d'ambos―bem como no seio de um diamante as
iriações mordentes―as rubras, incandescentes
faulhas de uma animalidade impetuosa,
adivinha-se quanto seria intensa nos dois a vida sexual,―casta a
despeito de tudo,
vivente como um largo pampano, nimbada, emfim, como certas telas
classicas, por umas cabecitas loiras de creanças, frescas,
ridentes, côr de rosa...
D'ahi, como lhes disse no principio, esse pequenino e perfumado
idyllio, côr de rosa, que fôra na vida de ambos,
durante um
anno, o seu mais vivo encanto...
Em certo dia, porém, regressava o Joaquim do escriptorio,
noite cerrada já, quando uma rapariguita que lhes servia de
creada havia
dois dias, vindo abrir a cancella, lhe desfechou estas palavras no
accento
beirão:
―A minha madrinha está muito mal.
[201] ―Muito mal?
―Sim, parece que lhe deu pela cabeça não sei
quê.
Joaquim Seabra estacou, como que fulminado. E encostando-se
á hombreira, para não cahir, sentiu passar-lhe
pelo cerebro, como um
tufão de peste, uma ideia que lhe fez vertigens. Teve um
presentimento... E cobrando alentos, confuso deante da rapariguita que
o olhava, disse-lhe com a
voz trémula, no tom de quem procura, compromettido e
humilde,
esconder um pensamento:
―Bem sei... Isso costuma-lhe dar... Uns ataques... Foi depois que veio
da Beira.
―Parece que lhe chamam flatos, volveu-lhe a pequena.―Fica-se como
doida...
―Sim... chamam-lhe flatos... fica-se como doida... É isso.
E como se sentissem passos subindo a escada, inquilino ou pessoa do
andar de baixo,―talvez alguem que o procurasse!―fechou a porta com
força; e apagando a luz, com um sopro trémulo,
coseu-se a um canto impondo silencio, com a mão sobre a
bocca arquejante da
rapariga.
―Cala-te, ouviste? disse-lhe quasi com o bafo―Se te calares hei-de te
dar dinheiro. Cala-te.
A rapariga calou-se, aniquillada, toda enroscada a um canto, como um
novello. E passados instantes, quando um grande silencio envolvia todo
o predio, ouvindo-se apenas, de quando em quando, o rodar de algum trem
nas ruas proximas, o Seabra tomou nos braços
trémulos
[202]
a pequena, e foi, cauteloso como um bandido,
leval-a á cama.
―Ouves, Luiza? Não faças bulha. Dorme.
E fechando-lhe a porta á chave, respirou, hirto no meio do
corredor em trevas. Devia de ser assim a sepultura: aquelle silencio,
aquella escuridão impenetravel! E elle, como um cataleptico,
alli
encafuado vivo...―triturado pela magua, roido pela dôr,
desfeito pela
desgraça, como se milhões de larvas o
triturassem, roessem,
desfizessem, implacaveis e crueis, famelicas da ultima particula da sua
carne, sedentas da ultima gotta do seu sangue, famelicas e sedentas
até da sua propria alma... Vivo, ó Deus cruel!
ó Deus
desapiedado! Vivo e no emtanto... morto: vivo para a
sensação
esphaceladora da sua atroz desgraça, do seu cruel,
cruciantissimo martyrio; morto,
aniquillado, desfeito, para a visão auroreal das suas
esperanças...―as suas esperanças! revoada alegre
de pombas, candidas, serenas,
immaculadas, que um tufão de desgraça varrera do
ninho do seu
peito, para longe e para sempre...
E humilde como um rafeiro ou como um trapo, n'uma
prostração de louco embriagado, dir-se-hia que o
cerebro deixara de funccionar n'esse infeliz―como relogio subitamente
parado, marcando um momento fatal!―e
que tudo quanto elle sentia, e que tudo, oh Deus! quanto elle gosava!
era essa impressão anniquilladora do
Nada,
que o fundia na
treva circumdante, com ella identificando-o, irmanando-o,
confundindo-o, e tanto e tão intimamente, que elle proprio
n'ella se sentia
diluido, e no silencio...
Subito, porém, a um gemido, a um grito, a um ranger, escoado
alli de perto como um reptil, escoado alli de
[203]
perto, como um verme,
phosphorejante na treva á semelhança de um
demonio, que agitasse um
pierrot de
cascaveis,―uma centelha de vida
animou esse corpo aniquillado, e dentro d'aquelle cerebro fez repontar,
como luz de lampada funerea allumiando um cenobio silencioso, a chamma
de uma ideia... E teve então de si proprio a extranha,
diabolica
visão de um esqueleto carcomido, desossado, alquebrado,
mirando pelo arco immovel das orbitas, d'onde dois feixes de luz
escorriam―aquelle trapo miserando alli cahido, informe, esqualido,
repellente,
montão de gelo, e lagrimas, e trevas...―que era elle
tambem!...
Entretanto, e como por força mesmo d'essa
allucinação desvairada e tragica, o cerebro
perdera n'elle a recta, serena faculdade do raciocinio, elle continuava
absorto, incomprehendido, estupido, deante da «sua
desgraça»―como deante de um
grande mar de negrume, profundo e estagnado, por uma noite sem lua e
debaixo de um céo sem
estrellas, torvo de um borel cerradissimo de nuvens, a sombra de um
espectro... E assim em breve, retombou n'essa altitude que diremos
irracional,―mudo,
aniquillado, desfeito, no meio da treva silenciosa, como no lodo fundo
de um poço um bloco inanimado...
No escuro do seu cubiculo, a pequena soluçava a
espaços. E era como se a propria treva soluçasse,
esse chorar abafado da
creança, espavorida das coisas que a cercavam, para ella
mysteriosas e funebres. Era como se um
alegre pintasilgo, vivo, irrequieto, palreiro, fosse do seu ramo
florido de amendoeira, por uma tarde serena de abril, pousar, n'um
vôo de acaso, na mansarda
[204]
tristonha de um morcego, em
qualquer frincha desabrigada de
velho muro, abandonado algures...
E porque viera? E para que viera? Não sabia. No emtanto, ao
contrario do que lhe tinham promettido, que saudade infinita, repassada
de profunda nostalgia, da telha vã do seu humilde casebre,
atravez do
qual passavam os primeiros alvores da manhã, como um
perfumado beijo de
frescura! Dois dias, apenas! Entretanto, já dois dias! Tanto
tempo em
tão pouco tempo! E não tornara mais a
vêr passaros! e
não mais tornara a ouvir, de manhã, tocando
á missa d'alva, tangendo á tarde a
Ave-Marias, o seu querido e alegre sino d'aldeia...―além,
n'aquella riba suave e
pittoresca, prateada, beijada do luar áquella hora!... E o
fio do seu
pensamento, que outr'ora derivava limpido, sereno, crystallino, como
pequenino arroio murmurante que vae entre duas alas de flores singelas,
torvelinhava agora estupidamente, desnorteado, ao acaso, convertido
n'um veio torvo, lodoso e borbulhante, soluçando, como se
fôra de lagrimas, occulto sob a folhagem pallida...
A dois passos, no corredor escuro, o outro continuava prostrado, junto
da porta que dava para o quarto onde a mulher, deitada, devia talvez
dormir, de borco sobre a roupa revolta, ou no chão talvez...
Mas como acontece ás tempestades da natureza, tambem a
tempestade
d'aquella alma de homem entrou de se diluir em pranto, pouco a pouco,
serenamente, gradualmente. Chorou. E como se fôra o
véo das
lagrimas que lhe não deixára vêr
até então os
pormenores do seu infortunio, d'este permittindo-lhe apenas uma
sensação que diremos
[205]
informe, entrou de se fazer com a vasante mais lucido o raciocinio,
mais precisa e mais esperta a ideia que se lhe accendeu no cerebro,
como luz que pouco a pouco vae surgindo na lampada de um claustro,
allumiando nitidamente, sob o docel frio das sombras, as arestas
marmoreas de um sepulcro...
Ah! mas então, sob a impressão raciocinada e fria
da sua tragedia, cujas linhas contornaes pareciam feitas de gelo, uma
nova tempestade rebentou,―como uma trovoada enorme em tarde secca de
maio. E foram então as imprecações, os
gritos
estrangulados irrompendo, em surdina, por entre as maxillas ferradas,
do fundo do peito em ancias.
Então foi o arrancar convulsivo dos cabellos, ás
guinadas, teimosamente,
n'um duello de loucura com a dôr physica, desafiando-a,
espicaçando-a, dando-lhe a beber o proprio sangue do peito,
rasgado pelas dez unhas crispantes, lacerantes como se foram de abutre.
―Ah! raios do céo, e não morro!
E como o grito lhe sahiu mais alto, prestes levou ao chão,
como beijando-o, os labios estranhamente rasgados pela colera. Veio-lhe
então o pudor melindroso da sua desgraça, o medo
horrivel de que
se divulgasse, de que os outros a soubessem,―de que a pequenita,
mesmo, a
conhecesse... O que diriam? o que pensariam? E todo elle se encolhia, e
todo elle se sentia gelado até ao mais intimo da sua alma,
suppondo-se na rua, como outr'ora, ao vivo e claro sol, levando
adherente
ás costas, como um ferrete ou como um caustico o olhar de
«toda a
gente»... E com as unhas ferradas na testa, escondia da
propria treva, com as
mãos ambas, o rosto cobarde e arrepanhado.
―Diabos do inferno! levae-me!
[206]
A este novo grito, porém, subito se recolheu n'um grande
pavor religioso. Do fundo da sua natureza alguma voz se elevou, serena,
doce,
harmoniosa, como na paz tranquilla do campo o fumo azul-claro de um
casal... E teve a doce visão de um arco-iris,
bonançoso e rutilante, repontando luminoso no borel
asperrimo da sua alma, onde uma clareira
se abria. E foi quasi a sorrir, chorando as primeiras lagrimas
tranquillas, que dos seus labios quasi serenos voou como uma pomba
alvinitente, que transporta no rosado bico um ramo de oliveira, esta
palavra de amor:
―Deus!
E para logo sentiu sobre a sua fronte, de manso e manso erguida n'um
como enlevo de visão, um ruflar de azas de pombas...
á hora d'alva... sobre os campos... n'uma clara
manhã de maio, perfumada...
E como se mão invisivel o erguesse, de vagar, serenamente,
enxugando-lhe da orla das palpebras a ultima lagrima de sangue deposta
alli pela sua alma, o pobre foi submissamente escoando-se para o quarto
contiguo,
onde sua mulher estava, o seu anjo, o seu thesoiro, a sua vida... E foi
submissamente, como um cão duramente batido que volta aos
affagos do dono, que sobre os labios da adormecida esposa, seccos,
pallidos, desbotados, ao claro luar vindo do céo, o triste
uniu os
seus labios frementes,―...n'um beijo suavissimo de perdão.
Ao mesmo
tempo que ella, n'um delirio, repetia a phrase cruel:
―Mais vinho!
NOTAS:
[1] Sendo
necessario completar o numero preestabelecido de paginas de
cada volume d'esta
Collecção,
numero
além do qual se não póde ir e aquem do
qual se não deve ficar,―o editor pediu e obteve do
auctor, em vez de novo conto, um excerpto do seu livro em
preparação, livro provisoriamente baptisado com o
titulo de
Batalhas domesticas. O excerpto
póde dizer-se
que constitue só por si,
como os leitores verão, um trabalho litterario, independente
e uno, o que de certo modo lhe
dá logar n'esta collecção, ao lado dos
precedentes,
estabelecendo, além disso, a transição
do espirito do auctor para uma
nova phase, litteraria e artistica.
N. do E.
INDICE
Idyllio rustico |
1 |
Sultão |
18 |
Ultima dadiva |
41 |
Preludios de festa |
55 |
Typos da terra |
73 |
Vae Victoribus |
101 |
Maricas |
111 |
Para a escola |
119 |
Tragedia rustica |
131 |
Abyssus abyssum |
153 |
Mãe |
169 |
Arrulhos |
179 |
Batalhas domesticas |
195 |
OS MEUS AMORES E A CRITICA
Da Revista Illustrada (extracto da chronica):―«...
Os
meus
amores, de Trindade Coelho, é um volume de contos
para toda
a gente, em
condições agradabilissimas ao paladar d'ambos os
sexos, e com delicadas circumstancias a prazerem, principalmente, ao
feminino. Porque uma das preoccupações
litterarias mais evidentes d'este
escriptor primoroso é fazer jus á amisade das
leitoras, e como dispõe
de pericia no ferir de certas notas emoventes e no tocar certas
fragilidades de sentimento, consegue-o.―
Alfredo Mesquita.
Jornal da Noite:―«Trindade Coelho―Este illustre escriptor,
nosso talentoso colega do «Portugal», brindou-nos
com um
exemplar do seu novo livro de contos
Os meus amores.
De entre a pleiade de prosadores, que por ahi mourejam no mundo das
lettras, a individualidade de Trindade Coelho destaca-se
distinctamente, e impõe-se á
admiração dos
que apreciam os talentos brilhantes privilegiados.
Os trabalhos do illustre escriptor, se pela estructura original e
encantadora são dignos do maior apreço, pela
elegancia da fórma, burilada a primor n'um estylo finissimo
e scintillante, despertam os mais francos, sinceros e enthusiasticos
encomios dos que os
lêem.
Quem conhece o formoso talento de Trindade Coelho, e o seu bello
caracter, avalia bem, por certo, como ambos estes seus
característicos serão traduzidos no novo livro de
contos do nosso distincto
collega.»
Diario Popular:―«
Os meus amores.―Assim
se chama um livro
de graciosos contos, retratando aspectos da vida d'aldeia e do campo,
que acaba de apparecer, firmado por Trindade Coelho.
O escriptor, como verdadeiro artista que é, localisa todas
as suas attenções, de ha muito, no trabalho de
apprehender com fidelidade o viver campezino, sobretudo da vasta
região transmontana, a
qual lhe foi berço. Por isso o seu fabrico litterario se
aprimora de dia
para dia n'uma escala crescente de sinceridade, e por tanto merito:
Os
meus amores o attestam, quando postos em parallelo com os
primeiros
contos publicados avulso.
Trindade Coelho cultiva com cuidado especial o dialogo que busca e
consegue photographar com particular exactidão. Em vez dos
descriptivos, quasi despresados, são trechos successivos de
conversas
d'uma encantandora rudeza ingenua que formam o estofo principal de
todas as suas producções. Isto e a felicidade com
que sabe
observar, dão o cunho pessoal da sua obra, que proporciona
agradaveis e confortaveis momentos
de leitura.»
Diario Illustrado:―«Abrem
Os meus amores,
de Trindade
Coelho, com um admiravel soneto de Luiz Osorio, que depômos
nas
mãos da leitora, como o perfumado ramo de cravos
valencianos, a flôr actual das suas
predilecções femininas: (
segue o soneto
incial.)
E pelo braço do poeta da
Alma lyrica
subimos ao doce
convivio espiritual da alma de Trindade Coelho.
O conto
Mãe, uma rica joia engastada
n'este livro,
brilhando ahi por todas as suas facetas cortadas em diamante, e
buriladas com a fina arte
de um joalheiro florentino, bastaria para autenticar-lhe o valor e para
aferir os dotes mentaes de Trindade Coelho, que tem no seu brilhante
estylo moderno, fluente e sobrio, incisivo e profundo, vibratil e
melodico, o diploma do seu notavel talento.
É principalmente pela sinceridade intuitiva e pela
naturalidade espontanea que estes contos nos captivam.
O auctor diz-nos, sem preoccupações de escola e
sem pretenções a abrir caminho pela
deslocação do vocabulo ou pela selva
escura do escandalo, o que viu, analysou, observou e sentiu.
As suas doces narrativas, penetradas da alma campestre, deslisam
suavemente, tocadas a espaços de uma inegualavel melancolia
contemplativa que lhes duplica o encanto.
Mas n'esses singelos contos, artisticamente concretisados, Trindade
Coelho revela o superior poder evocativo da visão intima,
que o singularisa.
A complexa natureza, para tantos inexpressiva e muda, tem para elle,
como para todos os artistas de raça, attitudes,
expressões, côres e sons, que o auctor
vê, adivinha, sente e traduz com a
fascinadora eloquencia dos iniciados, e o mysterioso enternecimento,
que
só nos transmitte a simples leitura dos poetas.
Ha rapidos traços de analyse emotiva ou de
commoção reflexa que valem poemas.
[III]
E não serão o
Idylio rustico,
a
Mãe e outros contos, soberbamente
delineados e intimamente
vividos, verdadeiros poemas em prosa?
Felicitamos calorosamente Trindade Coelho, o nosso querido amigo, pelo
seu primeiro livro, que embora glorifique o seu nome, não
é de certo o seu primeiro triumpho.―
Gabriel
Claudio.»
Jornal do Porto:―«
Os meus amores.―A
collecção Antonio Maria Pereira augmentou se d'um
novo volume original. Intitula-se
Os meus amores
e está
escripto pelo nosso illustre collega e litterato
distincto o sr. Trindade Coelhho.
D'este livro que, pelas suas destacadas qualidades litterarias, deve
achar grande acceitação no nosso publico,
escreveremos em breve as palavras apreciadoras que elle
merece.»
Correio Elvense:―Trindade
Coelho.―Este nosso amigo e festejado
escriptor, publicou agora o seu primeiro livro de contos e balladas a
que deu o titulo:
Os meus amores, editado pela
acreditada livraria de
Antonio Maria Pereira.
Trindade Coelho, que hoje occupa um proeminente logar no jornalismo da
capital, fez ainda ha pouco algumas das suas melhores armas na imprensa
em Portalegre, onde creou dois jornaes, um dos quaes ainda vive, que
tiveram vida gloriosa em quanto os animou o trabalho do distincto
estylista.
Não só nos seus escriptos passados, mas
então, conhecemos o grande valor que indiscutivelmente
possue. Não nos surprehendem pois os
seus triumphos e rejubilamo-nos com elles com a alegria e sinceridade
de
bons e sinceros amigos.
N'um dos proximos numeros falaremos da impressão colhida em
Os meus amores, agradecendo desde já as
expressões
affectuosissimas que acompanham a dedicatoria do livro, que o seu
auctor nos
offertou.»
