Title: Os fidalgos da Casa Mourisca
Author: Júlio Dinis
Release date: August 4, 2005 [eBook #16428]
Most recently updated: December 12, 2020
Language: Portuguese
Credits: Produced by Biblioteca Nacional Digital (http://bnd.bn.pt), Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net
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Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at https://www.pgdp.net
TYPOGRAPHIA DO JORNAL DO PORTO
Rua Ferreira Borges, 31
1871
A tradição popular em Portugal, nos assumptos de historia patria, não se remonta além do periodo da dominação arabe nas Hespanhas.
Pouco ou nada sabe o povo de celtiberos, de romanos e de wisigodos. É, porém, entre elle noção corrente que, em outros tempos, fôra este paiz habitado por mouros, e que só á força de cutiladas e de botes de lança os expulsaram os christãos para as terras da Mourama. Os vultos heroicos de reis e cavalleiros nossos, que se assignalaram nas luctas d'essa época, ainda não desappareceram das chronicas oraes, onde vivem illuminados por a mesma poetica luz das xacaras e dos romances nacionaes; e hoje ainda, nas dansas e jogos que se celebram nos logares publicos das villas e aldeias, por occasião das principaes solemnidades do anno, apraz-se a memoria do povo de recordar os feitos d'aquelles tempos historicos por meio de simulados combates de mouros e christãos.
Nos contos narrados em volta da lareira, onde nas longas noites de serão se reune a familia rustica, ou ás rapidas horas d'uma noite de estio, na soleira da porta, ao auditorio attento que segue com os olhos a lua em silenciosa carreira por um céo sem estrellas, avulta uma creação extremamente sympathica, a das mouras encantadas, princezas formosissimas que ficaram d'esses remotos tempos na peninsula, em paços invisiveis, á espera de quem lhes venha quebrar o captiveiro, soltando a palavra magica.
Falla-se em diversos pontos das nossas provincias, com a seriedade que é propria a uma arreigada crença, de thesouros enterrados, que os mouros por ahi deixaram, na esperança de voltarem um dia a resgatal-os, e já não tem sido poucas as escavações emprehendidas no ávido intuito de os descobrir.
Esta mesma noção historica do povo é a que dá logar a um outro frequente facto. Quando, no centro de qualquer aldeia, se eleva um palacio, um solar de familia, distincto dos edificios communs por uma qualquer particularidade architectonica mais saliente, ouvireis no sitio designal-o por o nome de Casa Mourisca, e, se não se guarda ahi memoria da sua fundação, a chronica lhe assignará infallivelmente como data a lendaria e mysteriosa época dos mouros.
Era o que succedia com o solar dos senhores Negrões de Villar de Corvos, que, em tres leguas em redondo, eram por isso conhecidos pelo nome dos Fidalgos da Casa Mourisca.
Não se persuada o leitor de que possuia aquelle solar feição pronunciadamente arabe, que justificasse a denominação popular, ou que mãos agarenas houvessem de feito cimentado os alicerces da casa nobre denominada assim. Ás pequenas torres quadradas, que se erguiam, coroadas de ameias, nos quatro angulos do edificio, ao desenho ogival das portas e janellas, ás estreitas setteiras abertas nos muros, e finalmente a certo ar de castello feudal, que um dos antepassados d'esta fidalga familia tentou dar aos paços de sua residencia senhoril, devêra ella a qualificação de mourisca, que persistira, apesar dos protestos da arte. Nenhum estylo architectonico fôra na construcção escrupulosamente respeitado; o gosto e capricho do proprietario presidiram mais que tudo á traça e execução da obra; não ha pois exigencias artisticas que me imponham a obrigação de descrevel-a miudamente.
Diga-se porém a verdade; fossem quaes fossem os defeitos de architectura, as incongruencias e absurdos d'aquella fabrica grandiosa, quem, ao dobrar a ultima curva da estrada irregular por onde se vinha á aldeia, via surgir de repente do seio de um arvoredo secular aquelle vulto escuro e sombrio, contrastando com os brancos e risonhos casaes disseminados por entre a verdura das collinas proximas, mal podia reter uma exclamação de surpreza e involuntariamente parava a contemplal-o.
Ou o sol no poente lhe doirasse a fachada de granito, ou as ameias, que o coroavam, se desenhassem como negra dentadura no céo azul, alumiado pela claridade matinal, era sempre melancolico e triste o aspecto d'aquella residencia, sempre magestoso e severo.
Reparando mais attentamente, outros motivos concorriam ainda para fortalecer esta primeira impressão. O tempo não se limitára a colorir o velho solar com as tintas negras da sua palheta; derrocára-lhe aqui e além uma ameia ou um balaustre do eirado, mutilára-lhe a cruz da capella, desconjunctára-lhe a cantaria em extensos lanços de muro, abrindo-lhe intersticios, d'onde irrompia uma inutil vegetação parasita: e esta permanencia de estragos, trahindo a incuria ou a insufficiencia de meios do proprietario actual, iniciava no espirito do observador uma serie de melancolicas reflexões.
E se o movesse a curiosidade a indagar na visinhança informações sobre a familia que alli habitava, obtel-as-ia proprias a corroborar-lhe os seus primeiros e espontaneos juizos.
Os chamados Fidalgos da Casa Mourisca eram actualmente tres. D. Luiz, o pae, velho sexagenario, grave, severo, e taciturno; Jorge e Mauricio, os seus dois filhos, robustos e esbeltos rapazes: o mais velho dos quaes, Jorge, ainda não completára vinte e tres annos.
A historia d'aquella casa era a historia sabida dos ricos fidalgos da provincia, que, orgulhosos e imprevidentes, deixaram, a pouco e pouco, embaraçar as propriedades com hypothecas e contractos ruinosos, desfallecer a cultura nos campos, empobrecer os celleiros, despovoar os curraes, exhaurir a seiva da terra, transformar longas varzeas em charnecas, e desmoronarem-se as paredes das residencias e das granjas e os muros de circunscripção das quintas.
Filho segundo de uma das mais nobres familias da provincia, D. Luiz fôra pelos paes destinado para a carreira diplomatica, na qual entrou apadrinhado e favorecido por os mais altos personagens da côrte.
Nas primeiras capitaes da Europa, em cujas embaixadas serviu, obteve o fidalgo provinciano um grau de illustração e de tracto do mundo, um verniz social, que nunca adquiriria se, como tantos, de moço se creasse para morgado.
Quando, por morte do primogenito, veio a succeder nos vinculos, D. Luiz podia considerar-se, graças á occupação dos seus primeiros annos de mocidade, como o mais instruido e civilisado proprietario da sua provincia; e como tal effectivamente foi sempre havido pelos outros, que o tractavam com uma deferencia excepcional.
Ainda depois da morte do irmão, D. Luiz, costumado ao viver da grande sociedade e á esplendida elegancia das côrtes estrangeiras, não abandonou a carreira que encetára. Secretario de embaixada em Vienna, casou alli com a filha de um fidalgo portuguez, que então residia n'essa corte, encarregado de negocios politicos.
Ao manifestarem-se em Portugal os primeiros symptomas da profunda revolução, que devia alterar a face social do paiz, D. Luiz mostrou-se logo hostil ao movimento nascente, e abandonando então o seu logar diplomatico, voltou ao reino para representar um papel importante nas scenas politicas d'essa época.
Ahi tiveram origem grande parte dos desgostos domesticos, que lhe amarguraram o resto da vida.
Os parentes de sua esposa abraçaram a causa liberal.
D. Luiz, com toda a intolerancia partidaria, rompeu completamente as relações com elles, ferindo assim no intimo os affectos mais sanctos da pobre senhora, que sentia esmagar-se-lhe o coração entre as fortes e irreconciliaveis paixões dos que ella com igual affecto amava.
O rancor faccioso foi ainda mais longe em D. Luiz. Impelliu-o á perseguição.
O irmão mais novo da esposa, obedecendo ao enthusiasmo de rapaz e á vehemencia de uma convicção sincera, sustentára com a penna, e mais tarde com a espada, a causa da ideia nova, que tanto namorava os animos generosos e juvenis.
Sobre a bella e arrojada cabeça d'aquelle adolescente pesaram as sombras das suspeitas e das vinganças politicas; e D. Luiz, cego pela paixão, não duvidou em fazer-se instrumento d'ellas.
Este era o irmão querido da esposa, que o fidalgo estremecia; mas nem as supplicas, nem as lagrimas d'ella puderam abrandar a força d'aquelle rancor.
O imprudente moço viu-se perseguido, prêso, processado e em quasi imminente risco de expiar, como tantos, no supplicio o crime de pensar livremente. Conseguindo, quasi por milagre, escapar á furia dos seus perseguidores, emigrou para voltar mais tarde n'essa memoranda expedição, que principiou em Portugal a heroica iliada da nossa emancipação politica.
Guerreiro tão fogoso, como o fôra publicista, o pobre rapaz não assistiu porém á victoria da sua causa. Ao raiar da aurora liberal, por que tanto anhelava, cahiu em uma das ultimas e mais disputadas refregas d'aquella sanguinolenta lucta, crivado de balas inimigas, sendo a sua ultima voz um grito de enthusiasmo pela grande ideia, em cujo martyrologio se ia inscrever o seu nome.
A morte d'este enthusiasta levou o lucto e a tristeza ao solar de D. Luiz. O coração amoravel e extremoso da infeliz senhora recebeu então um golpe decisivo; das consequencias d'aquella dôr nunca mais podia ella convalescer. A sua vida foi depois toda para luto e para lagrimas.
Fez-se a paz, implantou-se no paiz a arvore da liberdade; D. Luiz deixou então a vida da côrte e veio encerrar no canto da provincia os seus despeitos, os seus odios e os seus desalentos. Trouxe comsigo um enxame de misanthropos, a quem o sol da liberdade igualmente incommodava, e que tinham resolvido pedir á natureza conforto contra os suppostos delictos da humanidade.
O solar do fidalgo transformou-se pois em asylo de muitos correligionarios, como elle desgostosos e irreconciliaveis com a nova organisação social.
Instituiu-se alli uma pequena côrte na aldeia, uma especie de assembleia ou conventiculo politico, que não poucas vezes attrahiu as vistas dos liberaes desconfiados e as ameaças dos mais insoffridos. Havia alli homens de todas as condições, e alguns de illustração e sciencia.
A hospitalidade do fidalgo era magnifica. D. Luiz mostrava ignorar, ou não querer saber, qual o preço por que ella lhe ficava. Indifferente a tudo, dir-se-ia sêl-o tambem á ruina da sua propria casa, que apressava assim.
A victoria da causa contraria; a morte, em curtos intervallos, de tres filhos, que parecia cahirem victimas de uma sentença fatal; o receio pela vida dos outros; a tristeza e doença progressivas da esposa, a quem aquelles odios e luctas tinham despedaçado o coração; ás vezes uma vaga consciencia da sua situação precaria, e por ventura ainda remorsos pelas violencias, a que os odios politicos o impelliram, quebrantaram o caracter, outr'ora varonil, d'aquelle homem, que desde então começou a mostrar-se taciturno e descoroçoado. A prova evidente de que alguns remorsos tambem lhe torturavam o espirito fôra a insolita generosidade, com que recebeu e gasalhou permanentemente em sua casa um pobre soldado do exercito liberal, meio mutilado pela guerra d'esses tempos, e que tinha sido o fiel camarada do infeliz mancebo, contra quem tanto se encarniçára o odio do implacavel realista.
Viera o soldado entregar á esposa do fidalgo uma medalha, ultima lembrança do irmão que lh'a enviára, quando já agonisante no campo do combate. Havia-a confiado ao camarada para que a entregasse áquella, a quem tanto queria.
D. Luiz não só permittiu que o soldado fizesse a entrega em mão propria da esposa, mas deixou-o com ella em larga conferencia, não querendo que a sua presença a reprimisse na ancia natural de saber as menores particularidades da vida e da morte do infeliz, de quem o emissario fôra companheiro inseparavel. Não se limitou a isso a tolerancia do fidalgo. Viu, sem a menor reflexão, que o mensageiro se demorava alguns dias na Casa Mourisca, e não oppôz resistencia alguma ao pedido, que a esposa mais tarde lhe fez para que o deixasse ficar alli, no logar do hortelão que fallecêra.
Este facto insignificante foi de não pequena influencia nos destinos d'aquella familia.
Os filhos de D. Luiz, creados no meio d'essa côrte de provincia, cresciam sob influencias que actuavam d'uma maneira contradictoria sobre os seus caracteres infantis.
Não lhes faltavam mestres que os instruissem, que muitos eram os habilitados para isso nas salas do fidalgo, refugio de tantos illustres descontentes. Graças a estas especiaes condições, puderam os dois rapazes receber uma educação, difficil de conseguir em um canto tão retirado da provincia, como aquelle era.
Mas, ao lado da lição dos mestres, que, juntamente com a sciencia, se esforçavam por imbuir-lhes os seus principios politicos, aos quaes se atinham como a artigos de fé, havia uma outra lição mais obscura, mas por ventura mais efficaz. Era a lição da mãe e a do veterano.
A esposa de D. Luiz era uma senhora de esmeradissima educação e de um profundo bom senso. Amava o marido, mas via com pezar os excessos, a que o impelliam as suas opiniões politicas. Educada no seio de uma familia liberal, possuia sentimentos favoraveis ás ideias novas; mas sabia guardal-os no coração, para não despertar conflictos na familia.
Porém, no tracto intimo entre mãe e filhos, trahia-se muita vez essa prudente discrição, e as fidalgas crianças iam recebendo a doutrina, de que os outros lhes blasphemavam como de heresias, e naturalmente, seduzidas pela origem d'onde ella lhes vinha, abriam-lhe de melhor vontade o coração, do que aos preceitos austeros e um pouco pedantescos dos mestres.
Demais, ouviam tantas vezes a mãe fallar-lhes do irmão que perdêra, dos seus sentimentos generosos, do seu nobre caracter e da sua dedicação heroica a bem da causa liberal, que elles, e o mais velho sobre tudo, costumaram-se a venerar a memoria do tio, como a de um heroe e a de um martyr e a vêl-o aureolado de um verdadeiro prestigio lendario.
Para isto porém concorreu mais que outrem o hortelão.
O velho soldado era uma chronica viva das batalhas e façanhas d'aquelles tempos historicos e um panegyrista ardente do seu pobre official, cujo ultimo suspiro recolhêra.
As crianças sentiam-se instinctivamente attrahidas para a companhia do velho, em cujas narrações pintorescas e vivamente coloridas achavam um encanto irresistivel. Feria-lhes fundo a curiosidade a maneira por que elle fallava dos trabalhos da emigração, dos episodios do cerco do Porto, da fome, da peste e da guerra, triplice calamidade que conhecêra de perto, das batalhas em que havia entrado, da bravura do seu amo, e finalmente do Imperador, por quem o mutilado veterano professava um enthusiasmo quasi supersticioso, e a cujo vulto a sua narrativa imaginosa dava um aspecto epico e sobrenatural.
As crianças não se fartavam de interrogar aquella testemunha presencial de tantos feitos heroicos.
E assim eram neutralisadas as doutrinas dos pedagogos eruditos, encarregados da educação dos filhos de D. Luiz, e estes iam crescendo affeiçoados aos principios liberaes, que amavam de instincto, antes de os amarem de reflexão.
Mas dias de maior provação estavam reservados para esta familia.
A munificencia que o senhor da Casa Mourisca mantivera no voluntario desterro, a que se condemnou, obrigára-o a enormes e perigosos sacrificios.
D. Luiz nunca propriamente se occupára da gerencia dos seus bens. Fiel aos habitos aristocraticos dos seus maiores, deixára desde muito a procuradores todos os cuidados de administração, e de quando em quando recebia d'elles a noticia de que a sua casa se estava perdendo, sem que se lembrasse de perguntar a si proprio se não seria possivel oppôr um obstaculo áquella ruina.
O padre Januario, ou frei Januario dos Anjos, velho egresso, homem de letras gordas, que se estabelecêra commodamente n'aquella acastellada residencia, como em casa sua, era um d'esses procuradores.
Faça-se justiça ao padre, que não era de má fé, nem em proveito proprio, que elle apressava, com mão poderosa, a decadencia de D. Luiz. Mas, homem de curtas faculdades e de nenhum expediente financeiro, se obtinha capitaes para o seu constituinte, nas crises mais apertadas, era sempre sob condições de tal natureza, que deixava de cada vez mais onerada a propriedade e mais irremediavel o triste futuro d'ella. Succedeu pois o que era de esperar. Dispersou-se a côrte de D. Luiz. Por muito que fizessem os administradores da casa para a manter no costumado esplendor, cêdo principiaram a transparecer os signaes da declinação. Foi o aviso para a debandada. Uns porque delicadamente comprehenderam que a sua permanencia concorreria para augmentar as difficuldades, com que o fidalgo já luctava; outros, porque aspiravam melhores auras, longe d'alli, em solares menos estremecidos pelo vaivem da adversidade; é certo que todos se foram retirando, a um por um, e deixaram a familia só.
Augmentou com este isolamento a taciturnidade do fidalgo.
Depois veio a doença e a morte da esposa, d'aquella que lhe tinha sido tão fiel amiga, que, para lhe poupar desgostos, até escondia as lagrimas, que elle lhe fazia verter; veio essa nova dôr atribular-lhe ainda mais a existencia. E ainda não haviam acabado as provações! No fundo do calice estavam ainda depositadas as gotas mais amargas.
D. Luiz tinha por esses tempos uma filha, mimoso legado da esposa, cuja missão consoladora continuava no mundo. Queria-lhe muito o pae! Se não havia de querer! O coração árido d'aquelle velho e o tenro coração d'aquella criança procuravam-se, como para um pelo outro se completarem.
O velho fidalgo, concentrado e quasi rispido para com os outros filhos, se alguma vez teve nos labios sorrisos desanuviados e sinceros, foi na presença da sua Beatriz. Aquelle desgraçado coração, vazio de affectos, queimado de odios e de paixões esterilisadoras, sentia um grato refrigerio em deixar-se penetrar do suave influxo das caricias da criança, que beijava as faces rugosas do pae e lhe brincava com os cabellos prateados; e muitas vezes, n'esses momentos, lagrimas de desafogo dissipavam a cerração que ia na alma d'aquelle homem, que com tanta força sabia odiar.
E não era só o pae que experimentava essa influencia.
Jorge, que de pequeno fôra pensativo e serio, sentia-se tomar por a bondade e ternura de Beatriz. Criança ainda, tinha ella, quando a sós com o irmão, um olhar penetrante e um gesto grave como o d'elle, um espirito para communicar á vontade com o seu. Ella parecia comprehender o alcance do auxilio que poderia receber um dia d'aquelle rapaz sisudo, que a fitava, e elle sentia-se engrandecer aos proprios olhos, lembrando-se de que seria sua missão na vida proteger aquelle anjo.
Mauricio, genio mais impetuoso e impaciente, dobrava tambem a vontade a um aceno da fragil e delicada creatura, em quem um estouvamento seu desafiava lagrimas. E estas lagrimas eram a unica repressão que o continham nos desvarios.
Pois até n'esta filha feriu o Senhor o pobre ancião.
Criança mimosa, colheu-a um sopro da morte, ainda com o sorriso nos labios, e prostrou-a exanime no tumulo.
Fez-se então devéras escuro no espirito do pae.
Quando aquella pequena fada domestica desappareceu, como uma visão vaporosa em contos de magia, foi como que se todos ficassem em trevas. A vida era tão outra! O ente que absorvia os instantes d'aquelles tres homens, a quem todos tres tributavam os seus mais puros affectos e os seus pensamentos mais constantes, desapparecêra, e elles olhavam-se assustados, meio loucos, como se de subito se lhes tivesse apagado a luz que os alumiava; sentiam a indecisão do homem, a quem no meio da estrada fulmina inesperada cegueira.
Passada a violencia da primeira dôr, em todos ficou a saudade, negra e concentrada em D. Luiz, melancolica em Jorge, expansiva e vehemente em Mauricio; e para todos o nome de Beatriz, a recordação dos seus gestos, das suas palavras, era um talisman, cuja efficacia nunca se desmentia. A alma d'aquelle anjo assistia ainda á familia, que o chorava, e á sua mysteriosa direcção obedeciam todos, sem o perceberem.
Morta aos dezeseis annos, Beatriz vivia ainda nos logares que habitava.
Ha entes assim, cuja influencia posthuma lhes dá uma quasi immortalidade, á maneira da luz sideral, que continua a scintillar para nós, depois de aniquilado o fóco que a emittia.
O padre Januario tornou-se desde então a creatura indispensavel, e a companhia exclusiva de D. Luiz, que via n'elle o unico representante da sua antiga côrte.
Acerrimo partidario do regimen absoluto, apesar de lhe não ser possivel enfeixar dois argumentos serios em defeza d'elle, o padre Januario passava a vida aproveitando os mais ridiculos ensejos para premissas dos seus corollarios anti-liberaes, artificio com que lisongeava as paixões do seu illustre amo e patrono, e mantinha n'elle o fogo sagrado.
O padre achava-se bem n'aquella vida monotona, que exercia sobre si os mais notaveis effeitos analepticos. Podia dizer-se que elle dividia alli o tempo entre duas occupações exclusivas: comer e esperar com impaciencia as horas da comida.
Uma unica circumstancia assombrava os dias do padre. Era a presença na Casa Mourisca do hortelão, em quem fallamos, e que mantinha com elle uma aberta hostilidade. Frei Januario exasperava-se sempre que o ouvia fallar no Imperador e no Cerco e nos Voluntarios da Rainha e na Carta, com o enthusiasmo e a emphase de um soldado d'aquelles tempos. Por vezes rompiam ambos em scenas violentas; por vezes o capellão ia aconselhar ao fidalgo a demissão d'aquelle homem, que ameaçava infectar de liberalismo a familia inteira.
D. Luiz porém, apesar de nunca fallar com o hortelão, não attendia n'estas reclamações o padre. Conservando no seu serviço o veterano, satisfazia a um pedido da esposa, e não teria coragem para fazer o contrario. Assim perpetuavam-se os conflictos entre os dois, porque nem o procurador supportava as rudes franquezas do soldado, nem este os remoques encapotados do procurador.
Tal era a situação da familia da Casa Mourisca na época em que vae procural-a a nossa narração.
Já se vê quão mal assegurado andava o futuro dos dois jovens filhos de D. Luiz. A educação que elles haviam recebido não tendêra a fim algum prático.
D. Luiz não podia soffrer a ideia de dar a seus filhos uma profissão. A nobre carreira das armas, que mais lhes conviria, estava-lhes fechada pelas ultimas evoluções politicas. Os descendentes dos ultra-monarchicos Negrões de Villar de Corvos não eram para se assalariarem em defeza dos principios e das instituições que abalaram os velhos thronos, firmados no direito divino. Nobre era tambem a carreira ecclesiastica, que muitos dos seus antepassados haviam trilhado, apoiados no baculo episcopal; mas se D. Luiz estava persuadido de que já não havia religião n'este territorio de antigos crentes? e se frei Januario teimava, ensinado pelo mallogro de longas pretenções ás honras de umas meias vermelhas, que só se adiantava nas phalanges do clero quem fosse pedreiro livre!
Assim pois os jovens descendentes do velho realista passavam o tempo cavalgando e caçando nas immediações, e fruindo em sancto ocio uma vida, cujos espinhos todos procuravam occultar-lhes. Caminhavam por estrada de rosas para um fundo precipicio, d'onde lhes desviavam as vistas.
Deve porém dizer-se que não caminhavam ambos igualmente desprevenidos; porque de criança era diverso o caracter dos dois, e de dia para dia mais a differença se pronunciava.
Jorge, na infancia como na juventude, fôra sempre grave e reflectido. Nos brinquedos tomava para si o desempenho de um papel serio. Era o pae, o mestre, o commandante, o medico, o padre, tudo aquillo que o obrigasse a um porte sisudo e a uma gravidade de homem. Adolescente, nunca as raparigas do logar lhe ouviram uma phrase atrevida; era sempre uma saudação affectuosa, casta e quasi paternal a que lhes dirigia, ainda quando as encontrasse a sós nas veredas mais solitarias das devezas ou pinheiraes. Ellas habituaram-se áquella juvenil seriedade, saudavam-n'o como a um velho, fallavam d'elle com acatamento, certas de encontrarem n'aquelle silencioso rapaz um protector na occasião precisa, mas nunca um namorado. E comtudo a figura esbelta de Jorge, a varonil e intelligente expressão d'aquelle rosto bem desenhado e um certo fulgor no olhar, que denunciava energia de caracter, obrigavam a desviar-se para o vêr mais de um olhar feminino, quando elle passava com um livro debaixo do braço ou a cavallo pelos caminhos do campo.
As pessoas da indole de Jorge impoem uma especie de estranho temor ás mulheres, que se afastam d'ellas como de um ser mysterioso, d'onde lhes podem vir perigos desconhecidos.
Mauricio, pelo contrario, mal podia dizer de que idade encetára o seu primeiro amor. Com os brinquedos pueris misturára já uns arremedos de galanteio e mais o competente cortejo de arrufos e de ciumes. Desde então nunca lhe andou o coração devoluto, ainda que tambem nunca tão tomado e absorvido por amores, que o fizesse passar por qualquer belleza feminina, sem uma lisonja e sem um sorriso.
Era popularissimo entre as raparigas da aldeia; todas o conheciam, e elle a todas designava por os nomes. A todas não, que para as feias tinha uma memoria ingrata.
Além d'isso Jorge gastava muito do seu tempo na leitura. Era bem provida a livraria da casa. A educação esmerada da mãe e bom gosto litterario tinham enriquecido a bibliotheca dos melhores modelos da litteratura nacional e da estrangeira. Ahi encontraram os dois rapazes farto alimento para a sua curiosidade. Jorge lia tambem furtivamente os poucos livros, espolio do tio fallecido, os quaes o hortelão guardára como reliquia, furtando-os ao auto de fé a que os condemnaria inevitavelmente a indignação do fidalgo e do padre. N'esses livros aprendeu Jorge a pensar, a comprehender o alcance de certas ideias e de certas instituições, e a fazer a justiça devida a muitos preconceitos, que lhe haviam imposto como dogmas.
A um espirito d'estes, educado em observar e reflectir, não podiam passar por muito tempo desapercebidos os numerosos symptomas da decadencia que apresentava a Casa Mourisca. Assim, por vezes vinha-lhe ao espirito uma secreta apprehensão pelo seu precario futuro.
Mauricio, imaginação mais forte, natureza mais ardente, caracter mais frivolo e voluvel, vivia a sua vida de joven fidalgo de provincia; deixava-se ir na corrente dos seus amores faceis, dos seus prazeres e das suas dissipações, allucinado por os sonhos e chimeras de uma fertil fantasia, e não profundava os olhos até o seio obscuro das realidades. A sua leitura era exclusiva de romancistas e poetas. Imaginação nimiamente inquieta, razão por indolencia inactiva, não via, nem quereria vêr, o espectro, que ás vezes apparecia aos olhos do irmão.
Uma circumstancia havia, a que mais que a outras devia Jorge a apparição d'esse espectro, que, á semelhança da sombra do rei da Dinamarca, em Hamlet, ia exercendo uma funda influencia no animo do adolescente.
Esta circumstancia não era só para elle manifesta. Ao viajante, que já suppozemos parado a contemplar o vulto denegrido da Casa Mourisca, não passaria ella tambem desapercebida.
Na raiz da collina fronteira áquella, onde o solar dos fidalgos erguia as suas torres ameiadas, assentava o mais risonho e prospero casal dos arredores. Era uma completa casa rustica, conhecida por aquelles sitios pelo nome, que por excellencia se lhe dera, da Herdade.
O contraste entre a Herdade e o velho solar era perfeito.
Ella graciosa e alvejante, elle severo e sombrio; de um lado todos os signaes de actualidade, de vida, de trabalho, da industria que tudo aproveita, que não dorme, que não descança; a economia, a previdencia, o futuro: do outro, o passado, a tradição esteril, o silencio, a incuria, o desperdicio, a ruina: a cada pedra que o tempo derrubava do palacio, correspondia uma que se assentava na Herdade para alicerces de novas construcções; aqui desmoronava-se um pavilhão, alli levantava-se um celleiro, uma azenha, um lagar; aos velhos carvalhos, ás heras vigorosas, aos avelludados musgos, aos lichens multicores, severas galas, com que se adornava a casa nobre, oppunha a Herdade os pomares productivos, as ondulantes searas, os prados verdes, as vinhas ferteis e proximo de casa, os canteiros de rosas e balsaminas, onde volteavam incessantes as abelhas das colmeias proximas. Nas amplas cavallariças do palacio, onde outr'ora relinchavam duzias de cavallos das mais apuradas raças, ainda batiam com impaciencia no lagedo dois velhos exemplares de bom sangue, cujo sacrificio a economia não exigira ainda; nas mais modestas cavallariças do casal, duas eguas robustas, promptas para o serviço, e domaveis por uma criança, preparavam-se em fartas mangedouras para frequentes e longas excursões; e ao entardecer abriam-se os curraes a numerosas cabeças de gado, cujos mugidos chegavam até o alto da Casa Mourisca, onde o velho fidalgo muita vez os escutava, pensativo e melancolico.
Este contraste, que apontamos, era a circumstancia que evocava no espirito de Jorge o espectro que o entristecia.
O dono da Herdade fôra pobre, servira como criado na casa dos fidalgos, passára depois a rendeiro de um pequeno casal, mais tarde arrendára uma fazenda maior; chegando emfim a ser proprietario, tornára-se em pouco tempo possuidor de extensos bens, e era já o chefe d'uma familia numerosa e talvez o primeiro agricultor d'aquelle circulo.
Porque prosperava a Herdade, e porque declinava o palacio? Se de tão pouco se chegára a tanto, como se podia cahir de tanto em tão pouco?
Taes eram, em summa, as vagas reflexões que se assenhoreavam do espirito de Jorge, quando das janellas do seu quarto, em uma das torres do palacio, ou do alto de alguma eminencia, observava a animação, a vida da propriedade do seu antigo criado, e voltava depois os olhos para o vulto silencioso e como adormecido do velho paço dos seus maiores.
Por uma manhã de setembro, limpida e serena, como ás vezes são na nossa terra as manhãs do outomno, Jorge sahiu a pé, a passear pelos campos. Errou ao acaso por bouças e tapadas, seguiu a estreita vereda a custo cedida ao transito pela sôfrega cultura nas terras marginaes do pequeno rio da aldeia. Depois, subindo a uma eminencia, parou a contemplar do alto o aspecto do feracissimo valle, que suavemente se lhe abatia aos pés, e no fundo do qual se erguia, d'entre veigas e pomares, a Herdade, de que já fallamos.
Jorge sentou-se sobre uma d'essas enormes moles de granito, que se encontram com frequencia em certos logares da provincia, soltas pelos montes, como se fossem roladas para alli em remotas eras por mãos de fundibularios gigantes, empenhados em encarniçada lucta. Os olhos dirigiram-se-lhe instinctivamente para a Herdade, onde se fixaram, como se com força irresistivel os attrahisse o espectaculo que via.
Era a época de mais intensa vida nas granjas. Os cereaes, cobrindo as eiras, lourejavam aos raios desanuviados do sol; carros, a vergarem sob o fardo das colheitas, transpunham lentos as portas patentes do quinteiro, chiando estridorosamente; apinhavam-se além em montes as cannas e o folhelho de milho, restos de recentes descamisadas; longas series de mêdas elevavam-se mais longe, á maneira de tendas em um arraial de campanha; juntas de bois, já livres do jugo, repousavam das fadigas d'aquelles dias de azafama, ruminando em socego; os moços da lavoura iam e vinham, atarefados em diversos misteres; e de tudo isto erguia-se um clamor de trabalho, que o socego dos campos e a serenidade do dia deixavam chegar distincto até o alto da collina.
O dono da Herdade, o antigo criado da Casa Mourisca, presidia áquellas tarefas, e em volta d'elle moviam-se, saltavam e riam duas ou tres robustas crianças, com quem brincava um formidavel rafeiro.