Correio do Norte:―«
Os meus amores.―Contos
e
balladas.―Trindade Coelho, o já conhecido e
apreciadíssimo
escriptor, acaba de publicar um livro de contos com o titulo acima
indicado. É esta uma
bella novidade para o nosso mundo litterario, onde Trindade Coelho de
ha muito soube conquistar um logar dos mais distinctos, pelo seu bello
talento e poderosas qualidades de escriptor.
Limitamo-nos por agora a dar esta simples noticia do apparecimento do
novo livro, para depois escrevermos mais detidamente sobre elle.
Agradecemos ao nosso presadissimo amigo a delicadeza do seu
offerecimento.»
O Globo:―«
Os meus amores.―Mais um
livro editado pela
livraria de Antonio Maria Pereira. Intitula-se
Os meus amores
e
subscreve-o o
nome de Trindade Coelho.
[IV]
Não o lemos ainda porque o recebemos agora; mas ha-de ser
por certo trabalho de grande valor artistico, como
invenção
e como execução, porque Trindade Coelho
é incapaz de produzir uma obra
litteraria má. A sua educação
litteraria está feita, e
os seus numerosos trabalhos tão apreciados, tão
portuguezmente escriptos, tão
sentidos e tão espontaneos revelam qualidades de escriptor
de raça. Elle tanto
póde ser um jornalista eminente como é um
contista original.
Os meus amores é uma
collecção de
contos e balladas. Conhecemos alguns capitulos, que são
primorosos, mas carecemos de ler todo o
livro para não errar na apreciação.
Vamos lel-o
com a convicção de que teremos de saborear um
d'esses raros mimos litterarios que só os
privilegiados de talento sabem offerecer aos seus leitores.»
Diario de Noticias:―«
Os
meus amores.―
Contos
e
balladas.―Anunciámos, em tempo, o proximo
apparecimento
d'este trabalho, com que o brilhante contista e nosso collega do
Portugal, o
sr. Trindade Coelho, ia augmentar a collecção,
já tão valiosa, das edições
do sr. Antonio Maria Pereira.
O livro acha-se, emfim, publicado, e em nada desdiz do conceito que
desde logo nos auctorisaram a emitir os elevados meritos litterarios do
seu auctor, tantas vezes comprovados em numerosos escriptos anteriores.
Com uma observação escrupulosa, e um pittoresco
estylo, d'uma pujança e d'uma riqueza não
vulgares, sem attentados contra o bom
gosto, nem rebeldias contra o bom senso, os contos do sr. Trindade
Coelho
são, a todos os respeitos, um verdadeiro primor, uma obra
que ha-de entrar,
sem hesitações, na
acceitação
do publico, e que ha-de ficar longo tempo, a attestar, n'uma formosa
prova, a riqueza de um espirito, superiormente educado, ductil e
promptamente malleavel.
Porque esses contos são a obra de um genuino artista, cuja
maneira, simultaneamente facil e apuradissima,
revelando a
espontaneidade de uma
fecunda phantasia, traduz e affirma a fina sensibilidade de uma alma
delicadamente temperada, a viveza de um talento exuberante de vigor e
de seiva.
Não póde entrar nos curtos limites de uma simples
noticia, a mais desenvolvida critica d'esse trabalho, que tem, na
proprio nome do seu auctor, o melhor e o mais seguro titulo de
recommendação para obter do publico a
consagração de um largo e legitimo
successo.
Apenas acrescentaremos que abre o livro um encantador soneto de Luiz
Osorio―preciosa chave de oiro, na realidade bem merecida por aquelle
rico e primoroso escrinio de verdadeiras e puras joias
litterarias.»
A Actualidade:―«
Os meus amores.―Este
nome é o
de um novo livro da collecção Antonio Maria
Pereira. Pelo titulo
presume-se um volume de versos; mas não é, o que
não quer
dizer que n'elle se não surprehenda
[V]
legitima poesia.
Trata-se de contos e balladas, originaes do sr. Trindade Coelho, um dos
nossos mais apreciados e brilhantes
escriptores.
Eis, muito resumidamente, as prendas que distinguem este primoroso
contista:
Estylo correcto, elegante, vivo; descripções
ricas de observação e attrahentes tanto pelo
colorido como pelo esmerado da fórma;
despidos de grandes artificios os entrechos, mas subjugantes pela muita
naturalidade; o dialogo, em summa, admiravel pela singeleza e, sobre
tudo, pela propriedade.
Com estes predicados o livro
Os meus amores, do
sr. Trindade Coelho,
deve incontestavelmente ser de valor. E é. São
encantadoras todas as narrativas que contém. Logo ao abrir
depara-se-nos um
Idylio rustico, que embriaga e
predispõe para a leitura de
todo o volume,
onde se encontram quadros soberbos, reproduzidos do natural com um
notavel
poder de observação e que deixam o espirito
suavemente
impressionado. Leiam, e verão que não exageramos
na opinião
que ahi deixamos rapidamente exposta.
Ao auctor o nosso reconhecimento pelo mimo da offerenda.»
Correio da Manhã:―«Registar
o apparecimento de um
livro bom, linguagem elevada e singella, desartificioso e artistico,
repositorio vasto de observação, vibrado por uma
grande
impressão pessoal e subjectiva, é sempre
agradavel á chronica, n'este tempo sobretudo de
litteratura gafada, ou de arte ainda litteraria quasi pornographica.
Os meus amores que amavelmente acaba de nos
offerecer sr. Trindade
Coelho é um livro d'esses. Collecção
primorosa de contos e balladas, em que no mais despretencioso dos
estylos nos conta
recordações e idylios e nos mostra uma galeria
rica de typos e de figuras cuidadosamente observados e primorosamente
expostos.
O ultimo conto
Para a escola, que d'essa bella
collecção acabamos de ler, é
encantador de verdade, de singeleza, de arte, e
assimelha se notavelmente á maneira de Gustavo Droz.
Não é o logar nem a accasião de
fazermos a critica do livro e a apreciação d'este
novo, d'este debutante, que ao
primeiro assalto parece estar já senhor da batalha.
É por isso que sinceramente o felicitamos.»
Vanguarda:―«
Os
meus amores.―O nosso collega, o sr.
Trindade Coelho, que quasi só conheciamos pelos seus
libellos accusatorios,
acaba de nos enviar um livro primoroso com este titulo, no qual a
feição carregada e sombria do agente do
ministerio publico desapparece por completo, para nos deixar apreciar
só o espirito finalmente delicado do
homem de lettras conhecedor dos melhores processos de arte e
verdadeiramente sabedor do seu officio.
Confessamos que nos apraz muito mais admirar este Trindade Coelho,
[VI]
que
o outro que temos visto apertado dentro da negra vestimenta de agente
do ministerio publico, que parece lhe oblitera ás vezes as
suas
excellentes faculdades.»
Primeiro de Janeiro:―«
Os
meus amores.―Acabamos de receber
o formosissimo livro de contos «
Os meus amores»,
de
Trindade Coelho.
Não é ainda a occasião de
pôrmos em relevo todas as qualidades litterarias, complexas e
brilhantissimas, que se evidenciam n'este livro, demonstrando um dos
talentos mais vivos e assignalaveis entre os
mais illustres cultores da prosa portugueza.
Os contos por onde «
Os meus amores»
se repartem
não são apenas maravilhas de linguagem, onde
tão sómente se
destaquem dextrezas e fulgurações do estylo: a
acção que os anima constitue uma deliciosa
galeria de quadros, aspectos intimos e exteriores da vida, colhidos em
flagrante com uma extraordinaria subtileza e lucidez de
observação e trasladados a uma fórma
superiormente artistica, onde ha
firmemente accentuados todos os caracteres de uma esplendida
organisação litteraria.
É um livro vibrante e magnifico―adoraveis paginas
intensamente ou delicadamente emocionadas e primorosamente escriptas,
cuja leitura
é um verdadeiro encanto.
As nossas cordeaes felicitações a Trindade
Coelho, a quem agradecemos a gentilissima offerta do seu
livro.»
Folha do Povo:―«
Os
meus amores.―Esta publicada em volume
uma série de
contos e balladas com que
o sr. Trindade
Coelho, o brilhante collaborador do
Portugal, vem
enriquecer a
litteratura
contista entre nós, hoje
tão
querida do publico, depois
que os trabalhos de Fialho d'Almeida deram a esse genero litterario um
valor até
então mesquinho.
A primeira qualidade que notamos logo nos
contos e balladas
do sr.
Trindade Coelho é um estylo muito seu, cheio de uma
crystallina naturalidade,
affastando-se completamente
d'essas
excrescencias de mau
gosto, que ultimamente têm abastardado a lingua
portugueza,―prova da superioridade intellectual do escriptor de que
nos occupamos―, visto que não mira a uma falsa gloria,
conquistada facilmenle
pelas excentricidades de estylo, que são hoje uma verdadeira
mania
entre alguns escriptores da chamada geração
moderna.
O sr. Trindade Coelho escreveu a sua prosa obedecendo á
espontaneidade das suas impressões, ao seu sentir, sem
deixar de se revelar
um artista, porque nunca a phrase lhe sae banal, nem tão
pouco envolvida
em ouropeis de mau gosto litterario.
E no entanto encanta-nos,―prova de que está alli um
primoroso escriptor, um espírito delicado, reproduzindo
todos os
cambiantes da natureza por uma fórma de
observação,
que não é d'esta nem d'aquella escola.
É simplesmeate sua, individual.
Notamos mesmo um progresso no livro do sr. Trindade Coelho; porque
[VII]
as
suas primeiras producções litterarias
ressentiam-se de uma tal ou qual preoccupação de
effeito no modo de construir a
phrase. Hoje, o escriptor adquire a independencia da sua maneira, do
seu processo, e feito a tirar decorre fatalmente d'essa independencia,
visto que os
seus quadros obedecem apenas a uma rigorosa e fiel
reproducção do que o artista observa em volta de
si.
Certamente que o publico lerá com encanto o novo livro do
sr. Trindade Coelho, pelo que felicitamos o auctor, e―podemos mesmo
dizer―a litteratura portugueza.―
Silva Lisboa.»
Diario Illustrado:―«De
tempos a tempos chegava-nos do
Atemtejo um periodico que não deixavamos nunca de
lêr pelo
fino gosto litterario, pittoresco e moderno, que se revelava em todos
os seus artigos, incluindo os politicos. Esse periodico era redigido
por Tindade Coelho,
cujo talento conheciamos desde Coimbra, e cuja individualidade
litteraria viamos agora accentuar-se com um vigor de originalidade
verdadeiramente notavel.
De quando em quando, Trindade Coelho obsequiava-nos com um artigo para
o
Diario Illustrado e, vindo establecer
residencia em Lisboa, algumas
vezes tivemos a honra de receber n'esta redacção
a sua visita, sempre agradabillíssima para nós,
porque a sua
conversação scintillante aligeirava as nossas
pesadas horas de trabalho.
Pois bem, Trindade Coelho acaba de reunir n'um volume―que faz parte da
collecção
Antonio Maria Pereira―os
seus
deliciosos contos, cheios de observação, de
verdade, de simplicidade
artistisca, que é, a nosso vêr, suprema
expressão de belleza n'este genero de
composições litterarias.
Os meus amores são um bello livro, em
que o estylo se
não contorce atormentado, como em tantos outros, em que os
rebuscados esplendores da
forma litteraria denunciam uma carencia absoluta de espontaneidade.
Tudo alli deriva naturalmente, tanto na sequencia logica dos caracteres
e
dos episodios, como na contextura facil, mas colorida, dos
períodos.
N'uma palavra,
Os meus amores são a
obra de um artista, de
um homem que sabe do seu officio, e que tem uma individualidade bem
definida por
traços profundos de verdadeira originalidade.»
Voz Publica:―«
Os
meus amores.―Trindade Coelho,
innegavelmente um talento de primeira agua, acaba de brindar a
litteratura portugueza com
um excellente livro de contos subordinado áquelle titulo e
que constitue o duodecimo volume da elegantissima
Collecção
Antonio Maria Pereira.
Contos e balladas é o sub-titulo do
livro, e muitos ao
lêrem-n'o julgarão que se trata de versos; mas
não,
é em prosa, em prosa vernacula, correcta e vibrante que
estão escriptos os bellos
contos de que se compõe este livro, digno a todos os
respeitos de ser
lido.
[VIII]
São todos elles uns contos ligeiros, encantadores pela
espontaneidade e verdade dos seus typos e das suas
situações,
lembrando um tudo-nada os formosos typos de aldeia, tão
magistralmente desenhados pelo
mallogrado auctor da
Morgadinha dos Canaviaes e
dos
Fidalgos da Casa
Mourisca.
Lemos d'um folego o magnifico livro, e ninguem que o comece a
lêr deixará de o fazer como nós;
tão
attrahente é a fórma por que Trindade Coelho
conduz todos os ligeiros contos de que elle se
compõe, que sem querer, sem se sentir mesmo, chega-se ao fim
e fica-se como triste d'elle ter acabado.
Todos magnificos, dizemos, mas se alguns ha que mais nos prendessem,
foram os que se intitulam
Typos da terra uma
galeria curiosa de
typos, e
A mãe, um conto de natureza,
simples e commovente
na sua
simplicidade, e notavel pela sua originalidade.
Recommendar o livro de Trindade Coelho é prestar um
serviço aos nossos leitores.»
Ordem do Dia:―«
Os
meus amores.―Este é o titulo
do 12.º volume da collecção Antonio
Maria
Pereira, innegavelmente a
publicação mais elegante, mais barata e mais
interessante do paiz.
Os meus amores são uma serie de contos
e balladas, em
prosa, devidos á penna d'um moço
talentosissímo, de ha muito
conhecido nas lides do jornalismo, Trindade Coelho, mas que ainda
não
lançára ao mercado um livro; com este debuta o
auctor, e é uma estreia
auspiciosissima a sua.
A leitura do volume, longe de fatigar, faz-se com agrado, e n'elle
é cultivado um genero―o de contos, alguns á
maneira de
Gustave Droz, que prendem e interessam o leitor em todo o sentido.
Foi gratissima a impressão que elle nos deixou no espirito e
esperamos que Trindade Coelho continue a brindar o publico com as suas
bellas producções, porque estamos certos de que
quem
lêr
Os meus amores será com
sofreguidão que esperará novo volume do
distincto escriptor, tal é o encanto da sua
escriptura».
O Sorvete, (com o
retrato do auctor):―«Dr. Trindade
Coelho.―Mais uma prova do seu brilhantissimo talento! Mais uma vez
justificada a alta competencia e finissimo espirito de escriptor
disctinctissimo!
O novo livro de Trindade Coelho,―
Os meus amores―contos
e
balladas―editada pela casa Antonio Maria Pereira, de Lisboa,
é, no dizer dos entendidos em litteratura,―uma verdadeira
joia.»
O Espozendense:―«
Os
meus amores (contos e balladas) por
Trindade Coelho.―Faz parte este volume da interessantissima
collecção Antonio Maria Pereira, tão
bem acceite do publico, pela superior
escolha das obras publicadas e pela modicidade extraordinaria dos seus
preços.
[IX]
Os meus amores é um precioso
agrupamento de contos, alguns
ineditos, outros já conhecidos, e que Trindade Coelho
espalhara com
applauso por differentes jornaes do paiz. Decorridos quasi todos em
plena aldeia trasmontana, cujos costumes o auctor conhece de sobra,
pois
é natural de Traz-os-Montes, e foi durante alguns annos,
delegado do procurador
regio n'uma cidade de provincia―os contos d'esta
collecção tornam-se sobretudo notaveis pela
propriedade e pela fidelidade da
acção, verdadeiros, nitidos, reais, palpitando da
côr propria da
paizagem, vivendo da vida natural, intima e intrinseca, dos personagens
e das cousas.
Entre as nossas obras litterarias originaes,
Os meus amores
merecem,
pois, um logar á parte, não como uma estreia
auspiciosa, que o nome de Trindade Coelho é já
demasiado conhecido de todos
quantos se interessam pela litteratura nacional, mas como a poderosa
affirmação de um prosador elegante e de um
contista distincto, no meio da grande maioria da chata
vulgaridade indigena.
Os meus amores é, em summa, um livro de
valor, bem cabido
nas mais escolhidas bibliothecas.»
O Portuguez:―«
Os
meus amores.―Delicioso titulo de um
livro delicioso.
O livro é uma collecção de graciosos
contos, editorada pelo sr. Antonio Maria Pereira; e o auctor
é o nosso collega do O livro é uma
collecção de graciosos
contos, editorada pelo sr. Antonio Maria Pereira; e o auctor
é o nosso collega do
Portugal,
sr. Trindade Coelho, que, nos ocios da magistratura, de que
é digno
representante, cultiva as lettras com desvelado amor.
Em Coimbra, estudante ainda, era já litterato apreciado,
collaborando, com applauso dos mais doutos, em jornaes e revistas, que
ha mais de dez
annos tornaram o seu nome festejado e querido. Hoje, reune ao seu
título de jornalista a invejavel nomeada de contista
esmerado, e brinda as lettras portuguezas com um volume, que
está tendo a mais
justa e lisonjeira acolhida.
O primeiro conto do livro,
Idylio rustico,
não obstante
ser agora publicado pela primeira vez, cremos nós,
é
já nosso conhecido, porque appareceu manuscripto n'um
concurso litterario da extinta
Associação dos jornalistas,
sendo premiado.
Depois da
consagração de um jury, terá agora a
consagração do publico.
Depois do
Idylio rustico, vem o
Sultão,
um quadro
magnifico da vida campesina, notavel de simplicidade e
graça; e a
Ultima
dadiva; e os
Preludios de festa; e os
Typos
da terra;
e as
Balladas; e a
Tragedia rustica;
e a
Mãe; e os
Arrulhos; e as
Batalhas domesticas: outros tantos primores, que
ás vezes
nos fazem
lembrar as deleitosas e serenas paizagens de Daudet.
Agradecendo ao auctor a gentileza da sua offerta, congratulamo-nos por
não haver ainda expirado entre nós a litteratura
san, que, ou nos desperte o sorriso ou nos obrigue a lagrimas,
não nos deixa
no espirito a impressão doentia das nevroses
litterarias...»
[X]
Jornal da Manhã,
Porto:―«
Os meus amores.―Mais
um volume acaba de ser publicado da collecção
Antonio Maria Pereira, por
sem duvida a mais elegante, a mais escolhida e a mais economica
bibliotheca que se
publica em Portugal.