E era esta a scena que Jorge contemplava, e que em tão profundas meditações parecia absorvêl-o. De repente distrahiu-o o som dos passos de alguem que se aproximava d'aquelle mesmo logar, em que tão desapercebidamente lhe ia correndo a manhã.
Voltando-se, viu seu irmão Mauricio, que em traje rigoroso e competentes petrechos de caça, e com a esmerada elegancia e apuro, que lhe eram habituaes, subia a collina, precedido de dois ou tres cães de boa raça, que de longe descobriram Jorge e correram para elle, afagando-o, com latidos e cabriolas.
Mauricio, assim avisado e conduzido pelos cães, veio ter com o irmão, exclamando jovialmente á distancia de alguns passos:
—Em flagrante delicto de meditação poetica, o snr. Jorge! Bravo! Já não desespero de te vêr um dia fazer versos.
Jorge respondeu, encolhendo os hombros:
—Quem se senta no alto de um monte, depois de subir toda a encosta d'elle sem parar, póde fazêl-o simplesmente com o prosaico intento de tomar fôlego. Se isto fosse symptoma de poesia, então…
—Pois sim, mas já isso de subir o monte com as mãos vazias, como estás, sem uma espingarda que revele um razoavel fim no passeio, é um symptoma importante. Quem é que se dá ao incommodo de uma ascensão d'essas, quando o gozo da perspectiva que espera encontrar lhe não compensa as fadigas? E quem tem d'essas compensações senão os poetas, que são os unicos que sabem ce qu'on entend sur la montagne?
Avez vous quelque fois, calme et silencieux,
Monté sur la montagne en presence des cieux?
E, a recitar os primeiros versos da poesia alludida, sentava-se ao lado do irmão, pousava a espingarda, e descobrindo a cabeça, sacudia aos ventos os formosos e bastos cabellos castanhos, objecto de muitos cuidados seus.
Os cães andavam inquietos a farejar por entre as urzes e as tojeiras do monte.
Interrompendo de subito a recitação, Mauricio proseguiu:
—Mas que teima a tua em te mostrares frio ante estas magnificencias! Que escrupulos póde haver em declarar isto tudo admiravel? Repara como é bem talhado aquelle córte além, no monte; parece feito de proposito para deixar vêr no plano posterior aquella povoação distante, que não sei que nome tem. E alli o campanario, com a sua alameda? Quem teria a feliz inspiração de o assentar tão bem? Onde é que elle ficaria melhor? Parece que andou um gosto de artista a dirigir estas coisas.
E acrescentou, suspirando:
—Ai, na aldeia o scenario bem está, pouco tem que se lhe diga; mas os actores e a comedia que aqui se representa é que são de uma insipidez!
Os instinctos urbanos de Mauricio, cuja indole mal se accommodava á simplicidade campesina, e o fazia suspirar pela vida das capitaes, arrancavam-lhe frequentemente d'estas exclamações.
Jorge, que escutára o irmão sob uma meia distracção e sem desviar os olhos da Herdade, replicou-lhe sorrindo:
—Ha quasi uma hora que estou aqui, e posso jurar-te que não tinha notado uma só d'essas particularidades da paisagem que descreves.
—Gostas mais da contemplação em globo. Até isso é de poeta. Analysar minuciosamente as impressões recebidas não é o seu forte.
—Enganas-te ainda; não era tambem o conjuncto da paisagem que eu observava; mas um ponto limitado d'ella, muito limitado.
—Qual era então?
—Olha alli para baixo; a Herdade de Thomé, aquella azafama, aquella gente toda a trabalhar, a vida que alli vae!
—Ora adeus!—exclamou Mauricio—é justamente o que me não roubaria um momento de attenção. Não te estou a dizer que para mim o que ha de insupportavel no campo é a gente que o habita, a vida que n'elle se passa? Faz pena vêr que especie de contempladores tem a natureza para estas maravilhas. A indifferença com que estes selvagens encaram tudo isto! Repara, vê aquelle labrego passar lá em baixo na ponte; olha lá se elle desvia a cabeça para algum dos lados, ou se pára um momento para gozar do bello espectaculo que d'alli observa. Olha para aquillo! Selvagem! Pergunta ao Thomé ou a toda essa gente que lá anda em baixo a trabalhar quantas vezes admiraram as bellezas de uma noite de luar, vista do alto do oiteiro pequeno, ou se o pôr do sol lhes produz alguma sensação na alma, a não ser a lembrança de que vão sendo horas da ceia.
Jorge sorria ao ouvir o irmão, e tornou placidamente:
—Que homem este! A poesia precisa de ter quem a entenda e quem a faça; e olha que nem sempre os que a entendem a fazem, nem os que a fazem a entendem. Esta pobre gente do campo é uma parte integrante d'elle; não o contemplam, completam-n'o. Que querias tu? Gostavas talvez mais de que em vez d'essa gente indifferente, que trabalha, estivessem por ahi os montes, os valles e as ribeiras povoados de poetas contempladores como tu? Deves confessar que seria um campo bem ridiculo esse. Se eu até, para que te diga a verdade, estou persuadido de que não encontraria encantos nos logares muito visitados, que ha por as quatro partes do mundo, onde, a cada momento, apreciadores inglezes, francezes, russos e allemães passeiam, soltando exclamações polyglotas, e onde o nosso enthusiasmo nos é prescripto a paginas tantas do GUIA DO VIAJANTE. O que torna os lavradores poeticos é a inconsciencia com que elles o são.
—Vistos de longe. Pelo menos concorda n'isto; vistos de longe, e de muito longe.
—Vistos de longe, sim, que duvida? como tudo o mais. Ao perto tambem muitos d'esses prados são pantanos mal cheirosos, que infectam, e mexe-se uma miryada de insectos repugnantes n'essa verdura que tanto admiras. Dize-me uma coisa, Mauricio, parece-te que o nosso velho solar prejudica a belleza d'esta paisagem?
—Se prejudica? Ora essa! Adorna-a. Olha que bem que elle sahe d'aquelle fundo que lhe fazem os castanheiros!
—Muito bem, e comtudo, visto de perto, ha lá tristes e prosaicas realidades—observou Jorge, suspirando.
Ao olhar de estranheza, com que, ao ouvir-lhe estas palavras, o irmão o fitou, Jorge correspondeu, dizendo:
—Sim, Mauricio, triste e prosaica realidade para quem o olhar de perto. Ha nada mais triste do que aquelles campos invadidos pelas ortigas, que nós lá temos, do que aquelles pomares mal tractados, e aquelles celleiros em ruinas? Quererás encontrar poesia na nossa pobreza, Mauricio?
—Pobreza?!
—Pobreza, sim; pois que nome lhe queres dar? Olha, compara o aspecto d'essa casa branca de um andar, que ahi fica em baixo, com o do nosso paço acastellado, a actividade d'aquelles homens com a somnolencia chronica do nosso capellão; compara ainda, Mauricio, compara a desafogada alegria de Thomé com a tristeza sem conforto do nosso pae.
Mauricio curvou a cabeça, e uma como sombra de tristeza parou-lhe algum tempo na fronte, habitualmente desanuviada. Dir-se-ia que pela primeira vez o vulto descarnado da realidade se lhe apresentava aos olhos, até então fascinados pelo fulgor de lisongeiras illusões.
Mas, depois de breves instantes de silencio, respondeu ao irmão:
—Pois bem, será como dizes. Creio até que seja essa a verdade. A riqueza está alli, a pobreza do nosso lado; porém a poesia… oh! essa deixa-nol-a ficar, que bem sabes que não é ella a habitual companheira da opulencia.
—Da opulencia ociosa, egoista e inutil, de certo que não; mas da opulencia activa, benefica, que semeia, que transmitte a vida em volta de si, da opulencia que fomenta o trabalho, que cultiva os terrenos maninhos, que fertilisa a terra esteril, que sustenta, que educa e civilisa o povo, oh! d'essa é a poesia companheira tambem. Se o castello arruinado tem poesia bastante para fazer correr lagrimas de saudade; a granja, activa e prospera, tem-n'a de sobra para as provocar de enthusiasmo e de fé no futuro.
Mauricio ficou outra vez silencioso; depois, como se pretendesse sacudir de si as ideias negras evocadas pelas palavras do irmão, exclamou erguendo-se e com affectado estouvamento:
—Estás enganado, Jorge, o que reina alli em baixo não é a poesia, é… é… é a economia. A poesia não assiste ao edificio que se levanta, mas ao que se arruina; gosta mais dos musgos, do que da cal; do lado do passado é que a encontras, melancolica, que é o ar que lhe convém. E ella tem razão; o futuro tem muita vida para precisar do prestigio poetico. A poesia dos utilitarios! Com o que tu me vens! Não sei quem foi que ha tempos me disse ter lido uma noticia curiosa a respeito da Inglaterra. Parece que o espirito industrial e economico d'aquella gente vae por lá destruindo as florestas, as matas, as sebes vivas, o que emmudecerá dentro em pouco os córos das aves; os rebanhos, que d'antes pastavam pelas campinas verdes, hoje já prosaicamente se vão engordando nos estabulos! Que mais falta? A voz dos camponezes, as cantigas e as musicas ruraes hão de calar-se ao ruido do ranger das machinas e do silvo do vapor. Admiravel! Em vez do fumo alvo e tenue das choças ficará o céo coberto de fumo negro e espesso do carvão de pedra. Que modelo de aldeia o que nos vem da Inglaterra! Na verdade! que poesia!
—No que tu me vens fallar! Na Inglaterra agricola!—acudiu Jorge—Mas antes lá é que bem se comprehende a poesia da vida rural, que até a nobreza a não despreza. Sempre ouvi dizer que os senhores das terras e os rendeiros fraternisam e auxiliam-se mutuamente, e que os trabalhos do anno succedem-se entre festas e solemnidades populares, lucrando todos, trabalhando todos, e enriquecendo cada vez mais a terra. Deves confessar que ha mais poesia nos dominios senhoris dos lords de Inglaterra, que dirigem por si mesmos as suas vastas emprezas agricolas, do que nos pardieiros em ruinas dos nossos morgados, em cujas velhas salas dormem os proprietarios o somno da ignorancia, da inutilidade e da devassidão.
—Não o nego, mas… na nossa casa, naquella triste Casa Mourisca, ha um quê de poesia, de poesia elegiaca, se assim quizeres. Essa de que fallas será a poesia das georgicas; mas a da elegia deixa-m'a ficar.
—O peior, Mauricio, é que um dia virá talvez em que o tremendo prosaismo da completa miseria dissipará esse tenue perfume que dizes.
—Safa! Estás hoje com uns humores de Cassandra, Jorge! Deixa lá; lembra-te de que se diz que nas nossas propriedades ha um thesouro escondido desde o tempo dos mouros, e que um dia alguem de nossa familia o achará, ficando fabulosamente rico. Que essa esperança dissipe o humor negro que tens. Vamos, vem d'ahi. Pega n'esta espingarda e vae caçar. É bom para dissipar visões.
—Não estou hoje para caçar.
—Então vaes reatar aqui o fio das tuas cogitações?
—Não, vou reatal-o acolá.
—Vaes á Herdade?!
—Vou.
—Fazer o quê?
—Vêr de mais perto aquella poesia, ou aquella prosa, como quizeres.
—Sabes que o pae não gosta que lidemos muito de perto com o Thomé?
—Sei. É um preconceito. Elle não o saberá.
—Um preconceito! Bom! Estás hoje muito philosopho. Adeus, Jorge; espero vêr-te ao jantar de melhor aspecto.
—Adeus, Mauricio.
E os dois irmãos separaram-se. Mauricio, precedido pelos cães, seguiu em direcção dos montes, cantando. Jorge desceu a collina e caminhou para a Herdade.
Thomé da Povoa era o typo mais completo de fazendeiro, que póde desejar-se.
«Alma sã em corpo são»: esta phrase do poeta é a que descreve melhor o homem; no physico, a força e a saude em pessoa; no moral, a honradez e a alegria.
Emquanto houvesse alguem que trabalhasse em casa, não descançava elle. Delicias do somno de madrugada, attractivos das sestas, a tudo resistia com nunca desmentida coragem. Na abastança conservava os costumes laboriosos de tempos mais arduos. Tudo lhe corria pelas mãos, a tudo superintendia. Antes de almoçar já elle havia passado revista á Herdade toda. No decurso do dia montava a cavallo e lá ia inspeccionar uma ou outra propriedade mais distante, que não deixava entregue á discrição dos caseiros. Uma ou duas vezes no mez estendia as suas excursões até o Porto, chamado por negocios relativos á lavoura.
Franco, lizo de contas, pontual nos pagamentos, cavalheiro nos contractos, não se lhe limitava o credito á circumscripção da sua aldeia, estendia-se até á cidade, onde o seu nome era melhor garantia em certas transacções, do que o de muitos faustosos negociantes. Em familia, perfeitamente patriarchal, estremecia a mulher e os filhos; e a lembrança de que para elles trabalhava, illudia-lhe as fadigas e os desalentos.
Quando Jorge se dirigiu á Herdade, presidia ainda Thomé aos diversos trabalhos, em que a sua gente andava occupada n'aquella manhã.
Não havia alli braços quietos, nem movimentos inuteis. N'aquellas casas o trabalho não distingue sexo nem idade. Todos desde a infancia se familiarisam com elle. Dá-se o mesmo que se dá com o tracto dos bois; sómente na cidade é que estes possantes e bondosos animaes mettem medo ás mulheres e ás crianças; na aldeia umas e outras os afagam e dirigem.
Assim pois trabalhava-se, fallava-se, ria-se e cantava-se com alma nas eiras e quinteiros da Herdade.
E Thomé, centro d'aquelle movimento, lançando os olhos a tudo, dirigindo a todos a palavra e a todos prestando o auxilio do seu braço robusto; e da porta da casa, assistindo tambem áquella scena rural, a boa e sancta mulher do fazendeiro, a socia fiel nos seus prazeres e penas, sustentando ao collo o ultimo dos seus filhos, emquanto que os mais crescidos jogavam as escondidas por entre aquella gente azafamada.
—Olha lá esse carro que não está bem seguro, ó Manoel. Vê lá se me arranjas ainda hoje por aqui alguma desgraça… Ó meu maluco, não reparas que me vaes semeando as espigas pelo chão? Salta, apanha-me tudo isso, que eu não quero nada desperdiçado… Está quieto, João, vae para casa, agora não se brinca no quinteiro. Sahe-me de ao pé dos bois, menino! Ai que tu… Ó Luiza, olha se mandas dar uma pinga áquelles homens…. Que quer você, tio? Cubra-se, ponha o seu chapéo. Ai, vem por causa de muro que cahiu? Olhe, tenha paciencia, volte cá ámanhã. Hoje não posso olhar por isso… Ó Chico Engeitado, que diabo estás tu fazendo, pateta? Deixa-me estar essas pipas. Vae-me recolher aquelle milho que eu te disse; corre… O moleiro já veio? Pois as azenhas já moem, e o homem não tem desculpas que dê pela demora… Ó Manoel, arreda esse carro mais para o meio, senão não póde entrar o outro, homem de Deus! Disseram ao Luiz que visse como estava o milho da baixa do rio? Que m'o não vá cortar antes do tempo. Eu sempre quero lá ir primeiro; elle não apodrece na terra. Ó mulher, chama para lá esses pequenos, que podem aleijar-se por aqui. Vae, Joãosinho, vae para casa e leva o mano. Olha, queres uma espiga assada? Ó Chico, escolhe ahi duas espigas para os pequenos. Que demonio anda aquelle cão a fazer atraz das gallinhas? Aqui já, atrevido! Vá, vá, rapazes! Vocês n'esse andar não acabam hoje. Dá cá um ensinho, que eu vou arredando este folhelho.
No meio d'este fogo cerrado de ordens, de conselhos e de observações foi
Thomé da Povoa interrompido pela voz da mulher, que exclamou:
—Ai, ó Thomé, olha quem alli está!
O fazendeiro voltou-se e deu com os olhos em Jorge, que do portão do quinteiro viera, cumprindo o que tinha dito ao irmão, contemplar o mesmo espectaculo, que tanto o havia attrahido ao observal-o da collina.
Era raro que os filhos de D. Luiz visitassem a Herdade. O velho fidalgo ainda se não costumára á prosperidade do homem que fôra seu criado. A granja era como que uma censura pungente á sua imprevidencia; era uma lição muda que elle recebia a todos os momentos, que o humilhava no seu orgulho e pungia-lhe o coração de remorsos.
Thomé não se mostrava soberbo nem insolente, antes conservava por a familia da Casa Mourisca, e principalmente por D. Luiz, certa deferencia e respeito, que se ressentiam ainda da passada posição do fazendeiro em casa do fidalgo.
Este porém procurára o primeiro pretexto para interromper as relações com Thomé. Uma questão de aguas, occasionada por a abertura de uma mina em terrenos da Herdade, serviu-lhe para o intento. D. Luiz, sempre indifferente a litigios d'essa ordem, mostrou-se então muito cioso de seus hypotheticos direitos, e, não obstante a nenhuma animosidade que houve da parte do lavrador, desde essa época nunca mais conviveu com elle.
Jorge e Mauricio, que costumavam frequentar a casa do homem que os trouxera ao collo e que lhes queria devéras, receberam ordem para não voltarem lá.
Thomé da Povoa sentiu-se com este proceder, que não tinha merecido; mas possuia bastante finura para perceber a verdadeira causa da irritação do fidalgo; por isso limitou-se a encolher os hombros, dizendo para a mulher:
—Então que queres tu que eu lhe faça? assim nasceu, e assim ha de morrer.
Eis a razão porque a presença de Jorge o surprendeu; mas, sem dar signaes de estranheza, caminhou para elle com as mãos estendidas e o rosto aberto em risos da mais cordial hospitalidade.
—Entre, snr. Jorge, entre. Isto por aqui está tudo uma desordem, mas emfim é casa de lavrador, e em setembro não ha maneira de a ter asseada. Ó Luiza, manda para aqui uma cadeira… ou deixa estar, é melhor entrar lá para dentro.
—Não, Thomé, eu prefiro ficar aqui. E não se incommode. Olhe, já estou sentado.
—Ora! n'um carro! Isso é que não. Nada, não tem geito. Luiza, manda então a cadeira, manda. Quer beber alguma coisa, snr. Jorge?
—Agradecido, Thomé; não tenho sêde. Appeteceu-me vir vêr de perto esta lida, que por aqui vae, e que estive observando, perto de uma hora, alli de cima: por isso desci.
—Ora essa! Pois bem vindo seja, que sempre me dá alegria ver aquelles meninos, que conheci tão pequerruchos como estes.
E apontava para as crianças que, agarradas ás pernas do pae, olhavam com grandes olhos para Jorge.
—São todos seus?—perguntou Jorge, afagando-as e sentando uma nos joelhos.
—E aquelle que a mãe traz ao collo e a pequena que está na cidade.
—Ai, sim, a Bertha. Deve estar uma senhora?
—Está crescidita, está. Mas vamos, tome alguma coisa. Olhe que o meu vinho é puro e não faz mal de qualidade alguma. Aquillo é sumo de uva e nada mais.
—Obrigado, obrigado; mas não bebo agora. Peço-lhe que continue com o seu trabalho, sem se importar commigo. Para isso é que vim.
—Ai, isto está a acabar. Vae no meio dia—acrescentou olhando para o sol—d'aqui a nada vae esta gente jantar e… Para onde levas tu esse carro, ó desalmado? Perdoe-me, snr. Jorge, mas estes diabos… Eu attendo-o já.
E, sem poder conter-se, collocou-se elle proprio á frente dos bois, e encaminhou o carro na direcção conveniente.
—Vocês juraram dar-me cabo dos limoeiros. Olhe que tenho tido limões este anno, que é uma coisa por maior, snr. Jorge—disse elle, regressando ao seu posto com um enorme limão, que mostrava com orgulho.
Luiza voltou com uma cadeira para offerecer a Jorge.
—Como está crescido e fero—dizia ella, olhando-o com curiosidade e complacencia—e o mano como vae? Vi-o ha dias passar a cavallo alli na ponte do Giestal. Pareceu-me bom.
—E como está seu pae, snr. Jorge?—perguntou Thomé gravemente.
Jorge ia respondendo a estas perguntas e seguindo o movimento dos criados da lavoura, a quem de quando em quando Thomé dava ordens e fazia recommendações, que entremeiava na conversa, sem perder o fio d'esta.
Luiza, com o filho ao collo, não abandonou tambem a scena, senão quando o sino da igreja parochial bateu as tres badaladas que recordam aos fieis a oração do meio dia. O trabalho na eira e no quinteiro suspendeu-se como por encanto. Os homens descobriram-se a fazer uma curta reza, no fim da qual a mulher de Thomé, depois de dar aos presentes as boas tardes, disse, seguindo o caminho de casa:
—Venham jantar.
Todos obedeceram immediatamente á agradavel ordem, e em pouco tempo ficou só e silenciosa a scena, havia pouco tão ruidosa e animada.
—São horas do seu jantar, Thomé—disse Jorge, levantando-se para sahir.
—Depois d'esta gente acabar, é que eu principio. A Luiza não póde attender a todos a um tempo. Deixe-se o menino estar. Eu não lhe offereço do meu jantar, porque não é feito para si; mas se quizer dar uma volta por os campos emquanto elles jantam…
—Se lhe não causar incommodo…
—Nenhum; até preciso de ir vêr o que elles hoje trabalharam no poço que mandei abrir lá em baixo.
E empurrando a porta, que dava para as outras partes do casal, Thomé obrigou Jorge a passar adiante e seguiu-o logo depois.
E de caminho ia-lhe commentando tudo que viam; narrou como alporcára uns pecegueiros, o resultado que tirára do enxoframento das vinhas, a quantidade de fructa que o laranjal lhe produzira, quanto despendêra na construcção do lagar, as difficuldades que encontrou na abertura da nora, o que fizera pouco productiva aquelle anno a cultura do trigo, os cuidados que lhe mereceram os meloaes, e mil outras coisas relativas ao amanho das suas terras, das quaes nem um só palmo se poderia encontrar, onde as plantas nocivas usurpassem o logar das proveitosas.
Jorge escutou-o com uma attenção e interesse, que estavam causando grande estranheza a Thomé, pouco acostumado a vêr as pessoas da categoria de Jorge, e da idade d'elle ainda menos, interrogarem-n'o com tanta curiosidade e ouvirem-n'o com tanta sisudez sobre objectos de lavoura.
E as perguntas do joven fidalgo não eram vagas e ociosas, como essas que por condescendencia se fazem, para lisongear a vaidade natural de um proprietario. Havia n'ellas uma precisão, uma minuciosidade; acompanhavam-n'as reflexões tão acertadas, duvidas tão racionaes, que Thomé não podia illudir-se, e via bem que o descendente dos nobres Negrões de Villar de Corvos o interrogava com desejo de saber.
Esta convicção enthusiasmava Thomé, que proseguia com ardor as suas informações.
Jorge quiz saber aproximadamente o custeio necessario para manter uma propriedade como aquella no ponto de cultura em que estava, e o capital exigido para a elevar a esse grau de florescencia.
Thomé era forte na especialidade dos orçamentos; por isso deu com a melhor vontade a Jorge as informações que este lhe pedia.
A final Jorge, depois de um mais longo intervallo de silencio, que terminou com um suspiro, disse, como a medo, e desviando a cabeça, a fingir-se entretido no exame da roda hydraulica de uma nora:
—E porque será que só os campos que nos pertencem estão cheios de ortigas e saramagos, Thomé?
Thomé da Povoa voltou-se de repente para Jorge, e fitou n'elle um olhar penetrante. Porque o fazendeiro tinha ás vezes um certo olhar, que ia até o fundo do pensamento de uma pessoa.
—Quer que lhe diga porque é, snr. Jorge?—perguntou elle logo depois, com um tom de voz serio e quasi triste.
—Quero, sim.
—É porque o dono d'elles é o snr. D. Luiz Negrão de Villar de Corvos, o fidalgo da Casa Mourisca, como por aqui lhe chamamos todos.
Jorge olhou interrogadoramente para Thomé, que continuou:
—É pela mesma razão porque chove nas salas do morgado do Penedo e porque seus primos do Cruzeiro perderam o anno passado todo o Casal de Mattoso. Se eu tivesse agora vagar para contar-lhe a minha vida, desde que sahi aos vinte e dois annos de sua casa, snr. Jorge, até hoje, o menino não me perguntava depois porque os seus campos estão cheios de serralha e de saramagos. Trabalhei muito, snr. Jorge, não é só com agua que se regam estas terras para as ter no ponto em que as vê; é com o suor do rosto de um homem. É preciso que o dono vigie por ellas, sem confiar em ninguem, como um pae vigia pela educação dos filhos. Ora ahi está. As bençãos de um padre capellão não dão adubo ás terras—acrescentou Thomé com um sorriso epigrammatico a commentar a allusão, que não escapára a Jorge.
—Mas como se explica isto, Thomé?—continuou Jorge com a docilidade de um discipulo—os meus avós nunca se occuparam muito com a lavoura; passaram a vida quasi toda na côrte e nas embaixadas, e raras vezes visitaram as suas terras, onde só vinham para caçar, e comtudo a nossa casa era então uma das mais ricas da provincia, e hoje…
—Isso lá… Olhe, snr. Jorge, se elles se não occuparam dos seus bens e não sentiram o mal, é porque tinham ainda muito que perder. Quem hoje o está pagando é seu pae e amanhã serão os meninos. Isto é como uma pessoa robusta que leva vida extravagante. Emquanto é nova e tem muitas forças, não dá por as que perde e julga que nada lhe faz mal, mas chega lá a um certo ponto e de repente acha-se fraca e então é que considera o damno que fez a si mesma e aos filhos que gerou. Entende o que eu digo?
—Entendo, Thomé, entendo, e creio que é essa a verdade. Além de que—proseguiu Jorge pensativo—n'aquelles tempos, as classes privilegiadas podiam entregar-se sem receio a uma vida de incuria e de dissipação, porque os privilegios velavam por ellas e remediavam-lhes os desvarios; adormeceram n'essa confiança e não sentiram que tinham mudado as condições sociaes, e agora ao acordarem…
Jorge, que dissera estas palavras mais para si do que para o seu interlocutor, interrompeu-as subitamente, e apontando para a Casa Mourisca, que d'alli se avistava, exclamou quasi com desespero:
—E não será ainda possivel sustentar aquella casa na sua quéda?
Thomé da Povoa sorriu com uma expressão de intelligencia.
—Entregue-a ás mãos de um lavrador, de um homem de trabalho, que possa dispôr d'alguns capitaes para os primeiros tempos, e verá.
—Principiaria por deitar abaixo aquellas paredes velhas e aquellas arvores—observou Jorge, olhando com tristeza para o seu meio arruinado solar e para os bosques seculares que o rodeavam.
—Talvez deitasse—disse Thomé—póde bem ser que o fizesse, porque lá amor a essas coisas não teem elles, não. Mas não seria necessario. Eu, que tambem lhes tenho affeição, áquelle arvoredo e áquellas paredes negras, porque alli passei um tempo… mau era elle de certo… mas emfim… sempre tinha vinte annos…, eu, que me não atreveria a deitar-lhe o machado… ainda me aventurava a pôr aquillo no pé em que esteve.
Jorge não pôde tirar ás suas palavras um ligeiro tom de amargura e quasi de ironia, quando, depois d'esta resposta de Thomé, exclamou voltando-se para a Casa Mourisca:
—Espera pois, casa de meus paes, que a nossa miseria nos expulse dos teus tectos e te abra as portas á familia de um lavrador abastado, para vêres reparados os teus muros, e cultivados esses campos maninhos; assim Deus dê a esse homem um pouco de amor ás coisas velhas, para te não destruir na reforma.
Thomé, que percebeu a occulta expressão d'estas palavras, replicou com dignidade:
—Porque não ha de antes dizer, snr. Jorge: Espera, casa de meus paes, que Deus inspire um dos teus donos, para que olhe por seus proprios olhos para os teus achaques e os cure por suas mãos?
—Os remedios são caros na botica, Thomé. Os pobres vêem ás vezes morrer um doente, porque não podem comprar a droga que o salvaria.
—Senhor Jorge—acudiu Thomé com um ar quasi solemne—resolva-se devéras a ser homem, deixe-se de viver como vivem e teem vivido os seus, queira do coração fazer-se economico, trabalhador e vigilante, livre-se da praga dos seus mordomos e procuradores, deixe o padre dizer missas, mal ou bem, conforme puder, porque isso é lá com Deus e elle, faça tudo isto e os capitaes não lhe faltarão. O homem que principiou a ganhal-os n'aquella casa será um dos que não porá duvida em empregal-os, até onde chegarem, para a sustentar e não deixar cahir; e onde não chegarem os capitaes, chegará o credito.
—É uma esmola que me offerece, Thomé?—perguntou Jorge, mas sem o menor signal de irritação.
—Não, snr. Jorge, não é. Nem o menino m'a aceitava, nem eu poderia fazêl-a, sem prejudicar meus filhos. Não é uma esmola, é um emprestimo, menos perigoso do que os arranjados pelo padre capellão. Não é vergonha um emprestimo, quando se faz em condições de poder por elle alliviar-se um homem de dividas mais pesadas e de credores mal intencionados, e resgatar e melhorar a propriedade. Ha muito que a sua casa vive d'isso, mas a taes portas tem ido bater e tão mau uso tem feito do pouco e caro que obtinha que, em vez de se salvar, cada vez se perdia mais. Não fica mal um emprestimo, snr. Jorge, quando se procura satisfazer com lealdade os compromissos que se ajustaram. Então não vê que até os governos pedem emprestado?
—Mas quando, como no meu caso, não ha garantias a offerecer, o emprestimo é bem parecido com a esmola, deve confessar.
—Não ha garantias? Quem foi que lhe disse isso? E a sua probidade?… Sabe que mais? Eu sempre lhe vou contar a minha historia e verá depois se tenho razão no que digo.
E Thomé da Povoa, conduzindo Jorge para a sombra da ramada que toldava a nora, na roda da qual se sentaram ambos, principiou:
—Quando sahi da casa de seu pae, por esta vontade, ás vezes bem doida, que a gente tem de trabalhar por sua conta, empreguei algum dinheirito, que juntára, em arrendar um casebre e uma horta, da qual, lidando do romper do dia até á noite, tirava quando muito o preciso para não morrer de fome. O menino sabe aquella nesga de campo, que eu tenho ao pé dos açudes e o palheirito que fica ao lado?
—Bem sei.
—Pois foi essa a minha primeira casa. A Luiza, com quem por esse tempo casei, trabalhava tanto como eu, e assim iamos vivendo, sabe Deus como, mas pagando pontualmente o nosso aluguel e sem ficar a dever nada na tenda. O meu senhorio era um homem muito rico e muito de bem. Deus lhe falle n'alma! O menino ha de ter ouvido fallar d'elle: era o doutor Menezes, pessoa de muito saber e que tinha sido da relação do Porto.
—Ainda tenho uma ideia de o vêr.
—Não havia melhor senhorio; nada exigente com os caseiros e até sempre prompto a ajudal-os. Um anno veio uma sequeira, que matou toda a novidade. Foi uma coisa de fazer dó. Nem gota de agua, as fontes sêcas, as levadas enxutas, os moinhos parados, e os lavradores a agarrarem as mãos na cabeça e a pedir a Deus misericordia! A coisa foi de maneira que, chegado o tempo de pagar a renda, poucos tinham com que a pagar.
—Succedeu-lhe o mesmo a si? Está visto.