É o primeiro livro de Trindade Coelho,
Os meus
amores,
contos e balladas, em que o talentosissimo escriptor acaba de reunir
todos os seus contos dispersos por varios jornaes, e alguns ineditos.
Do primeiro ao ultimo, os contos que compõem
Os
meus
amores são specimens no genero, porque,
além de
constituirem uma
esplendida galeria de quadros intimos, de retratos, de typos,
são a
confirmação d'uma verdade já por
nós ha muito acceite: que o seu
auctor tem todos os requisitos d'um escriptor de primeira ordem;
estylista vibrante, correcto e sempre elegante.
E se formos a escolher o melhor d'hesses contos, ver-nos-hemos em
serios embaraços, porque são todos por igual
deliciosos,
constituindo a sua leitura um verdadeiro encanto; entretanto, se ha que
mostrar predilecções por algum d'elles parece-nos
que os
melhores serão
A Mãe e
Para
a escola, aquelle
uma delicada e emocionante historia
arrancada flagrantemente á natureza, e este saudosas
recordações d'um passado que não
volta.
A edição, escusado é dizel-o,
é nitidissima.»
O Tempo:―«
Os
meus amores.―Este livro teria vindo melhor
nas noites invernosas para serões ás lareiras
crepítantes:―as faíscas d'ouro subindo no tecto,
o vento zenindo fóra açoitando
a chuva, e dentro, no conforto recolhido, gosar-se o contraste das
paizagens alegrdas pelo sol, espelhadas na agua rumorosa, com gorgeios
e trinados d'aves, paizagens que o sr. Trindade Coelho sabe encantar
com a delicia suave e
subtil d'illudidor ameno. Mas não se póde
aconselhar o leitor a que se prive de saboreal-o desde já,
tanto mais que os tempos
vão agoureiros para a arte de manancial, e os que a
cultívam teem de
separar-se dos estragadores d'Ella e das cabeças quasi
vasias que expremem
e segregam o pus nauseabundo do sadismo mediocre.
Estes estão agora entretendo o publico arrebanhado para
saborear com prazer as estapafurdices atoleimadas, e que os eguala―o
vingador―ao imbecil que escreveu o
Senhor Dupont
e aos auctores das
Pimentinhas
e
Berbigões Ardentes.
Que o livro de glorificadora arte do sr. Trindade Coelho seja o
perfumador dos excrementicios e appareça em plena luz nas
mesas e nas familias dos que compravam os outros, é o voto
que faz o
alinhavador d'estas linhas corredias, na certeza de que recommenda
á
attenção um artista recolhido que sabe ter
força nos traços
tenues e meias tintas dos seus quadros, que capricha em suavisar
idylicamente as
dôres vulgares da vida acceite, da materialidade animal,
dourando-as com recantos de natureza chilreante. Que me
perdõem insistir na impertínencia: mas, o que no
livro
[XI]
mais particularisa o
talento de quem o assigna é a comprehensão das
paizagens, o
sabel-as colorir, animar, pôl-as ante os olhos que
lêem.
As grandes dôres obscuras e sinceras, as brandas
affeições, amisades arreigadas, a placidez do
recanto habitado, os amores simples sustentados por ingenuas
crenças s suavisada fé,
tudo o que a aldeia tem de ameno, d'attraente, de pittoresco, de
consolador, os seus ridiculos mesmo, vestindo atitudes de parodia em
theatrinho de curiosos, tudo reveste bem o sr. Trindade Coelho, e
aligeira com um optimismo de bom humor, sublinhando aqui e
acolá umas notas reaes, bem
apanhadas, como se diz, e que refrescam o rosto n'um aberto sorriso de
ventaróla. O livro encanta porque traz todo o aroma da
aldeia onde o auctor encerrou por annos a sua nostalgia―a peior de
todas: nostalgia de delegado!―apertando os vôos do seu
espírito
d'artista que ama pairar com a fantasia para o longiquo, para o que se
Imagina, para o Distante,
o Inaccessivel, o Insaciavel. Sonhos e fantasias que morreram e se
dispersaram como o fumo e as cinzas das fogueiras a que se aqueceria
nas noites uivantes do inverno trasmontano; mas que deixaram sementes
de recordação e de saudade d'onde brotou o livro,
escripto decerto nas horas feriadas do trabalho arido, com a
documentação da natureza que vivifica, com a
elaboração pachorrenta de quem
não tem pressa e se compraz na arte libertadora.
Especificar um ou outro conto não é depreciar os
não citados, mas dar preferencia pessoal―e talvez
peccadora―ao
Idylio rustico,
á
Ultima dadiva, á
Mãe,
ás
Batalhas
domesticas, que fecham o livro e deixam entrever no auctor
um desejo
de animar os personagens tanto como anima
a natureza onde elles sentiram. Ha contos nos
Meus amores
que fazem
lembrar um Cladel menos retumbante e por isso mesmo livram quem
lê da patada epica do que fez
Créte-Rouge
e
Ompdrailles.
O sr. Trindade Coelho é um escriptor tão
distincto quanto aclarado pelo jorro d'arte que vem de ha muito
confundindo os convulsionarios do talento; os serenos no desdem; os
enthusiastas; o que, despindo o metaphorico, quer significar que elle
está em
posição artistica onde decerto o seu talento e o
seu trabalho continuarão a chamar
attenção e respeito.―
M. Caldas
Cordeiro.»
Antonio Maria, (com o
retrato do auctor, desenho de Raphael
Bordallo):―«
Os meus amores por Trindade
Coelho.―A
livraria portugueza tem tido uma enchente, como raramente lhe succede,
na ultima
quinzena. Depois do exito do romance de Abel Botelho e do livro de
memorias de Luiz Palmeirim, veio o volume de contos de Trindade Coelho,
com a amavel denominação de
Os meus
amores.
Aqui o temos, já todo aberto, já todo lido...
É originalissimo, agradabilissimo o modo de escrever, de
descrever, de dizer, de contar, que usa o auctor d'este bello
livro,―agradabilissimo contista, escriptor originalissimo, cujo nome a
bibliographia regista hoje,
tão notavelmente, como o jornalismo de ha muito o registara.
[XII]
A quem o lêr, garantimos, sob a palavra de honra do nosso
gosto, algumas horas muito bem passadas, passeadas por aquellas
paizagens e recantos provincianos que elle pinta, tão real e
verdadeiramente como
se lá se estivesse; em companhia d'aquelles typos que elle
retrata,
tão photographicos, tão nitidos, que é
estar a gente
a vêl-os, a ouvil-os, a falar-lhes...
―
Os meus amores, meus amores, que
encanto!»
O Tempo:―«
Os
meus amores.―É
como Trindade
Coelho intitula a collecção de formosos contos,
publicados em
volume, editado pela livraria do sr. Antonio Maria Pereira.
Ha muito tempo que conhecemos e apreciamos o talento de escriptor de
Trindade Coelho, desde quando lhe lêmos as suas
producções litterarias n'um jornal de Coimbra, e
que eram as primicias de trabalhos mais primorosos, como são
hoje os contos a que nos vimos
referindo.
O livro de Trindade Coelho é dos raros que se lêem
da primeira á ultima pagina sem um momento de
cansaço ou de fastio. O espirito do
leitor delicia-se seguindo todas aquellas scenas campezinas, d'uma
singeleza tão commovente, e que nos
Meus amores
são
descriptas n'uma forma em que se revelam todas as qualidades d'um
distincto e notavel escriptor. Só póde apreciar
bem o merito d'aquelles contos
quem souber quanto cuidado ha no labôr paciente do artista
para conseguir dar ao
estylo o tom de naturalidade e de espontaneidade, que se requer n'este
genero de
pequenas novellas, talvez o mais difficil de todos.
Não nos demoraremos a falar dos
Meus amores,
que
contém preciosas joias litterarias, e ao qual
está, sem duvida, destinado um
honroso logar na nossa litteratura contemporanea.»
Correio Elvense:―«Trindade
Coelho.―Este nosso amigo e
festejado escriptor publicou agora o seu primeiro livro de contos e
balladas que deu o titulo:
Os meus amores,
editado pela acreditada
livraria de Antonio Maria Pereira.
Trindade Coelho, que hoje occupa um proeminente logar no jornalismo da
capital, fez ainda ha pouco algumas das suas melhores armas na imprensa
de Portalegre, onde creou dois jornaes, um dos quaes ainda vive, que
tiveram vida gloriosa em quanto os animou o trabalho do distincto
estylista.
Não só nos seus escriptos passados, mas
então, conhecemos o grande valor que indiscutivelmente
possue. Não nos surprehendem pois os
seus triumphos e rejubilamo-nos com elles com a alegria e sinceridade
de
bons e sinceros amigos.
N'um dos proximos numeros fallaremos da impressão colhida em
Os meus amores.»
[XIII]
O Dia:―«
Os
meus amores.―Se fosse no
seculo passado, os
fazedores de proemios, prologos e conversações
preambulares
com os pios leitores, á falta de jornalistas que noticiassem
ou criticassem, por certo aproveitariam a occasião para
sobre o nome do auctor
glozarem varios elogios ao livro, visto que aquelle se chama Trindade e
é ao
mesmo tempo um poeta sincero, um escriptor de raça, e um
observador
attento, qualidades que se equilibram por tal sorte, que do conjuncto
nasceu uma
obra formosissima, animada de verdadeira
commoção, sentida nas suas mais pequenas
minucias, sempre elevada, sempre humana e sempre artista.
A vida e a poesia trasmontana encontram-se a cada passo n'esta
reunião de contos, que o sr. Trindade Coelho dialogou com um
cuidado
meticuloso, copiando do natural, e em que os personagens foram
surprehendidos nos seus labores de cada dia ou nas suas intimas
cogitações.
Não temos espaço nem tempo para nos alongarmos na
noticia d'este livro, e por isso nos limitamos a recommendal-o como
leitura attrahente, como obra d'arte tratada com esmero, embora nem
sempre com a mesma egualdade
nem com o mesmo folego, como uma grande licção
litteraria aos fazedores de naturalismo brutal.
Ao auctor agradecemos a remessa do seu livro, ficando fazendo votos
para que elles sejam tantos, que afoguem os autos e libellos em cujo
meio o magistrado tem de viver, e d'onde sae amiudadas vezes para nos
provar que quando se é artista lá de dentro, o
contacto
dos escrivães não prejudica a indole do
escripior.»
Novidades,(entrevista
com João de Deus ácerca dos
novos):―«
Litteratura nova.―Eu
conheço
limitadamente os novos, porque não leio jornaes, e
não os leio porque os
litterarios occupam-se na propaganda da immoralidade, e os politicos na
propaganda do
suicidio, e na do jogo das loterias, que seduz principalmente os
engeitados da fortuna, mais sequiosos de domarem, n'um acaso da sorte,
as agruras da sua vida. E emquanto o rico joga o superfluo, o pobre
joga os trinta réis de tres quartos d'um pão.
Mas aqui está o livro do Trindade Coelho, que me encheu de
verdadeira alegria! É um rapaz de talento! O que
é preciso
é que elle dispa a toga, que lhe impede os movimentos.
Não o conheço, mas
dizem-me que trabalha muito. Já leu o
Sultão?
Se ainda não
leu, não o deixo sair de cá sem lh'o ler.
―Li já todo o livro.
―E depois, meu amigo, nós andavamos precisados d'uma coisa
casta, onde fossemos purificar o espirito d'essas taes
observações physiologicas, e não sei
que mais, que por ahi apparecem todos os dias. O
livro do Trindade Coelho tem o que eu chamo graça, e que
não posso bem definir-lhe. Olhe: alli está
aquelle quadro, em que os
traços são correctos e a
execução perfeita, mas
não tem graça; e aqui, este, uma bella
cabeça de rapariga, a physionomia dôce, o
olhar abstracto: este tem graça. Até a
[XIV]
Virgem
Maria se chama cheia de
graça, e foi mãe de Deus por ter
graça. A graça na litteratura
é tudo, mas é muito rara.»
Novidades:―«
Novellas
rusticas.―Trindade Coelho.―
Os meus
amores (contos e balladas.)―Lisboa, livraria de Antonio
Maria
Pereira―1891.
No seu penultimo artigo do
Temps, dizia M.
Anatole France, esse
sceptico amavel e pirrhonico, que tem sido o terrivel sapador de todas
as doutrinas axiomaticas da critica: «Il y a beaucoup moins
de lecteurs pour les nouvelles que pour les romans, par cette raison
suffisante que
seuls les délicats savent goûter une nouvelle
exquise, tandis que les gloutons dévorent indistinctement
les romans bons,
médiocres ou mauvais.»
O conto moderno é como o romance, essencialmente analytico e
psychologico, escripto em estylo technico, e destinado sobretudo a
apresentar uma imagem precisa de qualquer meandro torcicolado da alma
humana. A litteratura contemporanea tem procurado, quasi
invariavelmente, os seus themas entre os vicios, as paixões
e todas as energias depravadas do coração. A arte
do sr.
Trindade Coelho é muito differente d'isso, porém.
O seu idylico livro de contos e
balladas, aberto sobre um fundo de verdura reluzente, amorosamente
evocado da paizagem trasmontana, e habitado por heroes simples,
colhidos com intencional singeleza no meio do seu viver provinciano,
não
tem, decerto, parentesco nenhum com os volumes carimbados com a
etiqueta actualmente em moda. É natural até que o
leitor,
habituado aos livros dos escriptores realistas, sinta uma profunda
sensação de espanto ao emprehender a leitura dos
Meus amores, duzentas paginas suaves e simples,
sem pedantescas
pretenções a passarem
como tratado didactico de psychologia.
Disse-se de Julio Diniz que elle era principalmente um paizagista, e
que as suas figuras só serviam para dar expressão
e
vida á paizagem.
O sr. Trindade Coelho possue, egualmente, a
sensação visual particularmente desenvolvida, e
as suas
descripções são tambem, como as do
auctor das
Pupillas do sr. Reitor, magicamente
poetisadas, como
que apercebidas de longe n'um esbatido vago de sentimento e de saudade.
Chega-se ás vezes a ter a illusão de que o
artista está alli, paginas a dentro do seu livro, fazendo
reviver no pensamento a alacre
impressão das madrugadas lactescentes e dos poentes doirados
da sua aldeia natal,
cuja lembrança, elle conserva sempre viva, como nos versos
de Salvador Rueda:
Por donde voy me sigue como memoria
tierna
tu imagen que en mi pecho
conduzco en un altar;
¡y mi cerebro canta como una estrofa
eterna
el coro que tus árboles entonan á la mar!
Ahi teem, para prova, esse trecho d'um descriptivo de manhã
aldeã, quando o sol começa a subir na linha ainda
indecisa do
horisonte:
[XV]
A esse tempo, no ceu alto e lavado a estrella de alva fenecera por fim,
e o horisonte começava de carminar-se ao de leve. Por todo o
ceu em cupula, a luz fresca e viva da manhã vibrava
harmonias
estranhas que iam despertar tudo, a côr da paizagem e a
musica dos ninhos,
cantigas de perdizes e rumor de gente por moinhos e atalhos.
Manhã de
verão, serena, tranquilla, dulcissima. Ia pelo ar um
movimento extraordinario de azas―passarada alegre que saía
agora dos ninhos e voava a
matar a sede á borda das ribeiras, andorinhas que deixavam
as suas
casinholas em reconcavos de rocha e tomavam para hortejos
convísinhos onde
a vegetação era mais rica de seivas e mais facil
a presa dos insectos, perdizes gralhadoras que iam de monte em monte,
tordos, poupas, melros. Nos vinhedos das encostas, por entre os renques
verdejantes, gente em
mangas de camisa ia fazendo as vindimas. Pelos caminhos em torcicollos,
viam-se os que desciam aos moinhos, tangendo machos carregados de
taleigos, e berrando-lhes cada
cho! que se ouvia
na outra ladeira.
Já
nas povoações proximas, sinos chamavam para a
missa
de alva ou tocavam a Ave-Marias. Nas quintas casaes fumegavam os
tectos, dizendo horas de almoço. De modo que o sol quando
rompeu, solemne e
triumphante no ceu immaculado, encontrou muita vida pelos campos, toda
a Natureza
accordada para a labuta interminavel do dia.»
«No notavel estudo de psychologia litteraria de M. Fr.
Paulhan sobre a descripção pittoresca,
então
habilmente apreciados os elementos constitutivos da pintura do meio, em
todas as suas maneiras diversas na
qualidade e na intensidade.
«Chama-se imaginação
sensivel», diz o distincto observador, «o acto pelo
qual nós nos representamos um objecto ausente, e esta
representação, como tem sido ha bastante tempo
notada, não
é,―principalmente se considerarmos só certas
classes de
imagens,―senão uma copia enfraquecida d'uma
sensação. Por exemplo, se eu
trato de me representar um momento, um quadro, uma estatua, qualquer
coisa que imagino, se as minhas recordações
são bastante
nitidas, é uma especie de copia enfraquecida da
sensação que eu terei, se vi
realmente o monumento, o quadro ou a estatua. A
imaginação, tomada
até no sentido restricto que lhe damos aqui, varia muito
d'uma pessoa para outra, quer em intensidade, quer em qualidade. Por um
lado, certas pessoas teem as imagens, as
representações muito mais
enfraquecidas, mais vivas, mais concretas; em uma palavra, as suas
imagens approximam-se muito da sensação; outras,
pelo contrario, são
inclinadas para as idéas abstractas e teem necessidade d'um
esforço para se
representarem as sensações d'uma maneira um pouco
nitidas. Tem-se
reparado que a visão mental, nitidissima em geral nas
creanças e nas mulheres,
torna-se muito fraca e por vezes desapparece nas pessoas preoccupadas
sobretudo de ideias abstractas, ou habituadas a não exercer
a sua
imaginação visual. Eis uma pequena experiencia
indicada por Wundt, que, mostrando as analogias entre a imagem e a
sensação,
[XVI]
parece
pôr em relevo tambem as differenças individuaes
com relação
á intensidade com que a imagem concreta é
percebida. Sabe-se que quando fixamos o olhar por
algum tempo n'um objecto corado, se voltamos os olhos para uma
superficie parda, vemos uma mancha corada da côr complementar
da primeira. Se o
objecto era vermelho, a mancha será verde, e reciprocamente;
se o
objecto azul indigo, a mancha será amarella, etc. Ora
é
possivel, mas isto não succede a toda a gente, perceber esta
côr complementar
não só depois de ter fixado um objecto corado,
mas simplesmente depois de o ter imaginado. Póde-se, por
exemplo, pensar n'uma cruz vermelha:
lançando em seguida os olhos para um papel pardo, deve-se
ver uma cruz verde, se ha
uma boa imaginação visual.»