—A mim?! eu nada colhi n'esse anno; mas de maneira nenhuma queria faltar ao ajustado com o senhorio. Fui-me ao escaninho da caixa, tirei para fóra uns cruzados novos que, a muito custo, puzera de lado para o caso de uma doença; mas não era coisa que chegasse. Como ha de ser, como não ha de ser, eis que a minha Luiza, que sempre foi boa companheira, me diz: «Não te afflijas, homem; ahi vão as minhas arrecadas, pega», e atirou-m'as para cima dos cruzados. Lá me custava o servir-me das arrecadas da rapariga, que era a unica riqueza que ella tinha; mas não houve outro remedio. Pul-as em penhor, e com o dinheiro que me deram completei o aluguer, e no dia marcado apresentei-me em casa do doutor Menezes.
—E elle?
—Parece-me que ainda o estou a vêr no seu quarto de estudo, com as pernas embrulhadas em uma manta e olhando-me por cima dos oculos: «Então o que o traz por cá, Thomé?» «Eu, snr. doutor, venho para o que v. s.ª sabe.» «Ah! sim, estamos no S. Miguel. O anno pelos modos foi mau.» «Ora se foi! mas emfim vamo-nos conformando com a vontade do Senhor. Outro virá melhor.» E fui-me chegando para a banca e tirei do bolso o dinheiro, que me puz a contar e a encastellar. O homem estava calado a vêr aquillo. Quando cheguei ao fim olhou para mim d'uma certa maneira e disse-me: «Então está ahi tudo?» Está, sim senhor, v. s.ª não viu? «E você quer-me dar tanta coisa?» D'esta vez fui eu que me puz a olhar para elle admirado. «Então não é este o preço ajustado no arrendamento?» «É celebre, disse o snr. doutor abanando a cabeça, é o primeiro rendeiro que me paga tão prompto este anno e sem pedir que lhe perdoe alguma coisa, vista a escassez da estação. Onde foi você buscar esse dinheiro, ó Thomé? Você é o mais pobre dos meus caseiros e eu lá vi o estado do seu campo.» Eu não tive remedio senão contar-lhe tudo. Elle nem me deixou acabar. «Leve isso d'aqui, homem, e desempenhe as arrecadas da sua mulher. Eu não sou nenhum vampiro para sugar o sangue do meu proximo.»
—Bella alma!—exclamou Jorge commovido pela narração.
Thomé continuou:
—«Em todo o caso—disse-me d'ahi a pouco o snr. doutor—você fez hoje um grande negocio sem o saber. Você é trabalhador, que isso tenho eu visto por a maneira porque me traz bem aproveitado o campito que lhe aluguei. Mas, para tirar partido dos seus bons desejos, faltava-lhe o capital e hoje arranjou-o.
—Que queria elle dizer n'isso?
—Foi o que eu lhe perguntei. «Arranjou-o sim, senhor, respondeu elle, porque arranjou credito, que vale por um capital enorme. O que você fez, mostra-me o de que é capaz. Appareça ámanhã por aqui, porque temos que tractar.»
—E que lhe queria elle?—perguntou Jorge, cada vez mais attento.
—No dia seguinte fui procural-o, sem imaginar o que fosse que elle tinha para dizer-me. Mal me viu, exclamou logo: «Ora venha cá, Thomé, sente-se aqui, porque temos um contracto a fazer.» E, obrigando-me a sentar ao lado d'elle, continuou: «Vocemecê vae assignar-me um escripto de arrendamento da minha propriedade das Barrocas.» Ora faça ideia o menino de como eu fiquei, assim que tal ouvi. Conhece a quinta das Barrocas? aquillo é um condado, se póde dizer. Como havia eu de arrendal-a, Sancto Deus! Elle, conhecendo o meu espanto, acudiu logo: «Não lhe pareça isso uma coisa por ahi além. Nós ajustamos a renda e você vae tomar conta d'aquillo. A quinta está bem educada e nutrida, e estou certo de que não o deixará ficar mal no fim do anno.» «Mas, disse-lhe eu, v. s.ª bem vê que uma peça d'aquellas precisa de braços para ser bem trabalhada, de braços e de certas despezas.» Mas, homem, torna-me elle, quem lhe diz menos d'isso? Olhe lá que eu a deixe ao desamparo, para você m'a entregar no estado em que por ahi em geral os caseiros as entregam aos senhorios. Mas é bem feito, que elles tambem fazem uns arrendamentos taes, que os caseiros morreriam esfomeados, se não esfomeassem a terra.
—Mas esse homem era um grande philosopho!—observou Jorge.
—«Vá você para lá—continuou elle—tracte-me bem d'aquillo, e os capitaes precisos para instrumentos, gado, adubos, jornaleiros e algumas obras, eu lh'os adiantarei. Você é trabalhador, a terra é boa, ia apostar que ambos havemos de lucrar.
—E o Thomé foi?
—Fui, e foi o principio da minha felicidade. A terra era abençoada! e depois, alli nada faltava para a fazer produzir. Creia o snr. Jorge que o dinheiro tambem nasce como a semente. O dinheiro, enterrado assim na terra, produz dinheiro, senhor. Eu lá o vi, que quanto mais se gastava com a terra, mais ella produzia. Foi lá que eu aprendi a ser lavrador. Muito devi aos conselhos d'aquelle homem. «Anda para diante Thomé, dizia-me elle. Se queres que o cavallo te não deite a terra e te leve a longa jornada, dá-lhe bem de comer; a ração de aveia que lhe furtares da mangedoura é a que mais cara te sahe.» Mais tarde, quando eu, com a ajuda de Deus, já ia, além de pagar as minhas dividas a pouco e pouco, juntando algum peculio no canto da caixa, foi elle que me disse: «Não abafes o dinheiro, Thomé. Põe-n'o ao ar para elle se não estragar; tudo quer ar n'este mundo.» E ahi me animei eu, ao principio com mêdo, que fui perdendo depois, a dar emprego ás minhas economias; e era um gosto vêr como ellas augmentavam. Passados annos eram taes, que já eu pensava em comprar umas terras, que era cá o meu sonho. Foi elle ainda quem me tirou isso da cabeça. «Não tenhas pressa de ser proprietario, prégava-me elle, olha que os lucros que vaes ter, gastando todo o teu dinheiro em comprar qualquer leira de terra, não correspondem ao gostinho de te chamares dono d'ella. Não te afogues em pouca agua. Se comprares um cavallo e ficares sem cinco reis para o sustento d'elle, vê lá que negociarrão; pois as terras tambem comem e tu bem o deves saber.» E o caso é que me convenceu e nem pensei mais n'isso.
—Mas a final sempre comprou?
—Quando elle mesmo m'o disse. Foi á praça esta granja, que não era ainda o que é hoje. «Vê agora se ficas com aquillo», disse-me o snr. doutor. A propriedade era de valor e eu não queria empregar na compra todo o meu capital. O snr. doutor ajudou-me mais uma vez, e a propriedade passou para as minhas mãos. Então trabalhei mais do que nunca. Todo o meu empenho era remir depressa a minha divida, porque, emquanto o não fizesse, parecia-me que não podia chamar ainda meu a isto. Deus ajudou-me com annos felizes e com boas colheitas, e como continuava com o arrendamento das Barrocas e depois com este negocio de gado, pude, mais cêdo do que esperava, pagar a minha ultima prestação e remir a divida.
Chegando a este ponto da sua narrativa, animou-se a physionomia de Thomé da Povoa de um clarão de enthusiasmo e com as faces córadas e os olhos radiantes proseguiu, suspirando com desafogo.
—Que dia aquelle, snr. Jorge! Eu nem lhe sei dizer o que sentia em mim! Eu sei lá?! Quando voltei da casa do doutor, com o escripto da quitação no bolso, vinha a tremer, pulava-me no peito o coração como o de uma criança; abri surrateiramente aquella porta da quinta, e sósinho, como um ladrão, sem que ninguem me visse, entrei aqui. Digo-lhe que estava quasi louco. Até fallei alto; lembra-me bem de que disse ao vêr-me cá dentro: Isto é meu! E depois que sabia que era meu, parecia-me outra coisa tudo isto. Meu! eu não me fartava de repetir esta palavra! Meu! Estas arvores eram minhas, estas fontes eram minhas, até estes passaros, que por ahi cantavam, eram meus, porque emfim vinham fazer ninho e cantar no que me pertencia. Vae rir-se, se eu lhe disser o que fiz. Eu abracei estas arvores, eu bati palmadas n'estes muros, lavei-me n'esses tanques todos, bebi agua d'essas fontes, deitei-me á sombra d'essas arvores, eu cantei, eu saltei, eu chorei, e a final…. quer que lhe diga? Não tive mão em mim que não ajoelhasse para beijar esta terra! beijei, sim, beijei esta terra, que eu ganhára á custa de muito trabalho, de muito suor e de nenhuma vileza. Tinha orgulho, e tenho-o, em me lembrar de que tudo isto me viera de eu ser honrado e amigo de cumprir a minha palavra. Eu não me recordo de ter um contentamento assim na minha vida, a não ser no dia em que estreitei nos braços a Luiza, e que tambem pela primeira vez lhe chamei minha mulher. Era quasi a mesma coisa; este era o meu segundo casamento. D'ahi em diante foi que eu soube o que é ter amor á terra. Desde a sementeira á colheita era um cuidado incessante com o campo. Ver crescer as plantas, para mim causava-me tanto prazer como vêr o crescer dos filhos; cada novo rebento era como que um nascimento em casa. Media o quanto iam crescendo as arvores que plantava e trazia contados os fructos dos pomares. Aquillo nos primeiros tempos foi uma loucura. Aqui tem a minha vida. Deus ajudou-me, e d'ahi por diante tudo me tem corrido bem. Já vê, snr. Jorge, que quem deve o que é a ter sido honesto, não póde recusar o seu pouco auxilio a um rapaz de brios e de probidade como é o menino.
Jorge estendeu a mão a Thomé, dizendo-lhe sensibilisado:
—Fez-me bem ouvil-o, Thomé. A sua vida é um exemplo, é uma lição, e n'ella procurarei aprender. Eu tambem sinto os mesmos desejos de remir a rninha ultima divida para depois chamar meu ao que me pertence. E n'esse dia eu tambem abraçaria com enthusiasmo aquellas velhas arvores, e ajoelharia para beijar a terra, que os meus antepassados me deixaram. Mas não sei se a empreza estará ao alcance das minhas forças.
—Está. Eu lhe digo. Ha aqui só uma difficuldade a vencer. Empregue toda a sua força para esse fim, porque se tracta do bem de sua casa, do seu futuro e da sua dignidade. É preciso que o pae lhe dê licença para o menino administrar a casa e que o padre capellão se contente com dizer missas, porque depois…
—Ainda quando vencesse essa difficuldade, que é grande, Thomé, porque meu pae ainda vê em mim uma criança, surgiria outra. De si nunca meu pae…
Thomé da Povoa não o deixou concluir.
—Eu sei, mas o snr. D. Luiz não se mette por miudo nos negocios da casa, desde que tem um procurador encarregado d'elles. Consiga que elle ponha em si a confiança que tão mal emprega no padre, e eu lhe prometto que o mais se fará. Eu não exijo mais garantias para o meu dinheiro, do que um escripto seu, snr. Jorge. Demais, como a sua experiencia é pouca, eu, se m'o permittir, guial-o-hei nos primeiros tempos. Como seu pae não gosta de que o menino venha por aqui, virá sem que elle o saiba. Os serões de inverno são longos, nós conversaremos algumas noites.
Jorge disse finalmente com resolução:
—Aceito, Thomé. Fallarei a meu pae. O dever de salvar a minha casa da ruina me dará coragem. Aceito, porque tenho fé em que me não será impossivel pagar-lhe mais tarde a divida que contrahir.
—E eu tenho fé em que ha de ainda haver dias alegres e de festa n'aquella triste casa. Não é verdade que se diz que ha lá um thesouro escondido? Pois cave na terra, que o ha de encontrar.
A voz de Luiza, ao longe, annunciou n'este momento ao marido que o jantar esperava por elle.
Jorge sahiu d'alli com o coração palpitando de esperanças e de commoção, que lhe estava já causando a ideia da entrevista que precisava de ter com o pae.
Thomé jantou com o appetite de quem tinha feito uma boa acção e realisado uma ideia, com que havia muito tempo lhe lidava o cerebro.
A mulher achou-o mais fallador do que de costume; e depois de jantar voltou para a eira, cantando.
Era feliz n'aquelle momento a sua alma generosa.
Em uma das espaçosas salas da Casa Mourisca, alumiada por tres rasgadas janellas ogivaes e mobilada ainda com certa opulencia, vestigios do esplendor passado, esperavam a hora de jantar o velho fidalgo e o seu capellão-procurador frei Januario dos Anjos.
Não foi rigoroso o emprego no plural do verbo da ultima oração.
Frei Januario era quem esperava, porque essa era tambem a principal occupação dos seus dias. Os gozos do paladar mal lhe compensavam as amarguras d'estas longas expectações. Eram ellas talvez que não o deixavam medrar na proporção dos alimentos consumidos, porque frei Januario era magro. O mysterio physiologico d'esta magreza ainda não era para se devassar de prompto.
D. Luiz lia as folhas absolutistas, que lhe mandavam da capital e do Porto, e dava assim em alimento ao seu odio contra as instituições liberaes um dos fructos mais saborosos d'ellas—a liberdade de imprensa—; fructo, em que os seus correligionarios mordem com demasiada complacencia, apesar de ser para elles fructo prohibido.
De quando em quando D. Luiz interrompia a leitura com uma phrase de approvação ao artigo que lia ou de censura a qualquer medida promovida pelo governo, que nunca tinha razão.
Frei Januario secundava, com toda a força do seu obscuro credo politico, as reflexões de s. exc.ª, e requintava na intensidade dos anathemas, com que eram fulminados os homens da época.
Mas, solta a phrase que o caso pedia, e as competentes exclamações, voltava o padre a consultar o relogio, a abrir a bôca, a suspirar; dava dois ou tres passeios na sala e terminava por ir inspeccionar a cozinha. Os intervallos das refeições eram para elle seculos!
—Humh!—disse D. Luiz n'aquella manhã, poisando a folha, como enojado com o que lêra—Lá foi concedido um subsidio para a construcção do lanço de estrada de Valle-escuro!
—Fartos sejam elles de estradas!—acudiu logo frei Januario—Para esta gente a moralidade e a ventura de um paiz consiste em ter estradas e diligencias, e acabou-se. Olhem lá se elles levantam sequer uma igreja? Isso sim! O dinheiro do clero sabem elles roubar! E que pena não terão por não deitarem a baixo os templos que por ahi ainda ha! Mas atraz do tempo tempo vem. Vontade não lhes falta.
Não sei se foi esta ultima phrase que recordou ao padre que tambem a elle não faltava vontade… de comer. O certo é que, mudando de tom, acrescentou:
—Querem vêr que o Bernardino se esqueceu hoje do jantar? Isto são quasi duas horas, e eu não ouço tugir nem mugir na cozinha! Nada, aqui anda coisa. Com licença, eu vou vêr e volto já.
E frei Januario sahiu da sala para ir pela vigesima vez á cozinha, que elle suspeitava abandonada pela incuria do cozinheiro, estando pois a familia toda ameaçada com a tremenda catastrophe d'uma retardação do jantar.
D. Luiz pegou de novo nas folhas e deixou-se ficar lendo até á volta do padre, que entrou indignado.
—Eu que dizia?! Posto á taramela com o hortelão, sem se lembrar do jantar? Olhem se eu lá não ia! Não que dizem que uma pessoa póde descançar nos criados. Ha de poder! São uma corja! E, v. exc.ª não quer crêr, aquelle excommungado d'aquelle hortelão ha de ser a ruina d'esta casa. Foi uma imprudencia da parte do snr. D. Luiz metter em casa um libertino d'aquelles, mação nos ossos e no sangue. Foi um passo muito errado… Aquillo é um pessimo exemplo para os outros. Sabe v. exc.ª em que elle estava fallando? Na cantiga do costume. No desembarque do Mindello. Quando eu cheguei ainda lhe ouvi dizer que eram sete mil e quinhentos bravos que vieram pôr fóra da cidade os oitenta mil lobos que andavam lá, e coisas assim. E o cozinheiro a dar-lhe ouvidos, e o leitão a queimar-se e a sôpa a pegar-se no fundo da panella, que logo me cheirou a esturro. É preciso que v. ex.ª dê as providencias, quando não…
D. Luiz, tomando menos a peito do que o capellão os destinos do jantar e da sôpa, e fiel ao habito de nunca fallar, nem em mal nem em bem, do hortelão, não respondeu e proseguiu a leitura das folhas.
D'ahi a pouco referiu ao padre a noticia que tinha lido do desastre succedido a uma diligencia ao passar em uma ponte que na occasião abatêra, resultando muitas victimas.
A indignação do padre exaltou-se.
—Pois se esta gente que nos governa deixa as estradas e pontes em um abandono d'esses! Vejam que tempos os nossos! e que governos que não se importam com as vidas dos cidadãos! Em que paiz do mundo se vêem estradas assim arruinadas como as nossas? São os bens que nos trouxeram os homens da Carta! Isto é bonito!
E o padre Januario continuou ainda por algum tempo a condemnar, pelo crime de desleixo e de falta de protecção á viação publica, os mesmos governos que, momentos antes, accusára de conceder para esse fim subsidios e de lhe dar importancia demasiada.
A politica de frei Januario é vulgar na nossa terra.
D. Luiz, tendo concluido a leitura da folha, pôl-a de lado e resumiu a serie de pensamentos que essa leitura lhe suggerira, na seguinte e contrahida synthese:
—Isto vae cada vez melhor, frei Januario.
—Isto vae bonito, não tem duvida nenhuma—secundou o padre.
—O peior é o futuro—tornou o fidalgo, assombrado.
—Ai, o futuro ha de ser fresco!—repetiu o procurador, fungando uma pitada.
—Emfim, quem viver verá aonde isto vae parar, onde nos leva esta torrente.
—E não é preciso viver muito. Mais dia menos dia temos ahi os hespanhoes, ou então passamos a ser inglezes. Não ha que vêr; da maneira por que vão as coisas…
—Ai, pobre Portugal!—exclamou melancolicamente D. Luiz.
—Que vaes á vela—concluiu o padre.—Desde que puzeram a cabeça á roda a esta gente com liberalismos… ficou tudo transtornado. Agora todos mandam, todos fallam, e não ha quem governe. Isto de não haver um que governe… Estes patetas não se desenganam de que um paiz é como uma casa. Ora deixem á vontade os criados em uma cozinha, sem ninguem que os vigie, e verão o que vae! esperem por o jantar, que hão de achar-se servidos!
O simile fôra suggerido a frei Januario pela sua constante preoccupação.
—O que me custa é lembrar-me de que meus filhos teem de viver n'esta sociedade assim organisada. Quem sabe a sorte que lhes está reservada, aos pobres rapazes!—disse o fidalgo, suspirando com escuras apprehensões sobre a posição precaria da familia.
—Os filhos de v. exc.ª não devem transigir em caso algum com estes homens!—exclamou com vehemencia o padre—É não fazer como a sobrinha de v. exc.ª, a snr.ª D. Gabriella, que já é baroneza das feitas por elles. Quando se é fidalgo é preciso ser fidalgo.
—É bem negro o futuro que espera as casas como a nossa, e sabe Deus se em parte preparado por nós—insistia o fidalgo.—Tambem peccamos.
—Pois é uma triste verdade, mas isso não é razão para que os que nasceram n'essas casas se abaixem diante dos que nem sabem aonde nasceram. Deixe v. exc.ª medrar quanto quizer o Thomé da Herdade, que no fim de tudo sempre ha de mostrar que andou descalço em criança e que foi levar a beber o gado d'esta casa. Ha certas coisas que não dá o dinheiro.
—O Thomé da Herdade!—repetiu D. Luiz com amargura—Esse é que prospéra, os tempos estão para elle. Quem viu e quem vê aquillo!
—Então que quer? Inda mais havemos de ver. E então não sabe v. ex.ª que o homem mandou educar a filha na cidade, como se fosse a filha de alguem?
—A Bertha?
—Sim, a que é afilhada de v. exc.ª Com que fim faz aquelle toleirão uma coisa d'essas? Veja a parlapatice d'aquelle homem. Não repara na posição falsa em que colloca a rapariga. Metteu-se-lhe talvez na cabeça que ainda a casava com algum fidalgo! Póde ser. Veja v. exc.ª se ella serve para algum dos seus filhos.
D. Luiz sorriu, encolhendo os hombros.
—Ora para que precisa a mulher de um lavrador, que é a final o que ella tem de ser, das prendas e da educação que o pae lhe mandou dar? Não me dirá v. exc.ª?
—Todos hoje teem aspirações a subir—reflectiu D. Luiz com ironia.—A maré sóbe.
—Eu bem sei o que é que dá causa a estas tolerias. Tudo isto vem da barulhada que estes liberalões fizeram na sociedade. Tudo está remexido e ninguem se entende. O sapateiro que nos vem tomar medida de umas botas parece um visconde. Onde isso é bonito, segundo dizem, é em Lisboa. Hoje todos por lá tem excellencia!
N'estes sediços commentarios sobre o estado do seculo deixaram-se ficar os dois por muito tempo, desafogando assim a sua má vontade contra as instituições modernas. O padre Januario porém não perdia com isto a ideia do jantar, e de quando em quando voltava os olhos para o relogio, cujos lentos ponteiros não correspondiam nunca á impaciencia dos seus desejos. Emfim deu uma hora e frei Januario ergueu-se instinctivamente para ir vêr se o jantar estava servido.
Passado pouco tempo tocava a sineta, tão grata aos ouvidos do reverendo. Vibraram pelos desertos aposentos e extensos corredores da Casa Mourisca aquelles sons, que em felizes tempos punham em movimento uma numerosa e esplendida côrte, que os ventos da adversidade tinham dispersado.
D. Luiz entrou na sala do jantar, onde com impaciencia o aguardava já o capellão.
Aquella grande sala vazia, aquella extensa mesa, apenas servida com quatro talheres, fallava tanto do esplendor passado e da decadencia presente, que poucos logares havia na casa que deixassem no fidalgo mais melancolicas impressões. Nunca se lhe anuviava tanto o coração como ao sentar-se á cabeceira da mesa, em torno da qual outr'ora vira rostos conhecidos e amigos, hoje tão solitaria e abandonada.
D. Luiz, reparando que o escudeiro principiava a servir, perguntou, apontando para os logares dos filhos, que ainda estavam de vago.
—Então os senhores não ouviram a sineta?
—Os senhores ainda não vieram.
—Nem Jorge?—perguntou D. Luiz, como se estranhasse menos a ausencia de
Mauricio.
—Nem um, nem outro.
—O snr. D. Mauricio—observou o padre, que temia um adiamento do jantar—sahiu para a caça; quando virá elle agora?
E dizendo isto, fazia signal ao criado para que servisse o fidalgo.
—E Jorge?—insistiu o pae.
—O snr. D. Jorge… esse não sei… talvez esteja ahi por alguma parte.
O fidalgo, evidentemente contrariado com a ausencia dos filhos, que ainda mais augmentava a solidão d'aquella sala, resignou-se a principiar a jantar sem elles.
O jantar correu em silencio.
O humor negro de um dos commensaes e o appetite do outro não davam azo ao dialogo.
Estava o padre deliciando-se com uma farta posta de assado e o competente accessorio de massas, quando Jorge entrou na sala.
D. Luiz não lhe dirigiu a palavra, nem sequer um olhar.
Jorge formulou uma vaga desculpa, que o pae interrompeu com um gesto a mandal-o sentar; e, passados momentos, levantou-se elle e sahiu silencioso.
Frei Januario, tendo já satisfeito as primeiras e mais urgentes exigencias do seu estomago, achou-se disposto a continuar o dialogo. Por isso, ao encetar a sobremesa, dirigiu por comprazer a palavra a Jorge:
—Com que vem do seu passeio, hein? A manhã estava bem bonita. E então o que viu por esses campos?
—Muito trabalho, snr. frei Januario, muita vida rural—respondeu Jorge.
—Sim, agora é o tempo das colheitas. Anda por ahi tudo azafamado.
—Mas porque é, snr. frei Januario, que nos campos da nossa casa não vejo o movimento dos outros?
A imprevista interpellação do adolescente ia entalando o padre.
—Causou-me sensação isto hoje—proseguiu Jorge.—Quem subir ao alto do outeiro da Faia, por exemplo, e olhar de lá, em roda de si, para o valle, póde marcar as propriedades da nossa casa; onde vir um campo quasi maninho, um muro a cahir, umas paredes negras, um aspecto de cemiterio, tenha a certeza de que nos pertencem esses bens.
—Não é tanto assim… É verdade que… meu rico filho, que quer? depois que os homens do liberalismo tomaram conta d'este paiz, as coisas mudaram. Quem não está por o que elles querem…
—Não vejo em que elles influam para isto, snr. frei Januario. Quem nos impede de fazer o que os outros fazem? de cultivar os nossos campos? de pôr homens a trabalhar n'essas terras incultas?
—O que os outros fazem, diz elle! Os outros… os outros… e quem são os outros? Uns miseraveis que eu conheci de pé descalço, a limpar os cavallos e a cavar nos campos d'esta casa.
—Tanto mais para admirar e para louvar o esforço que os tirou d'essa posição humilde e os elevou áquella, que hoje occupam.
—Olhem que grande milagre! Homens que não devem respeito a si mesmos, para quem todo o trabalho está bem, como não hão de enriquecer? Ora essa é muito boa!
—E os que devem respeito a si mesmos estão pois condemnados á miseria?
—Á miseria… á miseria!… Que palavra! Ora para o que lhe deu hoje! Foi febre que se lhe pegou? Se ella anda por ahi tão accêsa! O menino ainda é muito criança para pensar n'estas coisas. Coma e beba e…
As faces de Jorge tingiram-se de um rubor intenso, e redarguiu com energia e irritação:
—Não sou criança, frei Januario; acredite que o não sou. Tenho mais de vinte annos e estou resolvido a ser homem. Córo da minha ociosidade, quando vejo que sómente as nossas terras fazem vergonha á actividade d'este povo. Tenho annos para viver, deveres de honra a cumprir, um nome para conservar sem mancha, e quero saber que futuro me preparam os gerentes da nossa casa, quero desviar a tempo de mim a tremenda responsabilidade de ser na minha familia talvez o primeiro a faltar um dia aos seus compromissos. É por isso que fallei e que desejo que me responda, snr. frei Januario.
—Ai, menino, menino; isso não é seu! Ahi anda doutrina liberal. Eu cheiro-a a distancia de legoas. Então quando o senhor seu pae me honra com a sua confiança, é acaso justo, é acaso bonito que eu seja suspeitado e interrogado por uma criança, que ainda nada sabe do mundo?
—E quando hei de aprender? Querem-me estupido, como esses morgados que por ahi se arruinam?
—Mas que quer o snr. Jorge a final? Então não sabe que desde que os lavradores se fizeram fidalgos, ninguem lucta com elles? O dinheiro está de lá; para lá vão os trabalhadores, senhor. Ora é boa! Eu acho graça a certa gente!
—O dinheiro está de lá! Mas como conseguiram elles enriquecer? Pois não diz que eram uns miseraveis?
—Ah! então quer principiar como elles principiaram, cavando com uma enxada todo o dia e furtando á bôca para juntar ao canto da caixa com o fim de comprar uns bois? etc. etc. Veja se quer.
—Não principiavamos de tão longe como elles, escusavamos de tantos sacrificios. Bastava que olhassemos com attenção para o muito que temos ainda, e que tentassemos desenredar, a pouco e pouco, esta meiada, que nos enleia e que nos ha de afogar a todos.
—Ora é boa! E então o que é que eu faço, o que é que estou fazendo ha quasi trinta e oito annos em que o snr. D. Luiz me distingue com a sua confiança? Mas a coisa não é tão facil, como lhe parece. É boa!
—Mas quaes são os seus planos, padre Januario, qual é o seu systema de administração?
—Os meus planos?!… Ora essa!… Então que planos quer que sejam os meus? Systema de administração!… isso é phrase de côrtes… Humh! tenho entendido… É o que eu digo… Ó snr. Jorge, ora falle-me a verdade, ahi andam ideias de liberalismo. Com quem fallou esta manhã? ora diga.
—Venham d'onde vierem as ideias. A origem pouco importa, a questão é que ellas sejam boas. Eu não tracto de liberaes nem de absolutistas agora. Vejo que a minha casa se perde, vejo cahirem os muros e nunca se repararem; vejo campos e campos sem a menor cultura, encontro em tudo quanto nos pertence profundos signaes de decadencia, e quero saber a grandeza do mal que nos opprime.
—E se fôr grande o mal, o que quer que se lhe faça?
—Quero que se trabalhe para remedial-o; que se façam sacrificios uteis, que deixemos a louca vergonha e o orgulho enfatuado que nos faz viver hoje ainda uma vida que não é d'estes tempos. Desenganemo-nos; a época não é de privilegios nem de isenções nobiliarias, é de trabalho e de actividade. Plebeu é hoje só o ocioso, nobre é todo o que se torna util pelo trabalho honrado.
—Jesus! O que ahi vae! O que ahi vae! Eu bem o digo! Ha liberal na costa! Isso é tão certo como dois e dois serem quatro. Se o pae o ouvia!
—Ha de ouvir-me, porque tenciono hoje mesmo fallar-lhe.
—Que vae fazer, snr. Jorge?
—O meu dever. Eu e meu irmão seremos um dia os representantes da nossa familia. Para que nos orgulhemos do nome que herdamos, é necessario que esse nome não tenha manchas e que nós lh'as não lancemos.
—Mas quem lhe diz, quem lhe falla em manchas? Ora… ora… ora… ora esta não está má!
—Frei Januario, eu não sou criança, repito-o. Sel-o-ia hontem, hoje não o sou já. Faça de conta que o sol d'esta manhã me amadureceu. Por isso não me illudo emquanto á natureza dos meios com que se sustenta ainda n'esta casa um resto do esplendor de antigos tempos. Pois mais valeria comer em louça nacional e vender as matilhas e os dois cavallos de luxo, que ainda temos, para comprar dois bois.
—Mas…
—Até logo, frei Januario, conversaremos mais de espaço sobre isto.
—Mas…
Jorge, sem o attender, dispunha-se a sahir, quando o padre, quasi assustado, o chamou.
—Mas venha cá. Ouça-me, valha-me Deus! Olhem que homem este! Tem muita razão no que diz. Sim, senhor. As coisas não vão bem. Hoje não é hontem; e esta casa já viu melhores tempos do que os que correm. Mas de quem é a culpa? É de mim ou do senhor seu pae? Pois não foste! Para remediar o mal trabalhamos nós ha muito. A culpa é d'esta gente que nos governa, d'estes homens que juraram perder tudo quanto era nobreza para poderem á vontade fazer das suas, sem ter quem lhe vá á mão. Percebe agora? Desde que os liberaes…
—Por quem é, frei Januario, não me venha outra vez com os liberaes. Eu tenho a razão bastante clara para vêr as coisas como ellas são, e não me deixar levar por essa cantiga do costume. Os liberaes!… Os liberaes o que fizeram foi alliviar a agricultura dos enormes encargos que d'antes pesavam sobre ella e que não a deixavam prosperar, foi crear leis e instituições que facilitassem os esforços dos laboriosos e castigassem severamente a incuria e a ociosidade. Quando ao desopprimir-se o lavrador de tributos pesados e iniquos e dos odiosos vexames do fisco, ao tornarem-se-lhe mais faceis os contractos e as transmissões da propriedade, ao crearem-se-lhe recursos para elle tirar do seu trabalho e da sua intelligencia dez vezes mais do que d'antes podia obter, quando na época em que tudo isto se realisa, uma casa como a nossa, em vez de prosperar como tantas, vê apressada a sua decadencia, é porque tem em si um velho e incuravel cancro a roêl-a. E é esse cancro que eu quero conhecer, para extirpal-o, se ainda fôr possivel.
—Eu estou pasmado! Pelo que ouço, acha o menino que todas essas fornadas de leis, que esta gente tem feito, são muito boas e que a sua casa devia ser muito bem servida com ellas?
—Essas leis de que se queixa, são racionaes; uma casa racionalmente administrada não póde pois perder com ellas.