«Essa imaginação parece tel-a o sr.
Trindade Coelho. A vivacidade, tonificada quiçá
por um poucochinho de nostalgia,
do seu descriptivo, que nos dá conjunctamente a
impressão da forma,
da côr, do som, e até ás vezes do
aroma, representa um phenomeno especial de
evocação sensacional. E o maior encanto da sua
obra é esse, e, depois
d'esse, a intima satisfação que faz aflorar, aos
labios do
leitor inteligente, um sorriso de doce commoção,
a cada singelo episodio
das suas narrativas, todas frescas e sadias, e cujo menor merito
não
é, decerto, o de serem escriptas n'uma linguagem airosa e
despreoccupada, mas tersa e legitimamente portugueza.
O livro do sr. Trindade Coelho não é para ser
sujeito a longas analyses introspectivas, o papel da critica perante
Os meus amores
é bem facil, porque ella deve quasi cingir-se á
affirmação do seu applauso incondicional, ou ao
registo da repulsão do processo do
escriptor, o que póde muito bem representar uma livre
depravação de gosto.
Por mim confesso sinceramente que me deixou no espirito a mais amavel
recordação, para a oxygenada, a leitura d'essas
bellas novellas rusticas, todas impregnadas d'uma ideal
graça campesina,
tilintando d'um ecco amoravel de arroio murmurante, que discorre
mansamente por entre margens baixas, bordadas de sécias e
papoilas: e, para a
minha sympathia, desejo mencionar eapecialmente o conto que abre o
livro e o caso do
Sultão.―
Armando
da Silva.»
Tim Tim Por Tim Tim:―«Um
grande poder
d'observação e uma enorme justeza
d'expressão, constituem, quanto a mim, as duas essenciaes
qualidades litterarias de Trindade Coelho, puras auxiliares da sua alma
de verdadeiro artista, aberta á comprehensão
ampla
da natureza, e fundindo os phenomenos, as coisas e as creaturas n'um
conjuncto nitido que se desata em descripções
opulentas de vida e de
calor, fulgurantes d'energias dominadoras, prodigas d'imagens que o
melhor crystal de Veneza não teria reflectido tão
bem, avigoradas
em onomatopeias possantes que prendem o espirito mais inculto e o
obrigam, alli, a
fixar e a comprehender o objecto que o auctor quiz frisar.
E essas qualidades resaltam brilhantemente de todos os contos que
[XVII]
compõem
Os meus amores,
realçadas ainda pela
fina emotividade que o delicado sentir do auctor transmittiu a cada
scena onde o
coração tem parte, ou seja o
coração de qualquer d'aquelles
dois pequenos do
Idylio rustico, ou o da
Russa,
a bella cabra que
no meio de mil angustias
de mãe morre junto ao filhinho. E se o querem surprehender a
elle proprio, a Trindade Coelho, em flagrante de uma ternura honesta,
viva e sentida,
vejam o affecto que irradia d'aquelle
Para a escola,
quando falla da
velha e boa criada que o levou ao mestre das primeiras lettras.
Se das coisas affectivas, que mais o namoram, e das
descripções naturaes, que mais o apaixonam,
Trindade Coelho desce a brincar um pedaço caricaturando uns
typos com tanta sobriedade de
charge que mais nos parece estar fazendo retratos,
saem-nos
então
figurões como os da villoria da
Comedia na
provincia, que
entreteem a tarde na
praça a dizer mal uns dos outros. Tão verdadeiro
nos
croquis como
nos habitos. E quando aos typos pode juntar um estudo de costumes,
aquella
Vespera da festa exemplifica
vantajosamente o que elle sabe
fazer.
No fim do livro, foi para mim surpreza aquelle excerpto das
Batalhas
domesticas, onde me pareceu descobrir uma novissima
orientação do auctor, inspirada porventura n'uma
atmosphera densa
d'innovações que vae por ahi. Claro que o seu
talento adapta-se mais essa fórma
com a malleabilidade com que a tudo se sujeita, mas se eu tivesse a
caracteristica litteraria de Trindade Coelho, evidenciada em tantos
escriptos, não a sacrificaria a coisa alguma.
O que o livro é, em summa, é um conjuncto de
bellezas que tem sido largamente apreciado pelos fanaticos da Arte; e
oxalá seja
apenas a promessa de muitos outros, que pennas como aquella
não devem
calotear-nos na contribuição que nos devem.
―Mas,―perguntou-me um dia d'estes alguem―porque
Os meus
amores, e
não qualquer outro titulo?
Não respondi. E demais eu sei porque deu Trindade Coelho
esse nome ao livro onde ha tantos trabalhos de tempos que lhe
são
saudosos e em que lhe foi grande parte da alma, da sua bella alma de
rapaz que nenhuma lama d'este mundo é capaz de
conspurcar.―
Santos
Gonçalves.»
Revolução de
Setembro:―«
Os meus
amores, contos e balladas por Trindade Coelho.―Um livro
peregrino,
que se lê com encanto e
que nunca mais se esquece. É um talento e é um
artista quem
escreve assim. Uns contos singelos, attrahentes, delicadissimos,
admiraveis de
observação e de honesto realismo. Esbocetos
apenas; mas que admiravel simplicidade
de colorido em alguns delles e que tons inapagaveis de verdade!
Uma bella obra d'arte e uma altiva lição.
Alli está como se póde chegar ao naturalismo na
litteratura, sem estropear a lingua e sem chegar ás torpezas
da pornographia.
Para attrahir, para ser original, para impôr a supremacia do
seu
talento, para conquistar o applauso sincero dos que lêem,
Trindade
Coelho não precisou de escrever
[XVIII]
extravagancias, nem de
escalavrar pustulas, nem de
escancarar bordeis.
Ahí fica uma rapida noticia do livro. Voltaremos a fallar
d'elle, se o tempo nos chegar para a homenagem que desejamos prestar ao
seu
auctor.»
Correio Elvense:―«
Os
meus amores.―Com
poucos dias
d'intervallo as lettras portuguezas contaram dois ruidosos successos de
livraria.
Depois de apreciar o
Barão de Lavos,
obra de analyse, de
profunda observação, resentida do exaggero do
naturalismo
e do caracter quasi scientifico que actualmente se pretende imprimir
aos livros, que devem ser exclusivamente litterarios, mas que,
não obstante este
pequeno senão, confirmou plenamente todas as
esperanças
que o nome de Abel Botelho creára com os seus livros
anteriores, a critica tem
de render respeitosa homenagem ao trabalho d'um outro escriptor novo
como aquelle
e como elle egualmente distincto pelos brilhantes dotes do seu
espirito, pela sua notavel orientação litteraria
e pelo
esplendor de fórma que caracteriza todos os seus escriptos,
mesmo os mais despreoccupadamente feitos.
Sinto um delicioso prazer de consciencia ao traçar estas
linhas. Momentos como este são mesmo os unicos oasis em que
se
reconfortam os que, dia a dia, esgotam o melhor das suas faculdades na
faina improductiva e ingloria do jornal.
Tracto de apreciar o trabalho d'um amigo, d'alguem a quem me unem
intimas relações de confraternidade e sympathia e
ao ter de formular o meu juizo conheço que posso manifestar
o mais incondicional
louvor e applauso sem que se suspeite que as minhas palavras
são
reflexo d'um sentimento pessoal, mas sim a expressão exacta
e verdadeira
d'uma admiração justamente sentida, solidamente
baseada.
O livro a que me refiro intitula-se:
Os meus amores.
E em tudo
corresponde ao encanto d'este titulo.
Com que saudade li as ultimas paginas!
Por vezes desejava espaçar essa leitura para demorar o
delicado prazer que sentia, n'outras precipitava-a soffrego de admirar
a naturalidade das descripções, a limpidez e o
crystallino do
estylo emocionante e simples, tão delicado e ao mesmo tempo
tão
poderoso que dá vida aos mais diversos sentimentos desde o
pavor do remorso do assassino
José Gaio, até á
recordação saudosa e
terna que o auctor sente do primeiro dia em que entrou na aula
d'instrução primaria da sua
modesta aldeia.
Dando a impressão singela e despretenciosa que me cansaram
Os meus amores, não vou referir-me
demorada e
especialmente a cada
um dos pequenos quadros que formam esse livro verdadeiramente
consolador. Na epoca actual quando os vicios da sociedade e a
decadencia dos nossos dias nos gravam no espirito, a cada hora, um
carimbo de desanimo e descrença, quando a litteratura,
obedecendo á
vertigem mais do que nervosa,
[XIX]
allucinada, que caracterisa o
fin de
siècle, cria
as escolas mais extravagantes que se comprazem em baralhar todas as
ideias, em apedrejar as normas mais impeccaveis e até agora
consagradas
da arte, e em descrever todos os aspectos da natureza com as palhetas
mais escuras
e muitas vezes asquerosas, sente-se conforto, adquire-se animo,
desannuvia-se o espirito ao vêr que ainda ha alguem, a quem
sobeja talento e tenacidade, que escreve 200 paginas de prosa
sã,
eminentemente sentida, deliciando-se na
descripção das scenas
mais simples e tocantes, na apotheose da natureza em toda a sua
magnificencia e no
convívio da vida campesina, tão cheia de
sinceridade e de encantos,
tão livre das convenções e
pretenciosidades que dão
um tom falso e mentido aos sentimentos da sociedade em que vivemos.
Disse em cima que não me alongaria no esmiuçar de
perfeições de cada um dos contos e balladas que
formam
Os meus amores. Não
representa este proposito ideia de menos
consideração pelo livro
ou por quem com tanto amor o escreveu. Ao contrario, sinto que
não posso, a
não transformar este artigo n'um hymno laudatorio,
referir-me especialmente a cada um d'aquelles contos e balladas. Mais
do que este motivo domina-me o de
não poder alongar demasiadamente a
apreciação que
estou fazendo.
Muitas das paginas que Trindade Coelho reuniu no seu livro
já as haviamos lido e simultaneamente admirado, publicadas
em differentes jornaes. Como escriptor conheciamos tambem o primoroso
estylista dos
Meus amores pelos seus trabalhos
jornalisticos,
já na
bohemia coimbrã, já em pequenas folhas de
provincia e ultimamente nos jornaes
da capital, trabalhos em que elle empregava o escrupulo e a
correcção que nunca abandonam os verdadeiros
artistas.
Pelos seus trabalhos litterarios ha muito que formára a
opinião de que elle se podia alistar sem desdouro ao lado do
Conde de Ficalho, de Fialho d'Almeida e de Teixeira de Queiroz que, no
meu parecer,
são, em Portugal, os mais distinctos escriptores
contemporaneos d'este genero, na apparencia tão ligeiro, mas
no fundo tão
complexo e difficil, a que se denomina:
Contos.
A leitura do recente livro enraizou-me mais a opinião
formada.
Pelo sentimento descriptivo, pela verdade dos
typos,
pela
naturalidade do dialogo, e pela modalidade do estylo que se apropria
sem o minimo esforço a todas as impressões que
pretende
transmittir, o auctor dos
Meus amores prova que
não
desconhece nenhum dos segredos
do genero de litteratura que tão brilhantemente cultiva, e
que
não é inspirada na amizade a opinião
dos que, não obstante elle
terçar agora quasi as primeiras armas, o consideram
já como um escriptor
distinctissimo e n'um futuro muito proximo um mestre consagrado.
O livro abre com um soneto formosissimo e nem podia deixar de ser assim
desde que se saiba que o firma Luiz Osorio. Portico apropriado
ás bellezas que nas paginas que se seguem se accummulam com
uma riqueza oriental.
[XX]
Não obstante o meu proposito de não me referir
nomeadamente a nenhum dos pequenos quadros, não posso deixar
de dizer rapidamente da
impressão que me causou a
Ultima dadiva,
um primor de
sentimento, uma pagina
emotiva arrancada em flagrante a uma das scenas em que tão
variadamente se divide a tragedia em que se debate a humanidade; o
Vae victoribus, onde passa um folego de epopeia,
em que o estylo
attinge alturas quasi desconhecidas, casando se com uma verdade
admiravel a grandiosa ideia
em que se inspira o conto;
Para a escola, quadro
delicioso a cuja
leitura cada um de nos sente accordar uma
recordação
muito querida de infancia descuidada e alegre, e por ultimo: os
Arrulhos, em que Trindade
Coelho ostenta gloriosamente todas as qualidades do seu estylo
tão
malleavel e tão justo.
Além d'estes contos, que especialmente destaco pela
admiração que me inspiraram, são
modelos de humorismo e de verdade os dois
Preludios de festa e
Typos da terra.
Quem escreveu os
Preludios de festa e
especialmente os
Typos da
terra, é porque estudou com muita
attenção, com muito cuidado, os personagens que
mais avultam na vida das nossas aldeias e terras pequenas.
São typos tirados do natural, com uma
perfeição photographica em que Trindade Coelho
denota o mesmo rigor de
execução que demonstra na
descripção da natureza nos seus mais variados
aspectos.
Por ultimo, e para não se dizer que eu n'este paiz de
má lingua realisei o cumulo de escrever um artigo
só de palavras encomiasticas
e sem a minima censura ou reparo, devo dizer que não gostei
do
Sultão, lastimando que
Trindade Coelho gastasse tantas
paginas d'um estylo formosissimo n'um assumpto que sem duvida
é verdadeiro, mas
que não commove o leitor, nem lhe imprime, pelo menos assim
o julgamos, a
minima impressão duradoura. Para Trindade Coelho manifestar
todos
os seus recursos d'estylista, não precisava realmente do
Sultão.
O livro faz parte da edição mensal d'obras
portuguezas, editada por Antonio Maria Pereira, um trabalhador
incansavel a quem as lettras portuguezas devem assignalados
serviços.
Está impresso com o maior escrupulo e revisto com um cuidado
e esmero a que nem sempre estamos habituados.
Terminando estas linhas tão despretensiosas como sinceras,
fazemos votos para que Trindade Coelho possa continuar a furtar algumas
horas
á semsaboria dos autos e a deliciar-nos com novos livros,
tão
perfeitos como este, para honra do seu nome de escriptor já
tão justamente laureado, e agradecemos ao amigo a offerta do
seu livro, archivando a dedicatoria que elle contem como nova prova
d'uma amisade a que somos profundamente gratos, e devotadamente
retribuidores.―
Lourenço Cayola.»
Tribuno Popular:―«
Os
meus amores.―Recebemos
o volume da
Collecção Antonio Maria Pereira,
que sob
aquelle titulo contém alguns
contos do apreciado contista Trindade Coelho.
[XXI]
Pela rapida leitura de dois d'elles―
O Sultão
e
Typos da
terra, parece nos que a collecção
é
estimavel, e que os contos são joias de grande
preço da nossa litteratura, pela linguagem pura
genuínamente portugueza, e pela graça da
contextura originalissima,
nacional, sem laivos d'imitação estrangeira, em
que se pintam
scenas e episodios, cheios de verdade e de encantadoras
descripções,
da vida portugueza nas provincias.»
O Seculo:―«
Os
meus amores, por Trindade
Coelho.―É um livro de contos, editado pela casa editorial
do Antonio Maria Pereira, a publicação recente
que mais tem emocionado, com
justo motivo, o nosso meio litterario, bem pouco acaroavel e mazorro no
fundo, sobresaltando-se com tudo quanto perpetra o escandalo de
não
ser rotineiro, ou vulgar, e bem pouco emocionavel tambem―diga-se a
verdade.
Parece uma contradicção; mas não
é. Se o nosso bom publico fosse dado a esbanjamentos de
emoção artistica, não
o sobresaltaria tanto a pessoalidade, e o imprevisto.
O sr. Trindade Coelho accumula com o seu cargo official de magistrado
severo, a profissão, ou antes o desenfastio espiritual de
ser homem de lettras, nas suas horas de remanso.
É só, porém, como homem de lettras,
que nos compete em tal logar aquilatar-lhe a esthésia, e as
faculdades de
emoção, ou de attenção
artistica.
Ambas estas possue o sr. Trindade Coelho, em subido grau. A
fórma adapta-se perfeitamento ao fundo, e é
sempre fluente,
vernacula, concisa, e precisa. É sóbrio no
descriptivo, e
não raras vezes enternece. Não commette a
velharia de desenterrar obsoletos
termos classicos, sem incisão, sem propriedade, e sem
côr, muito parecidos com o latim, mas que no fundo
não são nem latinos,
nem portuguezes, nem onomatopaicos, e que fizeram a delicia de Filynto.
Nem perpetra tambem
o mau gosto de empregar neologismos inuteis, e risiveis, possuindo na
linguagem patria instrumentos magnificos d'expressão. Sabe a
sua lingua, como raros: e o conto, que é, quanto a
nós, a
forma mais perfeita, mais completa, e mais delicada da prosa, e tambem
a mais transcendente e lapidar, achou n'elle um habil e equilibrado
interpetre. Os contos
Sultão,
Maricas,
Typos da terra,
Mãe e
sobretudo
Para a escola, não contam
muitos rivaes na
lingua portugueza nem
nas estranhas.
O seu pequeno livro ha-de ficar na litteratura nacional, quando de
centenas de romances em seiscentos volumes já ninguem
rememorar o titulo sequer.―
Gomes Leal.»
Revista Illustrada:―«
Os
meus amores, de
Trindade
Coelho.―Que deliciosa impressão me deixou aquelle livro,
tão
adoravelmente simples e sentido!
Antes, porém, de começar a analysar, conto por
conto, esse fino trabalho
[XXII]
de Trindade Coelho, preciso dizer duas
palavras explicando a
razão porque me merece tanta sympathia o seu auctor, que de
nome
conheço só.
Li pela primeira vez o seu nome em umas correspondencias de Portalegre,
notavelmente bem feitas, e em que elle elogiava muito um pequenito,
distincto em todos os exames.
Aquelles adjectivos de amigo bom e enthsiasta fizeram-me convencer de
que―o delegado de Portalegre―era um excellente rapaz.
E digo rapaz, porque todos nós temos o habito de considerar
sempre muito novos aquelles que são da nossa edade...
Depois,
graças a uma amiga minha, escriptora de grande talento soube
que Trindade Coalho era um grande admirador de Loti―o meu preferido
romancista!―admiração enthsiasta que elle
descrevia em cartas deliciosas de uma
vibração que fazia pena não ser
repercutida mais longe... Fazia pena ser
indiscrição publical-as!
Traduzia elle então o «Pescador de
Islandia»; tradução esplendida que a
Gazeta de Portalegre publicou e que o trazia
empoigné.
Para elle era já uma suggestão, aquelle trabalho
primoroso.
E desde então, Trindade Coelho ficou sendo para mim um
artista. Dava a Loti todo o valor que elle tinha e que ultimamente
alguem se comprazia em querer negar ao academico gentil.
Em seguida li uma suavissima elegia escripta á memoria de
Antonio Fogaça―uma flor ceifada ao desabrochar!―Eram meia
duzia de
palavras cortadas por soluços:―eu sei, infelizmente, quando
se
escreve assim!...
Finalmente, o seu nome vibrou de novo aos meus ouvidos, quando os
jornaes annunciaram que elle arrancára um preso á
cadeia de Portalegre. Um preso que era um innocente, e que, como tantos
outros, estava condemnado a ouvir soar, em vida, a hora da
justiça...
Publicavam tambem o effusivo telegramma em que Trindade Coelho
agradecia ao nosso magnanimo rei o seu perdão.
E eu d'essa vez chorei! Como me succede sempre que um homem
põe a lucidez do seu talento e o enthusiasmo do seu
coração ao serviço da humanidade que
soffre...
O nome do dr. Trindade Coelho gravou-se então indelevelmente
na minha alma.
Eu só fixo o nome dos bons.
E pensei em que devia ser uma grande mulher a mãe d'aquelle
homem! Os filhos herdam, geralmente, o coração
das
mães...
Ultimamente a imprensa annunciou o livro que acabei de lêr.
Pedi-o rapidamente para Lisboa, e li-o de um folego.
Abre com um soneto delicioso, escripto pelo espirito gentil de Luiz
Osorio―uma alma luminosa, que brilha na transparencia dos seus versos
filigranados e vibrantes...
[XXIII]
Segue se o
Idylio rustico―um amor―atravez do
qual nós
vêmos subir lentamente a estrella d'alva que illuminava,
coando a sua
dôce luz pelo colmo da cabana, duas cabecinhas gentis,
adormecidas junto uma da outra...
Depois o
Sultão um
conto singelíssimo cheio de
naturalidade, em que o Thomé nos communica a sua alegria
contagiosa levada
á loucura com a volta do... amigo―bem mais fiel do que
muitos outros!
A
Ultima dadiva, um braçado de goivos
atirados por
«um simples» a uma sepultura onde lhe
ficára preso o
coração para sahir de lá no dia em que
teve de se diluir, na esteira do barco que lhe levara o filho para o
Brazil.
A
Comedia da provincia, magnifica de
côr local.
Magnífica, principalmente para quem conhece typos
semelhantes e já tem
visto a
Morgadinha de Valflôr―essa
perola!―representada
pelo
Marques do correio... vestido de saias! Para quem dá todo o
valôr a esse esplendido estudo de costumes provincianos.
Vae victoribus, uma sugestão de remorso
primorosamente
traçada...
Maricas, uma adoravel
poesia escripta em prosa.
Para a escola, um beijo de gratidão de
uma singelesa
adoravel.
Tragedia
rustica, um vibrantissimo estudo das miserias humanas.
Abyssus abyssum, o agonisar de dois anjos, sob o
olhar de uma
estrella...
Mãe, a flôr mais
linda do ramo,
enlevo e agonia de todas as mães que eram capazes de morrer
assim―sem abandonarem os
filhos... E, finalmente, as
Batalhas domesticas.
Repito, deixou-me uma impressão deliciosa o livro de
Trindade Coelho, que é, a par de um primor de delicadeza,
sentimento e arte,
um livro honesto, que não fatiga os homens nem faz
córar
as mulheres. Por isso aconselho a todos que o leiam.―
Margarida
de
Sequeira.»
Portugal:―«
Livros Novos.―A acolhida
feita ao
notabilísissimo livro
Os meus amores,
do nosso querido
amigo e illustre confrade, Trindade Coelho, tem sido a que em tempo lhe
vaticinámos: em toda a
linha o mais legitimo, o mais espontaneo, o mais unanime e o mais
carinhoso
triumpho.
Bem o merece o crystallino talento, e a ineluctavel tenacidade no
trabalho, do brilhante escriptor, que em meio dos violentos paroxismos
que na caça de sensações e effeitos
novos hoje pavorosamente desarticulam o
meio
litterario europeu, tem
uma força de
restringir-se a soltar suavemente, com uma sobriedade campesina e
tranquilla, a melodia emocionante, ingenua e simples do viver
aldeão; e
que por entre o estridulo
hallali de
obscenidades,
imprecações, blasphemias, dôres,
gemidos, que doloridamente rebôam pelas soturnas naves d'este
immenso hospital, que é o mundo, ainda encontra a suprema
arte de
fazer escutar, enternecedoramente, um doce
trillo
sentimental, uma ou
outra ligeira nota affectiva, algum limpo e captivante movimento do
coração.
[XXIV]
Bem haja.
Do côro unisono de quasi incondicional applauso com que a
imprensa tem celebrado a apparição d'
Os
meus
amores
transcrevemos hoje um magnifico artigo do
Correio Elvense,
devido
à penna d'um dos mais
lucidos e impetuosos engenhos da novissima
geração.» (
Seguia-se a
transcripção.)
Diario Illustrado:―«
Os
meus amores,
contos e balladas, por
Trindade Coelho.―A forja do tempo caldeia-nos o espirito á
proporção que envelhecemos. É por isso
que os rapazes se desdoiram
ás vezes de ouvir os velhos, e parece-me que teem
razão, porque nem sempre o
são juizo de uma experiencia larga, sabe limar as arestas da
caturrice no estudo circumspecto... Eu tenho acompanhado, cantarolando
e um pouco a rir com
singular scepticismo, este meu seculo, que está no fim, e
com elle tenho vindo estudando e aprendendo. Ruiram as theocracias
litterarias, revoluteou-se a philosophia, crearam-se novos processos de
estylo, arrancou-se o chiró ás velhas phrases, e
todo um
mundo novo, extravagante e phantastico tem surgido,―mau grado as
furias
rabídas de escriptores paleontologicos, apparafusados
á Arte e
á Critica de ha 50 annos e cheios de amor e melancolia...
Ora essa aprendizagem do meu seculo tem-me custado amarguras
aterrantes, desequilibrios de espirito
e um desfolhar de verdes illusões, que eu tenho visto
irem-me
fugindo n'um
marche-marche triumphal, para nunca
mais voltarem,―ai!
para nunca mais voltarem!...
A vida do escriptor moderno, toda torturante e nevrotica,
dá-me a impressão tenebrosa dos contos de Poe,
postos
palpitantemente na vida real de nossos dias. E lembro Camillo pedindo
ao pedaço de
chumbo de uma capsula o ponto final redemptor de agonias crudelissimas;
Julio
Machado, de pulsos cortados, fitando com olhar sangrento o retrato bem
amado do filho,―a alegria ruidosa dos olhos da sua alma,... e quantos
outros, bom Deus! Dir-se-hia que uma
má sina
persegue os
homens de
lettras:―quando não é a navalha de barba,
é o rewolver, é a
consumpção, é a tisica, é o
retrahimento amargo, é
o abandono proprio e alheio! Por isso o meu visinho Gervasio todo se
ufana, com certo profundo bom senso
pratico, da insistencia com que quer fazer do filho um
artista
pintor―de portas, e de fóra de portas...
Na
troupe de escriptores em flôr do meu
tempo,―parece-me
que já lá vão 30 annos, e tudo isto
é apenas de
hontem!―havia, joeirados com singular amor de arte pura, uma duzia de
rapazes de incontestavel valor
litterario, desabrochando esbanjamentos de talento pelas gazetas e
revistas mundanas. Poetas e prosadores, contistas e dramaturgos,
miniaturistas da poesia, do romance e da chronica, d'essa pleiade de
rapazes, um tanto insubmissos e um tanto bohemios, alguns treparam
triumphantes,―poucos; outros, quasi o resto, ou foram ainda verdes da
vida para os cemiterios das suas aldeias, ou, o que é quasi
o mesmo, deram-se a callejar as mãos, dissolvendo as suas
aptidões de plumitivos incipientes, nas minas
[XXV]
de oiro e de
ferro da lucta pela vida. Dos
felizes, dos que
triumpharam,―como
quem diz, dos vencidos da vida,―me sorria eu ás vezes em
horas de bom humor,
lembrando-me como elles com um livro de versos foram nomeados consules;
com um tratado sobre a cultura do repolho abriram o
Banco
Mineral do
Douro, por acções; com um drama em
D.
Maria
foram eleitos
deputados; ou como com uma critica do
Salon de S.
Francisco, se
guindaram a bibliothecarios das bellas artes e hortaliças
correlativas... Dos outros,
dos
perdidos pouco me lembra! Eduardo Salamonde
foi-se a espantar os
philisteus do Pará, applicando-lhes aos figados
hypertrophicos a vermelha
caudal da sua prosa mirabolante; Xavier de Carvalho desappareceu em
Paris pelo alçapão macabro da
correspondencia
barata;
Gualdino Gomes anda ahi amparando o seu rheumatismo a uma certa
maneira de má
lingua e a uma bengala de canna; Leopoldino Gonçalves viaja
como medico da
armada; e Fortunato, quando as saudades lhe são mais
amargas, abandona
o Alemtejo, onde toma pulsos a doentes pela tabella da camara, e
apparece
ás vezes nedio, côr de fiambre, cheio de barbas, a
olhar com tedio os
copinhos de cognac do
Leão...
De todos os rapazes do tempo das minhas alegrias côr de rosa,
o que me traz mais doces recordações é
Trindade
Coelho,―porque eu ligara á minha a alma d'elle, n'um tempo
em que dos salgueiraes de Coimbra elle me fazia para uma folha alegre
de que eu era director, umas chronicas soberbas, vivas, rendilhadas,
cheias de colorido e de
affirmações de uma personalidade litteraria. A
sua prosa, a um tempo humana e lyrica, dava-me a impressão
de um romantismo degenerado... De
Coimbra, como sabem, além de bachareis anonymos, tem-nos
vindo a
elite
das letras. É da tradição
universitaria, fazerem os doutores as
suas primeiras armas de litteratos e de poetas, na academia, a
intervallos do pesado estudo do Lobão e do direito publico,
esvurmado ás
cavalleiras do nariz de Pedro Penedo... Toda a nossa legião
distinctissima de poetas
e prosadores modernos deriva litterariamente da bohemia
coimbrã:―Theophilo, Eça, Junqueiro,
João de Deus, Anthero, etc. É a
affirmação do bom Antonio Ferreira feita axioma:
Não
fazem mal as
musas aos doutoures.
E não fazem. Tem-se visto. Vão lá
inquerir a Junqueiro das bellezas do Codigo Civil, meio
metaphysicamente original e meio copiado dos codigos
de Napoleão! Ah, mas em compensação
que appareça ahi o primeiro advogado a escrever a
Morte
de
D. João e a
Musa em ferias!
Os cantos de Trindade Coelho são narrativas ligeiras,
descripções n'uma bella prosa colorida e
transparente, trechos de psychologia
trasmontana, e um ou outro caso humano superiormente observado.
Sobretudo a
maneira do proceder litterario d'este escriptor
é
deliciosa de
côr
[XXVI]
e de verdade, sem grandes esmerilhamentos de phrase, nem
deslumbramentos de imagens
na apparencia côr de oiro, que, em regra, não
fascinam senão os saloios ingenuos dos cordões de
latão... Tem-se chegado
ahi, no abuso da originalidade do estylo, a fazer uma prosa
estrelicada, engommada, cabellinho á banda, com risca, como
os caixeiros de modas ao
domingo! O burguez já conhece os processos da
chinoiserie,
e d'ahi
não ha espantal-o com nephelibatismos doentios, de
importação barata; bem sabe elle que debaixo
d'essas bellezas está a oleographia reles
de porta de escada, da sultana escarlate que apara as unhas, ou do
frade que enxota
a mosca do nariz,―muito de apreciar nos covis da municipal em
Alcantara...
O livro de Trindade Coelho tem um certo resaibo de saudavel trabalho,
feito com honestidade e sem as preoccupações
deploraveis que levam os corypheus da escola modernissima, mais que
zolaista, á
descripção e estudo de pathologias e casos
sporadicos, ou não vivos, ou
pouco vívidos. Este livro á quasi um parenthesis
aberto
como uma clareira consoladora na torrente ultra-realista dos ultimos
trabalhos apparecidos, do
sujet de um dos quaes,
que é em
todo o
caso a monographia de um caracter, assombrosamente executada, o
Gil
Blas dizia,―
qu'on ne peut lui serrer la main que
par
derrière...
A feição litteraria de Trindade Coelho parece-me
que se define na parte do livro sub-titulada
Balladas.
Os
Arrulhos,
principalmente,
são uma duzia de paginas encantadoras, que lembram Droz e
Daudet. É
uma elegia... tragica,
encadrée n'uma
linguagem
côr
de opala, em que a gente parece estar vendo Hoffman braço
dado a...
João de Deus! É uma obra prima. Assim a
Tragedia
rustica e a
Mãe. Dos
contos destaco eu os
Preludios de festa,
Idylio
rustico,
os
Typos da terra, onde
ha paginas soberbamente observadas, suggestivas,
d'après
nature. Magnifico o assasino
José Gaio.
Trindade Coelho é inquestionavelmente um lyrico. E nem eu
sei como elle chegou até aqui sem trazer na mala um volume
de
versos―
Florinhas de Luar, por exemplo!
Devemos-lhe o grande favor de
não
conhecer os diccionarios de rimas, senão a estas horas era
uma vez um
contista encantador... sossobrado!―
Ignacio da Silva.»
Nova Alvorada:―«
Meu
caro Trindade Coelho.―Sabe
você, amigo Trindade, que as palavras affectuosas que me
endereçou no
offerecimento do seu livro
Os meus amores,
vislumbraram no meu
espirito um mundo de saudosas recordações, como
se foram fugazes
emanações balsamicas d'uma quadra primaveril que
não volta mais―a vida
coimbrã?
Parece-me que tenho ainda presente na retina a sua figura um pouco
baixa mas robusta, as
suas feições
masculas e
energicas, e a sua
allure um pouco
receiosa ao dobrar a soleira da
legendaria Porta Ferrea.
Com o seu olhar penetrante e incisivo, mas velado por umas lunetas de
grau apurado, sob a pasta d'um quintannista, mirando á
direita e á esquerda,
[XXVII]
entrou você nos
Geraes
resignado a um diluvio de
troças, martyrios, horrores...
Os segundannistas, de cuja respeitavel corporação
eu fazia orgulhosamente parte, não o arreliaram logo, talvez
porque
lhe não encontrassem uma physionomia de chuchadeira, como a
d'um Armelim, nem
um rosto gretado, empedernido, de homem terciario, como o do bom
Raphael
do Ranhados.
Mas em que diabo foram elles depois embicar, os malvados!
Em uma medalha d'oiro que você trazia, á guiza de
berloque, na corrente!
O amigo arrancou pressuroso a
pedra de escandalo,
de forma que a
tempestade de piada desannuviou-se a tempo no seu horisonte de novato.
Depois, um ou dois annos, apparece o amigo com
accentuações de academico fallado, o seu nome a
salientar-se das vulgaridades escolasticas, a sua
individualidade a destacar-se, como se fôra um
urso.
E
assim se fallava do Trindade, como do Luiz Osorio ou Feijó
por causa
dos versos, do Passaro pela fina chalaça, do Saraiva pela
força, do Miguel Baptista―pobre amigo!―pelo talento e
pelas
abstracções, do Banalidades pela gralhadora
loquacidade, e tutti-quanti.
Você desencubou o seu nome, pol-o em evidencia―o Trindade―,
mas foi por causa d'um excellente resumo das
lições de
direito romano, d'um bello discurso no centenario pombalino, e
sobretudo das suas graciosas chronicas no
Diario Illustrado.
Ah! e lembra-se você d'aquelle anno em que
formámos «republica» na rua da Trindade,
tendo por creada a sr.
a Maria de qualquer coisa,
que denominavamos a
Gorda, matrona muito caroavel e de enxundiosas
formas?
Eramos uns poucos:
O Souza, que já tem o galão branco dos tribunaes
administrativos, espirito facil, perspicaz e alegre, nada para
massadas, que tinha orientações definidas em
politica partidaria e
expedientes reservados de galopim graúdo contra os
progressistas da Barca.
O Manoel Nunes, hoje em Barcellos, muito lucianista, devorando o
evangelho do
Correio da Noite, sempre em
questiunculas com aquelle
por causa dos seus ideaes politicos encontrados, grande passeador e
jogador
de manilha, um tanto lambaz porque sahia mais cedo e sorrateiramente
dos theatros, dizia-se, para comer a ceia dos retardatarios, guardada
pela
Gorda n'um cantinho do fogão.
E o Figueiredo que se ria pelos olhos e pelo hirsuto bigode quando lhe
chamavamos o Pêgas, o Covarruvias, e lhe liamos um imaginario
plano, rigoroso e draconiano, de reforma dos Estatutos da Universidade?
Muito desconfiado e estudioso, só não encavacava
quando
lhe diziamos que elle se applicava... 25 horas por dia!
Depois o Rocha Peixoto, o Bicho, d'aspecto
sournois,
olhos
á bufo,
[XXVIII]
que não fallava ainda que o esmurrassem,
pobre caloiro
silencioso e contumaz!
Em seguida o Sergio Carneiro, o Grillo, seu comprovinciano e hoje
conservador algures, com cara de cera, esboçada, sem
feições lavradas, muito guitarrista e risonho, se
bem que intelligente e applicado.
Eramos mais―você e eu. Você que se mettia muito
com a litteratura, fechado no quarto, lendo... lendo... escrevendo...;
e eu, que por
signal dediquei um fado aos membros da republica, o qual nas vesperas
de feriado se cantava, em algazarra tonitroante, quando o Grillo
condescendia em o acompanhar na guitarra.
Depois de 1883 creio que nunca mais nos vimos. O amigo marchou mais
tarde para Sabugal e eu para Cuba, e hoje está nos tribanaes
de Lisboa e eu no berço da monarchia.