—Sim, senhor! Visto isso, o menino, que depois da morte dos manos, ficou sendo o filho mais velho da familia, gostou talvez muito de vêr acabar com os morgados? Sim, como as leis modernas são tão boas, havia de gostar—argumentou o procurador, com ares de finura, como de quem apanhava em falso o seu adversario.
Jorge respondeu serenamente:
—E porque não? A abolição dos morgados acho eu que foi um grande acto de justiça e de moralidade; além de ser uma medida de longo alcance politico.
—Ai… ai… ai… O que mais terei de ouvir! O menino está perdido!… Pois já me applaude a maldita lei, que ha de dar cabo das familias mais illustres do reino… Ai, como elle está!…
—Deixe-se d'isso. A abolição dos vinculos só trouxe a morte ás casas que deviam morrer. O que ella fez foi proclamar a necessidade do trabalho indistinctamente para quem quizer prosperar. O esplendor das familias deve ficar sómente ao cuidado dos membros d'ellas e não da lei. Quando esses não tenham brio nem dignidade para o sustentar, justo é que elle se apague, e que o nome dos antepassados não continue a ser deshonrado pelos vicios e ociosidade dos descendentes. Mas deixemo-nos d'estas discussões, frei Januario. O meu partido está tomado. Mais tarde saberá das consequencias d'elle.
E Jorge sahiu da sala, deixando o egresso apatetado com o que ouvira.
—Que anda aqui liberalismo, isso para mim é de fé. Mas que mosca o morderia? Querem vêr que já fizeram do rapaz mação? Pois olhem que não é outra coisa. Eu quando os ouço fallar muito do trabalho… já estou de pé atraz. Tem graça! Quem os ouvir, persuade-se de que o trabalho é um prazer. Ora adeus! O trabalho é uma necessidade, o trabalho é um castigo. Para ahi vou eu. Que trabalho tinha Adão no paraizo? E não lhe chamam os livros sagrados um logar de delicias? Amassar o pão com o suor do rosto, olhem que titulo de nobreza! Estes modernismos! Mas é a cantiga da moda. O trabalho ennobrece, o trabalho consola, o trabalho é uma coisa muito appetitosa… Será, será, mas eu, por mim, se pudesse deixar de trabalhar… Ah! ah! ah.
Aqui bocejava o egresso.
—Mas que alli anda liberalismo, isso é tão certo como eu estar onde estou. Como elle fallou nos morgados!… Provará que é tão pateta que, sendo elle morgado, diz d'aquillo. E que vae declarar ao pae… Não declara nada. Um criançola que não sabe senão passear. Tomára elle que o deixem… O ocioso é que é o plebeu, o nobre é o que trabalha. Sim, sim, contem-me d'essas. Aquillo é musica de anjos. Diga-se o que é verdade, quem puder deixar de trabalhar…
Frei Januario, n'estas graves ponderações, deixou-se a pouco e pouco invadir pelo somno, e acabou por adormecer á mesa, sonhando-se em uma especie de paraizo, como o tal logar de delicias de Adão, cuja ociosidade sempre fôra objecto muito dos seus enlevos.
Deixemol-o adormecido, e vamos ter com Jorge a um dos menos arruinados angulos da Casa Mourisca.
Jorge continuou no seu quarto a serie de meditações com que trouxera occupado o espirito toda a manhã. Abria alguns livros, consultava-os com attenção, afastava-os depois com impaciencia, porque raros pareciam responder cabalmente ás mudas interrogações que elle lhes dirigia.
A bibliotheca da Casa Mourisca era na maior parte composta de livros proprios para a cultura do espirito, mas sem definida tendencia para uma applicação pratica qualquer.
Jorge tinha o gosto bem educado e não era indifferente ás obras de pura arte; mas d'esta vez dominava-o uma ideia fixa, um ardente desejo de se instruir nos preceitos positivos de economia rural, e nos conhecimentos necessarios para a realisação da grande obra em que meditava. Algumas arithmeticas, um ou outro raro folheto de agricultura e poucos numeros soltos de jornaes estrangeiros, foi tudo quanto pôde encontrar e que consultou, sem que o satisfizessem as noções rudimentares que n'elles lia. A pequena livraria do tio, á qual devêra grande parte dos seus avançados principios sociaes, estava já esgotada por elle; além de que não abundava em livros de indole verdadeiramente didactica.
Depois de ter folheado por algum tempo todas essas brochuras, Jorge fechou os olhos, como para concentrar o espirito, e resolver só por elle os problemas, cuja solução em vão procurára na leitura. E a razão de Jorge era poderosa bastante para o servir no empenho; colheu d'ella mais fructos do que das paginas dos livros elementares, que anciosamente consultava.
A estas cogitações veio emfim arrancal-o a chegada de Mauricio, já quasi ao fechar da tarde.
Mauricio, logo que transpôz a porta, arremessou o chapéo sobre a mesa com certa vivacidade de movimentos, que trahia uma profunda agitação. Atravessou silenciosamente o quarto com passos apressados, sentou-se ou antes deixou-se cahir sobre uma cadeira, e correu a mão por a fronte, sacudindo para traz os cabellos com um movimento febril.
Jorge, que percebeu em todos estes signaes um dos costumados frenesis do irmão, interrogou-o:
—Que é isso, Mauricio? Que é o que tens? Que te succedeu lá por fóra?
—Deixa-me, Jorge—respondeu Mauricio, levantando-se outra vez e pondo-se a passear no quarto.—Se soubesses como eu venho suffocado de raiva?
—Contra quem?
—Contra esta canalha d'esta gente do campo. Uns miseraveis insolentes que lançam a lama suja, onde nasceram e vivem, á face da gente com o mais intoleravel arrojo! Mas eu esmago-os com a sola da bota!
—Bom! Temos bravatas de fidalguia! Esses arreganhos de senhor feudal hoje são de mau gosto, Mauricio. Olha que já passou o tempo d'elles.
—É sempre tempo de castigar um insolente. O essencial é que se tenha sangue nas veias e pundonor no coração.
—E sangue tambem no coração—emendou Jorge, sorrindo.—Olha que tambem é lá preciso.
—Não rias, Jorge! Por quem és!—tornou o irmão despeitado.—Bem vês que fallo seriamente.
—Então conta-me tudo. Receio que haja ahi alguma das tuas exagerações.
—Não exagero. Esta manhã fui caçar, como sabes. Corri o monte com pouca felicidade; os cães pareciam ter perdido o faro. Voltava já para casa sem esperança, quando, alli pela Quebrada do Moinho, levantaram-se-me quatro codornizes; atiro-lhes, mas mal as feri. Ellas seguem na direcção das azenhas, atravessam os campos que estão em baixo e vão poisar no pinhal que fica para lá da prêsa do Queimado. Sabes? Eu desço com os cães, e, para não dar a volta do portello, galguei o murito da fazenda do Luiz da Azinhaga e ia para atravessar o campo, quando aquelle grosseirão do matto, aquelle villão infame sahe da casa da eira, aonde andava com os criados, e berra-me: «Olá, ó fidalguinho, isto aqui não é terra baldia, nem roupa de francezes.» Eu olhei para elle, mas não lhe respondi e continuei andando; elle tornou de lá, e já caminhando para mim: «Menino, não ouviu? Eu não quero os meus campos trilhados.» «O que estragar, pagarei», respondi-lhe já azedado. O estupido soltou uma risada insolente, e disse-me: «Com o que? Pergunte primeiro em casa se o que lá tem chega para pagar o que devem já.» Ouvindo isto, perdi a cabeça e corri para o homem, exclamando: «Para que não duvides da minha palavra, eu te vou já pagar uma divida, canalha.» Elle estava desarmado, mas recuou para pegar em uma enxada; os homens que trabalhavam na eira correram para mim com malhos e mangoaes; armei a espingarda logo; o primeiro que me ameaçasse estendia-o, palavra d'honra! N'isto ouvi uns gritos por detraz de mim. Era o Thomé da Povoa que passava e que correu a separar-nos. Fez-nos um sermão e trouxe-me quasi á força d'alli. Ahi tens como está esta gentalha. Já não podemos sahir sem nos arriscarmos a ser insultados e assassinados. Quem deu a esses miseraveis o atrevimento de fallar nas dividas da nossa casa?
—Quem as contrahiu e não procura pagal-as—respondeu, triste mas placidamente, Jorge.
E logo depois acrescentou:
—Mas dizes bem, Mauricio, foi uma desagradavel occorrencia. Já vês agora que eu tinha razão no que te dizia esta manhã.
—O que foi?
—Isto não póde continuar assim, Mauricio. Nem tu nem eu temos animo para soffrer humilhações, e ellas são inevitaveis.
—Inevitaveis?! Eu te juro…
—Não jures; não é pela violencia que os obrigaremos a calar. Ou, se se calarem, tem a certeza de que o olhar com que nos seguirem, o pensamento que lhes despertarmos, serão para nós igualmente humilhantes. Ha muito que eu adivinho esse pensamento na maneira por que nos fitam. E foi isso que me fez pensar.
—Mas que intentas fazer então? Qual é o teu plano?
—Fazer-me respeitado; mostrar que não sou inferior a elles.
—Sim, mas de que maneira?
—Resgatando a nossa casa, calando com a paga a bôca d'esses credores insolentes, e collocando-nos, pela prosperidade das nossas terras, ao lado d'elles todos, e acima, pela nobreza dos nossos sentimentos.
—Queres então fazer-te lavrador?
—Quero trabalhar. Olha, Mauricio, tenho pensado muito estes ultimos dias, e hoje mais do que nos outros. A nossa regeneração depende de nos despirmos dos preconceitos sem fundamento, com que nos educaram. A nossa perda é uma inevitavel e justa consequencia do nosso louco modo de pensar e de viver, do nosso falso orgulho e dos nossos habitos viciosos. Pois que quer dizer este infatuamento com que fallamos dos nossos avós? Qual foi a acção nobre, magnanima, que deu tal esplendor a nossa familia, que se não possa apagar esse esplendor com a vida de ociosidade, de desleixo e de dissipação ingloria que levamos? A chronica não é clara a esse respeito. Tivemos guerreiros que morreram pela patria, é nobreza, de certo; mas quantos soldados obscuros não existiram entre os ascendentes d'esses pobres homens que por ahi ha, tão heroes como os nossos, mas ignorados? tivemos um ou dois bispos; elles, algum pobre sacerdote, modesto e humilde, que fez por ventura mais serviços á religião do que o nosso parente mitrado; mas não lhes deu isso nobreza. O que lhes faltou talvez foi um avoengo que prestasse serviços particulares a algum rei benevolente, que em compensação o fez nobre por toda a eternidade; porque tambem ha d'estas raizes em muitas arvores genealogicas; desengana-te.
—Estás eivado de uma philosophia democratica e revolucionaria, que não sei onde te levará, Jorge. E em vista d'isso que resolves?
—Resolvo não continuar a merecer essas humilhações, que não posso deixar de reconhecer que são justas. Elles teem mais direito de nos desprezar do que nós a elles.
—Desprezar-nos!—repetiu indignado Mauricio.
—Sim, sim; desprezar-nos. E senão repara. A nossa casa deve muito. Grande parte dos nossos bens estão hypothecados. O nome da nossa familia não é já segura garantia nos contractos, e os emprestimos, que todos os dias os nossos procuradores contrahem, são obtidos por um preço que em pouco tempo nos levará á miseria. Na aldeia todos sabem isto. Não queres pois que nos desprezem, ao verem-nos, rapazes de vinte annos, robustos, e com energia e intelligencia, gastar ociosamente a vida e a juventude em passeios e em caçadas, olhando por cima do hombro para esses homens que talvez ámanhã, authorisados por a lei, nos virão pôr fóra de nossas casas e tomar posse d'ellas? É acaso nobre este nosso proceder, Mauricio? Esta cegueira, com que vamos na corrente que nos arrasta ao precipicio, não merece pelo menos um sorriso de compaixão?
—Tu exageras, Jorge. Acaso teremos já chegado a taes extremos, que…
—Nem tu imaginas a que extremos temos chegado; mas ainda nos poderemos salvar, se quizermos ser homens.
—E como?
—Mudando de vida, applicando-nos devéras á restauração d'esta casa.
—Mas…
—D'aqui a pouco tenciono procurar o pae e fallar-lhe desenganadamente, pedir-lhe que me deixe olhar por mim proprio para a administração das nossas propriedades, que nas mãos de fr. Januario caminham a uma perda certa.
—Mas que entendes tu de administração?
—Aprenderei. O interesse é um grande mestre. Não tiveram outro esses rusticos proprietarios, que por ahi vemos enriquecer.
Mauricio ficou pensativo.
A ideia do irmão parecia havel-o ferido profundamente. Estava-lhe achando um sabor de poesia que lhe agradava. Porque Mauricio, não tendo o caracter meditativo e o espirito analytico de Jorge, era nas coisas da vida guiado mais pela imaginação do que pela razão. Se uma causa o seduzia, adoptava-a, sem a julgar. Igualmente a rejeitaria, se á primeira intuição lhe desagradasse. Era tão facil de se enthusiasmar por o que ao principio repellira, que não se podia ter muita confiança n'aquelle ardor. Lavrava muito depressa a lavareda para ser de longa duração.
Assim aconteceu d'esta vez, pois voltando-se para Jorge, disse-lhe com uma impetuosidade juvenil:
—Dizes bem, Jorge. O nosso dever manda-nos acabar com esta vida de ocio e de inutilidade. É assim. É preciso que sejamos homens. Temos uma missão a cumprir, generosa e nobre. Trabalhemos. O trabalho traz comsigo a recompensa e os gozos. De certo deve sentir-se orgulhosa e satisfeita a alma do que trabalha, porque vê que cumpre um dever. O que se nos figura fadiga é prazer. Pois não te parece que um escriptor, por exemplo, deve ser feliz nas horas de composição? e que o artista curvado sobre os instrumentos do seu officio, e o lavrador vergado no campo, nem sequer sentem o suor que lhes corre da fronte? Tens razão, trabalhemos, a poesia visitar-nos-ha nas nossas horas de labor, e não nos deixará sentir saudades dos perdidos ocios de fidalgo.
Jorge escutava o irmão com um sorriso triste e innocentemente malicioso, e commentava com um movimento de cabeça uma e outra d'estas estrophes em honra do trabalho. Quando Mauricio concluiu, elle ponderou-lhe com a sua habitual serenidade:
—Valha-te Deus, Mauricio, que estás tu ahi a dizer? Não sonhes nem adoptes uma resolução séria, como a de que fallo, sob o dominio d'essas illusões. Vê as coisas como ellas são. O trabalho é nobre por certo, mas a poesia d'elle nem sempre a percebe quem muito de perto lhe conhece as fadigas. Não vás seduzido para a carreira do trabalho, porque cedo te desanimaria um cruel desengano. É preciso entrar n'isto guiado pela razão, e não por um enthusiasmo fugaz. O escriptor nas horas de composição, e principalmente o artista e o lavrador nas fadigas do seu mister, não teem esses gozos que fantasias; antes devem sentir muitas vezes grandes desalentos e grandes fastios. O que os estimula, mais do que a poesia, é o dever. Recompensas ha, não nego que as haja, além das materiaes. Deve haver uma certa tranquillidade de consciencia, uma ausencia de remorsos, isto de um homem poder fitar sem vergonha os que trabalham a seu lado, como se lhes dissesse: «Tambem tenho direito a viver.» Isso sim; mas o ideal, que sonhas, anda longe das officinas, das fabricas e dos gabinetes de estudo, ou se ahi penetra, é á maneira d'aquelles deuses do paganismo, que acompanhavam invisiveis os heroes que protegiam. Estarás sob a influencia d'elle, mas não o verás. Se a contemplação d'essa divindade é a recompensa que esperas, deixa-te antes ficar a montear por estas aldeias.
Mauricio sorriu, objectando ao irmão:
—És suspeito, Jorge. Tu duvidas encontrar a poesia ao teu lado, quando trabalhares, porque ainda a não viste, aonde todos a vêem, ahi por essas devezas, valles e ribeiras.
—Vi-a ainda hoje em casa de um lavrador, aonde se trabalhava; tu é que não a vias lá.
—Ah! então já confessas que ella está com os que trabalham?
—Mas não a vêem esses. Não a viu Thomé, nem nenhum dos seus criados; vi-a eu que estava de fóra.
—E quem deu a Thomé sentidos para a vêr?
—A ninguem faltam, creio-o. Mas quando se trabalha com verdadeiro ardor, a visão encobre-se prudentemente, como se soubesse que quem a tem presente, tão namorado está d'ella, que o assaltam as distracções dos namorados. E o trabalho é exigente e severo; ha uns cuidados pequeninos, impertinentes, prosaicos, de que elle não prescinde. Ás vezes é util até certa irritação provocada pelas difficuldades fastidiosas que elle suscita; instigam, estimulam brios para vencêl-o.
Continuaram os dois irmãos este dialogo e assentaram emfim na resolução de mudar de vida, cada um com o grau de firmeza propria do seu caracter, e portanto com firmeza desigual. Decidiram fallar n'aquelle mesmo momento a D. Luiz.
A occasião era propicia. Frei Januario dormia ainda a sesta, e portanto o fidalgo devia estar só no seu quarto.
Era já noite. O luar coloria com tintas magicas a paisagem fronteira á Casa Mourisca. Esta desenhava o seu vulto negro sobre o fundo azul pallido do céo sem estrellas. A ramaria dos carvalhos e a queda da agua nas fontes levantavam vozes melancolicas do meio das indistinctas sombras da quinta.
Em noites assim conservava-se D. Luiz longo tempo á janella do quarto. A fronte encostada á mão, os olhos fitos nos pontos illuminados da perspectiva, e o pensamento… ai, quem sabe porque melancolicas paragens andava o pensamento do pobre velho?! Passadas magnificencias, festas, alegrias e triumphos de tempos mais felizes, memorias de vida n'esta habitação hoje silenciosa, e por toda a parte, e sempre, a pallida imagem da filha morta, o enlevo de toda a sua vida, que ao desapparecer lh'a deixou escura e desencantada… que outras podiam ser as visões presentes áquelle espirito sombrio?
Pobre velho!
Foi para este quarto escuro que se dirigiram os dois irmãos.
Ao chegar á porta dos aposentos do pae experimentou Jorge uma primeira hesitação.
D. Luiz tractava sempre os filhos de uma maneira tão austera, abria-se-lhes tão pouco em confidencias, mostrava tão má vontade ao ter com elles longas e sérias conversações, que Jorge precisava de exercer um grande esforço sobre si mesmo para dar aquelle passo tão fóra dos seus habitos.
Pela primeira vez os filhos procuravam assim o pae no proprio quarto d'elle; a estranheza do facto seria pois já uma razão bastante para os perturbar, ainda quando não concorresse para o mesmo effeito a natureza do assumpto da conferencia, que não podia ser mais solemne.
A resolução de Jorge era porém muito forte, e o enthusiasmo de Mauricio muito inconsiderado, para que se deixassem dominar por aquella quasi instinctiva timidez.
Jorge bateu á porta com intimo sobresalto.
Respondeu immediatamente a voz de D. Luiz, mandando entrar quem batia.
Os dois irmãos impelliram diante de si a porta, e afastando o reposteiro, entraram.
Os raios do luar tinham já principiado a penetrar na sala, desenhando no pavimento as projecções das janellas ogivaes, que a pouco e pouco cresciam para o interior.
Do lado da porta eram porém ainda espessas as sombras, e D. Luiz não podia pois conhecer quem entrava.
A sala era extensa, e por isso alguns momentos decorreram, longos para a impaciencia do fidalgo, antes que os dois rapazes chegassem ao logar onde elle os esperava, escutando com estranheza aquelles passos, sem poder conjecturar de quem fossem.
A final proximos da cadeira do pae, pararam e guardaram por instantes silencio.
A fronte descoberta ficava-lhes alumiada pelo luar, e recebia d'aquella mysteriosa luz uma singular expressão de gravidade.
D. Luiz, reconhecendo os filhos, olhou fixamente para elles e perguntou-lhes admirado:
—O que é que pretendem?
Jorge foi o que respondeu.
—Se v. exc.ª nos quizer ouvir, meu pae, desejavamos fallar-lhe.
—Fallar-me?!—repetiu D. Luiz, em tom de espanto e quasi irritado.
—Sim, senhor.
—É singular! E a proposito de quê?
—Do nosso futuro.
—Ah!—exclamou o fidalgo, procurando encobrir em ironia a sua crescente irritação.—Deram-lhe para pensar n'elle agora pelo luar.
—Penso n'elle ha muitos dias, meu pae. Ha muitos dias que elle me inquieta.
D. Luiz fez um movimento, que immediatamente reprimiu, e passou a interrogar Mauricio, no mesmo tom de affectada ironia:
—Tambem te atacaram as mesmas inquietações pelo futuro?
—Ha menos tempo, mas com maior fundamento talvez—respondeu-lhe com firmeza o filho interrogado.
D. Luiz calou-se por alguns instantes, depois tornou para Jorge:
—Então vejamos a causa dos teus receios, saibamos o que te trouxe aqui.
E principiou a tocar nervosamente com os dedos nos braços da cadeira.
—Meu pae—principiou Jorge—perdoe-me a liberdade que tomo de fallar n'isto a v. exc.ª; mas é o empenho que faço em que o nome e o credito de nossa familia se conserve sem mancha… que…
O fidalgo interrompeu-o, batendo com violencia no peitoril da janella.
—E quem o manchou?—rugiu elle, quasi meio erguido, e fitando o filho com um olhar, cujo fulgor até á claridade tibia da lua se percebia.
—Até hoje ninguem; manchal-o-hei eu talvez ámanhã, quando não puder satisfazer os compromissos da nossa casa; manchal-o-hei, quando me bater á porta a miseria e me encontrar com habitos de ociosidade e sem a sciencia do trabalho—respondeu placidamente Jorge á violenta interpellação do pae.
—Então já sabes que te baterá á porta a miseria?—inquiriu o fidalgo amargamente.
D'esta vez foi Mauricio quem respondeu:
—Ha quem se encarregue de nol-o ensinar. Em cada homem do campo temos um mestre, e as crianças por ahi já sabem dizer que os fidalgos da Casa Mourisca estão empenhados.
D. Luiz a estas palavras estremeceu, como ao contacto de um ferro candente; virou-se irritado para Jorge, fallando quasi a custo:
—No meu tempo pagavam-se essas lições bem caras! Para isso serviam então, pelo menos, os rapazes das nossas familias.
—Tambem nós as pagariamos, senhor; mas, voltando a casa, dir-nos-ia a consciencia que não ficavam assim saldadas todas as dividas. O orgulho e a vingança estariam satisfeitos; mas a razão e o dever, não—contestou-lhe Jorge.
—Então queiram dizer-me o que lhes manda a razão, e… e o que mais?…
Ah, sim… e mais o dever.
Jorge, sem se perturbar, acudiu:
—Mandam-nos trabalhar para remir essas dividas; luctar pela integridade d'estes bens, que são nossa herança, augmental-os antes se fôr possivel; mandam-nos manter em respeito essa gente, que nos olha com atrevimento, destruindo para isso os fundamentos da sua insolencia. A razão, meu pae, diz-nos que é uma vergonha e um crime para os nossos vinte annos a vida ociosa e inutil que passamos aqui.
—Muito bem; querem então meus filhos que eu lhes dê um modo de vida; veem aqui no proposito de arguir-me por me ter descuidado de os… arrumar?
O fidalgo empregou no verbo final, de um sabor burguez, toda a emphase sarcastica, que lhe inspirava a sua irritação e orgulho aristocratico.
—Não, meu pae—insistiu Jorge—vimos apenas lembrar a v. exc.ª que chegamos a uma idade em que já nos não satisfazem os gozos da vida de rapaz, de que o muito amor de v. exc.ª nos tem permittido saciar. Vimos pedir-lhe que nos conceda agora licença de nos occuparmos de outra ordem de ideias e de mudarmos de vida. Sentimos despontar em nós desejos novos, vimos respeitosamente annuncial-o a v. exc.ª e rogar-lhe a permissão para realisal-os.
D. Luiz sorriu ironico, porque não podia ainda tomar a serio a resolução dos filhos, em quem só via duas crianças; e continuou zombando:
—Está bem. Então tu o que queres ser?
Jorge respondeu promptamente:
—Procurador de v. exc.ª na administração da nossa casa.
D. Luiz olhou d'esta vez para o filho mais seriamente, porque lhe causára impressão a firmeza e promptidão da resposta, em vez das titubeações que esperava. Convenceu-se de que Jorge não procedia levianamente de todo, e que n'elle havia uma tenção formada. Voltando-se para Mauricio, interrogou-o, ainda no mesmo tom em que principiára:
—E tu? Queres ir para o Brazil?
Mauricio não tinha, como Jorge, uma resposta prompta, porque n'elle o projecto era apenas uma resolução vaga e mal definida, e não um plano fixo e meditado como o do irmão. Era n'essas fórmas vagas que elle mais o namorava, e talvez ao pretender fixal-o, principiasse a experimentar as primeiras repugnancias e desillusões.
D. Luiz esperou alguns instantes pela resposta do filho mais novo, mas, como o visse hesitar, continuou, encolhendo os hombros:
—Ainda não pensaste n'isso. Bom. Ouçamos então primeiro teu irmão. Visto isso achas tu que, sob a tua gerencia, a administração de nossa casa prosperaria?
—Creio que não iria peor conduzida do que vae. V. exc.ª conhece perfeitamente que não será grande façanha ir tão longe como frei Januario.
—É um homem experiente.
—Triste resultado o da experiencia. O pae deve, melhor do que nós, saber o estado dos negocios d'esta casa; mas quer-me parecer que não me enganarei muito, conjecturando a maneira por que elles vão. Pedir emprestado sob encargos e hypothecas pesadissimas, não para melhorar o que ainda possuimos, mas para consumir o pouco que se obtem em gastos improductivos, lavrar arrendamentos com que o senhorio nada lucra e com que a propriedade se empobrece, deixar ao desprezo terras não arrendadas, é a pratica até hoje seguida, tão facil como funesta.
—E quem te disse que é possivel fazer outra coisa?—objectou já sem ironia o pae.—Os tempos actuaes são de prova para familias como as nossas, a maré que sobe traz á flôr da agua o que era lôdo em outros tempos.
—Deixe-me tentar, meu pae.
—Tentar o que? criança. Queres ser enganado e escarnecido por esses manhosos proprietarios e rendeiros, com quem infelizmente temos de lidar? Que sabes tu da administração dos bens ruraes?
—Aprenderei. A sciencia, patente ás faculdades de frei Januario, não é defeza a ninguem.
—Nem tu sabes o que pedes. Não córarias de vergonha no tracto familiar a que esses negocios obrigam, com homens grosseiros, insolentes, miseraveis de hontem, e que hoje nos atiram á cara com a sua riqueza?
—Procuraria d'entre esses os de mais educação.
O velho encolheu os hombros com impaciencia, murmurando:
—Educação! Elles!
—Porém, meu pae—argumentou Jorge com mais vehemencia—é uma triste necessidade esta. Pense bem. Se é vergonha, como diz, procural-os para tractar negocios, maior vergonha será que elles nos procurem para nos expulsar d'esta casa; se a um homem da nossa familia fica mal velar por ella, peor e menos decoroso lhe será ter de deixar esta terra, onde já não possua um palmo de seu, sem poder attribuir essa desgraça senão á sua propria incuria. A memoria dos nossos antepassados soffrerá menos se um dia se disser dos seus descendentes que trabalharam, para livrar da destruição e de mãos alheias o solar que lhes pertencia; do que se se contar, apontando para as ruinas d'esta casa, que elles a deixaram cahir e invadir por estranhos, sem respeito por as gloriosas tradições que a illustravam. É pouco para ambicionar-se esta fama.
—E depois, meu pae—acudiu Mauricio—que dôr não seria o vêr devassado por invasores o quarto em que morreu minha mãe, esta sala, o salão onde brincavamos em criança, e até os aposentos de nossa irmã, da sua querida Beatriz?
A memoria da filha morta commovia sempre o coração d'aquelle velho, que ella ainda povoava de saudades; por isso curvou desalentado a cabeça assim que lhe ouviu o nome, e murmurou:
—Não; a nossa miseria não irá tão longe. Creio que Deus não me reservará esse tremendo castigo. Morrerei primeiro.
—E nós, se lhe sobrevivermos, senhor, não soffreremos tambem? Quererá legar a seus filhos uma herança d'essas?—interpellou-o Jorge.
O pae escondeu a cabeça entre as mãos, já sem signaes da rispidez com que principiara a scena, e não pôde responder a esta interrogação de Jorge.
Mauricio sentiu-se commovido ante aquella sincera manifestação de dôr, que observava no pae, na presença d'elles de ordinario tão reservado.
—Não—acudiu elle impellido por aquelle sentimento—o interior da nossa casa não será devassado por estranhos, nem na sua vida, meu pae, nem depois da sua morte. Dê-nos apenas permissão para trabalharmos, e nós juramos evitar essa humilhação.
D. Luiz ergueu finalmente a cabeça e pela primeira vez fez signal aos filhos para que se sentassem junto de si.
Depois, dirigindo-se ao mais velho, já em tom menos severo:
—Jorge—ponderou elle—a tarefa que queres emprehender não é facil. É verdade que não teem corrido pelas minhas mãos esses negocios, mas sei d'elles o bastante para prever os espinhos que n'elles encontrarias. Frei Januario não é um homem de talento, bem o sei, mas tem experiencia e boa vontade de nos servir, e ainda assim não prospéra esta casa, que foi das melhores da provincia. Como queres tu pois, ha poucos dias uma criança que em nada d'isto pensavas, tomar de repente sobre ti o encargo d'esta gerencia, e como imaginas que darias boa conta d'ella? Os teus planos são vagos. Fallas-me mais nos defeitos dos seguidos até hoje, dos que nas excellencias dos teus.
—Perdão, meu pae, mas não são tão vagos como os suppõe. Pensei já muito n'isso. As difficuldades que ainda tenho, com tempo e meditação espero resolvêl-as; além d'isso… auxiliado… quando necessario fôr… dos conselhos de frei Januario, espero que me será possivel realisar o meu intento. Se me permitte exponho-lhe esses planos em poucas palavras.
Tomando o silencio do pae por signal de aquiescencia, Jorge encetou a exposição dos seus projectos economicos.
Não o seguiremos no longo relatorio, que pae e irmão escutaram admirados de tão inesperada sciencia. De facto, as informações de Thomé, os fructos da propria reflexão, as ideias adquiridas na leitura meditada dos poucos livros da sua bibliotheca, foram os elementos com que o espirito essencialmente methodico e organisador de Jorge construira um completo systema de administração, que, se tinha defeitos, não eram para ser apreciados pelo velho fidalgo, que nunca fôra dado a esses exames. A exposição clara, o tom de convicção, o calor do quasi enthusiasmo com que o filho fallava, enthusiasmo contagioso, exerceram no velho uma profunda influencia. Ao concluir, Jorge tinha vencido a causa.
D. Luiz estava do fundo d'alma convicto de que este filho fôra destinado pela Providencia para ser o restaurador da sua casa.
E comtudo havia um ponto essencial no plano de Jorge, que elle não mencionára. Para realisar a maior parte das medidas economicas, cujos maravilhosos effeitos com tanta eloquencia exposera, era indispensavel um capital inicial não pouco avultado, e Jorge não dissera como havia de obtêl-o. Esta era a parte secreta do seu plano; aquella, cuja menção bastaria para desvanecer toda a boa impressão produzida no animo de D. Luiz.
O capital inicial devia vir do emprestimo razoavel, offerecido por Thomé da Povoa, ou obtido sob a garantia do credito d'elle. Esta operação era indispensavel, era a unica talvez salvadora; por quanto os outros capitalistas tinham sempre em vista apoderar-se dos bens do fidalgo, e por isso sómente emprestavam sob condições onerosissimas e perigosas.
Mas o orgulho de D. Luiz não lhe deixaria aceitar favores de Thomé; nunca elle consentiria na menor transacção com o que fôra seu criado.
Por isso Jorge guardou para si sómente esta parte das suas projectadas operações, e com D. Luiz felizmente era facil passar por alto certos pontos de questões d'esta natureza, que elle mal examinava. Assim pois o pae acabou por dar o consentimento pedido.
—Seja; não me opponho a que te occupes da gerencia da casa, que dentro em pouco tempo será vossa. Vejo que tens reflectido n'isso mais do que eu julgava; comtudo marco duas condições; a primeira é que nunca faças contractos que sejam vergonhosos para o nome de nossa familia.
—Prometto-lhe que não o envergonharei.
—A segunda é que não desprezes os conselhos de frei Januario.
—Por certo que não prescindirei das suas informações.
—Eu lhe darei parte do que resolvi. E agora…—acrescentou D.
Luiz—vamos ao resto… E Mauricio?
Mauricio, interpellado pela segunda vez, achar-se-ia nas mesmas difficuldades para responder á interpellação, se Jorge não respondesse por elle:
—Tambem pensei em Mauricio.
—Ah! tambem?—disse o pae, não podendo occultar a quasi admiração, que lhe estava impondo Jorge.
Mauricio interrogou tambem com a vista o irmão.
—Se Mauricio confia em mim, é inutil a sua permanencia aqui na aldeia, onde não tem em que se occupe.
—Tens a minha plena confiança, Jorge. E a não me quereres para teu guarda-livros…
—Lembrou-me que Mauricio devia partir para Lisboa. Lá poderá ser mais util a si e a nossa casa. É verdade que não é essa por ora uma medida economica; antes obrigará a alguns sacrificios. Far-se-hão porém, se precisos forem, e Mauricio tem brios bastantes para não os deixar ficar improductivos.
D. Luiz fez um gesto de duvida.
—Humh!—objectou elle—que carreira póde n'estes tempos seguir na capital um filho meu? Queres acaso que elle vá renegar da causa, que a nossa familia sempre abraçou, e fazer pacto com essa gente que hoje governa?
—Confesso que mal pensei ainda na carreira que lhe convirá seguir; mas sómente lá é que é possivel a escolha. Parece-me que sem deshonra se poderá trabalhar e ser util á patria, que é sempre a mesma, qualquer que seja o partido que a governe. Mas o caso não urge. V. exc.ª poderia escrever n'esse sentido a nossa prima Gabriella, que melhor que ninguem poderá fornecer-nos valiosas indicações.
—Gabriella?! A senhora baroneza do Souto Real!—accentuou sarcasticamente o fidalgo.—Ora adeus! Uma doida…
—Tem-se mostrado sempre nossa amiga—corrigiu Jorge—e ainda por occasião do fallecimento de Beatriz…
—Sim, bom coração tem ella. Mas a sociedade em que vive, desde que casou e depois que viuvou, tem-lhe feito adquirir as qualidades da época. Não se lembra de que seu pae foi um militar, que morreu com as armas na mão a favor da causa legitimista. Hoje conta os seus amigos entre a gente, que a fez orphã.
—Deve perdoar-se a uma mulher essa fraqueza. Ella não tem coração para odios. Bem o sabe. Parece-me comtudo que, apesar das suas apparencias frivolas, tem um fundo de bom senso d'onde póde sahir um aproveitavel conselho. Falle-lhe v. exc.ª com franqueza, diga-lhe quaes as condições sob que entende poder Mauricio entrar na sociedade, onde vivem sem apostasia muitos adeptos da antiga causa, e eu creio que ella o comprehenderá e lhe dará as informações pedidas.
Ainda n'isto se deixou convencer D. Luiz pela eloquencia do filho. Jorge sabia que a prima era uma mulher de influencia no mundo politico e elegante, e esperava que a reconhecida diplomacia d'ella conseguisse aplanar as difficuldades, em que naturalmente se embaraçariam o orgulho e a paixão partidaria do fidalgo. E para assegurar melhor o resultado que esperava, resolveu elle proprio escrever-lhe confidencialmente.
Quando o pae e os filhos se separaram, achava-se em todos os seus artigos sanccionado o projecto de Jorge.
Frei Januario, dormida a sua regalada sésta, dispoz-se a fazer horas para a ceia, indo communicar ao fidalgo a grande nova das disposições de espirito, suspeitas e subversivas, em que encontrou o filho mais velho.
Ainda D. Luiz meditava nas mudanças que ia soffrer o regimen economico da casa e nas mais ou menos provaveis consequencias d'ellas, quando a voz fanhosa do padre procurador se fez ouvir á porta, articulando o costumado—licet?—E sem esperar resposta o padre frei Januario foi entrando.
—Ainda ás escuras, snr. D. Luiz?!
—Nem sempre temos para nos alumiar luzes tão bellas como esta; respondeu o fidalgo, designando o luar que já lhe inundava o quarto.
—Quer não; isto de luar não é lá das melhores coisas e depois o ar da noite…
—A noite está que parece de maio.
—Sim? mas sempre os vapores dos campos… Eu acho mais prudente accender luz e fechar as janellas.
—Não me opponho, frei Januario, até porque temos que fallar.
—Sim? Tambem tenho que communicar a v. exc.ª
—Pois, muito bem. Vamos a isso.
Fecharam-se as janellas, vieram as luzes e dispoz-se tudo para a conferencia.
D. Luiz exigiu que frei Januario fallasse primeiro.
—Visto isso, principiarei, e o que sinto é que seja para dar a v. exc.ª noticias assustadoras—preludiou o egresso.
—Assustadoras! Que é a final? Alguma insolente exigencia de credor.
—Nada, nada; a coisa é outra. Tracta-se do filho de v. exc.ª
—De Mauricio? Que fez elle?
—Não, senhor; não é do snr. D. Mauricio, que eu fallo.
—Então? É de Jorge?
—Justamente. Eu conto a v. exc.ª
E frei Januario principiou a expôr ao fidalgo os pormenores da discussão que tivera com Jorge ao jantar e a commental-a com reflexões proprias. Horas antes, esta communicação teria talvez produzido o effeito estupendo, que o egresso calculára; mas a prévia entrevista de D. Luiz com os filhos tirára toda a importancia á revelação. D. Luiz apenas franziu o sobrolho á parte mais demagogica das doutrinas do filho, mas esse mesmo signal de desgosto foi passageiro, e quando o procurador acabou a sua estirada confidencia, em vez da indignação e do espanto, com que esperava vêl-a acolhida, apenas escutou estas simples palavras, pronunciadas com a maior fleugma:
—E então que pensa d'isso, frei Januario?
Lá de si para si o padre replicou á pergunta com a sua expressão favorita de desapontamento—Lérias!—mas em voz alta não foi tão expressivo, e respondeu em phrase mais parlamentar:
—O que penso? Que hei de eu pensar? E v. exc.ª o que pensa? Eu por mim penso que anda aqui febre liberal; o veneno já está no sangue. Tão certo! Aquillo dá logo signal de si. Em elles principiando a cantar-me ladainhas a S. Trabalho, eu digo logo com os meus botões: «Pois sim, sim, estás arranjadinho.» O snr. D. Jorge conversou por ahi com algum mação. Quem sabe? Alguns d'esses engenheiros que estão na estalagem do Manco. Isto de engenheiros é gente que se não confessa; ou então são coisas do hortelão, que eu não seja quem sou se ainda não ha de dar que fallar n'esta casa; mas o certo é que lhe metteram na cabeça essas caraminholas e se v. exc.ª não olha por isso, eu lhe protesto que dão com o rapaz mação, o que é uma pena, porque é um bom rapazinho. Mas quando elles me vem com as nobrezas do trabalho aos contos, torço-lhe logo o nariz.
—Parece-me que d'esta vez são sem fundamento os seus receios, frei Januario. A final, pondo de parte alguma expressão menos sensata, e que o verdor dos annos desculpa, as ideias do rapaz são razoaveis.
—Razoaveis?
—Pois porque não? Que quer elle? Occupar em alguma coisa o tempo, que perde na ociosidade. Está cançado da vida de rapaz. É natural e é louvavel. E em que quer elle empregal-o? No que ámanhã será constrangido a fazer, com peior resultado; no que eu devêra ter feito na idade d'elle; em trabalhar, em gerir os bens da sua casa. Mais vale então que principie já, frei Januario, sob a guia dos seus conselhos, do que tarde, ás cegas e sem uma pessoa de confiança a encaminhal-o.
—Pois é verdade, mas…
—Elle fallou-me n'isso ha pouco.
—Ah! pois sempre fez o que disse?!
—Fez, sim, e fez bem. Achei que o rapaz tinha pensado maduramente no caso e dei-lhe a permissão que elle pediu. Era até o que eu tinha para dizer-lhe.
—Então, visto isso, de hoje em diante?…
—De hoje em diante, Jorge se entenderá comsigo. O frei Januario precisa de descançar tambem.
—Eu ainda não estou cançado—resmungou o padre.
—Espero que dará a meu filho todos os esclarecimentos de que elle precise e todos os conselhos da sua muita experiencia.
—Não seja essa a duvida; mas, na verdade…
O relogio do corredor, batendo nove horas, cortou inesperadamente a phrase ao egresso.
Pelos modos a ceia ia tardando.
—Com licença—disse elle, levantando-se—eu vou vêr como correm as coisas na cozinha.
Mas nos corredores murmurava comsigo, em tom aforismatico:
—Não tem que vêr. Filho mação, pae idiota… casa perdida.
Como frei Januario suspeitasse que ia encontrar o cozinheiro menos attento no desempenho dos seus gravissimos deveres, dirigiu-se, pé ante pé, á cozinha, a fim de surprendêl-o em flagrante.
Ao avisinhar-se deu-lhe maior rebate ás suspeitas um acalorado travar de vozes, que de lá vinha.
Espreitou. A criadagem estava em congresso; orava o hortelão, o inimigo irreconciliavel do padre; escutavam-n'o os outros boquiabertos, e mais attento do que nenhum, o cozinheiro, que sentado em um banco baixo, com uma perna atravessada sobre a outra e as mãos a segurarem o joelho, nem ouvia o chiar das caçarolas, nem se lembrava da ceia.
O padre fumou com a descoberta.
O hortelão dizia:
—Foi então que o imperador… oh aquillo é que era um homem!… foi então que elle fez aquella falla que lá está toda na memoria do Mindello, que foi onde nós desembarcamos, no dia 8 de julho de 1832, alli pela tardinha.
E o hortelão, tomando uns ares solemnes e endireitando o corpo, começou recitando oratoriamente:
—«Soldados! Aquellas praias são as do malfadado Portugal; alli, vossos paes, mães, filhos, esposas, parentes e amigos, suspiram pela vossa vinda e confiam…
Era demais para a magnanimidade de frei Januario. A proclamação de D. Pedro desafinava-lhe os nervos, sempre que a ouvia; o que não era poucas vezes, graças ao enthusiasmo do hortelão. Cedendo pois ao seu animo indignado, o padre rompeu pela cozinha dentro, exclamando:
—Então que pouca vergonha é esta? O fidalgo á espera da ceia, e esta sucia de mandriões aqui postos a ouvir as patranhas d'aquelle senhor!
Os criados surprendidos ergueram-se em alvoroço e tomaram os seus postos. O hortelão reagiu, como era seu costume.
—Patranhas? Isso lá mais de vagar. Isto vi e ouvi eu, como o vejo e ouço a vocemecê, e muito me honro em dizêl-o. Patranhas! Quem quizer, póde lêr tudo isso nas gazêtas e muitas coisas mais. Eu fui soldado do imperador e…
—Está bom, está bom: pouco fallatorio. Você o que é, é hortelão; e o logar dos hortelões não é na cozinha.
—Lá se vamos a isso, tambem o do capellão não é ao pé das panellas, e comtudo vocemecê póde dizer-se que não tem outro posto, onde esteja mais firme.
—Tenha cuidado com a lingua; olhe que um dia a paciencia esgota-se e depois não se queixe.
—Não se metta o snr. padre commigo, se não quer ouvir. Olhe que eu fui soldado, e não é um frade que me leva a melhor. A vontade que elles nos teem sei eu, que ainda me lembra de ver arder por os quatro cantos o convento de S. Francisco, na noite de 24 para 25 de julho, e por pouco que não morriam queimados todos os meus camaradas de caçadores 5. Hein? que diz vocemecê áquella caridade?
—Você não se quer calar? Eu direi ao snr. D. Luiz as conversas que você tem aqui na cozinha e a maneira por que falla da religião e da igreja.
—Quem fallou em tal? Eu em quem fallo é nos frades, que é coisa differente.
A desavença terminou com a subita sahida do padre, que perdia as estribeiras n'estas luctas. A criadagem ficou rindo d'elle pelas costas, e o hortelão passou a contar por miudo como tinha sido o caso do incendio do convento dos Franciscanos.
O padre, na presença do fidalgo, encetou a sua millionesima queixa contra o jardineiro, e acabou por dar o millionesimo conselho da sua immediata demissão. O fidalgo ouviu-o pela millionesima vez com o silencio do costume.
D'ahi a momentos estava o procurador aplacado…, porque ceiava.
Á ceia assistia o fidalgo e os seus dois filhos.
Ninguem fallou durante a refeição nocturna. O padre estava amuado, D. Luiz pensativo, Jorge e Mauricio trocando olhares de intelligencia sobre o aspecto carrancudo do padre.
Ao erguer-se da mesa, D. Luiz disse para o filho mais velho:
—O snr. frei Januario já está informado do que hoje se combinou. Ámanhã elle que tenha a bondade de te dar os conselhos precisos.
E depois de uma sêca «boa noite», D. Luiz sahiu da sala.
Os filhos levantaram-se para tambem se retirarem.
Jorge interrogou o padre:
—A que horas quer que o procure ámanhã, snr. frei Januario?
—A que horas?… Ah!… sim… isso… eu sei?… A coisa não é de pressa… Se não fôr ámanhã…
—Ha de ser ámanhã—atalhou Jorge.
—Ha de ser! Essa é boa! Sabe lá da minha vida? Ha de ser! Tem graça.
—Não lhe tirarei muito tempo. Socegue. Quero só que me passe os livros e os papeis.
—Os livros!… e os papeis… Mas para que?
—Porque d'ámanhã em diante tomo conta d'elles.
—Eu não me entendo com criancices. Na verdade o snr. D. Luiz fez-me o que eu nunca esperei d'elle. É bem custoso receber tal paga no fim de tantos annos de serviço! E então que patetices! Attender aos caprichos de uma criança em coisas tão sérias como estas! E sabe que mais, snr. Jorge? Eu não tenho vagar nem paciencia para me pôr agora a ensinar meninos.
Mauricio ia a responder, talvez com aspereza, mas Jorge atalhou-o, dizendo:
—Mas quem lhe falla em ensinar? Quem lhe pede lição ou conselho?
—Então para que me procura ámanhã?
—Para que me dê os livros e mais documentos relativos á gerencia da casa, e me preste os esclarecimentos que eu lhe pedir. Não são perguntas de discipulo…
—Percebo o que quer dizer na sua, são de juiz.
—Não. Quem o suppõe réo? Não, senhor. É apenas uma curta conferencia, como o trocar da senha entre a guarda que se rende.
—Então o snr. Jorge está seriamente resolvido a tomar conta d'isto?
—Muito sériamente.
—Sim, senhores. Ha de ser bonito! Mas isto é até um caso de consciencia, e eu não sei se devo…
—Aplaque os seus escrupulos, frei Januario. A responsabilidade de um procurador expira no dia em que a procuração lhe é retirada pelo constituinte. Até ámanhã. Não se esqueça de me apresentar todos os livros da sua escripturação.
—E elle ahi torna! Ora que scisma! Eu sei lá de livros e de escripturação, homem? É boa! Isto não é nenhum armazem.
—Então geria de cabeça, frei Januario?—perguntou Mauricio, rindo.
—Geria, como entendia. Tomo os apontamentos precisos, mas lá de parlapatices e espalhafatos é que nunca fui.
—Bem; ámanhã examinaremos esses apontamentos; boa noite, frei
Januario—concluiu Jorge.
—Snr. frei Januario, muito boa noite—secundou zombeteiramente
Mauricio.
—Ide com nossa Senhora—murmurou o padre irritado.
Os dois rapazes sahiram, rindo dos amuos do egresso.
Este ficou só, e encetando um habitual complemento da sua substanciosa ceia, ia resmungando:
—Forte pancada a d'esta gente! Olhem agora o criançola… E como elle falla?! Parece já um senhor que todo lo manda! Os livros! Era o que me faltava! era ter livros para assentar contas com rendeiros e dividas da casa. Bem digo eu! Mas deixa estar que eu curo-o da mania de metter o nariz n'estas coisas. Dou-lhe uma esfrega ámanhã. Em elle vendo como a casa está embrulhada, perde logo o furor com que está de a administrar. Sempre lhe hei de fazer uma tal barafunda de papelada, que o rapazinho ha de ir dizer ao papá que não quer saber de contas. Ora deixa estar! Muito me hei de rir. Quando elle principiar a vêr o sarilho, em que isto tudo está mettido, que nem eu sei já como sahir d'elle, então é que ha de dar vivas, e gritar «aqui d'el-rei.» Ora deixa estar.
E o padre ria, ria de boa feição, ao pensar no logro que havia de pregar a Jorge, ria e comia o bom do homem, que era um gosto vêl-o.
Depois foi deitar-se, e o somno de uma certa classe de bemaventurados baixou-lhe sobre as palpebras, suave e restaurador.
Jorge não dormiu, como o padre; velou até alta noite, lendo, calculando, combinando planos economicos. Mauricio tambem dormiu pouco; pensou igualmente no futuro, na revolução que ia operar-se na sua vida, mas de um modo vago, sem ter ainda um plano formado, nem trabalhar para isso. As mais variadas e brilhantes imagens passavam-lhe pela phantasia, sem que se fixasse uma só d'ellas. Era um succeder de ideias tão rapido, que parecia estonteal-o, como o illusorio movimento das margens perturba o viajante novel arrebatado no convez velocissimo d'um barco a vapor.
No dia seguinte teve logar a solemne conferencia do padre e de Jorge.
Frei Januario tentou realisar a traça que com applauso proprio delineára na vespera. Desdobrou em cima da mesa toda a papelada, amontuou, sem classificação nem escolha, procurações, recibos, contas, contractos de arrendamento, titulos de propriedades, escriptos de quitação com a fazenda, e outros varios documentos, com intuito de assoberbar a inexperiencia de Jorge e castigar-lhe as aspirações ambiciosas.
Depois de ter assim patenteado aquelle cahos aos olhos do seu proposto successor, o padre, encostando os braços á banca, apoiou o queixo entre as mãos, posição em que a bôca repuxada lhe tomava um geito de caricatura eminentemente comico, e ficou á espera do resultado das suas manhas com um sorriso de malicia e triumpho.
Jorge porém não desanimou. Com um rapido lançar de olhos julgava da importancia dos papeis, que successivamente examinava, e assim os punha de lado para segundo exame ou os guardava como vistos.
Dentro em pouco tempo entrou a ordem no cahos, e Jorge passou a mais minuciosa revista.
Frei Januario já se sentia um tanto incommodado com o andamento que ia vendo ás coisas, e insensivelmente foi tomando uma posição mais discreta e fugiu-lhe do rosto o ar malicioso com que até alli observára Jorge.
O peior não tinha principiado ainda.
Jorge acompanhou o segundo exame, a que procedeu sobre os papeis de importancia, de uma serie de perguntas, que embaraçaram sobre maneira o padre. Reconheceu então que o filho de D. Luiz não era a criança que elle suppozera, que via mais claro n'aquelles negocios do que elle proprio, com toda a sua experiencia, e que a conferencia, na qual esperava dar uma memoranda lição ao impertinente discipulo, podia muito bem terminar com notavel desvantagem do mestre.
Ao principio do fogo cerrado de questões e objecções, o padre tentou entrincheirar-se atraz de evasivas, tractando o caso jovialmente, mas teve de abandonar essa tactica, diante do tom e aspecto de seriedade varonil, com que Jorge lhe insinuou:
—Snr. frei Januario, eu não vim aqui para brincar, nem o assumpto da nossa conversação é digno d'essas jovialidades. Sou um dos futuros herdeiros d'esta casa e quero saber como ella tem sido administrada até agora.
O padre experimentou a arma da dignidade offendida.
—Então quer dizer que desconfia de mim?… e instaura-me um processo?
—Peço-lhe por favor que não venha com isso outra vez. Ninguem o accusa, já lh'o disse. Peco-lhe só esclarecimentos sobre o passado, para poder caminhar para diante.
Frei Januario acabou por se convencer de que não havia fugir á sabbatina. Não lhe foi suave tarefa aquella.
Jorge pela primeira vez lhe fazia vêr os erros de officio que elle commettêra, a imprudencia com que dirigira certos negocios, o desleixo em que deixára outros, a illegalidade de certos actos, os riscos em que puzera parte dos bens da casa. O padre suava, torcia-se, esfregava a testa, entrava em explicações confusas d'onde com muito custo sahia, titubiava, gemia, protestava, limpava os oculos, chamava em seu auxilio céos e terra; mas tudo era inutil poeira de encontro á paciencia e fleugma com que Jorge o interrogava ou lhe fazia qualquer observação que, sem ser formulada como censura, feria no vivo a susceptibilidade do padre. Em uma palavra, o resultado da conferencia foi exactamente o opposto ao que frei Januario prognosticára. Quem d'elle sahiu atordoado, desgostoso e disposto devéras a não querer saber mais da administração da casa, foi o padre e não o rapaz.
Frei Januario viu com espanto esboroar-se o edificio da sua experiencia, em cuja solidez elle proprio tinha a ingenuidade de acreditar, ao simples sôpro de uma criança. A impressão que lhe ficou d'este apertado inquerito foi tal, que o pobre homem passou a sentir um entranhado mêdo de Jorge, e a empallidecer só com a lembrança de uma scena como aquella.
Sempre que Jorge lhe dirigia a palavra d'ahi por diante, já o padre previa com terror uma interpellação e ficava nervoso! Muito mais se D. Luiz estivesse presente.
Assim pois, graças a estes mêdos, frei Januario em vez de tornar-se vigilante em relação aos actos de Jorge, tractou de evital-o tanto, quanto podia.
O desgraçado persuadira-se de que tinha commettido tantas faltas na sua administração, que o seu desejo era vêr passar já sobre ellas muitos annos para desvanecer-lhes os vestigios.
Jorge ficou pois completamente á vontade. D. Luiz, interrogando o capellão, ouvira d'elle que Jorge estava habilitadissimo para administrar a sua casa. Foi quanto bastou ao fidalgo para confiar cegamente no filho e para annuir sem exame a todos os seus projectos, como por tantos annos fizera aos do padre.
Portanto, sem desconfiança de pessoa alguma, pôde Jorge combinar com Thomé, em entrevistas nocturnas na Herdade, o seu plano de administração. Thomé era n'estas coisas um prudente e avisado conselheiro. Estudaram ambos a maneira de remediar muitas faltas commettidas, entraram em correspondencia com o advogado do fazendeiro, por causa de uma velha e importante demanda da casa; Jorge visitou todas as suas terras, celebrou novos e mais vantajosos arrendamentos sempre que pôde, e para estes primeiros actos levantou em segredo parte do emprestimo agenciado por meio do capital e do credito de Thomé da Povoa.
Causou espanto na terra a revolução administrativa da Casa Mourisca. Os que mantinham vistas interesseiras sobre os bens do fidalgo e que, movidos por ellas entravam em transacções com a casa, conceberam ao principio lisongeiras esperanças, vendo que tinham a tractar com um moço inexperiente. Cêdo porém se desenganaram, encontrando-o sempre cauteloso e perspicaz, graças á intelligencia propria e aos conselhos do previdente Thomé, que entrava em tudo sem ser visto nem suspeitado sequer.
As entrevistas de Jorge e do fazendeiro tinham sempre logar de noite, como já dissemos.
Jorge sahia de casa quando já todos dormiam menos Mauricio, unico que se recolhia ainda mais tarde e que nem sequer sabia das sortidas do irmão.
Thomé da Povoa esperava-o na Herdade, onde o rapaz entrava com o mesmo mysterio, e ás vezes prolongavam-se até altas horas estes conciliabulos economicos.
N'elles, ambos aprendiam. Thomé abria a Jorge os thesoiros da sua muita experiencia, e esclarecia-o com os conselhos dictados por um são juizo e uma natural lucidez. Jorge, que já enriquecêra a sua bibliotheca de novos livros e de periodicos de agricultura e de economia rural, fallava a Thomé dos progressos e melhoramentos agricolas dos paizes estrangeiros, e eram para vêr a attenção e o enthusiasmo com que o lavrador o escutava. Com o animo arrojado e despido do cego e supersticioso amor pelas praticas velhas, Thomé tomava nota de muitas d'essas innovações, para as experimentar, praticando-as nas suas proprias terras. Que bellos e grandiosos projectos de futura realisação não planeavam elles, inspirados das maravilhas obtidas pela agricultura nos paizes mais adiantados, onde é exercida por homens intelligentes e instruidos!
Passado pouco tempo Jorge gozava já na aldeia de uma fama de fino administrador, que lhe grangeou os respeitos de todos os habitantes.
Para esta boa fama concorreu uma circumstancia preparada ainda pelos ressentimentos de frei Januario.
Depois de destituido, e ainda para mais derrotado pelo estreito inquerito de Jorge, e antes que conseguisse dominar completamente o seu despeito, tentára o padre levantar ao rapaz uma nova difficuldade.
Com esse intento convocou um dia todos os criados da casa e da lavoura, que viviam das soldadas do fidalgo, ou melhor na esperança d'ellas, e depois de os ter juntos, deu-lhes velhacamente a noticia de que, tendo sido dispensado pelo snr. D. Luiz de continuar a gerir os negocios da casa, não era d'ahi por diante responsavel pelo pagamento das soldadas atrazadas nem das futuras; que esses negocios estavam agora ao cargo do snr. D. Jorge e que se entendessem com elle, por quanto da sua parte lavava as mãos de tudo.
A estas palavras, levantou-se murmuração entre alguns criados, que não tinham grande confiança no novo gerente e que reclamavam do padre o pagamento das soldadas vencidas, dizendo que era elle o responsavel por esses pagamentos, visto serem do tempo da sua administração.
—Não quero saber de contos—insistia o padre.—Por feliz me dou eu em me terem tirado dos hombros esta canceira. Os outros que se avenham como puderem.
A celeuma continuava, apesar da contrariedade do hortelão, que declarou que pela sua parte estava satisfeito com a mudança, porque o snr. Jorge era um rapaz de juizo e de brios, e, melhor do que ninguem, homem para cumprir a sua palavra.
Estavam as coisas n'estes termos, quando um facto imprevisto as modificou.
Foi o apparecimento de Jorge.
A scena passára-se em uma sala contigua á do cartorio da casa, onde desde pela manhã Jorge se encerrára a examinar uns papeis de importancia. O padre suppunha-o fóra, e por isso promovêra aquella reunião, prestes a tornar-se tumultuosa. Assim pôde Jorge ouvir tudo.
Percebeu a necessidade de fazer cessar aquella scena escandalosa, e terminal-a airosamente, embora á custa de algum sacrificio. N'esta resolução levantou-se e abriu de par em par a porta pela qual communicavam as duas salas.
Assim que o viram, os criados emmudeceram. O padre julgou-se perdido.
Jorge dirigiu-se placidamente áquelles.
—Quando o snr. frei Januario lhes disse que me procurassem para serem pagos do que se lhes deve, era melhor que o fizessem logo, e não levantassem esse clamôr proprio de uma feira. Entrem, que eu aqui estou para lhes fazer contas.
E a um gesto imperioso de Jorge, os criados entraram timidos no gabinete, occultando-se uns com os outros.
—Entre tambem, frei Januario—disse Jorge ao padre, que procurava retirar-se sorrateiramente da sala.
O padre teve de obedecer, a seu pesar.
Jorge sentou-se á mesa e principiou a interrogar os criados, um por um, sobre a quantia que se lhes devia, e pagando-lh'a integralmente, depois de obtida a informação.
Assim os correu e satisfez a todos, á excepção do hortelão, que o estava a observar calado e com os olhos humidos.
Jorge voltou-se para elle e disse-lhe:
—Estou que te fazia offensa, se te pagasse ao mesmo tempo que a estes desconfiados. Tu és dos que esperam com esta garantia.
E estendeu-lhe a mão francamente aberta.
O hortelão quasi se precipitou para ella e apertou-a commovido nas suas.
—Ó snr. Jorge! A maior paga que me póde dar é… não me pagar nunca.
Movidos por esta scena, os outros criados vieram depositar na mesa outra vez o dinheiro recebido.
—Lá por isso… nós tambem esperamos…
Jorge restituiu-lhes o dinheiro.
—Não é necessario… Levem-n'o.
E depois acrescentou:
—As circumstancias actuaes da nossa casa obrigam-nos a fazer mudanças no serviço. Temos de reduzir o numero dos criados de dentro e augmentar os de lavoura. Por isso, vossês quatro, Francisco, Lourenço, Pedro e Romão, podem procurar outra casa. Para nos servir bastam os outros dois. Vossês, os de lavoura, ficam, se quizerem, e se tiverem parentes que pretendam empregar-se aqui no mesmo serviço, mandem-nos ter commigo. E agora podem ir.
O tom em que foram ditas estas palavras excluia qualquer observação.
Sahiram todos.
—Frei Januario—acrescentou Jorge, dirigindo-se ao padre, que estava meio aparvalhado—podia fazer-me saber mais delicadamente esta divida de casa. Apesar d'isso agradeço-lhe o ensejo que me deu de a pagar!
O padre resmungou não sei o quê, e sahiu cada vez com mais medo de
Jorge.
—Onde foi o diabo buscar já tanto dinheiro?—pensava elle.—Não póde deixar de ser da maçonaria.
O hortelão ficou só com Jorge.
O pobre homem estava enthusiasmado com a honrosa distincção que recebêra, e para manifestar o seu enthusiasmo passou a contar a Jorge como é que se tinha dado o ataque do monte das Antas.
Esta scena, divulgada em pouco tempo, concorreu, como dissemos, para augmentar os creditos de Jorge em toda a aldeia.
Succederam muitos dias sem que na vida dos differentes personagens, que já temos apresentado ao leitor, occorressem incidentes dignos de menção.
Mauricio permanecia na aldeia, e vivia n'ella a mesma vida que até alli, porque não se obtivera ainda da prima baroneza a resposta á carta de D. Luiz.
Apesar da energia com que vimos aquelle rapaz abraçar os nobres projectos do irmão, exige a verdade que se diga que elle soffria com demasiada resignação as delongas da empreza, na parte que lhe dizia respeito, e continuava a distrahir-se como d'antes em passeios, caçadas e aventuras galantes. Estava-lhe isto no caracter.
Jorge, esse deitára-se de corpo e alma ao trabalho. Estudava no gabinete, discutia nas conferencias com Thomé, e principiára já a realisar reformas e melhoramentos, promettedores de vantagens futuras.
Os capitaes agenciados pelo fazendeiro haviam já permittido libertar a casa de muita usura e encetar em uma das melhores propriedades do antigo morgado trabalhos agricolas mais activos e methodicos; viam-se já por lá as enxadas e os arados revolverem a terra e desarreigarem as hervas estereis; já se podava e enxertava nas vinhas e pomares quasi bravios, aproveitavam-se as aguas, fertilisava-se o solo, sentia-se renascer aquella natureza amortecida, como se entrasse na convalescença de uma longa enfermidade.
Frei Januario presenciava aquelles prodigios com espanto e despeito, murmurando dos gastos loucos, em que o rapaz se mettia.
—Muito havemos de rir a final—dizia elle.—Entradas de leão; agora as sahidas…
Não communicava porém as suas reflexões ao fidalgo, porque tinha mêdo de
Jorge.