Agora vejo-o, litterato conhecido e conceituado, a publicar os seus
bellos contos em um elefante volume―
Os meus amores.
E bellos na verdade, como todos dizem.
A
Mãe, aquella cruciante tragedia da
pobre
Russa,
morta
de terror e de amor, é para mim o mais apreciavel e sentido
conto da sua
collecção.
Costuma-se dizer d'uma mãe descaroavel, d'uma Francisca
Fortunata―é uma cabra!―; mas o amigo teve artes de
desmentir o erro grosseiro,
vingando as calumniadas affeições dos pobres
ruminantes.
Quem ler as angustias da misera
Russa, na
espectactiva do filhito
devorado pelo esfaimado lobo circumvagante, restituirá
áquelle inoffensivo animal o sentimento d'amor maternal, a
natural
comprehensão das suas obrigações de
mãe e
protectora.
E os
Arrulhos? Se me não engano
você escreveu
esse conto em Coimbra. Creio até que um dia, estando a
jantar, o amigo recebeu um
jornal qualquer de Vigo, Corunha ou Pontevedra, em que a sua bella
producção vinha traduzida no idioma de Cervantes
com o titulo de
Palomas.
Nos restantes contos, entre os quaes me não agradaram menos
Vae Victoribus, o
Abyssus abyssum
e o
Sultão,
revela
o
amigo a força da sua educada phantasia, moderada por um
largo peculio de
observação; a sua poderosa
intuição artistica; o seu dialogo
curto, vibrante e natural; o seu estylo já caracteristico
pela
feição franca,
saccadèe,
de dizer e
narrar; a propriedade das locuções; o
bom emprego dos termos; a verdade das suas
descripções e pinturas, que,
ao contrario de muitos, não repete, tinta para aqui, tinta
para acolá e
vice-versa, n'uma pobreza reles de palheta, que faz lembrar casacos
virados ou coisa similhante.
Olhe, amigo. Eu careço de geito para a critica litteraria;
mas, emquanto me é licito exprimir a minha humilima
opinião,
dir-lhe-hei que você alarga cada vez mais e com mais rapidez
a sua
reputação de litterato distincto e de contista
precioso; e que este conceito é
merecido, attestam-no os seus valiosos escriptos dispersos e a sua
elegante brochura recem-editada.
[XXIX]
Resta-me felicital-o cordealmente, amigo Trindade, a agradecer-lhe a
sua fineza com um abraço de―Velho amigo―
Eduardo
Carvalho.»
Nova Alvorada:―«
Os
meus amores.―Acabamos
de ser
distinguidos com a offerenda do novo livro de Trindade Coelho,―o
sympathico e distincto escriptor que de ha tempos se vae honrosamente
evidenciando no certamen
das lettras patrias, onde já agora a sua individualidade tem
uma reputação firmada.
Os meus amores é o titulo que o sr.
Trindade Coelho
escolheu para o seu livro de contos e balladas, e se assim lhe chama,
segundo cremos, não é porque estas 200 paginas
sejam um
auto-historiographico dos idylios romanescos do auctor, n'quella aurea
quadra da sua vida academica, ou um repositorio de alheias aventuras
amorosas com acompanhamento obrigado ao bandolim do trovador lendario.
Não. A razão do titulo parece-nos antes proceder
da affectividade psychologica do auctor para com a sua obra, e
induzimos isto do soneto com que Luiz Osorio prefacia o livro, e cuja
primeira quadra diz:
Folhas dispersas dos meus
annos de oiro,
Vivo enxame das minhas
alvoradas,
Tenho zelos de vós, folhas sagradas,
As
Desdemonas sois de um outro moiro.
Se não fosse assim, affirmar-se-hia mais uma vez a verdade
do aphorismo―o habito não faz o monge―, porque o
Idylio
rustico, com que abre esta bella
collecção de
contos,
não seria bastante para justificar o titulo sob que se
enfeixam.
Mais que o idylio, preponderam no correr do livro a comedia, o drama e
a tragedia: e basta percorrel-o em rapida leitura, para averiguar-se
que se ha na urdidura dos varios contos muitas
situações que nos pintam o ridiculo, a
desgraça ou o crime, poucas ha, entretanto, que
nos prendam o espirito ao devaneio piégas d'um Romeu e d'uma
Julieta.
Mas, ou bem ou mal baptisado, o que é consoladoramente
verdadeiro é que os contos do sr. Trindade Coelho constituem
uma das mais bellas collecções que no genero
conhecemos.
Uma urdidura facil e clara, movimentada em harmonia com os melhores
preceitos da arte.
Uma linguagem correcta e elegante, sempre amoldada à
naturalidade das situações e dos dialogos.
Uns assumptos de felicissíma escolha, a reproduzirem
fielmente costumes, a pôr em jogo com a maior verdade os
vicios e as virtudes do
povo.
Como os contos magnificos de Bento Moreno, os contos do sr. Trindade
Coelho são a fiel expressão da vida rustica do
nosso povo, e facil é de comprehender a importancia moral
que estes livros terão
quando as gerações
[XXX]
que nos succedam queiram
inventariar nas
suas tradições o modo de viver, de sentir e de
pensar das populações
sertanejas, n'este periodo historico em que vamos.
Sem descer aos excessos da eschola ultra-realista, a que Zola preside
como Summo Pontifice, o sr. Trindade Coelho, consegue ser de uma
verdade inexcedivel, de um realismo incontestavel, de um naturalismo a
toda a prova, que por egual se evidenciam no assumpto, na
narração e nos personagens.
E, sobretudo isto, ha nos seus contos, como nos de François
Copée e Theodore de Bauville, a artistica
encenação que,
sem desvirtuar-lhe a naturalidade da fórma e do fundo, lhes
imprime o attractivo
romanesco que falla à imaginação do
leitor.
O
Idylio rustico, com que o livro abre,
é de uma suavidade
deliciosa, e de uma naturalidade tão justa quanto
encantadora.
A
Ultima dadiva é a
expressão fiel de muitas
scenas que a emigração multiplica cruelmente
pelas nossas provincias do norte.
A acção d'este conto é conduzida com
uma tal uncção de sentimentalidade, que nenhum
leitor, por mais rebelde que seja a
commoções, se poderá esquivar a
partilhal-a.
O conto―
Typos da terra é a
descripção fiel, fidelissima, da mesquinha
intriga que fervilha invariavelmente em todas as pequenas terras de
provincia.
Os Preludios de festa são de um comico
admiravel;
Maricas é de um sentimentalismo
commovente;
Vae
Victoribus de uma moralidade edificante;
Arrulhos,
Mãe,
Tragedia Rustica, tudo,
tudo n'este livro é bom, e de util e agradabilissima
leitura.
A forma―já o dissemos―é correctamente vernacula
e elegantemente rendilhada.
A titulo de amostra, para aqui trasladámos do
conto―
Sultão―este
bello
croquis de uma tarde de
agosto:
«Ao longe, fechando o horisonte que a eira dominava, as
arestas dos montes quebravam-se n'uma sombra egual, e embaciavam ainda
o poente as suaves e brandas pulverisações
doiradas da ultima
luz do sol. Riscos vermelhos de nuvens, como grandes vergas de ferro
levadas ao rubro, destacavam immoveis n'um fundo verde-mar, esvaecido e
meigo, raiado de listrões de uma
coloração leve de
laranja.
Pequenos algodões transparentes, com alvuras de neve,
cortavam aqui e além, alegremente, a monotonia profunda do
azul.»
E assim o livro de Trindade Coelho: uma obra á altura da boa
reputação do auctor.
A redacção da
Nova Alvorada
congratula-se com o
seu illustre collega por tão brilhante
producção, e d'aqui
lhe envia um cordealissimo aperto de mão.»
[XXXI]
A Independencia:―«
Os
meus amores.―Acabamos
de ler o
primoroso livro de Trindade Coelho,
Os meus amores.
Sem largas
aspirações, modestamente, apenas com a
consciencia tranquilla de quem escreve bem e
com criterio,―Trindade Coelho juntou e concatenou no delicioso volume,
que acaba de dar á estampa, algumas
producções litterarias que a sua vida de
jornalista tinha atirado para a valla commum das paginas de revistas e
diarios.
Não é, pois, um trabalho completo, inteiro e
homogeneo o que se nos offerece para apreciar: são pequenas
joias litterarias,
buriladas por mão de artista e d'um fino sabor de
naturalismo.
Considerado assim, sem dependencia de escola e
confrontação de originaes, o livro é
bom.
As suas descripções são perfeitas,
correctas, desenhadas por quem se acostumou, desde creança,
a ler muita e a adivinhar mais na
biblia riquissima e inexhaurivel da Natureza.
Ha vida e colorido em tudo. As telas dos ceus pincelaram-se com as
tintas proprias, e os diversos personagens que nos vão
passando sob os olhos, romanescos e serios uns, grotescos e ridiculos
outros,
deixam-nos uma impressão agradavel de realismo, e alta
comprehensão. São typos exactos, sem os grandes
enfeites que aborrecem e sem phrases banaes que
enjoam. Antonio Fagote é um especimen do juiz de festa das
nossas aldeias, basofão e vingativo, prompto,
olá! a
gastar as ultimas moedas da venda do ultimo gado e a deixar fulo e
arreliado o seu antecessor; e
a deliciosa ballada
Mãe é
uma preciosidade
litteraria, magnificamente pensada escripta, digna da penna dos nossos
primeiros escriptores.
Não encomíamos, pois, o valor do livro, dizendo
que elle é digno de figurar ao pé das mais bellas
producções dos nossos escriptores mais
consagrados.»
Correio de Portalegre:―«
Os
meus amores,
contos e balladas
por Trindade Coelho.
Acorda-lhes no espirito um echo de sympathia o nome do auctor, pois
não?
Eu creio bem isso, porque a verdade é que apezar da celeuma
que Trindade Coelho ahi levantou, grangeando com o seu genio turbulento
algumas antipathias nenhuma d'ellas alvejou o seu talento, que os
senhores jamais negaram, e lhes ficou sendo sympathico. É
por isso
que escolhemos para encetar esta secção a
producção brilhante do distincto litterato,
editada ha pouco por Antonio Maria Pereira, um incansavel editor
escrupulosissimo.
Li o livro que o talento do auctor recommenda, impondo-o, quasi, a
attenção do nosso cerebro, á
contemplação da nossa alma; e essa leitura, feita
n'umas horas que um encanto enorme fez parecer tão
breves, deu-me d'
Os meus amores a agradabilissima
impressão d'uma
caricia, que persiste a sorrir consoladora.
[XXXII]
Trindade Coelho, que os senhores conhecem pelo menos do
Commercio
e
da
Gazeta, tem, como viram, o poder invejavel de
dar á
ideia,―algumas vezes injusta, dirão alguns,―a mais
correcta
fórma, iriada sempre da limpidez mais viva; e isso, n'um
trabalho feito agora para apparecer amanhã, à
pressa sempre, n'uma fugida aos
calhamaços manuscriptos que demandam a sua
attenção de magistrado, e em que o
periodo mais suggestivo é o do
Anno do Nascimento
de Nosso
Senhor Jesus
Christo.
É-lhes facil por isso presuppor o livro, que o vagar do
auctor desbasta, romodela, lima, muito tranquillamente, muito
socegadamente, sob a vigilante direcção do seu
delicado gosto
artistico.
Os meus amores teem poesia, e teem verdade; e na
maioria dos seus
differentes quadros, adoravel descripção das
scenas simples da vida do campo, da natureza singellamente formosa, o
sentimento vibra intensissimo, e é encantadora a phrase, que
um conhecimento
profundo dictou, de que uma subtil observação
resáe. Ha alli retratos d'um brilho sem limite,
typos
que
resumem um estudo fidelissimo.
É um cofre de bellas joias, o livro, que nos deixa
embaraçadissimo, se queremos escolher
alguma,―tão valiosas são
todas.
Todavia,―e isto é uma modesta opinião
perfeitamente pessoal,―
Vae victoribus, de
tão grandiosa
ideia, e de tão
elevado estylo,
Para a escola, tão
grata, a evocar uma
saudosa
recordação dos bons tempos de creança,
e os admiraveis contos de fina graça e
tão verdadeiros,
Preludios de festa e
Typos
da
terra,
são os meus
eleitos, depois d'uma difficuldade enormissima d'escolha, d'entre
tantos quadros da perfeição mais rara, e onde a
Maricas e
Arrulhos captivam tambem a minha
admiração.
O livro é, como todos os sahidos na
Collecção Antonio Maria Pereira,
esplendidamente impresso em bom papel, e cartonado elegantemente em
percalina.
N'esta noticia breve, digne-se o distinctissimo auctor d'
Os
meus
amores receber o preito da nossa homenagem, prestada
tão
agradavel como sinceramente.»
O Nordeste:―«Editado
pela casa Antonio Maria Pereira, de
Lisboa, em volume d'impressão nitidíssima,
escrupulosa, foi
recentemente publicado o primeiro livro de Trindade Coelho―
Os
meus
amores, que vieram
pôr em relevo as complexas e brilhantissimas qualidades
litterarias do auctor,
um
novo que já hoje occupa, por
direitos justamente
adquiridos, um logar proeminente entre os nossos melhores escriptores.
Os meus amores teem obtido na imprensa do paiz uma
acolhida
enthusiastica, fervorosa e sendo Trindade Coelho um trasmontano, nosso
conterraneo quasi, commetteriamos uma flagrante descortezia se nos
leitores do
Nordeste não dessemos
conta da
apparição d'esse livro, juntando ao
côro unisono d'applausos as nossas sinceras
saudações.
Escriptos em prosa vibrante, fluente e musical, correctissima, esses
contos, transcendentemente lapidados, com a fina mestria de joalheiro
[XXXIII]
primoroso, constituem um verdadeiro encanto, captivando-nos com a
espontanea naturalidade da narrativa e com a emocionante escolha d'umas
historias aldeãs, d'uma simplicidade campesina, repassadas
por vezes d'um sentimentalismo suave, lyrico...
A nós, que temos por Trindade Coelho uma
vivíssima sympathia, um affecto antigo e vehemente, seguindo
com interesse quaesquer particularidades
da sua vida, consolando-nos com os triumphos litterarios que teem
glorificado o seu nome e com a sua merecida
reputação de magistrado intelligente e
trabalhador, ganha durante a sua carreira de delegado do
procurador regio, estava-nos impacientando o desejo de lêr o
seu livro, e foi nervosamente, sofregamente, que o abrimos quando o
correio nol-o trouxe. E, agradabilíssima coincidencia!
succedeu-nos
deparar com o conto
Para a escola, quadro
tocantissimo que marca
distinctamente os dous mais notaveis estadios da vida do escriptor: a
altura em que entra
na escola primaria, regida por um misero professor, bondoso e marcial,
de villota sertaneja, e aquella em que sahe d'uma outra, habilitado com
as suas cartas de formatura a encetar a carreira publica, na qual de
continuo evidenciará as suas superiores qualidades de
talento e caracter diamantino.
Essa historia, exposta n'um estylo formosissimo, malleavel e correntio,
deliciou-nos e impressionou-nos profundamente, a ponto―sem pejo o
confessâmos...―de lagrimas espontaneas nos marejarem os
olhos, tão enternecedoras são essas paginas que
evocam em
nós as reminiscencias queridas d'um passado que
não volta, e no espirito nos
reproduzem, com uma precisão photographica, completa, scenas
eguaes da nossa
infancia, como de certo acontecerá a todos quantos lograrem
a
felicidade de lêl-as e sentil-as...
Terminado esse conto, foi d'um folego, a bem dizer ininterruptamente,
que
devorámos o livro, onde o auctor,
n'um esbanjamento
prodigo de verdadeiras perolas litterarias, se expande em ligeiras
narrativas, descriptas n'uma prosa colorida e vibratil, scintillante e
rhythmica, apresentando-nos uma serie de quadros, colhidos em
flagrante,
d'après nature, com uma extraordinaria
lucidez
d'observação, e um outro
caso
humano trasladado
para paginas d'uma forma impeccavel, accentuadamente artista, e que
são uma eloquente
affirmação da distincta personalidade de Trindade
Coelho, ao presente um dos mais assignalaveis e esmerados cultores da
prosa portugueza.
Não querendo, e não nos sobejando
espaço para tanto, ampliar esta breve noticia a uma critica
a todo o livro, impossivel se nos torna ennumerar
todos os contos em que elle se reparte, emittindo detalhadamente as
impressões que nos suggeriram. Por isso o nosso applauso
caloroso para todo o livro, sem predilecções por
este ou por
aquelle conto; e d'aqui, d'esta columna de modesto jornal de provincia,
enviamos ao nosso queridissimo Trindade Coelho, n'uma
effusão d'acrisolada
estima, com um aperto de mão, as
felicitações que
merece, fazendo votos para que não
[XXXIV]
deixe de ser um cultor
assiduo da litteratura nacional, e continue a honrar o seu nome,
já laureado, com a
publicação de novos e bons
livros.―
José Pessanha.»
Da Revista do Minho:―«
Os
meus amores.―Poucos
livros
terão vindo á luz da publicidade ultimamente em
Portugal tão esplendidos
como aquelle cujo titulo serve da epigraphe a esta noticia. Em todas as
suas paginas
se reune o bello e o agradavel, tornando esta obra de solido merito, e
estimavel debaixo de todos os pontos de vista.
Este volume pertence á formosissima
collecção Antonio Maria Pereira, e é
devido á brilhantissima penna de um dos nossos mais
festejados escriptores―Trindade Coelho.
Não precisâmos alongar-nos em chamar a
attenção do publico para esta obra, pois
é ella sobejamente já bem conhecida
dos amadores de bons livros.»
Revista Illustrada:―«
Os
meus amores.―Ha
tempo,―não ha muito,―começou um jornal de
Lisboa a publicar, de quando em
quando, umas cartas de provincia,―
Cartas alemtejanas,
nos
parece,―assignadas pelo nome, então desconhecido, de
Trindade Coelho. Lida por
nós a primeira, nunca mais nos descuidámos de
procurar as outras,
e foi com verdadeiro desprazer que as vimos ir rareando, até
deixarem
de apparecer de todo.
Essas cartas eram a revelação de um formoso
talento; eram a alvorada jubilosa e cantante de um bom escriptor.