D. Luiz, que em um dos passeios que costumava dar a cavallo, acompanhado de escudeiro, á distancia marcada pela velha pragmatica, teve occasião de observar esses melhoramentos, sentiu um intimo prazer, sabendo que aquella fazenda era agricultada por conta da casa. O fidalgo não procurou informar-se dos meios pelos quaes Jorge chegára a realisar o milagre. Cresceu a confiança no filho e de olhos fechados entregou-se a ella.
Não pararam aqui os trabalhos de Jorge. A casa, como já dissemos, luctava, havia muito tempo, com um importante litigio, que podia decidir do destino de quasi metade dos seus bens. Esta demanda, complicada e de uma marcha morosissima, tomára ultimamente uma feição pouco favoravel aos fidalgos da Casa Mourisca.
Frei Januario já prevenira D. Luiz de que a considerasse perdida.
Jorge, na revista a que procedeu nos archivos de familia, encontrou documentos, a seu vêr importantes e até alli não aproveitados, por incuria do padre-capellão. Mostrou-os a Thomé, que experiente n'estes negocios como um verdadeiro lavrador do Minho, confirmou a valia do achado, e ambos resolveram remettêl-os a um novo advogado, a quem se entregou a direcção do litigio.
Haviam pois sido bem encetados os trabalhos de Jorge. Longe ia ainda o seu pensamento da realisação completa. O que havia por fazer era muito mais do que o que estava feito, mas os principios animavam.
Por este tempo porém sobreveio um acontecimento, que algum tanto transtornou a face d'estes negocios.
Recebeu-se na Herdade uma carta de Bertha.
Preciso é porém dizermos algumas palavras a respeito de Bertha, antes de a introduzirmos em scena; porque a leitora suspeita já que vae chegar a final a heroina da historia; e a ausencia d'ella em sete capitulos inteiros talvez não tenha já sido pouco estranhada.
Bertha, segundo atraz fica dito, era a filha mais velha de Thomé.
Nascida na época em que o fazendeiro não era ainda o homem abastado em que depois se tornou, procuraram-lhe os paes bons padrinhos, para assegurarem o futuro da pequena.
Thomé obteve do fidalgo da Casa Mourisca a condescendencia de acompanhar a criança á pia baptismal; Luiza, pela sua parte, solicitou e conseguiu identico favor de uma senhora do Porto, para casa de quem ella por muito tempo lavára, quando n'esse mister occupava a sua robusta juventude.
A roda da fortuna, por uma das suas muito sabidas revoluções, alterou a posição relativa de toda esta gente, durante o decurso dos primeiros annos de Bertha.
Já sabemos como, em virtude d'esta revolução, Thomé subiu gradual e incessantemente, emquanto D. Luiz descia. O mesmo que a este ultimo succedeu á tal senhora, cuja indole bondosa e timida não soube oppôr estorvos ás prodigalidades de um irmão perdulario; vendo-se em consequencia d'isso obrigada a sahir do Porto, onde vendeu tudo o que tinha, para ir para Lisboa educar meninas.
A primeira discipula que teve foi Bertha. Os paes sentiam ambições por a filha e queriam dar-lhe a educação de uma senhora, aproveitando e cultivando n'ella as boas disposições que já adquirira na convivencia com os pequenos da Casa Mourisca, onde era recebida com affecto. Além d'isso, outra e mais generosa intenção levou-os a darem aquelle passo. Queriam concorrer para alliviar o infortunio da infeliz senhora, que sempre na opulencia os auxiliára e estimára. Possuiam porém bastante delicadeza para lhe offerecerem soccorros, sem um pretexto a coloril-os. Pediram-lhe pois que tomasse conta da educação de Bertha, e assim, além da mezada do costume, tinham o ensejo de fazerem valiosos presentes á mestra, que percebia e apreciava com lagrimas a generosidade d'aquelle proceder.
Foi assim Bertha mandada educar para Lisboa, o que não provocou escassos commentarios na aldeia, onde se disse que o Thomé da Herdade se afidalgava, e que já não queria ter filhos lavradores.
O senhor da Casa Mourisca não viu tambem com bons olhos aquelle passo de Thomé, cujo engrandecimento havia já muito tempo que principiára a incommodal-o.
Bertha, que fôra até então a companheira de brinquedos dos meninos da Casa Mourisca e de Beatriz, a pallida e meiga criança, que temos visto viver ainda na memoria de quantos a amaram, deixou a aldeia uma madrugada com lagrimas e soluços.
Desde então conservou-se em Lisboa, onde só o pae a foi vêr, por duas vezes, deixando-a inteiramente entregue aos cuidados da senhora, que lhe ganhára affeição, cada vez mais funda.
Bertha crescêra; as graças infantis foram a pouco e pouco perdendo n'ella aquellas illuminadas cores com que nos alegram e, diluindo-se nas mysteriosas sombras de uma juventude de mulher, sombras que não empanam a belleza, antes lhe dão mais e mais seductor relêvo. Bertha não era já a criança que sahira da aldeia, sem um pensamento que retivesse, sem um sorriso que encobrisse, sem um olhar que se desviasse pensativo ou timido, sem uma dôr que se não manifestasse em lagrimas; era já a virgem de dezoito annos, sob a influencia da vida nascente do coração, e portanto sujeita a todas as subtis impressões, dominada por todos os impulsos contradictorios e por todas as indefinidas aspirações d'aquella quadra magica.
A vida das cidades, sem lhe dar a morbida languidez, que tão sem razão anda confundida com a elegancia, apurára-lhe a delicadeza feminina, desenvolvêra-lhe a sensibilidade para os affectos e a intelligencia para os prazeres do espirito.
Mas o que em Bertha sobre tudo havia mais digno de referir-se aqui, por ser menos commum phenomeno do que esses que descrevemos, era a permanencia de uma razão clara no meio dos attractivos e seducções, com que a phantasia tantas vezes, em circumstancias taes, a offusca. Gozava, mas sem embriaguez; sentia, mas sem arroubamentos; e, apreciando as prendas de educação que ia adquirindo, nunca perdia de vista a modestia do seu nascimento e a modestia do futuro que naturalmente devia ser o seu. Se tinha sonhos de juventude… e quem os não tem n'aquella idade? sabia que sonhava e não se distrahia a procurar no mundo real as visões, que n'elles lhe appareciam.
A lembrança da sua origem modesta não a fazia melancolica, mas prudente. Não era aquella ideia uma sombra negra, que não lhe deixava vêr a luz; simplesmente um como crystal córado, que lhe permittia fital-a, sem mêdo de offuscação e cegueira.
Assim, no meio das suas effusões, das suas melancolias e até dos seus pequenos caprichos de rapariga, Bertha nunca deixava de ser uma rapariga de juizo.
A educação de collegio não produzira n'ella a adocicada pedantaria de algumas meninas da moda. Nas cartas, que escrevia aos paes, nunca se lia uma phrase que elles não entendessem, uma palavra que os embaraçasse e lhes fizesse sentir a inferioridade da sua educação. Revelava-se n'isto um natural instincto de delicadeza, que Thomé, por um instincto analogo, sabia apreciar.
Sentia que Bertha nunca se envergonharia de chamar a elle pae e mãe á boa Luiza, e esta convicção não o deixava arrepender de a haver educado com esmero. Pobre do homem se esses cuidados lhe tivessem alienado os affectos da rapariga!
As cartas de Bertha eram escriptas de fórma, que não sómente aos paes agradavam, mas a quantos as liam.
Thomé mostrara-as a Jorge, e este não pôde deixar de apreciar a redacção singela e despretenciosa em que parecia reflectir-se a candura e pureza d'aquelle caracter de mulher. Havia n'ellas uma maneira de pensar tão acertada, vistas tão despidas de preconceitos, tanto sentimento revelado com tanta sobriedade de phrases sentimentaes, que são o maior achaque nas cartas de mulher; transpareciam tão distinctamente os suaves e generosos instinctos da sua alma feminina, que o espirito de Jorge sympathisou naturalmente com aquelle outro espirito que, n'essas ligeiras manifestações, se revelava tão irmão seu.
A pouco e pouco uma d'estas sympathias, que ás vezes se originam no coração, lentas, brandas, ignoradas, sem a agudeza das paixões, despertadas por um ente, de quem apenas se conhece o nome, ou quando muito uma feição, um acto da vida, um pensamento, insinuou-se no coração de Jorge. Era um sentimento, que não o inquietava ao principio, nem lhe perturbava o espirito, por isso não se acautelou d'elle; deixou-se repassar d'aquelle grato influxo, sem se lembrar sequer de lhe estudar a natureza, e muito menos de suspeitar-lhe os perigos.
Um dia mostrou-lhe Thomé o retrato da filha. Jorge encontrou n'elle as feições que conhecêra infantis, animadas agora pela vida da adolescencia. Pareceu-lhe não haver contradicção entre aquella physionomia e o caracter que suppozera a Bertha; e a imagem da rapariga começou a apparecer-lhe com insistencia nos seus devaneios de rapaz.
Jorge então assustou-se. Sentia pela primeira vez alguma coisa em si, de que a razão lhe não dava boas contas. Pareceu-lhe ser aquillo uma fraqueza, indigna do seu caracter serio, e resolveu pois vencêl-a.
Desde esse momento principiou uma estranha lucta n'aquella alma, sem que apparecessem fóra vestigios que a denunciassem. Sentia um inexprimivel prazer ao ouvir fallar de Bertha; e por isso mesmo fugia aos ensejos de experimental-o. Esta contenção forçada acabou por produzir no espirito de Jorge um effeito singular; foi um grau de irritação, revelado em uma especie de hostilidade para com Bertha, cuja imagem viera perturbar-lhe a limpidez de coração, que tivera até alli, e fazer-lhe pela primeira vez vacillar a razão, que todos n'elle admiravam. Era o caso de poder dizer-se, em estylo de conceitos: «queria-lhe mal por lhe querer bem.» Receiava-se d'ella, e fazia o possivel para desvanecer a impressão por que se sentia dominado.
Taes são as indicações que julgamos dever dar a respeito de Bertha, antes de narrarmos o effeito da carta, que d'ella se recebeu na Herdade.
Esta não era uma simples carta de cumprimentos ou d'aquellas, em que a filha se estendia em longas conversas com o pae, contando-lhe por miudo os singelos episodios da sua vida de rapariga. D'esta vez havia n'ella uma nova importante e que ia modificar o plano de vida da familia.
A senhora, em casa de quem Bertha se educava, havia repentinamente fallecido.
Bertha escrevia assim ao pae:
«Meu querido pae.
«Escrevo-lhe a chorar e com o coração a partir-se-me de dôr. A minha madrinha falleceu esta madrugada. Ainda hontem à noite esteve a conversar e a rir comnosco, e tinhamos até combinado para hoje um passeio a Cintra! De madrugada foram acordar-me a toda a pressa para ir ter com a senhora, que estava mal. Cheguei para a vêr expirar; custou-lhe já a dar-me um beijo e a despedir-se de mim. Imagine como estou! Nós todas ficamos como loucas! Ainda isto me parece um sonho! Veja que malfadada senhora! Agora que principiava a viver outra vez mais feliz!… Peço-lhe que me diga o que devo fazer n'este caso. Eu sei que o pae já uma vez fallou em mandar-me para outro colegio, se por acaso me faltasse a minha madrinha. Deixe-me porém lembrar-lhe algumas coisas, e depois decida. Eu não quero dizer que tenha uma educação perfeita; mas, como não conto, nem desejo, viver nas salas d'aqui, posso bem passar sem esses apuros, que para isso me seriam precisos. Muito tem já o pae feito por mim; é preciso agora olhar por meus irmãos, e alguns estão em idade em que ainda podem agradecer-me alguns serviços, que eu ahi consiga fazer-lhes. Mande-me ir. A mãe deve ter muito trabalho em olhar por tudo em casa. É tempo que eu a ajude em alguma coisa. Aos dezoito annos é uma vergonha não o fazer. É uma parte da minha educação que posso concluir ahi e que me será bem necessaria. Demais confesso-lhe que, depois da morte de minha madrinha, havia de custar-me a continuar em Lisboa. Peço-lhe pois que me deixe ir viver comsigo e matar as saudades, que já tenho de todos e de tudo.
Muitas lembranças á mãe, muitos beijos aos pequenos.
Sua filha, que espera muito cêdo abraçal-o,
Bertha.
P.S. Que não esqueça dar muitos recados á Joanna, ao Manoel da Costa
e á filha, assim como á tia Euzebia e ás mais pessoas amigas.»
Thomé leu á mulher a carta da filha, e entre ambos discutiram o partido que conviria adoptar.
Saudades maternas e paternas, desejos de vêr de perto e abraçar a filha dilecta e primogenita, que havia tanto tempo lhes andava longe das vistas, o sonhado prazer de a sentir, animando a casa com todo o calor de vida que em torno de si diffunde uma rapariga de dezoito annos, resolveram a questão no sentido indicado por Bertha; e para assim a resolver, quasi bastava que ella o indicasse.
Decidiu-se pois que Bertha voltasse para a Herdade.
D'ahi os necessarios preparativos para a accommodação da filha, cujos habitos, modificados pela vida da cidade, deviam ter exigencias, a que era justo attender.
O instincto materno adivinhava melhor do que era d'esperar essas miudas necessidades, e a liberalidade paterna provia a ellas. E tudo isto preoccupava o feliz casal, cujo contentamento se reflectia em criados e jornaleiros.
Jorge encontrou uma noite Thomé ainda empenhado n'esta labutação caseira, e soube d'elle a causa de tanto alvoroço.
O filho mais velho de D. Luiz ouviu com sobresalto a noticia.
Parecia prever a aproximação d'um perigo, que mal ousava definir.
Dissimulou comtudo o que sentia, e deu a Thomé e a Luiza os parabens pela proxima chegada da filha, e até os auxiliou com o seu alvitre na resolução de algumas difficuldades, relativas ao arranjo do gabinete destinado a Bertha.
Sahiu porém da Herdade debaixo de estranhas impressões moraes. Experimentava um mixto de mal definido prazer e ao mesmo tempo de desgosto.
Thomé resolvêra ir elle proprio a Lisboa buscar a filha.
Interromperam-se pois, durante alguns dias, as conferencias economicas da Herdade.
A demora de Thomé não foi longa.
Pouco mais de oito dias passados, era elle de volta com a Bertha.
Uma tarde vinha Mauricio a cavallo de uma excursão pelos campos, quando, ao descer por entre os pinheiros de uma bouça cerrada, viu passar, em um curto lanço de estrada, que as entreabertas do arvoredo deixavam patentes, o vulto de dois cavalleiros.
Attrahiram-lhe naturalmente a attenção e esperou, para melhor os reconhecer, que chegassem a outro lanço mais proximo e mais descoberto da estrada que seguiam.
De facto, pouco depois viu que eram um homem e uma senhora, que cavalgavam a par.
No homem reconheceu Thomé; a senhora pareceu-lhe nova e elegante.
Em resultado d'esta dupla descoberta dirigiu o cavallo immediatamente para elles.
Perto principiou a divisar na dama, que Thomé acompanhava, feições conhecidas.
Antes porém que esclarecesse a vaga ideia que aquellas feições lhe iam suscitando, o fazendeiro exclamou, saudando-o com a mão:
—Venha dar-me aqui os parabens, snr. Mauricio; venha cá, que me volta ao pombal uma pomba que deixei sahir d'elle ha muito tempo.
Mauricio acabou por corroborar a suspeita que já tivera.
Era Bertha a amazona.
Bertha, a pequena aldeã com quem brincára em criança no pateo e na quinta da Casa Mourisca, a companheira de sua irmã Beatriz, a afilhada de seu pae e a pequenina dama, a quem dedicava já então os seus galanteios infantis; era ella, mas com todas as surprendentes e rapidas transformações que opéra o sangue da juventude na formosura de criança, com todo o realce e prestigio que dá á belleza a educação.
Bertha era uma rapariga de olhos negros e de bôca graciosa, onde fluctuava um sorriso expressivo ao mesmo tempo de alegria e de bondade. Havia nos movimentos, nos olhares e nos modos d'ella um mixto da candura de uma criança e dos delicados instinctos da mulher; reconhecia-se a falta de dissimulação, que é propria dos caracteres generosos, e ao mesmo tempo uma natural dignidade, que impõe respeito aos menos reverentes.
Mauricio sentia-se maravilhado diante da filha de Thomé.
—Bertha!—exclamou elle, sem disfarçar a sua surpreza, nem desviar os olhos da rapariga, que o saudára córando.—E é certo que é Bertha! Conheço ainda o sorriso, que é o mesmo de outros tempos. Mas que differença em tudo o mais!
Bertha desviou os olhos sob a insistencia e expressão dos de Mauricio, e dominando a custo a commoção conseguiu dizer:
—Fiz-me mais velha, não é verdade?
—Não, Bertha, fez-se um anjo—acudiu Mauricio.
—Isso é que não—atalhou Thomé—anjo era d'antes. Hoje já não repicariam os sinos, se ella morresse.
—A terra teria bem razão para lamentar-se. Ao céo é que competiriam as festas—atalhou, galanteando, Mauricio.
—Tambem eu encontro mudança em si, snr. Mauricio—observou
Bertha.—Quando o deixei, não dizia ainda d'essas coisas.
E a mesma intima turbação tirava-lhe ainda a firmeza á voz e ao olhar.
—Porque não as sentia, Bertha—redarguiu Mauricio.
Bertha abanou a cabeça com ar de duvida e quasi de tristeza, e tornou sobresaltada:
—Parece-me que os que melhor dizem d'essas coisas são os que menos sentem.
—Tambem lhe ensinaram a desconfiar, Bertha?
—É tão facil ensino! Cada um aprende por si.
—Vamos—interrompeu Thomé—nada de estar parados no meio da estrada. Lembra-te, Bertha, de que tua mãe a estas horas não faz outra coisa mais do que espreitar da janella a vêr se te vê chegar.
—Vamos lá.
Mauricio dirigiu o cavallo para o lado do de Bertha, que cavalgava assim entre o fidalgo e o pae.
—Que saudades me estão fazendo estes sitios!—dizia Bertha, suspirando e emquanto corria a vista pelo horisonte, que a rodeava.—Tudo me é tão conhecido ainda!
—Lembra-se d'aquelles freixos, lá em baixo, ao descer para os Palheiros
Queimados?—perguntou Mauricio, apontando para o logar que designava.
—Bem sei. É onde está a fonte da Moira.
—E aonde nós um dia fomos com a Anna do Védor colher agriões. Está certa?
—É verdade. E por signal que nos sahiu da quinta do Emigrado um cão grande que lá havia, e que se atirou a mim com uma furia!
—E não se lembra de quem lhe acudiu?
—Sim, foi o snr. Mauricio, mas tambem lhe valeu a Anna do Védor, que se não fosse ella, vamos, não sei o que seria.
—Ainda assim não impediu que o endiabrado me mordesse no pulso; ainda conservo a cicatriz. Olhe.
E Mauricio mostrou o pulso a Bertha, que se curvou para observar o vestigio d'aquelle episodio de infancia.
—É verdade—proseguiu Bertha, já mais á vontade—e a boa ti'Anna do Védor? que tanto lhes queria, a si e ao snr. Jorge? Sei que vive; mas ainda é o que era d'antes? alegre, robusta, franca?…
—Quem? a ti'Anna?!—acudiu Thomé—verás, Bertha, que ainda te parece mais nova. Aquillo é que é mulher de casa! É um gosto vêl-a, no meio dos campos, de mangas arregaçadas e chapéo de palha na cabeça e de enxada ou mangoal na mão. O seu trabalho vale por o de dois homens. Pois n'uma eira?
N'este ponto Thomé deu um assobio, que exprimia a grande conta em que tinha o trabalho de Anna do Védor.
—O filho está regedor.
—É uma boa e generosa alma—tornou Mauricio, com uma expressão de sincera sympatia.—E quer-nos como a filhos.
—Isso quer—confirmou Thomé—quando falla nos seus meninos que trouxe ao collo e que sustentou com o seu leite, luzem-lhe os olhos.
—E tambem me ralha com uma severidade!
—Vamos, que ella bem sabe porque o faz. Então pensa que não lhe merece ainda mais?
—Não digo que não. Só me queixo de certa parcialidade que manifesta por
Jorge.
—E como vae o snr. Jorge?—perguntou Bertha.
—Muito bem. Fez-se caixeiro. Não sabe? Atirou-se aos livros e á papelada da casa, como um homem, e já não ha de tirar-lhe palavra que não seja de contas e de negocios.
—E é um homem ás direitas—disse Thomé, com gravidade.
—Pois sim, mas podia distrahir-se mais um bocado. Mas então? Deu-lhe
Deus aquelle genio frio como gêlo!…
—Eu não sei lá se é frio ou se é quente. O que sei é que é um rapaz de juizo e que, se continuar assim, ha de remediar muita doudice, antiga e moderna, que ha lá por casa.
—A moderna é commigo, aposto. Não tem razão. Eu tambem estou decidido a trabalhar. Se ainda aqui me vê, a culpa não é minha.
—Então vae partir?—perguntou Bertha.
—Que remedio, Bertha? Cumpro uma dura lei. Deixo o coração por aqui, acredite; por esses valles, por essas devezas, por essas ribeiras… Mas que lhe hei de fazer?
—E para onde vae?
—Eu sei? Para onde me levar o destino. Mas o Thomé ri-se! Seu pae ri-se, Bertha!
—Rio-me da lamuria. Quem o ouvir, ha de acreditar que elle parte devéras e que lhe custa immenso a partida.
—E então?
—A mim já me custa a crêr que o snr. Mauricio nos deixe; mas, a isso succeder, não ha de ser a chorar que arranjará as malas.
—É injusto com o meu coração. É o que se segue.
—Não, senhor; não sou; mas sei o que é ter vinte annos, e sei o que é essa cabeça. E agora o nosso caminho é por aqui. O snr. Mauricio, se quizer dar-nos o prazer da sua companhia, tem no fim d'esta rua uma casa para o receber, senão…
—Agradecido, Thomé. Outro dia será. Não quero perturbar com a minha presença as alegrias de familia. Adeus, Bertha, continuaremos a ser os amigos que eramos d'antes, não é verdade?
—Porque não, Mauricio… snr. Mauricio?
E Bertha, com um sorriso de generosa confiança, estendeu a pequena e delicada mão á que Mauricio lhe offerecia.
Este, com uma galanteria, que o seculo actual traz quasi esquecida, levou-a cavalheirosamente aos labios, movimento que augmentou as côres nas faces de Bertha; depois, cortejando-a com perfeita elegancia, partiu a galope.
Bertha seguiu-o por muito tempo com os olhos e ficou pensativa, depois que o perdeu de vista.
Thomé, que notára tudo isto, não deixou passar muito tempo que não admoestasse a filha.
—Olha cá, Bertha, tem cautela com o teu coração, que não vá elle por ahi deixar-se prender. Eu não sei como é costume viver-se hoje lá na cidade, mas aqui sei o que vae. Eu te digo, não ponhas muita confiança n'estas amizades de Mauricio. Não digo que elle seja mau rapaz, mas a cabeça é que é assim não sei como. E n'isso mesmo é que está o perigo. Aqui ha poucos rapazes que agradem mais do que elle; é bem feito, vivo, esperto, generoso… Na tua idade, e com a educação que tens, não era para admirar que te agradasses de um rapaz assim. Mas, pensa emquanto é tempo, filha, no mal que a ti propria fazias, se estouvadamente te deixavas enfeitiçar. Elles são os fidalgos que sabes, e mais fidalgos ainda se julgam do que são. Tu, rapariga, és minha filha, e eu sou um lavrador, que já servi n'aquella casa. Entendes? Ó Bertha, por quem és, não me faças arrepender da educação que te dei. Porque eu, ás vezes, tenho minhas duvidas. Digo eu commigo: «Faria eu bem em educar minha filha assim? Se a tivesse deixado viver na aldeia e a creasse como filha de lavrador, dava-lhe um marido lavrador, e ella havia de estimal-o e de ser feliz com elle, e de olhar com amor pelos filhos descalços, que lhe andassem pelos campos e apegados á saia de baêta; mas assim… Quem poderá costumal-a a isso? Mas que outro marido póde ella escolher?»
Bertha escutou o pae com um sorriso nos labios, mas sorriso que não annullava a expressão melancolica e pensativa, que conservavam o resto das feições. Mais de uma vez se perturbou ao ouvil-o, mas cêdo adquiriu a serenidade habitual.
N'este ponto atalhou-o, dizendo:
—São prudentes os conselhos que me dá. Farei por não os esquecer. Mas não se inquiete pela minha sorte. Nunca me deixei illudir pelos bens que a sua bondade me teem permittido gozar na vida; não perdi de vista o que sou. Sei ao que devo aspirar, e farei por não collocar a felicidade muito acima do alcance de meu braço. Na amizade de Mauricio creio que não haverá perigos para mim; mas se os houver, hei de saber fugir-lhes. Foram meus companheiros, quando brincavamos todos n'aquella casa; quero-lhes por isso, mas sei o que d'elles me separa.
—Lá de Jorge nada temas. É um caracter serio aquelle. Se disser que é teu amigo, é teu amigo devéras; senão, não t'o diria; mas este…
—Jorge é ainda o que sempre foi. Já em criança era o mesmo. Sempre tão serio!
—Agora ainda mais. Elle hoje não pensa senão nos negocios da casa, que tomou a seu cuidado e que levará a bom fim. Creio-o. Vem quasi todas as noites a nossa casa; vem de noite por causa do pae, porque o velho não tem cura, a querer-me mal.
—Sim?! Mas que pena!
—Deixal-o lá, que eu em vingança hei de fazer-lhe o bem que puder.
Poucos momentos depois chegavam a casa o pae e a filha; esta foi recebida nos braços da boa Luiza, que a devorou com beijos e a banhou de lagrimas generosas; os irmãos pequenos olhavam espantados para Bertha que não conheciam, e cujas maneiras de senhora estranhavam. Os criados felicitavam-n'a tirando o chapéo e murmurando phrases incompletas.
Bertha no meio d'aquella effusão, d'aquelle cordial acolhimento, d'aquelle renascer dos dias passados e despertar de memorias queridas, sentia-se feliz.
Debalde Thomé, um dos mais folgados corações alli presentes, bradava que era tempo de pôr termo á festa, que cada um tinha a sua vida a tractar, e que Bertha precisava de descanço; os abraços succediam-se, os beijos estalavam, as perguntas cruzavam-se e interrompiam as respostas em meio.
Prolongou-se por muito tempo aquelle grato alvoroço, que produz a chegada de uma pessoa querida. A ordem, a etiqueta, os costumes, tudo esquece; a manifestação é ruidosa, irresistivel, desordenada, anarchica. Sómente quando principia a acalmar-se este agradavel delirio de alma, é que se repara nas irregularidades da scena, e que se remedeiam.
Succedeu d'esta vez que só passada meia hora Luiza notou que tinham estado tanto tempo no quinteiro, quando os esperava a sala que ella de proposito e tão anticipadamente preparára para a recepção.
A familia recolheu-se então, principiou mais regular e ordenada conversa entre mãe e filha, e prolongou-se até tarde.
Thomé foi n'esse dia pouco vigilante nos campos e mais caseiro do que era seu costume.
Foram momentos festivos para a Herdade, d'estes que é inutil descrever, porque não ha expressões que bem traduzam o que se sente então. Suppram-n'as as recordações do leitor; e muito sem conforto deve ter sido o seu passado, se não lhe dá elementos para conceber alegrias d'estas.
Duram pouco as effusões, dissipa-se em breve o enthusiasmo dos primeiros instantes, em que tornamos a vêr scenas e pessoas conhecidas, de que por muito tempo vivemos separados. A alma, de subito agitada, readquire gradualmente a serenidade do costume; e o coração, que julgava saciar emfim a ancia de mal definidos gozos em que continuamente vive, conhece que ainda não chegou essa hora; porque o invadem de novo as mesmas vagas e inquietadoras aspirações que sentia.
É grande a alegria do regresso, mas rapidos os momentos, em que se experimenta na sua intensidade. Chegou-se de longe a phantasiar um prazer perduravel, sem fim e, apoz as primeiras e irreprimiveis expansões, desvanece-se a illusão em que se vinha; como sempre, como em toda a parte, o vazio sente-se no coração, que nenhum gozo enche, e ahi se volta a aspirar sem saber a quê, e a aguardar uma nova aurora sem saber d'onde.
Quando, á noite, Bertha se retirou emfim ao seu antigo quarto, havia já satisfeito a sêde de affectos e de saudades, que a devorava, ao chegar.
O coração batia-lhe com o rithmo normal, habituára-se de novo a sua sensibilidade aos objectos que lhe foram familiares na infancia; da impressão que o primeiro olhar que lançou sobre elles lhe produzira, já nem indicios restavam.
O passado, resuscitando, perdêra já o prestigio e a poesia, que só como passado tem.
Ó feiticeiras fadas, que nos acompanhaes quando por longe andamos, devorados de saudades, a lembrar-nos da terra em que nascemos, porque tão depressa nos abandonaes á chegada? Porque dissipaes os vapores inebriantes de que rodeaveis aquellas imagens aos nossos olhos fascinados, e nos fazeis vêr a realidade como a viamos d'antes?
Bertha, só no remanso e solidão do seu quarto, sentiu uma profunda melancolia tomar-lhe o coração. Os cuidados e disvelos de Thomé e de Luiza não tinham sido sufficientes para transformar completamente aquelle aposento em um d'esses recintos, perfumados e graciosos, em que respira, como em atmosphera propria, uma mulher delicada.
A este desconforto relativo não podia ser de todo insensivel a organisação feminil de Bertha.
Sem que ella propria tivesse consciencia do que lhe produzia esse effeito, sentia-se com uma disposição para lagrimas, que a surprendia.
O socego da hora, o silencio do campo, apenas cortado por uns indistinctos murmurios, que são o mysterio das noites campestres, conspiravam para augmentar-lhe esta melancolia.
Ha horas assim, em que parece que sentimos confranger-se dentro de nós o coração, e o futuro escurecer e contrahir-se o circulo que nos abrange a existencia, como um horizonte, que as nuvens pesadas da tempestade estreitam cada vez mais a suffocar-nos.
Não accusem Bertha por esta inexplicavel tristeza que lhe invadiu o coração na propria noite, em que voltára á casa paterna. Não duvidem por isso dos affectos d'aquella amoravel indole de mulher.
Nem todas as almas nascem dotadas da commoda flexibilidade com que algumas a tudo se amoldam. Ha-as tão delicadas, que a menor mudança resentem.
Os corações que se prendem depressa com raizes onde se demoram, são os que mais soffrem nos primeiros momentos de uma transplantação.
Não era isto em Bertha pezar por ser tão modesta a casa dos seus paes; a sua tristeza era mais de instincto que de razão. E pelas impressões que vem do instincto, ninguem é responsavel; só á razão ha direito de pedir contas, e a de Bertha não recearia prestal-as.
Como para fugir á estranha melancolia que a dominava, Bertha chegou á janella do quarto, que deitava para os campos.
Ha uma mysteriosa solemnidade no espectaculo que de noite, e noite de pouca luz, se goza assim de uma janella aberta, no campo. Ha fóra um silencio que amedronta, uma escura vastidão que apavora, silencio que ás vezes interrompe o rastejar furtivo de um reptil, o cahir de uma folha, e não sei que outros ruidos vagos; escuridão, onde parece distinguir-se o movimento de umas fórmas estranhas e monstruosas.
Se vos demoraes silenciosos n'essa contemplação por algum tempo, já não a interrompereis por uma palavra, por um movimento, sem que essa interrupção vos sobresalte ou intimide quasi. Estremecereis ao ouvir-vos no meio d'aquelle silencio. Instinctivamente falla-se baixo. Parece que aquella paz, que aquella quietação, que aquella treva nos absorve, que nos domina, que nos attrahe e que de alguma maneira nos faz parte integrante de si mesma.