Trindade Coelho entrava nas lettras portuguezas pela porta aurea dos
victoriosos, apresentando natural e simplesmente a sua individualidade,
como a fundira n'uma
só peça o seu talento alliado com a sua
observação e o seu estudo, sem esgrimir com os
que tinham chegado primeiro, sem acotovellar os que
avançavam ao seu lado, sem o apregoarem tambores nem
charamellas de apaniguados e sequazes.
Escrevia de um canto da provincia, da sua terra, em horas desoccupadas;
escrevia de assumptos comesinhos, de cousas que tinha alli á
mão, das scenas campestres a que assistia, e, sobretudo, do
sentimento que a sua
alma encontrava no tracto sympathico da natureza inteira. Falava de um
ou outro livro, que mão amiga lhe fazia chegar á
solidão do seu eremiterio, sempre com acerto, propenso ao
louvor, despido de invejas. Era um talento e era um caracter.
Depois, houve na sua vida litteraria um momento de eclipse. Cremos que
deve ter correspondido ao periodo occupado e trabalhoso da sua
formatura. Bom signal. O estudioso sério sabia reprimir as
impaciencias do amor proprio, sacrificando ás altas
occupações do seu curso os brilhos attrahentes da
facil nomeada. O escriptor experimentara
já o pulso; agora conhecia a sua força e sabia e
podia esperar.
[XXXV]
Eis que nos apparece um dia, subito, no fôro, honrando e
glorificando n'um processo de rehabilitação a sua
toga de
magistrado. O caso deu-lhe celebridade, e ensejo para ser recordado o
nome de homem de lettras,
que elle soubera fazer distincto e conhecido logo aos primeiros
trabalhos.
Alguns mezes de collaboração diaria, n'um jornal
bem lançado e bem redigido, avigoraram no conceito publico o
renome conquistado, e Trindade Coelho tomou serenamente, na imprensa da
paiz, o logar a que tinha direito, sem ninguem lh'o discutir nem
contestar.
Estreia-se agora no livro, e difficilmente imaginariamos
apresentação mais prometedora e mais sympathica.
Os meus amores são uma
collecção de
esbocetos, alguns dos quaes, como o
Idylio rustico,
Ultima dadiva,
Vae victoribus!,
Abyssus abyssum,
chegam a
ter a
perfeição, o acabamento
de verdadeiros quadros. Revelam o amor, o cuidado, o esmero com que o
auctor os trabalhou, solicito na sua obra, no empenho de uma
execução
immaculada. Não porque se conheça o
esforço; mas sim porque se sabe que
sem elle era impossivel conseguir tão completo effeito,
tão seguro
resultado.
O estylo do prosador é, quasi sempre, firme, opulento,
erudito, original e variado. Não tem reminiscencias d'este
ou d'aquelle, e
realisa uma das condições essenciaes que deve ter
em mira todo o
escriptor consciencioso: conservar uma feição
propria e
individual, sem se afastar da pureza da lingua, evitando ao mesmo tempo
o retrocesso archaico, e contribuindo para a
evolução progressiva d'ella.
Trindade Coelho, por uma intuição que nos
não cançaremos de louvar, em vez de se cingir a
modelos cuja originalidade maior ou menor lhe seria facil assimilar, em
vez de decorar mestres e de compulsar estylistas, procurou modo de
illuminar a sua phrase e de colorir a sua palavra, na fonte natural de
todas as inspirações. Penetrou,
para isso, nas camadas mais primitivas do povo campezino, enriquecendo
n'esse manancial o thesouro das locuções, e
trazendo de
lá, simultaneamente, scenas e quadros do um sentimento
encantador, e de uma singeleza nativa e adoravel.
É de indiscutível belleza a pastoral com que abre
o volume. Affigura-se-nos estar lendo algumas paginas de Longo. A
descripção da madrugada na aldeia, o encontro dos
dois pastores, Gonçalo e
Rosaria,―Daphnis e Chloe,―teem um sabor antigo, como o de uma
narrativa idylica, passada nos tempos legendarios da Grecia, e ao mesmo
tempo toda a verdade de uma scena campestre dos nossos dias.
É de um bom gosto supremo a fórma subtilmente
delicada como o narrador,
deixando primeiro receiar a queda dos seus personagens n'uma
brutalidade instinctiva, os conduz por fim nas azas da innocencia e da
candura a
uma situação divinamente sublime.
E, finda a narrativa, o leitor fica deliciado e satisfeito, n'uma doce
e prolongada abstracção, seguindo com os olhos do
espirito aquelles dois
[XXXVI]
vultos de creança a esfumarem-se nas
distancias do
espaço e do tempo, longe, muito longe, n'uma paizagem ideal,
vista nos dias da infancia, vista talvez em sonhos, talvez em Virgilio
ou Theocrito, talvez mais longe ainda, na Biblia...―seguindo, com os
olhos da alma, em esquecida
contemplação, longe, muito longe,
«...na calma placidez do azul, bandos de pombas mansas,
voando, voando.»
Em
Vae victoribus!, outro quadro de mestre, ha
como que um mixto do
tragico fatalismo grego e do supersticioso horror christão.
Não é vulgar a concepção do
assumpto, nem vulgar, tambem, o
desenvolvimento que o escriptor lhe deu, o scenario é
horrivel e magnifico.
Está bem descripto; bem descripta a tempestade, que primeiro
se annuncia, depois
se approxima, depois finalmente cresce e se desencadeia n'uma
convulsão pavorosa e enorme; bem descripto o terror
angustioso e suppliciante do misero assassino, o qual vê, na
chamma de cada relampago,
projectada a cruz negra que marca o logar do seu crime e que lhe prende
os
pés ao chão, emquanto o seu ouvido, allucinado
pelo terror, lhe
dá a sensação de uma voz insistente,
que detraz de cada arvore, da espessura de cada moita, de cima de cada
pedra, da resonancia de cada trovão,
o chama inexoravelmente pelo nome:―Ó José Gaio!
Ó José Gaio! Ó José Gaio!
Bastava simplesmente esta narrativa para grangear a Trindade Coelho
fóros de distincto e primoroso escriptor. Edgar Poe
não engeitaria o assumpto, se lhe occorresse, nem o trataria
com muita maior
perfeição. Dar-lhe-hia pasto para algumas paginas
tão engenhosas como
as da
Genese de um Poema, para alguma
composição
tão extraordinaria e tão transcendentalmente
bella como
O corvo ou
Ulalume.
Mas como se quizesse mostrar a malleabilidade da sua penna, ou como se
quizesse certificar-se a si proprio da multiplicidade e da variedade
das suas aptidões litterarias, o prosador que recortou nos
mais
perfeitos moldes aquellas paginas classicas ou estas sinistras,
detem-se na commovente e lacrimosa narrativa da
Ultima dadiva
e nas
ligeiras e facetas descripções dos
Typos da
terra, dos
Preludios de festa, do
Sultão,
onde transparecem dotes
de
observação sarcastica, de ironia graciosa e de
bem humorado espirito.
Um livro de tantas promessas não póde ser,
comtudo, e por isso mesmo, um livro definitivo. Trindade Coelho
experimenta apenas a mão
para se abalançar a empreza maior, estamos certos d'isso.
Já no final do presente volume, em nota do editor a um
trecho intitulado:
Batalhas domesticas, se annuncia a
transição da presente
phase litteraria e artistica do auctor, para uma outra phase
progressiva.
Progressiva, dizemos nós, porque assim o crêmos.
Qual ha-de ser, porém, a predominante caracteristica d'essa
phase? Póde a critica
conjectural-a
[XXXVII]
desde já? Talvez o pudesse; mas seria
arriscado fazel-o.
Porque, a verdade é que o seu talento tem recursos com que
lhe
é dado contar, que o seu temperamento litterario tem
energias que lhe hão de
abrir novos caminhos, e que, na sua vida de homem de lettras, ha
já
precedentes, que enormemente o obrigam.
Temos confiança em que a sua prosa, já segura e
elegante, despir-se-ha ainda de um ou outro francezismo escusado, e
ha-de adquirir novos dotes
de clareza, concisão e vernaculidade. Trindade Coelho sabe
onde procural-os. Não é em lexicons, nem em
alfarrabios, nem em cartapacios. É na escola, aberta sempre
a todos os investigadores, onde
aprenderam a falar o portuguez do povo, os seus typos populares.
Não se póde ser bom prosador, sem se ter o
sentimento profundo do som, da melodia. Uma das maneiras de adquirir
pericia n'esta
fórma de escrever, consiste na pratica de versificar. Fazer
bons versos
é um exercicio util para chegar a fazer boa prosa.
Não
é, porem, indispensavel, bem entendido.
Contudo, não admittimos que repute possuir as qualidades
completas de escriptor, aquelle que só d'uma das duas
fórmas
da arte de escrever seja conhecedor. Os mais elegantes cinzeladores da
prosa, são os
que praticaram largamente no manejo da
metrificação e
da rima.
Trindade Coelho, apesar de todos os dons singulares da sua natureza
artistica, teria muito a ganhar, e conseguiria maior fluidez na phrase
e maior cadencia no periodo, se praticasse um pouco a arte do verso,
embora como simples exercício. E esteja certo de que lhe
vale a pena empregar todos os esforços para attingir uma
perfeição, que não está
longe, e de que o seu talento proprio e a sua estudiosa boa vontade
continuamente o approximam.―
Fernandes Costa.»
Aurora do Lima:―«
Os
meus amores, contos
e balladas, por
Trindade Coelho. Quando prometti á
Aurora do Lima
esta
ligeira
noticia bibliographica ácerca do livro do brilhante
escriptor e meu
querido amigo Trindade Coelho, mal cuidava eu que a doença
me
obrigasse a retardar o cumprimento da promessa, ao ponto de me
encontrar entre os ultimos da ultima fila, nas
saudações
enthusiasticas á obra e ao seu auctor.
Tenho para mim como certeza indiscutivel que o publico se
começou a fatigar d'essas obras torturantes d'analyse fria,
cruel, desoladora. Os
que se encontram feridos das asperrimas luctas da vida―e estes
constituem a maior parte dos que lêem e estudam, preferem as
obras consoladoras, de cuja leitura fica uma
sensação
delicada, uma recordação docemente suave. Assim,
Pierre Loti ainda hoje triumpha sobre Zola, apezar do enorme
réclame que antecede sempre a obra do
velho mestre da escola realista.
Ora o livro do sr. Trindade Coelho pertence ao numero d'essas obras
consoladoras, de serenidade e de paz. É um livro sincero,
que prende pela emoção intima, que interessa pela
simplicidade elegante com
[XXXVIII]
que está trabalhado, que
impressiona pela
correcção impecavel do seu estylo, malleavel e
harmonico.
Abre-se o livro e depara-se com o
Idylio rustico,
que é
uma soberba tella, amoravelmente tratada, denunciando logo
ás primeiras
linhas um alto valor artistico, na verdade rigorosa da
observação, na delicadeza suave do colorido, na
simplicidade graciosa dos dois pequenos pastores.
Segue-se-lhe o
Sultão;
e em boa verdade direi que me
parece ser este um dos contos mais formosos do volume, em que pese
ás
opiniões contrarias e até ao proprio auctor, que
não perde
occasião de o depreciar.
Assumpto simples, esse, e todavia absolutamente verosimil. A
descripção da eira, do labutar alegre, da
paizagem e dos personagens d'este
pequeno quadro, são um primor notabilissimo de
execução artistica, de rigorosa e completa
observação.
Ultima dadiva, um episodio commovente, completa a
primeira parte do
livro, a que se segue a
Comedia da provincia,
onde ha preciosos
estudos da vida provinciana; as
Balladas, onde se
depara com o
formoso conto
Para a escola, de um alto valor
litterario;
Arrulhos,
uma esplendida phantasia, etc.
Eis uma ligeira noticia do volume de contos
Os meus amores,
que
tamanho exito conseguiu obter, acordando de surpresa a habitual atonia
do nosso acanhado meio litterario, com os merecidissimos applausos que
lhe foram dispensados.
Dos meritos litterarios de Trindade Coelho fallam mais alto do que a
crítica os seus trabalhos, espalhados em todos os jornaes do
paiz, especialmente no
Portugal, onde escreve
como o pseudonymo de
Ch. A. Verde, e na
Revista Illustrada,
do editor Antonio Maria
Pereira.
É um infatigavel e primoroso jornalista, sabendo dar ao mais
frivolo
assumpto um delicioso relevo litterario, que prende e interessa o
espirito do leitor.―
Luiz Trigueiros.»
Os Gatos:―«Vem
a proposito de historias, fallar, bem sei que
tarde, dos
Meus amores de Trindade Coelho, como
do moderno livro
portuguez que mais juvenilmente fascia o talento de narrar, em
polyedros de multiplices aptidões. Os contos dos
Meus
amores
são pela maior parte uma bagagem de vida academica,
assimilativa (Trindade Coelho, muito novo, findou ha quatro ou cinco
annos o curso juridico) e como tal
sahem da penna do escriptor ainda sem uma
crystallisação homogenea de fórma e de
processo. Porém na sua factura ondeante lê-se o
ascenso d'um espirito buscando a perfeição com
escrupulos d'eleito; de
sorte que o volume até como auto-biographia se insinua, elle
precisando as phases, notulas, e predilecções
litterarias do contista, e emfim,
depois de hesitações, emancipando-o n'um dos mais
delicados microscopistas do
coração, das nossas lettras. Como é
provinciano, provinciano d'aldeia, e
natureza contempladora
[XXXIX]
inda por cima, Trindade Coelho captiva-se
principalmente dos assumptos bucolicos, pequenas scenas de cabana,
tempestades de campanario, pastoraes, vida de povo, e sente-se que o
não
faça por diletantismo de escriptor avocando de
cór dramas lambidos,
senão por esse estro de visão retrospectiva dos
melancholicos
despaizados em terras hostis, e que protestam contra o egoismo
ambiente, recluinde-se no passado, como n'um sanctuario de mumias
adoradas. É a
tendencia geral dos nossos mais modernos narradores, buscarem na vida
dos humildes, especialmente dos campos, materia prima para seus contos
e poemetos. Em
poucos porém a predilecção se
escóra na sinceridade e conhecimento pratico da vida
rustica, e em menos ainda ha perspicacias para uma autopse sagaz da
natureza psychica e moral do camponez. Grande parte
dos que teem posto o povo em scena, contenta-se com recortar-lhe os
andrajos n'um scenario de convenção, e com o
fazer fallar
aos bonequinhos mancos que resultam, aravias mais ou menos inventadas
d'um pictoresco sorna,
em cuja trama não ha vislumbres d'alma regional, de caracter
profissional, d'individualismo typico, ou de paixão. Se
alguma vez tiverem
pachorra, mandem vir a collecção dos contistas
rusticos
portuguezes, e riam á larga das fantasias lorpas que
lá virem. Em dialagos
amorosos ha por exemplo cousas unicas! Cavadores d'aldeia debitam
ás
namoradas protestos de paixão, em linguagem que seria
preciosa até na
bocca d'um pisa-flôres do Martinho e da Havaneza. Ellas, de
lhes retrucar em phrase equivalente, e de se mecherem em scena com os
ademanes que a
Dama das Camelias consagrou na cachimonia dos
auctores, como os mais proprios para mimar o amor que as
enchaquéca.
Em paizagens e descripções d'interior, a mesma
ausencia de detalhe certo e de visão propria, que reduzem
esses quadros, a
méras caganifancias d'aguarellistas amadores. De tal maneira
que o grupo de
campestres a quem a arte confia a
missão de
leccionar aos desregrados
habitantes das cidades, os prazeres simples da vida pastoral, em vez de
persuadirem os
seus leitores, o mais que fazem é pintar-lhes o campo como
uma banal imitação da Rua do Ouro, e o camponez
como uma
arreglo grotesco do alfacinha.
Ora, entre os poucos argutos dedicados a perscrutar a essencia da
paizagem provincial, e a alma do provinciano e do camponio, Trindade
Coelho é dos que mais lucidamente traduzem o seu criterio do
problema, em fórma d'arte, e dos que mais progressivamente
vão crescendo á vista do leitor, que
não mais lhe perderá de vista os
vôos poeticos, e a singular gracilidade ironica dos seus
quadrinhos de genero, colhidos em
prolongadas estações nas duas mais typicas
provincias de Portugal, o Alemtejo e Traz-os-Montes. Ha
assím nos
Meus amores, a par
d'algumas benignas composições representativas da
transição critica do rapaz para o homem, e do
debutante para o laureado, outras de tal guiza iguaes, sobrias,
seguras, que não hesito em as apontar como modelos,
e dentro da minusculeria da sua trama, como verdadeiras e encantadoras
[XL]
obras primas.
Typos da terra e
Preludias
de festa,
por exemplo,
são
duas narrações que mordem fundo a
attenção de quem nas
lê, e que por sua admiravel sobriedade, intuito pictural, e
observação
ridente sobre o vivo, cuido que ficarão modelarmente
apontadas aos collecionadores de
litteratura typica.
Qualquer das peças abrange apenas o folego d'uma ou duas
duzias de paginas, deliciosas porém como factura, admiraveis
de
bonhomia, e d'uma saude moral que faz desejos d'estimar pessoalmente o
seu auctor.
Ahi está effectivamente revelado não
só um talento plastico e bastante rico em cambiantes, como
tambem a pura agua d'um caracter cheio das
mais finas intenções.
Typos da terra
é o
quadro satyrico d'uma má lingua d'aldeia, tendo por club a
porta da tenda, por scenario a
praça publica, e por personagens o pessoal burocratico e
elegante da terriola.
Preludios de festa
é um estimulo de
festeiros preoccupados
de qual fará a festa do orago mais sumptuosamente. Os tons
são leves, os typos rapidos, a
descripção dita a correr, mas no
conjuncto ha um tal equilibrio esthetico, a meia tinta é
tão fluida,
e as intenções ironicas sublinhadas
tão de manso, que se adivinha logo um mestre
miniaturista, Hogarth com laivos de Tenier, raro de sabor entre os
semsaborões que por ahi medram, e certamente fadado a uma
supremacia qualquer no moderno romance portuguez.―
Fialho
d'Almeida.»
Jornal de Santo Thyrso:―«
Os
meus amores.―Foi
penhorante e
commovente para nós a gentilissima offerta que Trindade
Coelho nos fez
do seu adoravel livro de contos, que tem por titulo a epigraphe d'esta
singela
noticia.
O nome de Trindade Coelho era já gloriosamente festejado
quando o brilhante contista frequentava ainda as aulas da Universidade;
hoje, porém, apparece mais radiantemente no seu precioso
livro,
onde a primorosissima fórma se allia com o mais delicado
criterio
d'artista d'
élite e com a fina
observação d'um
talento verdadeiramente superior.
O que deixamos dito é profundamente sentido, que a nossa
humilde e obscura penna não está―seja este o seu
unico
merito!―habituada a vir entregar ao sagrado lume da imprensa os
elogios sandeus que cada dia se
prodigalisam aos mediocres e aos banaes, que se desvanecem entre as
ondas d'esse barato incenso.
Os nossos leitores melhor ajuisarão, em presença
do trecho que lhes offerecemos como mimo de rara valia.»
Diario Illustrado,
(com o retrato do auctor):―«Trindade
Coelho.―N'esta aspera vida das lettras, cortada de tantas amarguras
que ninguem sonha,
ha, entre outras, uma grande e profunda alegria,―que nem a todos
é dado experimentar, accrescente-se.
[XLI]
Essa alegria, sentem-n'a os poucos susceptiveis de comprehendel-a,―na
elevada faculdade de admirar o que se impõe pelo dominador
prestigio do talento ao culto mental, e sobretudo no intimo orgulho de
adivinhar, logo aos primeiros passos, a revelação
de Alguem,
que vae ser unanimemente admirado.
Devo a Trindade Coelho, que figura hoje por direito de conquista na
galeria do nosso jornal, este incomparavel jubilo.
Adivinhei-o (consintam-me esta vaidade) quando poucos o conheciam;
admirei-o, muito antes d'elle trazer á litteratura patria o
livro
Os meus amores, que foi como que a subita
illuminação do seu nome.
Que delicioso livro esse, onde Trindade Coelho nos apparece em toda a
sua inconfundivel originalidade de narrador, em todo o desartificioso
encanto da sua maneira de observar e referir, revendo-se-lhe o
temperamento de artista, impressionavel e vibrante, na fluidez do
estylo, que lhe repercute nitidamente todas as modalidades!...
O campo, que a maioria dos escriptores conhecem superficialmente, de
rapidas excursões alpestres, sem o menor vislumbre de
identificação, vive no livro de Trindade Coelho,
com um singular relevo de verdade,
com um profundo sentimento do natural. «Entre os poucos
argutos
dedicados a perscrutar a essencia da paizagem provincial, e a alma do
provinciano e
do camponio, escreve dos
Meus amores o nosso
grande critico Fialho
d'Almeida, Trindade Coelho é dos que mais lucidamente
traduzem o seu criterio do problema, em fórma de arte, e dos
que mais
progressivamente vão crescendo á vista do leitor,
que
não mais lhe perderá de vista os vôos
poeticos, e a singular gracilidade ironica dos seus
quadrinhos de genero, colhidos em prolongadas
estações nas duas
mais typicas provincias de Portugal, o Alemtejo e
Traz-os-Montes.»
Antes dos
Meus amores, Trindade Coelho
começara a affirmar
a sua poderosa, individualidade em uma secção do
Diario Illustrado,
Cartas alemtejanas,
chronicas expedidas de
Portalegre, em um arranque de talento, com exuberancia de fantasia,
modos de ver e dizer, flagrantemente modernos, traços de
soberbo humorismo
á Vacherai, velados a espaços de um ligeiro fumo
de melancolia, que lhe avivava
a frisante originalidade.
Por esse tempo, o nosso brilhante chronista emprehendeu, no exercicio
das suas funcções de delegado, em Portalegre, a
tarefa humanitaria de arrancar um pseudo-criminoso ao rigor da lei, que
injustamente o condemnara.
E em torno do nome de Trindade Coelho, que emplumava para os largos
vôos, fez-se um côro de
bençãos, como que uma apotheose de amor, que
deverá ter sido na sua vida e para a fina sensibilidade da
sua alma effusiva e enthusiasta, um d'estes supremos jubilos,
superiores a todas
as desditas e inaccessiveis a qualquer desencanto.
Dá-se em Trindade Coelho e nos transcendentes dotes que o
caracterisam e lhe assignalam o ponto culminante em que se evidenceiam,
uma dualidade,
verdadeiramente phenomenal.
[XLII]
É que, sendo elle um artista, na rigorosa
accepção titular da palavra, namorado do ideal,
amando a Arte com religioso fanatismo, vivendo na extatica
adoração de tudo quanto ella sobredoira
do seu brilho immortal, é ao mesmo tempo um funccionario
exemplar, um delegado do
procurador regio, que viu de repente o seu nome respeitado e temido, de
tal sorte Trindade Coelho encarna em si, na austeridade do seu caracter
e no correcto exercicio da sua profissão, toda a perstigiosa
soberania da Lei. Diz ainda Fialho d'Almeida, inteiramente insuspeito,
quando se trata de aquilatar o merito de um auctor:
«Ahi está effectivamente revelado não
só um talento plastico e bastante rico, em cambiantes, como
tambem a pura agua d'um caracter cheio das mais finas
intenções.»
Ás vezes, o magistrado recorda-se do artista e estremece de
saudade nostalgica ou treme de frio... legal.
É então que elle murmura, (perdoa a indiscreta
allusão, meu caro Trindade Coelho?) «Ah! que
apertada gaiola esta, em que vejo
fechado, o meu espirito! O meu trabalho, amo-o porque é o
meu dever.
Mas como eu ando longe, afastado, extraviado... de mim mesmo!
Não faz
idéa, não! Dentro d'esta jaula de ferro, veja! E
là fóra, e
lá em cima―que amplo céo azul para
voar!»
Mas n'esse azul para onde lhe foge o espirito, quantos triumphos ainda
o esperam, meu illustre amigo?―
Guiomar
Torrezão.»
Revista de Portugal:―(Excerpto
de um artigo critico ácerca
do
Só de Antonio
Nobre).―«Alma doente, o sr.
Antonio Nobre soube
extrahir da sua doença effeitos de Arte singulares e
ás vezes
intensos. Outros attingiram o mesmo objectivo pela
descripção das
emoções naturaes e pelo appello aos instinctos
sãos do coração
humano. Acabo de rêler o livro d'um escriptor tambem novo:
Os meus amores de Trindade Coelho. Com casos da
vida corrente e com
sentimentos que podem ser comprehendidos por qualquer dos seus
leitores, uma despedida, a
affeição de dois pastorinhos perdidos na
solidão do campo, os remorsos de um
homicida junto á cruz da sua victima, o amor materno de uma
cabra que
se deixa morrer sobre o cadaver do filho recemnascido, consegue o
narrador interessar e commover vivamente o espirito de quem o acompanha
atravez d'essas duzentas paginas impregnadas dos succos da terra e do
suor dos lavradores. Demonstração cabal de que a
Arte
é vasta e a capacidade pessoal decisiva para a belleza das
obras.―
Moniz Barreto.»
Da Vid'Airada:
«Trindade Coelho.―Uma vez na sua frente, face
a face, olhando-o bem, medindo-o d'alto a baixo,―o que não
seria
difficil mesmo no caso de que a medida dos homens se tirasse a
palmos―fixando o olhar
no seu olhar, e não perdendo uma só das suas
palavras na mais simples conversa de algum quarto de hora,―ao
separar-se elle de
nós, porque
[XLIII]
já então a gente
não se atreve a separar-se d'elle,
tem-se adquirido a certeza de que aquillo é o que
é, e chegado
á mais solida convicção de que toda a
verdade, toda a sinceridade de um temperamento e de um
coração de homem, nunca se manifestaram mais
expressivamente, mais insubmissas ao menor proposito do menor disfarce,
do que na sua physionomia bem aberta, illuminada em cheio pelo brilho
intensíssimo do seu olhar muito limpido, muito penetrante,
se expressam toda a sinceridade, toda a verdade do seu grande
coração
e do seu impetuoso temperamento.
E ao vel-o partir pela rua fóra, decidido e tezo, resoluto e
rijo, a cabeça alta, assentando com firmeza o pé
pequeno,
despejando caminho que dá gosto vel-o, não
resistem os olhos ao desejo
de acompanhal-o de longe, até que o percam na dobra da
primeira esquina, e a
gente diz ou pensa:―«Demonio!... Com meia duzia assim,
poderia fazer-se
alguma coisa ainda!...»
Porque no meio d'esta especie de contagio, que os perversos e as suas
perversões vão espalhando em redor de si, fazendo
estremecer os honestos quando com elles se cruzam, e tentando para o
mal os fracos quando passam―só a presença de
homens bons e
sãos poderá melhorar este sólo e
purificar esta atmosphera.
Na travessia dos dois mundos diversos a que este homem dedicou a viagem
da sua vida,―o mundo litterario e o mundo judicial―affigura-se-me
elle, talvez, como um antípoda de si mesmo, ora imprimindo o
indelevel cunho da sua vigorosa e honesta individualidade em preciosos
documentos
para a dilacerante historia pathologica da sociedade portugueza n'este
agonisar de seculo, quando aponta o implacavel index do Ministerio
Publico contra os altos reus de certas causas celebres,―ora imprimindo
n'algumas obras de pura arte litteraria, em que a elegancia da
fórma é posta sempre ao serviço das
emoções
mais dôces e das mais penetrantes, esse outro cunho, d'essa
outra individualidade que n'elle ha, e
tão diversa é, tão original e
tão rara,
tão comtemplativa e tão terna.
...Sim! toda a verdade, e toda a sinceridade do seu grande
coração e do seu impetuoso temperamento!
No tribunal, quando articule algum libello accusatorio em que as suas
palavras se não limitam ao cumprimento do dever de officio,
não tardará que á serena
exposição dos primeiros
articulados succeda a expressão calorosa, indomita, sempre
crescente, da
indignação, e da colera, que lhe provocam e
açulam os factos e as razões de
que vae deduzindo a tremenda accusação contra o
réo―...esse réo que alli está, alli!
sentado n'aquelle banco, sentenciado já, e de grilheta aos
pés! Agita-se-lhe a circulação do
sangue, a
respiração accelera-se, a face ruborisa-se, todas
as veias do pescoço e fronte se
distendem, o peito enche, as narinas dilatam-se, tremem, fumegam... A
excitação do cerebro vigorisa-lhe os musculos,
affirma-lhe a energia, parece transportal-o
ao imperio da força,
[XLIV]
n'um arrebatamento em que os dentes
rangem, e as unhas se crispam, punhos cerrados, braços
erguidos, completamente
desordenado a frenetico!... A voz, sempre vibrante, chega a parar-lhe
na garganta, quasi ronca, vociferando, em discordancias agudas que veem
ferir de arripios a espinha dorsal do auditorio... Já
não
é para a justiça dos homens que elle appella;
não lhe bastam, não o
saciam as penas maximas dos Codigos! Quer o castigo do Céo,
quer a
justiça de Deus!
...O que não tira, ainda assim, que resgatasse da morte
civil, bem peor que a morte natural, um desgraçado que a
cegueira da
justiça humana havia condemnado por assassino e
ladrão―o pobre Manuel
Barradas. Muito commentou a imprensa o facto, espantada de que um
agente do Ministerio Publico, um feroz accusador, empenhasse dois annos
agoniados da sua
vida em apurar uma innocencia... Trindade conserva, encadernada, a
collecção desses jornaes, e legou-a em vida ao
filho, ao Henrique, pondo-lhe no principio estas palavras:
«Meu filho, pela lei de Deus, a
vida é só um pretexto para boas obras. Observei
um dia a lei do Senhor, e Elle, em premio da minha obediencia,
concedeu-me o poder legar-te um
pedaço vivo do meu coração. Queres
ouvil-o bater? Ausculta
essas folhas... Bemdito seja Deus! serão ainda minhas as
tuas lagrimas enternecidas,
e, ainda depois de morto, viverei na tua commoção
e na tua
alegria, para a commoção e para a alegria da
minha
obra...»
Mas passa a tempestade, e volvido o bom tempo, que singular contraste
nos offerece a outra phase d'esse mesmo espirito, quando o vulto
austero do magistrado, cedendo o logar á delicada
individualidade do
homem de lettras, o desembaraça da toga e o deixa que
vá,
em mangas de camisa, muito á vontade e á fresca,
pelas tardes serenas
do seu bom humor, a vaguear pelos campos do seu sonho―sonho feito de
saudade, d'essa muito
viva e muito affectuosa ternura que á sua alma de artista
dá, e que a sua prosa tão sentidamente traduz, a
recordação de felizes tempos que não
voltam mais, e que por isso mesmo nunca mais
esquecem,―recordação a que andam para sempre
ligados, n'uma doce e meiga
associação de ideias, certos logares, certas
pessoas, certas orações,
certa ermidinha e certo olmo, que já lá estavam
quando elle nasceu, que o
embalaram nos primeiros somnos e lhe deram amparo nos primeiros passos;
que ao baptismo o levaram, e o conduziram á escola;
alegrando-se
com as suas alegrias, entristecendo-se com as suas lagrimas...
N'esses momentos, sob o dominio d'esse lindo sonho, inundado do luar da
sua terra, desannuvia-se-lhe o rosto, alisa-se-lhe a fronte,
vê-se pousar-lhe nos beiços e nas palpebras a
serenidade meiga de
um sorriso, como que o doce agradecimento á alma de sua
mãe,
que tivesse vindo, muito devagarinho, muito devagarinho, abeirar-lhe o
leito, aconchegar-lhe a roupa, e pousar-lhe nos olhos e nos labios a
amorosa caricia dos seus beijos...
Por isso, a musica do seu estylo produz sobre a nossa sensibilidade
[XLV]
essas emoções e excitações
violentas, em que a tremura dos musculos e a effusão das
lagrimas realisam o phenomeno das
emoções reaes.
Os seus escriptos obedecem sempre á logica influencia d'esta
convicção em que elle está, quando me
diz, bem medindo e pezando cada
uma das suas palavras:
―«Positivamente, meu amigo, o publico deseja, antes de mais
nada, que o escriptor preste na sua obra o culto que é
devido
á sua lingua. Depois, deseja que o commovam, que honesta e
consoladoramente o emocionem, preferindo que o assumpto do quadro seja
a
exploração das coisas triviaes da vida,
certamente porque reside no Simples a formula mais natural da
Verdade... Comprehendo que o espirito dos que lêem
está fatigado d'essa confusão do
romance com o
estudo, e
convenci-me, emfim, de que a obra d'arte litteraria tem, como primeiro
dever, e como
condição primeira de agrado, de ser consoladora e
suave, tocada sempre de uma pontinha ligeira de poesia que
vá direita ao
coração e entretenha, em quem lê, as
faculdades emotivas, de
preferencia, mesmo, ás faculdades
intellectuaes...»
Releio
Os meus amores, o livro dos seus contos.
É o
primeiro d'elles,
Idylio rustico, de uma
deliciosa simplicidade de
aguarella, parece
que feito sobre um esbatido de céo purissimo, côr
de
sovaco de andorinha e não sei com que singular sabor
eucharistico de primeira
communhão... É um sonho de absynto, que serve de
aperitivo divino para a leitura soffrega de todo o livro. Dois
pastoritos ingenuos, a Rosaria e o Gonçalo, encontram-se e
approximam-se, n'uma indecisa
alvorada de derriço, cheios de boas
tenções e
puros ideaes. Acontece, porém, que por viverem longe, raras
vezes se falam, e quando essa ventura lhes
é dada, imaginem os que como elles se amem a alegria que
inunda aquellas duas almas! D'uma vez, passada alguma d'essas ausencias
longas, quiz Deus
que os dois inesperadamente se topassem, pela madrugada, quando iam
levando
seus rebanhos ao pasto. Logo combinaram juntarem-se as ovelhas, como
juntos os corações traziam, e desde que nasce o
sol até que o sol se põe, vagueam nas frescuras
marginaes do rio, a par, e
sós, elle dedilhando a flauta, ella recordando cantigas, com
murmurios d'agua correndo, e ballidos suaves dos lanigeros, n'uma paz
d'alma idylica de illuminura. E quando a noite chega, porque lhes custe
immenso a separação, o Gonçalo a
convida a
continuarem juntos, deixando que as ovelhas durmam em mistura e que
passem elles a noitada sobre o mesmo colmo, ao abrigo da mesma cabana.
Não sem certa instinctiva
reluctancia, Rosaria acceita; e como se deitem ao lado um do outro,
tornando as mantas cobertor commum, e pousando as cabeças
nos bornaes
unidos, parecer-vos-ha, como a mim pareceu, que ali rompem os beijos
desmedidos... Nada d'isso, perversos! A pouco e pouco vae escurecendo,
e os bons dos namorados, n'uma placida
orchestração
final que se smorza, referem-se casos de moiras encantadas, e assim
pegam no somno e adormecem... Tem a gente remorsos do que foi julgar:
sente a tristeza
da maldade nossa.
[XLVI]
Depois, depois os outros, que seguem pelo livro fóra, e que
vamos bisando e saboreando a pequeninos gólos, durante
algumas
horas bem fugidas, passeadas por aquellas paizagens e recantos
provincianos que elle nos pinta, tão real e verdadeiramente
como se
lá estivessemos; em companhia d'aquelles typos que elle
retrata, tão
photographicos, tão nitidos, que é estar a gente
a vel-os, a ouvil-os, a
falar-lhes, a deitar-lhes o braço pelo hombro...
Antes dos seus contos nunca a prosa portugueza me havia dado, posta ao
serviço da moderna arte, o ineffavel goso de tão
estranhas, tão novas, tão encantadoras surprezas!
Quizera eu, inedita, bem fresca,
pela primeira vez usada a respeito da sua escripta, esta flagrante
comparação:―dir-se-ia traçada com uma
penna d'aguia... arrancada d'uma aza de pomba.
Os seus livros ficarão pertencendo ao numero d'aquelles que
parecem possuir o raro condão de nunca envelhecerem no
espirito de
quem os lê. Relêr o que elle escreve é
sentir o mesmo prazer,
sempre renovado, de quando se contempla pela centesima vez algum
querido, precioso objecto,
que noventa e nove vezes se contemplara já: privilegio esse
de eterna seducção, que só disfructam
as obras
em que o artista deixou pedaços da sua alma.―
Alfredo
Mesquita.»
Do Poema do Ideal:
Os meus amores!
que livro
Tão fragante e
saboroso!
Scentelhas aureas e vivas,
D'um prosador luminoso!
Brisas da serra!
Trechos idylicos
Da nossa terra!»
Fernandes Casta.