Opera-se em nós uma quasi magnetisação. Adormece a sensibilidade que nos revela o mundo exterior; exalta-se o espirito; e o ruido, que nos acorda d'este sonho, faz-nos estremecer. E o que se pensa calado n'esses momentos, Sancto Deus! Como a imaginação vagueia, como parece que d'aquellas confusas sombras, que temos diante de nós, nos surjem as memorias do passado e veem, em silencioso vôo, adejar sobre as nossas cabeças e estontear-nos com as suas rapidas e vertiginosas voltas.
O passado de Bertha era uma singela historia dos mais innocentes affectos. Não havia n'ella a intensa luz dos amores, apenas o debil clarão da aurora que os precede, essa mysteriosa vibração de alma, que sente nascer em si faculdades novas.
Eram pois imagens apraziveis as que n'aquelle momento lhe appareciam.
Entre ellas a mais persistente era a da sua pobre amiga Beatriz, a delicada criança, que parecia ter vivido sómente para semear de saudades o coração de quantos a conheceram.
Reviviam para Bertha n'aquella hora todas as scenas da infancia passadas com ella; os jogos, os folgares e até as lagrimas, choradas em commum.
Que tempos!
E ao lado da meiga e pallida figura de Beatriz surgiam as das outras duas crianças, seus irmãos. Via o rosto infantil de Jorge, no qual já então havia uns assomos da seriedade do seu caracter futuro; lembrava-se Bertha das vezes em que elle tomava um ar grave para admoestar ou reprehender os seus mais turbulentos companheiros, e do respeito que todos lhe tinham, e do muito em que estimavam a sua opinião; e a contrastar com esta serena imagem, esboçava-se a do inquieto, vivo e estouvado Mauricio, criança prompta nos risos e no chôro, violenta nas expansões, tão amoravel como colerica, e em cujo coração infantil ferviam já nascentes as paixões de homem. Era esta talvez de todas a imagem que avultava mais distincta nas recordações de Bertha. Que de episodios em que ella recebia a luz principal do quadro! Dos dois irmãos fôra este o predilecto; o seu coração de criança abrira-se mais á franqueza de Mauricio, do que á seriedade de Jorge; havia no olhar d'este uma expressão grave que a intimidava. Depois a differença da idade concorria para augmentar esse effeito.
E Bertha, pensando n'isto tudo, erguia os olhos para o vulto da Casa
Mourisca, onde se tinham passado aquellas alegres scenas.
Era escuro todo elle, e parecia alli posto, como um d'estes monstros enormes, que guardavam os jardins encantados.
De repente o monstro abriu um olho.
Appareceu uma luz em uma das torres do palacio.
Era a unica que divisava em toda aquella escuridão.
Bertha não pôde mais desviar os olhos d'ella.
De quando em quando, desapparecia momentaneamente a luz, como se alguem passeiasse diante. Depois fixou-se, e sómente mais de espaço a espaço se eclipsava, para surgir mais viva.
Tudo parecia indicar que se velava alli dentro.
—Será o snr. D. Luiz?—perguntava a si mesmo Bertha, observando a luz.—Em que pensará elle a estas horas? Pobre velho, alli só, n'aquella casa deserta!… É em Beatriz de certo que pensa como eu… Ou, quem sabe? talvez não seja o fidalgo, mas algum dos filhos; Mauricio, provavelmente… Sim, alli deve ser o quarto d'elles…
E a imagem do mais novo dos filhos de D. Luiz entrava outra vez no campo da visão de Bertha.
As palavras que trocára com elle aquella tarde, a maneira como a olhára, e o que o pae depois lhe dissera a respeito do rapaz, tudo a fazia reflectir.
Adivinharia Thomé com o seu bom instincto de homem do campo?
Haveria para o coração de Bertha perigos na presença de Mauricio?
Era tão natural! Em uma alma, preparada para o amor, e que, á similhança da noiva nos livros sagrados, espera ha muito, perfumada de mirrha e de puros aromas, o noivo que tarda; encontra tão facil asylo a imagem de um adolescente, como Mauricio, sobre tudo se o rodeia o prestigio das saudades de um passado ridente e o vago reflexo que sempre deixam de si umas pueris paixões, com que se illudiu a infancia, que razão tinha Thomé para receios e razão tinha Bertha para, pensando n'elles, sondar com inquieta apprehensão o sanctuario dos seus mais intimos affectos.
Prolongou-se esta contemplação em Bertha, e succederam-se-lhe no espirito os mais diversos pensamentos, emquanto os olhos se fixaram na luz da Casa Mourisca. Só muito tarde desappareceu subitamente essa luz. Bertha, como acordando de um sonho, voltou-se então para o interior do quarto, do qual lhe parecia haver andado longe em todo aquelle tempo.
A vela, quasi gasta, que tinha ao lado do leito, mostrava-lhe o muito que, sem o sentir, se prolongou aquella sua abstracção.
A vista dos objectos do quarto evocou-a á realidade. Passou as mãos pelo rosto, como para desviar de si a sombra dos graves pensamentos que a opprimiam, sacudiu a cabeça suspirando, e procurou serenar o espirito, para dormir.
—É necessario ter juizo—murmurava ella, soltando as tranças—e soprar quanto antes estes nevoeiros que me rodeiam, para vêr, como elle é, o sol da realidade. É tempo de me deixar de loucuras, e de aceitar a vida que tenho a viver, como ella deve ser aceita por uma mulher como eu. Os annos de criança passaram.
E adormeceu n'esta prudente e ajuizada resolução.
Assim como a luz, que, por entre as trevas da noite, rompia de uma das janellas da Casa Mourisca, tivera quem a observasse e prendesse a ella uma longa serie de pensamentos; tambem a do quarto de Bertha não se perdêra no espaço, sem encontrar uns olhos que lhe recolhessem alguns raios na passagem.
Jorge era quem velava no unico aposento alumiado do velho solar do fidalgo.
Costumava prolongar a sua leitura e os seus estudos por altas horas da noite, interrompendo-os de quando em quando por demorados passeios no quarto, ou melhor diremos, continuando-os assim.
Era d'elle o vulto que Bertha via passar por diante da luz, occultando-a momentaneamente.
Esta noite havia porém mais agitação em Jorge do que lhe era habitual; os seus movimentos tinham o que quer que era nervoso e quasi febril; concentrava menos o espirito na leitura, e interrompia-a mais frequentemente.
As vigilias de Mauricio não eram mais curtas do que as de Jorge, mas consagravam-se a differente mister; gastavam-se em aventurosas digressões pelos montados e valles da aldeia, em visitas aos solares das circumvisinhanças, onde houvesse uma mesa de wist ou um canto de fogão, animado pelo sorriso das damas.
Quando voltava a casa, vinha ainda encontrar o irmão estudando, e era de costume d'elles passarem alguns momentos a conversar.
N'aquella noite, Mauricio recolheu-se muito tarde. Ao sentil-o, Jorge, que passeiava no quarto, sentou-se depressa á banca, e inclinou a cabeça sobre um livro que tinha aberto diante de si.
Á entrada de Mauricio, Jorge apenas lhe acenou com a mão, e proseguiu ou fingiu que proseguia na leitura que encetára, até terminar a pagina.
—Boas noites, nigromante—saudou-o Mauricio.—A estas horas, n'esta torre, á luz mortiça d'um candieiro e com um livro aberto diante de ti, representas admiravelmente um astrologo.
Jorge apenas lhe respondeu com um sorriso e continuou a folhear o livro.
Mauricio chegou-se á janella:
—Mas é preciso, de quando em quando, examinar as estrellas tambem. E ellas hoje que estão tão scintillantes! Ah! grande novidade no nosso firmamento! Graças a Deus que, além de nós, ha já mais alguem na aldeia que não dorme a estas horas!
Jorge fechou o livro, e foi ter com o irmão á janella.
—Que queres dizer?—perguntou aproximando-se.
—Que descobri um planeta novo! mais uma luz na aldeia!
—Uma luz?!
—Sim, e é em casa de Thomé.
Jorge fitou a luz com certa curiosidade e conservou-se algum tempo calado; depois murmurou:
—Thomé ainda de vela a estas horas! É singular!
—Faz-lhe mais justiça—tornou Mauricio.—Thomé dorme ha boas quatro horas. A gente do campo é incapaz do extravagante delicto de escandalisar com luz as trevas da noite. N'aquillo percebem-se vestigios de habitos cidadãos. Quem vela é a filha, com certeza.
—Ah! sim… Bertha… esquecia-me de que tinha voltado—acudiu Jorge, esforçando-se por dizer isto em tom natural e indifferente.
—Voltou, e bem outra do que foi!—advertiu Mauricio.
—Em quê?—perguntou Jorge, olhando para o irmão.
—Foi d'aqui uma criança agradavel, e veio uma encantadora mulher!
—Ah! ah; já notaste?—disse Jorge, com um sorriso contrafeito.
—Digo-te a verdade, Jorge. Parecia-me impossivel, ao vêl-a, que fosse a filha do Thomé. Um ar tão delicado, umas maneiras tão distinctas, tão de cidade!…
—Olha se te deixas apaixonar por ella; anda lá!—continuou Jorge, ainda no mesmo tom.
—Não seria prova de mau gosto, afianço-te. Que superioridade, comparada a todas as nossas primas d'estes arredores! O que é a educação!
Jorge encolheu os hombros, dizendo com certo modo irritado:
—Provavelmente não produzirá em mim os mesmos effeitos. Tenho a certeza de que hei de sentir saudades, ao vêl-a, da Bertha, que conheci pequena.
—Não duvido, porque és bastante philosopho para isso. Eu por mim confesso-te que, na idade em que estou e, apesar de toda a sympathia que tenho por crianças, não me sinto com disposições para repetir as palavras de Christo, a respeito d'ellas. Eu prefiro que se cheguem para mim… as grandes…
—Em vez da criança alegre e innocente—proseguiu Jorge com acrimonia—da criança que brincava comnosco e com a nossa pobre Beatriz, preferes encontrar a collegial, com o espirito voltado todo para a moda, com um pouco de geographia e de historia na cabeça e deixando cahir da bôca, quando falla, palavras francezas, como deitava perolas preciosas a heroina d'aquelles contos que nos ensinavam em pequenos. E é isto o que te encanta?… Pois olha, eu até já não gosto de vêr aberta aquella janella a estas horas. Sabe-me aquillo a romanticismo, e é nas raparigas uma doença impertinente, insupportavel.
E Jorge retirou-se da janella com um mau humor difficil de explicar.
—Ora! se o facto de uma janella aberta de noite fosse indicio do crime que dizes, até tu, o homem menos capaz de commettêl-o que eu conheço, poderias ser tambem accusado. Enganas-te; Bertha é realmente adoravel. Verás. As mulheres, Jorge, teem isso comsigo. Amoldam-se muito mais depressa aos habitos de elegancia do que os homens. Com certeza ninguem suspeitará, ao vêr Bertha, a origem aldeã que ella teve. A mim parecia-me impossivel que aquella gentil rapariga, que tão airosamente cavalgava ao meu lado, fosse a filha de Thomé da Povoa e d'aquella excellente Luiza.
—Ah! pois cavalgaste ao lado d'ella? Já?!—notou Jorge, em um tom de acerba ironia, que era novo n'elle.
—Sim; encontrei-os na estrada quando chegavam. Não a conheci ao principio. Aproximei-me, conversei com ella, achei-a encantadora. E depois tinha no olhar tantas promessas!
Jorge deu em passeiar, evidentemente agitado.
—É o que eu digo—murmurava elle com um sorriso nervoso, e continuou:
—Mauricio, Mauricio; cautela! Cuidado com esse galanteio! Póde ser de mais sérias consequencias do que as duzias de paixões que tens tido por as nossas primas d'estes sitios. Essas o peior resultado a que poderiam conduzir-te era a casar com alguma d'ellas e a enxertar assim no tronco illustre da nossa arvore genealogica alguma illustrissima vergontea de uma sêpa igualmente ante-diluviana.
—Ahi estás tu de novo zombando da nossa aristocracia. Desconheço-te, Jorge. Realmente não sei d'onde te veio essa febre democratica e philosophica, com que andas ha tempos. Picou-te a mosca revolucionaria.
Jorge acudiu com uma vivacidade, que provavelmente não lhe era inspirada pelo assumpto:
—Não sabes d'onde me vem? Vem-me de meia hora de reflexão por dia. É o que basta para me rir da fidalguia de toda esta nossa parentela, que se deixa devorar por dividas, imaginando que ha em si alguma coisa que resista á sua inutil ociosidade; e que hão de ficar muito admirados quando, ao receberem um dia esmola da mulher do seu rendeiro, esta os não tractar por fidalgos, nem lhes agradecer a honraria de aceital-a.
Outro menos despreoccupado do que Mauricio desconfiaria que na vehemencia com que Jorge fulminava a incuria aristocratica, havia muito de facticio; como se procurasse desviar a attenção do verdadeiro motivo do seu estado nervoso.
—Não estou disposto a discutir a legitimidade das pretenções aristocraticas. Deixemos isso. Dizias tu que fugisse de me apaixonar por Bertha. Reconheço a prudencia do conselho. Porque é certo que ha n'aquella rapariga um não sei quê tão superior ao que por ahi vejo que, se eu não tivesse de deixar dentro em pouco tempo estes sitios, para… arranjar um modo de vida… não juro que pudesse ser indifferente áquelles encantos. Demais ha entre nós recordações de infancia e quer parecer-me que ella ainda as não esqueceu.
Jorge, sem responder, continuava a passeiar no quarto.
—Mas aquella luz não me sahe do pensamento—proseguiu Mauricio.—Que estará fazendo a pobre rapariga a estas horas da noite? Não te parece que está alguem á janella?
—Mal se póde divisar atravez das folhas d'esses castanheiros; mas julgo que sim.
—Pobre pequena! Alli, só, n'esta aldeia. Está scismando em como poderão ter realidade as vagas aspirações do seu coração.
Jorge sorriu, e acrescentou com sarcasmo:
—Ou de que maneira ha de corresponder-se com algum Romeu collegial, que deixou suspirando em Lisboa.
—Estás insupportavel, Jorge.
—Uma experiencia!—exclamou, passados alguns momentos de silencio, Jorge, voltando á janella, onde permanecia ainda Mauricio.—Tu estás dando tractos á imaginação para adivinhares qual será o pensamento de Bertha. Eu aventuro uma supposição. Assim como nós vimos aquella luz, ella vê esta, e talvez a nossa sombra na janella. É natural que supponha que para alli dirigimos as vistas, e muito provavel que adivinhe que fallamos d'ella. Sabendo-se observada, não ousa apagar a luz, por querer mostrar que tambem prolonga as suas rêveries por noite alta.
—Ora! deixa-me com as tuas observações!
—Queres verificar? Apaguemos a luz e veremos o resultado.
Mauricio condescendeu.
A unica janella alumiada da Casa Mourisca envolveu-se nas trevas da noite.
Como o leitor já sabe, Bertha, por um motivo differente do insinuado por
Jorge, apagou tambem pouco depois a luz do seu quarto.
—Eu que dizia?—exclamou Jorge, rindo triumphantemente, mas como se aquelle rir lhe fizesse mal.
—Pois bem; se adivinhaste, tanto melhor—disse Mauricio, despeitado.
—Tanto melhor?!
—Sim. Porque não hei de eu vêr, n'este proposito de acompanhar a nossa vigilia, uma prova de sympathia pelo companheiro de infancia que hoje tornou a vêr?
—Ah! ah! Pensas n'isso?
—Porque não? Olha, Jorge, a mulher sem as fraquezas do coração proprias do sexo não é uma mulher perfeita. Eu, se visse anjos cá por este mundo, anjos puros, correctos, impeccaveis; tirava-lhes reverente o chapéo, benzia-me diante d'elles, rezava-lhes uma oração, mas afianço-te que não os amava.
—Boa noite, Mauricio. Olha que são duas horas.
—Adeus, Jorge.
—Não sonhes com Bertha.
—Não sonhes tu com a arithmetica, que é peior pesadêlo.
E os dois irmãos separaram-se, rindo.
A ambos dominou por muito tempo a imagem de Bertha.
Jorge passou uma noite febril. Tentava desfavorecer Bertha, quanto podia, no proprio conceito, esforçando-se por convencer-se de tudo quanto a respeito d'ella dissera ao irmão, para diminuir assim a impressão, que, a seu pesar, conservava ainda da imagem da rapariga.
Mauricio dera-lhe a entender que Bertha fôra sensivel ao seu galanteio, e esta ideia torturava o espirito de Jorge.
Pela sua parte, Mauricio tanto lidou com a supposição de que a vigilia de Bertha lhe fôra consagrada, que adormeceu firmemente convencido disso e sonhou… sonhou… Oh! quem póde exprimir o longo romance dos sonhos de um rapaz aos vinte annos e quando possue uma imaginação como a de Mauricio!
Bertha acordou firme no proposito que formára na vespera, de aceitar com coragem de mulher as suas novas condições de vida, e de entregar-se de alma e vontade ao cumprimento dos deveres domesticos, soffreando para isso a indocil imaginação de rapariga.
Mauricio, pelo contrario, estreiou os seus pensamentos d'aquelle dia, avivando tudo quanto pudesse fazer-lhe lembrar de Bertha, e formando a resolução de vêl-a e de fallar-lhe.
Jorge levantou-se cêdo, um tanto fatigado pelo inquieto somno d'aquella noite, e procurou distrahir-se, estudando uma questão agronomica, em que meditava havia muitos dias.
Veremos o que as diversas disposições de animo d'estes tres personagens deram de si no decurso do dia.
O aspecto risonho da manhã dissipou as nuvens, que de noite se haviam accumulado sobre o espirito de Bertha. Já lhe parecia, áquella suave e vivificadora luz, mais risonha a sua sorte, e não podia perdoar a si mesma a vaga tristeza que sentira. Auxiliando a mãe nas occupações domesticas, encontrava n'isso uma distracção poderosa e quasi um intimo prazer. As caricias dos irmãos commoviam-n'a, e foi já com desassombrada alegria que, tomando um d'elles ao collo e dando a mão ao outro, atravessou os campos cultivados, os vinhedos e os lameiros da Herdade, e foi sentar-se no limite d'ella, junto a uma fonte rustica meia occulta entre a sebe de rozeiras e estevas, que separava do caminho aquella parte do casal. E como lhe causava prazer sentir-se humedecida pelo orvalho, que ainda poisava nos trevos e nas fumarias do chão, e cahia em gotas limpidas dos cumes das arvores sacudidas na passagem!
Os irmãos corriam a trazer-lhe as rozas e as mais flôres campestres que iam colher, saltando por entre as searas e nos caminhos de passagem, e ella entretinha-se a ajuntal-as em pequenos ramos, com que os presenteava depois.
Entregue toda a esta tarefa, sentia-se tão do intimo contente, que se pôz a cantar a meia voz a musica de uma cantiga em voga no sitio.
Pareceu-lhe por mais de uma vez ouvir rumor nas balseiras visinhas, mas julgou-o produzido por algum passaro, agitando-se no ninho occulto nos silvados, e não lhe deu maior attenção.
D'uma vez porém, em que os irmãos corriam para ella com uma regaçada de flôres, viu-os de repente pararem enleiados e olharem para a sebe que a separava da rua proxima. Bertha voltou-se na direcção d'aquelle olhar, e descobriu Mauricio, que, por uma entreaberta das silvas, a estava observando.
A filha de Thomé da Povoa levantou-se sobresaltada; e sem poder occultar de todo a confusão que experimentava com o inesperado encontro, interrogou sorrindo:
—Estava ahi ha muito?
—Ha alguns momentos, ao que me parece.
—A fazer o quê?
—A vêl-a e a ouvil-a.
—Com tão pouco se entretem!
—Então parece-lhe que não será novo para mim o espectaculo?
—Novo?! Um campo, uma fonte e umas crianças? Ora essa!
—Enumerou os accessorios, e esqueceu-lhe a figura principal, e n'essa é que está a novidade. Se a Bertha soubesse que genero de figuras femininas por ahi se me deparam, n'essas bonitas paisagens d'este nosso bello paiz?
—É muito injusto com as suas patricias.
—Oh! não as lisongeie.
—N'isso interesso eu tambem, bem vê.
—Poupe-lhes a humilhação de comparar-se com ellas, Bertha. Creia que, indo educar-se a Lisboa, foi para onde a chamavam os instinctos de sua natureza superior. Seu pae, julgando tomar uma resolução espontanea, ao mandal-a para a capital, obedeceu, sem o saber, a uma força occulta que assim o exigia. O seu espirito estava voando para as cidades, onde sómente encontrava ambiente apropriado.
—Engana-se; vê? Achava-me desterrada alli até, e, desde que voltei, sinto um bem-estar, que me prova que é esta a minha verdadeira patria, que estes são os ares, em que respiro á vontade.
—Esse bem-estar não tardará que se transforme em fastio.
—Não, não, não creio.
—Eu é que não creio que possa dar-se bem aqui, privada de satisfazer as aspirações naturaes a um espirito como o seu.
—Mas, ó meu Deus, que qualidade de espirito me suppõe então? Que aspirações são essas que diz?
—Ora para que finge ignoral-as? Acaso, diga, a satisfaria a vida da immensa maioria das tres ou quatro mil pessoas d'este concelho?
—E espero que ha de satisfazer-me.
—E que ha de fazer da sua imaginação? Sim, que ha de fazer d'isto que se sente na nossa idade, quando se não nasceu Manoel do Portello, ou Maria da Azenha?
—Perdão, será por eu ter nascido simplesmente Bertha da Povoa, que não me incommódo com isso.
—Não me entendeu, Bertha. Não havia nas minhas palavras a menor baforada aristocratica; d'essa ridicula mania não padeço eu, graças a Deus. D'entre os preclaros membros das casas fidalgas d'estes arredores, posso assegurar que, apesar dos sete ou oito nomes, com que cada um se assigna, nenhum experimenta isto que eu dizia. Mas Bertha…
—Olhe, snr. Mauricio. Fallo-lhe com franqueza. Não me supponha o que eu não sou, ou então não diga o que não sente. Acredite; as minhas aspirações são tão leves, tão realisaveis! Satisfazem-se com estes cuidados caseiros; e fóra d'isto, não me sinto bem. Para fazer a vontade a meu pae, segui a educação que elle desejou que seguisse; mas nunca senti prazer n'isso; nunca morreram em mim as saudades do campo e dos trabalhos aldeãos…
—Acredito que hoje aprecie melhor a aldeia, porque tem já sentidos educados para a poesia que ella rescende.
—A poesia!—repetiu Bertha, com um forçado gesto de desdem, encolhendo os hombros.
Mauricio percebeu-o.
—Ri-se?—interrogou elle.
—É que ouço fallar ha tanto n'isso, e se quer que lhe falle a verdade, ainda não pude saber bem o que seja.
—Não sabe o que é a poesia?!
—A que se escreve nos livros sei, mas fóra d'ahi…—disse Bertha, simulando um tom de completa ingenuidade.
A chegada das crianças, pedindo á irmã que as conduzisse a casa, interrompeu n'este ponto o dialogo. Bertha despediu-se amigavelmente de Mauricio, que por muito tempo a seguiu com a vista.
—Será possivel que eu me engane?—pensava elle.—Será a final de contas uma mulher vulgar, capaz de continuar as prosaicas tradições da familia? Não creio. Antes é astuciosa e dissimulada. N'esta apparente singeleza de gostos ha muito espirito escondido. E, ou eu me engano muito, ou não é indifferença o que ella sente, quando me falla.
E sahiu d'alli, trabalhando n'estes pensamentos.
Bertha, rindo e brincando com os irmãos, pensava tambem:
—Parece-me que alguma coisa conseguiria. É preciso desvial-o d'este proposito; é preciso que elle se enfastie d'este galanteio; que me aborreça. Hei de fazer-me bem vulgar, bem ignorante, incapaz de sentir e de entendêl-o. Que eu não posso ficar pelo meu coração, que ainda não experimentei. Antes quero evitar o ensejo, antes quero não luctar. Chamam-me uma rapariga de juizo. Não sei, não sei se o sou, não o posso saber nem quero. Ás vezes… desconfio de mim… receio… assusto-me. Sentia-me mais animosa d'antes. Parecia-me tão facil dominar-me!… Hoje… Não quero, não quero tentar; não quero expôr a tranquillidade do meu coração. Eu não me sinto senhora de mim mesma, quando elle me falla. É preciso acabar com isto, antes que augmente.
O dia passou sem outro episodio para Bertha, além da visita de algumas relações da familia, que vinham festejar a chegada da primogenita do venturoso casal.
Bertha conseguiu ser amavel com todos, apesar das impertinencias com que a interrogavam sobre as particularidades da sua vida na cidade.
Luiza não se fartava de admirar as maneiras e a eloquencia da filha, e não fazia senão alternar a vista entre o rosto de Bertha, que tão grata perspectiva era para o seu amor de mãe, e o dos seus interlocutores, onde espiava o reflexo da admiração, de que ella propria se sentia possuida.
Assim correu o dia.
O principio da noite foi consagrado á familia. Então é que chegou a vez a Thomé de perguntar, de querer saber, de fazer reflexões sobre o que ouvia; e Luiza, a sancta mulher, muitas vezes a responder por a filha, como quem já se achava mais adiantada em conhecimentos do que o marido.
Era já um pouco tarde e Thomé admirava-se da demora de Jorge, a quem mandára aviso para que viesse aquella noite, porque tinha que communicar-lhe a respeito de negocios que tractára no Porto e Lisboa. Ouviu-se porém o ladrar dos cães no quinteiro, o som da aldraba no portão e em seguida passos no lagedo das escadas, que conduziam ao patamar.
—Ahi vem o snr. Jorge—disse Luiza para o homem.—Conheço-o já pelo andar.
—É elle, é; e temos hoje bastante que fallar.
—Eu vou accender o candieiro no quarto—acrescentou Luiza, que sahiu a preparar a sala das conferencias.
Pouco depois Jorge apparecia na sala, em que ficára Thomé com a filha.
Jorge não era superior a uma occulta commoção, ao entrar alli. Ia encontrar-se com Bertha. O momento, de que vagamente se temia, chegára emfim. Achava-se em frente do perigo desconhecido, de que sentia intimas apprehensões. Era tão forte a sua turbação, que lhe tremiam as pernas ao transpôr a porta da sala.
Na presença de Bertha, Jorge lançou para ella um olhar rapido, mas penetrante, e desviou-o logo. O espirito não serenou com o resultado d'esse primeiro exame.
Jorge reconheceu que o perigo, que tanto temia, era real.
Bertha, prevenida como estava a respeito do genio de Jorge, tão differente do do irmão, acolheu-o com mais franqueza e menos precauções do que tivera com Mauricio. Contra Jorge não precisava de acautelar o coração.
O cumprimento de Jorge foi serio e quasi frio, sem um vislumbre de galanteio, que se parecesse com as finezas de Mauricio. Apenas disse, quasi sem olhar para Bertha:
—Bem vinda, Bertha; estimo vêl-a restituida aos seus. Espero que ainda se lembre de um antigo conhecido.
—Não costumo esquecer-me, snr. Jorge—respondeu Bertha, sem poder deixar de examinal-o com curiosidade.
Jorge proseguiu no mesmo tom:
—Dizem que se aprende depressa a esquecer nas cidades. Mas quero acreditar que a sua memoria desmentirá o dito. E que lhe parece agora esta terra?
E Jorge, fazendo a pergunta, quiz fitar os olhos em Bertha, mas desviou-os ao encontrar os d'ella.
—A mesma que deixei—respondeu Bertha—a aldeia guarda melhor as memorias do passado, do que a cidade. Vivem-se annos longe d'ella, e na volta parece que as mesmas arvores e as mesmas flôres, que nos despediram, nos dão as boas vindas outra vez. Se alguma mudança ha é nas pessoas.
—Encontrou mudança n'essas?
E Jorge tentou de novo, mas sem melhor resultado, fitar os olhos em
Bertha.
—Nem podia deixar de ser—tornou esta—para nós não ha estações; as folhas que vão cahindo, não vem primavera renoval-as.
Jorge pôz-se a folhear, com apparente distracção, um livro que encontrou sobre a mesa; e a fronte contrahiu-se-lhe levemente, como se tivesse ouvido alguma coisa que lhe desagradasse.
Bertha continuou fallando-lhe sem constrangimento e olhando-o com a curiosidade que despertava naturalmente no seu espirito de rapariga aquelle caracter serio de rapaz.
Thomé propôz a Jorge principiarem os seus trabalhos.
Bertha despediu-se d'elles, e foi ter com a mãe.
—Então que lhe parece a minha rapariga, snr. Jorge?—perguntou o enlevado Thomé.
Jorge articulou uma pouco intelligivel phrase de louvor.
—Olhe o que é a educação—insistiu Thomé.—Quem ha de dizer que foi nascida e creada aqui, n'este palheiro e no tempo em que elle era ainda um pouco peior do que hoje?!
—Ah! sim… a educação… vale muito, mas é preciso que os dotes naturaes a auxiliem—murmurou Jorge, como se lhe causasse repugnancia o assumpto da conversa.
—Sim; tambem me parece que se a pequena não tivesse quéda… Mas o que ella sabe! o que ella leu! o que ella aprendeu! É d'uma pessoa ficar a ouvil-a uma noite e um dia inteiros, sem querer saber de mais nada!
Um ligeiro sorriso, não de todo despido de ironia, encrespou os labios a
Jorge, que nada respondeu d'esta vez.
Thomé interpretou o silencio do rapaz como uma manifestação dos seus desejos de entrar no exame das contas e documentos, que tinham para vêr aquella noite, e por isso abriu a sessão.
Antes porém teve de ir em procura de uns papeis necessarios.
Jorge ficou só por um instante, e deu alguns passeios no quarto. Aproximando-se de uma mesa que estava proxima da janella, pegou machinalmente na obra de costura, ahi deixada por Bertha, mas logo a arrojou de si com impaciencia; depois abriu um livro, que, pelo aspecto elegante da encadernação, conhecia-se pertencer tambem á filha de Thomé.
Era um exemplar do poetico idyllio de Saint-Pierre, da historia dos amores de Paulo e Virginia.
Jorge pousou-o sobre a mesa, e voltou-lhe aos labios o mesmo estranho sorriso, que mais d'uma vez lh'os contrahira n'aquella noite.
—Lê romances—murmurava elle.—A estas horas phantasia-se a heroina de algum. Está apaixonada por o typo que mais lhe agradou, e busca pelo mundo a realisação d'esse ideal. A final é o que eu digo. É como as outras. É uma rapariga da moda, pretenciosa, romantica e um pouco pedante… É o resultado do systema de Thomé… Fazer viver estas mulheres em um mundo de phantasia, e trazêl-as depois para a realidade, que lhes ha de parecer insupportavel!… Triste methodo de formar esposas e mães!
E ao pensar isto, sentia uma amargura, uma irritação, que elle proprio não podia justificar.
Depois proseguiu, com crescente malignidade:
—E quem sabe?… Este livro deixado aqui? Seria esquecimento ou proposito? É natural o desejo de ostentar a sciencia e cultura de espirito adquiridas no collegio, e ha tão pouca gente no caso de as apreciar n'esta aldeia, que não admiro que seja eu um dos eleitos. Emfim, são vaidades de rapariga; e peccado venial para que se deve ser indulgente. E demais que tenho eu com isso?… Mauricio que averigue, se quizer. Está no gosto d'elle…
Thomé voltou, e minutos depois estavam ambos em plena conferencia. Notou comtudo o lavrador aquella noite, que Jorge mostrava-se muito mais desattento do que de costume.
No meio dos seus exames, distrahiu-os uma voz melodiosa que, em outro aposento da casa, cantava em tom de acalentar crianças:
Quando uma criança dorme,
Veem os anjos a sorrir
Abrir as portas do céo,
Para Deus as vêr dormir.
—Escute—disse Thomé, apurando o ouvido—é a minha Bertha a adormecer o irmão.
E Thomé pôz-se a escutar, com fervor paternal.
Jorge, a seu pesar, experimentava um suave encanto ao ouvir aquella voz juvenil, que continuava cantando:
E um d'elles á terra desce Junto do berço a velar Para longe do menino
Os sonhos maus afastar.
—Então? Não tem uma linda voz a rapariga?—continuava Thomé, olhando para Jorge, que não respondeu.
A voz continuou:
Dorme, dorme, meu menino,
Que é alegre o somno teu.
E emquanto na terra dormes
Folgam os anjos do céo.
Jorge escutava com mais prazer, do que a si mesmo quereria confessar, o canto que lhe chegava aos ouvidos n'aquella monotona e melancolica melopêa de todas as musicas destinadas a acalentar o somno das crianças.
Thomé, esse estava verdadeiramente extasiado. A voz da filha parecia encontrar um caminho direito para o coração d'aquelle pae extremoso, e commovêl-o quasi a ponto de lhe ennevoar os olhos com lagrimas consoladoras.
Quando expiraram as ultimas notas do canto, Jorge levantou-se.
Era tarde já e mais que tempo de dar por concluida a conferencia; mas n'este movimento de Jorge actuára uma outra ideia.
Elle proprio estranhava o que ia na sua alma n'aquelle momento. Revoltava-se contra si mesmo, porque se sentia fraco perante os artificios de uma mulher, contra a qual devia estar precavido; Jorge suppunha-se persuadido de que Bertha aproveitára de proposito o ensejo de fazer-se ouvir e de mostrar os encantos da sua voz agradavel e sonora; tactica vaidosa que muito escandalisava o caracter sisudo do rapaz. Mas o peior era dizer-lhe a consciencia que, mau grado seu, a tactica tivera effeito. A prevenção hostil, de que á força queria armar-se, não era talisman bastante forte para o livrar de encantamento.
Isto principalmente o indignava, sem a si proprio o confessar. Sentia-se sob o influxo de uma magia, que pensava funesta, mas, como succede quando em sonhos procuramos fugir a um perigo que nos persegue, annullava-se o esforço que fazia para quebral-o, e a seu pezar permanecia no perigo.
Desconhecia-se, sentia uma turbação indefinivel, parecia-lhe que o ar livre lhe seria salutar. Por isso levantou-se e sahiu. Ao passarem em um corredor, que conduzia para o exterior da casa, abriu-se a porta de um quarto, meio alumiado por a froixa luz de uma lamparina, que ardia junto do berço de uma criança, e por o espaço entreaberto appareceu a figura de Bertha, com o cabello já meio despenteado e solto, e tendo nos labios o mais suave e affectuoso sorriso.
—Boa noite, snr. Jorge—disse ella, estendendo-lhe a mão, com uma expressão de voz cheia de cordial franqueza.
Jorge estremeceu áquella vista inesperada, mas, dominando-se, correspondeu ao cumprimento, apertando-lhe a mão:
—Adeus; boa noite, Bertha.
—Então o pequeno já dorme?—perguntou Thomé da Povoa, procurando sondar com a vista a meia claridade do quarto.
—Psiu!—disse a filha, pondo um dedo nos labios—socegou por fim. Trouxe-o para o meu quarto, porque não deixava dormir a mãe. Boa noite, meu pae.
E tomando a mão do lavrador, beijou-a com affecto.
—Deus te faça feliz, minha filha—tornou-lhe este, exultando com aquella simples acção.
E os dois seguiram, cerrando-se logo atraz d'elles a porta dos aposentos de Bertha e ouvindo-se correr docemente a chave na fechadura.
Jorge, ao vêr-se na rua, aspirou com violencia o ar fresco da noite, como para libertar-se de uma oppressão que o angustiava. Descobriu a fronte e seguiu agitado pelos difficeis caminhos que iam d'alli até á Casa Mourisca.
—Eu estou doido!—murmurou elle—que tenho eu com esta rapariga? Era o que me faltava! que me entrasse na cabeça uma doidice d'estas! Estou vendo que não é tão facil ter juizo, como suppunha. Se isto fosse com Mauricio não admirava! E então uma criança de collegio… provavelmente estouvada… Ora adeus! Veremos se isto me passa dormindo.
Mas, era singular! aquella rapida vista, insinuada por entre a porta meia aberta do gabinete castissimo, em que dormia uma criança á meia luz da lamparina, e aquella gentil figura de mulher, collocada á entrada, com um dedo nos labios e no rosto um ar de solicitude quasi maternal, não se lhe tiravam da ideia. Era como a visão de um paraizo que sonhára.
Quando Mauricio, voltando de um baile dado por um proprietario visinho, entrou no quarto de Jorge, encontrou este, contra o seu costume, sentado proximo da janella, com a cabeça sobre o braço dobrado, que repoisava no peitoril, e tão absorto, que quasi não deu pela aproximação do irmão.
Mauricio parou diante d'elle admirado, e interpellou-o:
—Que fazes ahi?
Jorge sobresaltou-se, e respondeu sorrindo:
—Julgo que dormia.
—N'esse caso farei outra pergunta—que vieste para ahi fazer?
—Tinha calor… cancei-me de lêr… vim tomar ar. Ha um instante.
—Ha um instante? Não diz isso aquella luz, que parece de casa mortuaria. Nada haveria mais natural do que tudo isso, se fosse com outro; porém em ti é para estranhar a menor irregularidade de habitos.
—Tambem eu me estranho. É certo porém que esta noite não me sinto disposto para estudar.
—Pois aproveita essas felizes disposições, e descança, descança. Que diabo! Parece-me que dás á administração da nossa casa mais importancia do que ella merece. A final de contas sempre é tarefa que o frei Januario fez durante annos. Se soubesses como a noite está agradavel! Não esteve de todo má a partida em casa dos Curujães.
—Ah! vens de lá?—inquiriu Jorge, com indifferença.
—Venho, sim. Bastante gente. Venancio cada vez mais parvo. A D. Anna cantando a Norma da maneira que sabemos. A Ermelinda do Nogueiral, com a cabeça cheia de fitas, parecia um navio embandeirado; os pequenos do Antonio Rodrigo estavam perdidos de riso. Quem não está feia é a Dôres, a pequenita do João Tavares; dois mezes que passem mais por aquella infancia e estará alli uma bella mulher. Mas que noite tão sombria! Nem a luz de hontem em casa do Thomé! Hoje nem Bertha nos faz companhia. Sirva-lhe isto para desconto dos grandes peccados de que a accusas. Está provado que a vigilia de hontem foi consagrada á prosaica tarefa de arrumar as suas coisas pelas gavetas e bahus. É verdade, já a viste?…
—Não… Já.
—Não? Já? Que diabo de distracção é essa? E que te pareceu?
Jorge esteve algum tempo antes de responder:
—Bem.
—Tão sêcamente bem? Devéras?!
—Então que queres que te diga? Sabes que não tenho o teu genio, para esgotar a minha eloquencia diante da primeira figura de mulher que me appareça.
—E a respeito das tuas prevenções?
—Nada pude decidir.
—Pois eu já decidi. Acho-a cada vez mais adoravel.
—Ah!
—Sabes que estive com ella esta manhã?
—Sim?! Hum!—disse Jorge com evidente constrangimento.
—É verdade. Fallei-lhe e, já se sabe, não me descuidei de advogar a minha causa.
—Ah! sim? E então?…
—E então…, apesar de uma certa esquivança nas respostas que obtive, quer-me parecer que não tenho razão de queixa.
—Bem, bem.
—Emfim, certas recordações de infancia… como sabes…
—Ah! ella recorda-se da infancia?
—Ora, como queres que ella se não recorde?
—Sim, é natural—concordou Jorge, fingindo bocejar, mas com suspeitas contracções nervosas.
E estendendo subitamente a mão ao irmão, acrescentou:
—Boa noite, Mauricio. É tarde e eu tenho somno. Adeus.
E de facto Jorge deitou-se, deixando em paz os livros, mais cedo do que costumava. Se dormiu é que não sabemos.
Mauricio dormiu com certeza melhor do que elle.
Embalava-o a vaidosa persuasão de que havia impressionado Bertha. Tinha Mauricio este defeito de suppôr que eram promptas e profundas as impressões que produzia no animo das mulheres. Defeito este vulgar, e que ainda não é dos que dão de si mais serias consequencias.
Pela manhã do dia seguinte recebeu Jorge um recado do pae, para ir fallar-lhe.
Apressou-se em obedecer. Foi encontrar D. Luiz a passeiar no quarto, e manifestamente irritado. Vendo entrar o filho, mostrou-lhe uma carta aberta, que estava em cima da mesa.
—Ah! É da prima?—exclamou Jorge, depois de examinar a assignatura.—Finalmente escreveu!
—Podia dispensar-se de o fazer—resmungou o fidalgo e proseguiu:
—Parece-me que não foste muito feliz na lembrança de bater a essa porta.
—Então?!
—Lê e verás.
Jorge leu, a meia voz, a carta que era concebida n'estes termos:
«Meu bom tio.
Tive, ao voltar a Lisboa de uma visita á Hespanha, a mais agradavel surpreza. Recebi, emfim, uma carta sua! A singularidade do facto não me inhabilitou para sentir no maior grau uma salutar alegria. Cuidava que me tinham esquecido. Convenci-me agora de que felizmente me enganára. Lisongeou-me ainda o vêr que o meu bom tio se dirigia a mim, para me pedir conselho! Claro estava que já não era no seu conceito aquella doidivanas de outros tempos. Ainda bem que me faz um poucochinho de justiça. Não se arrependa; effectivamente hoje estou mais ajuizada. O meu caracter de viuva dá-me um ar de respeitabilidade, que vae muito bem com os meus vestidos escuros, nos quaes a garridice não ultrapassa ainda os limites do roixo. Mas devo confessar-lhe que me incumbe de uma espinhosa tarefa! Descobrir a carreira mais adequada ao nosso caro Mauricio, que deve ser a estas horas um bonito e elegante rapaz, mas com tanto que, acrescenta o meu querido tio, «elle não seja obrigado a transigir com as ideias do seculo», é devéras uma missão difficil e para melhor engenho do que o meu. Principio por não saber bem quaes são as taes ideias do seculo, com que o priminho Mauricio não deve transigir. Eu, que sou a pessoa mais transigente d'este mundo, não posso assim de repente saber quaes são aquelles principios, com que os meus primos são incompativeis, ou que são incompativeis com os meus primos. Depois ha tantas ideias remoçadas, que passam por novas, que já não é facil distinguir quaes são as do seculo e quaes não são. E deixe-me dizer-lhe, meu bom tio, que ha uma certa ordem de coisas, com que provavelmente, na sua opinião, Mauricio não deve transigir, mas sem transigir com as quaes não se dá hoje n'este mundo um passo que tenha geito. Creia que nos nossos dias é pouca a gente que não está convencida disso, e raros os que ainda se contentam com ficarem sendo immoveis columnas do throno e do altar, emquanto os outros vão andando.
Ahi está que me lembrava a mim arranjarmos, com tempo, para Mauricio um d'estes commodos circulos eleitoraes, por onde uma pessoa sahe deputado sem o sentir. A carreira é das melhores para rapazes de intelligencia e de aspirações; mas a urna popular, provavelmente, figura no rol das coisas, com que Mauricio não deve transigir. Emfim, meu intransigente tio, apesar de todos os meus bons desejos, sinto-me devéras com os braços atados, e tropeço a cada momento em uma incompatibilidade! Julgo preferivel conferenciarmos de viva voz. Tenciono visital-o brevemente. Preciso de revistar a minha quinta dos Bacellos, da qual já tenho saudade. Ahi irei pois, e de sua bôca ouvirei aquillo com que pudemos, e aquillo com que não devemos transigir. Até então creia-me sempre sua muito transigente, mas affectuosa sobrinha
Gabriella.
P.S. Se um abraço cordial e bem intencionado de uma prima viuva é coisa com que Mauricio possa transigir, peço o favor de lh'o dar em meu nome e outro a Jorge, que, pelo que vejo, tem juizo aos vinte annos, facto que, seja dito entre nós, não tem sido frequente em nossa familia.»
Esta carta, escripta á vontade e no tom familiar de uma mulher caprichosa, costumada a não se constranger com pessoa alguma, e a vêr admittirem-lhe, como naturaes, todos os caprichos, não podia ser menos accommodada ao genio sisudo e respeitador de etiquetas, que era uma das pronunciadas feições do velho fidalgo.
A maneira por que a sobrinha lhe escrevia, a sem-ceremonia com que parecia rir-se dos seus delicados escrupulos politicos, era tão subversiva da ordem estabelecida e respeitada nos usos tradicionaes da familia, que D. Luiz escandalisou-se.
Jorge comprehendeu, á primeira leitura, qual o effeito que esta carta deveria ter produzido no animo do pae, mas procurou dissimular.
—Uma vez que ella vem, esperemos—disse em tom indifferente.—De viva voz tracta-se melhor d'estes negocios.
—Que hei de eu tractar com uma doida d'estas? Tomára que ella me deixasse socegado!
—São maneiras de Gabriella, mas nem por isso deixará de olhar com seriedade por este assumpto.
—São maneiras?… Tudo tem limites. Isto não é carta que uma rapariga escreva a um velho, que é seu tio.
E D. Luiz, ao dizer isto, pegava na carta por uma ponta e arremessava-a sobre a mesa, como se fôra um objecto que lhe inspirasse repulsão.
—Costumes do tempo—aventurou timidamente Jorge.
—Bons costumes! Pois, embora ella o diga zombando, não transijo com elles, não senhora; nem filho meu, emquanto quizer que eu por filho o tenha, ha de transigir tambem.
—Esperemos, até que ella venha.
—Já sei que de nada servirá a conferencia. Essa porta podes consideral-a fechada.
Jorge, depois de mais algumas tentativas para acalmar a irritação paterna, voltou para o quarto, intimamente satisfeito com a carta da baroneza, em cujo auxilio confiava para vencer as reluctancias do velho.
Augmentaram-lhe ainda mais as esperanças, quando leu um laconico bilhete, em que a prima lhe respondia tambem, assegurando-lhe que viria breve, e que trabalharia com empenho no sentido que elle lhe indicára.
Meia hora depois, dava Jorge a novidade a Mauricio, que encontrou descendo as escadas com elegante e caprichoso traje de cavalgar e cantarolando despreoccupado:
Dae-me uma casa na aldeia,
Casa rustica, isolada,
Que mostre por entre verdes
A sua frente caiada.
—Esse desejo vem fóra de proposito—disse Jorge, sorrindo—porque justamente hoje chegou a carta que esperavamos de Gabriella.
—Ah! chegou! E então?—interrogou Mauricio um pouco sobresaltado.
—Promette vir aqui. Pede uma conferencia para breve, na qual se discutirão as bases da reforma.
—Ai, ella vem cá? Visto isso adiada toda e qualquer resolução a meu respeito?
—Até que ella chegue.
—Ora ainda bem!
—Estimas?
—É que hoje qualquer ordem de partida encontrava-me pouco de animo para deixar a aldeia.
E continuou a cantar:
D'onde se eleve ás trindades
Um fumosinho cinzento
Que se dissipe nos ares,
Ao menor sôpro do vento.
—Olá! Como se desenvolveu assim em ti esse apêgo ás coisas rusticas?—perguntou Jorge com ironia.
—Que queres tu? Caprichos!
—Caprichos!! mas é que não estamos no caso de os ter. Ai, Mauricio, receio que dês em mau homem de negocios, se a conferencia decidir que o deves ser—continuou Jorge no mesmo tom.
—A Gabriella terá o bom senso necessario para propôr outra solução ao problema da minha vida. Creio…
E Mauricio desceu as escadas, exclamando alegremente:
—Adeus, adeus que vou vêr quem tu sabes.
Jorge contrahiu a fronte ao escutar-lhe as palavras com que se despediu, e conservou-se immovel ainda depois que o perdeu de vista, e já quando o não ouvia, nem o bater das patas do cavallo no lagedo do pateo; a final sacudiu a cabeça, como para livrar-se de uma ideia importuna e murmurou:
—Ora! Tudo isto é natural… Vamos trabalhar!
E foi encerrar-se no quarto.
Mauricio sahiu a cavallo, mas não estendeu por muito longe o seu passeio matutino. Parecia errar ao acaso, mas acaso era esse que por duas vezes o conduzia na via da casa de Thomé.
E de ambas as vezes uma cabeça de mulher apparecia á janella, ao ruido que faziam no caminho as patas do cavallo, o qual Mauricio obrigava a evoluções ao chegar áquelle sitio.
Essa cabeça era a de Bertha. Mauricio saudou-a com um sorriso e dirigiu-lhe algumas palavras de galanteio. Bertha retirou-se para dentro, depois de elle ter passado, dizendo comsigo:
—É uma imprudencia o que estou fazendo. Vamos; é preciso cautela.
E a terceira vez que o sentiu já não appareceu para o vêr.
Mauricio porém estava contente com a manhã; continuando no seu passeio, dirigiu o cavallo por uma azinhaga cavada em barrancos pelas enxurradas, e depois de difficil e precipitosa descida por entre pinheiraes, veio sahir a outra rua mais larga, ao fim da qual havia uma residencia campestre de menos má apparencia.
Era uma casa branca, de um só andar e ao correr da rua, mas de solida construcção; bem caiada, bem pintada e bem esfregada. Entrava-se para ella por um pateo coberto de ramada, cercado de um muro baixo e fechado por uma meia cancella de castanho ennegrecido. Dentro d'este pateo pouco espaço havia desobstruido; aqui um monte de rama de pinheiro, além duas ou tres rimas de achas, acolá um tronco de larangeira partido, uma mó de moinho, dois carros desapparelhados, dornas, arados, pipas, canastras, escadas de mão, e varios outros utensilios de lavoura e de uso domestico.
Mauricio prendeu o cavallo ao muro e entrou para o pateo.
Abria-se para este a porta da cozinha; vinha de lá um grande rumor de vozes, de risadas e de cantares; via-se brilhar no fundo um clarão avermelhado e ouvia-se um estalar de lenha, devorada pela chamma. Chegando-se mais perto, Mauricio contemplou por alguns momentos, sem ser visto, o quadro que se lhe offerecia á observação. Era uma cozinha aldeã, vasta, desafogada; immenso lar, compridos preguiceiros ao longo das paredes, no alto prateleiros pejados de louça nacional, de panellas e alguidares; nas traves os cabos de cebola, no fumeiro a bem curada pá de presunto; o amplo fôrno vomitava lavaredas pela bôca escancarada e a cada instante engolia as novas e enormes dóses de lenha que lhe ministravam; na masseira fumegava já a farinha ainda não levedada para a fornada da semana; e n'ella os braços valentes e roliços de duas frescas moças do campo enterravam-se até os cotovêlos; a um signal d'estas, outras traziam da lareira grandes panellas de agua fervendo, com que acrescentavam a massa, levantando ao ar nuvens de densos vapores. Uma peneirava a um canto a farinha para o bolo, outra arrumava o cinzeiro do fôrno com a vara meia carbonisada; limpava esta a pá grande para a introducção das borôas e aquella empunhava a pequena pá de ferro de rapar a masseira. No meio d'esta legião feminina assim atarefada, a patrôa da casa, que, como Calypso sobre as nymphas que a serviam, ou, segundo a comparação classica, como o elegante cypreste sobre as vinhas rasteiras, olhava sobranceira para todas, superintendia no trabalho de cada uma e distribuia as tarefas com methodo e intelligencia.
Era esta a ti'Anna do Védor, em quem já ouvimos fallar, a que havia creado aos seus válidos e sadios peitos os dois meninos da Casa Mourisca. Era ella enfarinhada, arregaçada, afogueada, com os cabellos escondidos debaixo do lenço vermelho que atava sobre o occipital, com a voz potente, o olhar fino e os movimentos faceis, apesar dos cincoenta annos já contados.
Á sua vista perspicaz não escapou por muito tempo a presença de Mauricio; e logo que o viu, correu para elle com os braços abertos, exclamando:
—Ai, o meu rico filho!
—Cautela, cautela, Anna, olha que me enfarinhas!—advertiu Mauricio, tentando fugir-lhe.
—E que tem que te enfarinhe! Olh'agora? A farinha é pão, e o pão vem de
Deus.
E sem precauções nem reparos apertou o corpo delgado de Mauricio nos seus robustos braços, deixando-lhe na roupa vestigios evidentes d'este cordial amplexo.
—Vês, vês?—dizia Mauricio, sacudindo-se—olha em que preparo me puzeste, ama! Estou asseiado!
—Sim? Pois melhor para ti, que já tens que fazer, e não me andas por ahi a vadiar e a fazeres-me doidas as moças cá da terra com as tuas bregeirices. Sahiste-me boa rez! não tem duvida nenhuma!
E pronunciava isto com um modo, acompanhava-o com um olhar tal, que fazia temer a imminencia de um outro beijo e de um outro abraço.
Mauricio continuava sacudindo-se.
—O mal que tenho, vem do leite que bebi—dizia elle no entretanto.
—Hum!—acudiu a ti'Anna com um gesto de soberba.—Conta-me d'essas! O que vos valeu, meus fidalguinhos de torrão de assucar, foi trazer-vos eu a estes peitos, senão o que seria feito do vosso corpinho de vime? Olh'agora! ieis como foram indo vossos irmãos mais velhos, e aquelle anjo de vossa irmã, que ainda hoje me resta a pena de não ter creado tambem. Mas quem adivinha vae para as casinhas.
—Aos preparativos que estou vendo—observou Mauricio—ha grande fornada para hoje.
—É como vês. E não minguam bôcas que a comam. Senhor nos não falte com estas côdeas.
—E o bolo que não esqueça.
—Eram bons tempos aquelles em que vocês ambos o comiam como se fosse maná! Esquecer! Olh'agora! Não ha de esquecer, não, se Deus quizer, que não falta por ahi gente necessitada, com quem se reparta. Vá, vá, raparigada! não se me ponham agora paradas a olhar para as moscas, que o serviço não espera! Olh'agora! Deita-me o centeio n'aquella massa, pasmada, avia-te! Parece que nunca viram um rapaz! Bem tirado das canelas é elle, salvo seja; mas isso não basta! Olh'agora! Mas que milagre foi este que te trouxe por aqui a estas horas?
—Um passeio…
—Um passeio!… Hum! ahi anda moiro na costa. Olha lá se me desinquietas coisa que me pertença, que tens de te haver depois commigo… Eu ainda tenho um par de sobrinhas que são moças de mão cheia. Ora olha lá. Quem te désse o juizo de Jorge! Aquillo é outro estôfo! É verdade—continuou ella, dando emphase á interrogação com o poisar das mãos nos quadris—dizem-me que elle é quem dirige agora os negocios lá em casa.
—Ha muito tempo já.
—Pois foi bem pensado! Sim, senhores. Porque olha que eu nunca gostei do frade, Deus me perdoe; e emquanto ao fidalgo, com ser boa pessoa, não serve lá muito para governar casa. E tu que fazes?
—Eu…, eu…
—Passeias; ora pois pudera! Se este senhor havia de fazer outra coisa. Pois não fazes bem, que pelos modos isso lá por casa não está para graças.
—Que é do Clemente, Anna?—inquiriu Mauricio, mudando de conversa.
—O meu Clemente? ó filho, nem eu sei. Se queres que te diga, o rapaz, desde que o metteram na regedoria, não faz outra coisa. Isto é, eu devo dizer o que é verdade; o serviço apparece feito, isso lá apparece; mas a gente nem sabe quando nem como. Mas, agora me lembro, elle pelos modos está hoje para casa do Thomé da Herdade. Chegou-lhe a filha da cidade, sabes? A Bertha, a que brincava com vocês na Casa Mourisca, e que tu dizias que era a tua namorada? garoto foste tu sempre desde criança. Diz que vem uma senhora. Tolices do pae. Olh'agora! Mas o caso é que a rapariga é geitosa e diz que muitas nadas e creadas na cidade dariam uma orelha para apparecerem tão bem como ella. Estou morta por a vêr, mas esta minha vida não é para vagares. Então disse ao meu Clemente: «Vae tu a casa de Thomé, rapaz, e faze-lhe lá os meus cumprimentos.» O caso é que elle foi e… Ó raparigas, então esse pão ainda não está amassado?
E não lhe soffrendo a impaciencia de animo a inacção, aproximou-se da masseira, e afastando as moças que lhe cederam o logar com deferencia, remexeu, com o vigor de seus desenvolvidos musculos, a massa que, sob tão poderoso motor, cedo adquiriu a consistencia precisa.
Depois amontoou-a, alisou-a, traçou-lhe em cima com a mão uma cruz e murmurou:
S. Vicente te acrescente
S. Mamede te levede.
Cobriu-a com a baeta e depois acrescentou, voltando-se para a sua gente:
—Ora ahi o tem; agora olhem-me por esse fôrno, que são horas.
E tornando a Mauricio, continuou, como se não tivesse havido interrupção:
—Pois é verdade, elle foi e ainda não veio. Sabes tu que era esta a mulher que ficava a matar para o meu Clemente?
Mauricio estremeceu, como se ouvira uma heresia.
—Quem? Ella? Bertha?
—Sim; então que achas? Pois com quem queres tu que ella case cá na terra? Fidalgos não a querem; os rapazes por ahi são uns labrêgos que Deus nos acuda. O meu Clemente…, não é agora por ser meu filho, mas não se lhe faz favor nenhum confessando que é mais geitoso do que elles. E sobre tudo, depois d'isto da regedoria. Elle falla com o snr. administrador e até com o governador civil, quando vae ao Porto, e a cada passo está a escrever-lhes e a receber cartas d'elles, e é tudo: Deus guarde a v. s.ª para aqui, Deus guarde a v. exc.ª para acolá. Ora a filha do Thomé vem costumada a estas coisas lá da cidade e emfim, sendo de costume, já se não gosta de passar sem isso.
Mauricio não podia seguir placidamente as conjecturas da ama, parecia-lhe uma profanação o que ouvia.
—Não, não, Anna. Clemente não é marido que convenha a Bertha. De modo nenhum. Desengana-te.
—E porque não? Ora essa é boa! Quem é então que lhe convem? Olh'agora!
—Bertha tem… teve… ha de ter…
—Tem, teve e ha de ter, o quê?…
—Uma educação… gostos…
—Ora viva! Já fazes a filha do Thomé fidalga de mais para o meu rapaz! Ora quem alli está. Olha que eu sou da creação de Thomé, e conheci-o rapazinho de pé descalço, a guardar o gado… Olh'agora!
—Não duvido, Anna, mas… Bertha já viu a cidade e…
—Toma! E o meu Clemente? Ora deixa-te de historias. Sabes que mais?… Não me andes tu já por ahi com o olho na pequena, que é o que me parece; olha que não é nenhuma tola como as outras.
—Ó Anna, que ella não é como as outras sei eu. Nunca esta terra soube o que era um anjo assim.
—Olhem, olhem! É o que eu digo. Temol-a travada! Eu logo vi. Ó filho, que não sei a quem me sahes. Eu logo vi. Tu que te espinhavas todo por eu querer a rapariga para o meu Clemente!… Mas, olá, snr. Mauricio, veja o que faz. Lembre-se de quem ella é filha. É um homem serio e que não gosta de quem não o tractar como homem serio… Mas ahi vem o meu Clemente; elle é que me vae dizer da rapariga.
Clemente, o filho unico da vigorosa matrona que tão desenganadamente fallava a Mauricio, era um sincero rapaz aldeão, de espirito pouco desenvolvido, mas de excellente indole.
Tinha uma physionomia vulgar, d'estas que fogem da memoria, porque nem as fixa um vislumbre de intelligencia que accentue alguma feição predominante d'ellas, nem o cunho de estupidez, que as assemelha a caricaturas.
Só na bôca e nos olhos é que havia um geito revelador da natural bondade d'aquelle caracter; o mais nada exprimia.
Clemente aceitára com certo desvanecimento o cargo de regedor, e exercia-o com a imparcial inteireza que deve ter o magistrado.
Não obstante o genio brando, de que era dotado, ousava arcar, no desempenho de seus deveres, com os privilegiados da terra, que ainda não haviam perdido de todo os habitos de sobranceria e de desprezo ás leis, adquiridos por seus ascendentes nos tempos das regalias feudaes.
Clemente era supersticiosamente acatador do codigo administrativo, e este fervor de funccionario dava-lhe coragem para a lucta, aliás muito contraria á sua indole pacifica e consiliadora.
Por vezes soffreu pelo seu muito amor de justiça. Julgou elle, com sympathica ingenuidade, que os superiores o conceituariam tanto melhor, quanto mais exacto e imparcial elle fosse no cumprimento dos seus deveres; com funda e amarga dôr de coração viu pois, que tendo arrostado com as sanhas de alguns fidalgos, cujas illegaes franquias procurára fazer cessar, o administrador, que sabia theorisar muito melhor do que elle sob o thema de emancipação do povo, dos direitos do homem e da igualdade perante a lei, mas que tambem sabia quebrar na pratica as quinas e os angulos agudos ás suas theorias, tomava o partido dos fidalgos, e censurava asperamente em officios o procedimento do regedor.
Estas injustiças sociaes principiavam já a inocular no animo leal e sincero de Clemente o scepticismo a respeito dos homens e a preparal-o talvez para vir a ser uma authoridade menos intractavel e de mais condescendente consciencia; e por consequencia mais ao agrado dos homens, não sei se diga praticos ou corruptos, que clamam contra a absoluta inflexibilidade dos principios.
Achava-se o bom Clemente n'aquella desconsoladora phase de transição, em que o funccionario novel principia a sentir que o deixa o ideal que concebêra da sua entidade civil, e que vae descendo pelo escorregadio pendor das condescendencias mundanas para o nivel, onde redemoinham as turbas, que ao principio fitára sobranceiro, de toda a altura da sua dignidade moral.
Triste época de desillusão e de desencantamento essa!
Clemente votava sincera affeição aos rapazes da Casa Mourisca, e sobre tudo a Jorge, a quem cedêra o seio de sua mãe.
Jorge nunca lhe dava motivo de collisão entre os seus deveres de regedor e os impulsos do seu coração.
Já não assim Mauricio, que não era de todo innocente de certas infracções de lei e de desprezo pelo codigo administrativo, com que não poucos somnos tinha afugentado ao honrado rapaz.
Clemente desculpava Mauricio, dizendo que eram as más companhias que o levavam áquillo, mas promettia não ceder a considerações, se o encontrasse em flagrante.
Fosse porém acaso, fosse quasi insciente proposito de amizade em não querer vêr, é certo que nunca tal contingencia se deu. Apenas por vagas denuncias lhe constava ter Mauricio uma ou outra vez quebrado o defezo da caça, tomado parte em alguma rixa nocturna, quasi sempre em companhia de seus primos, os fidalgos do Cruzeiro.
Estes sim, estes eram os mais rebellões d'aquelles arredores. Com elles era que as mais das vezes tinham logar serios conflictos, em que os cabos de Clemente nem sempre eram tractados com o respeito que para elles a farda pedia.
Os fidalgos do Cruzeiro viviam ainda á moda antiga, como senhores feudaes da terra, desconhecendo direitos de propriedade e calcando aos pés dos seus cavallos todos os codigos, com que tentassem conter-lhes os impetos nobiliarios.
Eram tres estes nobres senhores.
Um morgado e… morgado ás direitas; outro doutor… por ter andado dez annos em Coimbra para deixar incompleto um curso de cinco; o terceiro abbade, escorraçado pelo povo de uma freguezia que fôra mandado parochiar; ligavam-se todos tres, em temivel triumvirato, para invadirem as propriedades, esgotarem as tavernas, insultarem as mulheres e espancarem os homens d'aquelles sitios.
O povo ou por habito legado de submissão os deixava á vontade, contentando-se com praguejal-os pela calada, desforço dos opprimidos em todas as épocas da historia da humanidade, ou exasperado e descrendo da efficacia da lei, recorria á defeza propria, e procurava manter em respeito esses turbulentos vadios, que mais de uma vez sahiram mal feridos da refrega.
Jorge afastára-se cada vez mais da companhia dos primos, cujos asselvajados habitos lhe repugnavam; Mauricio frequentava-os ainda e era de facto a companhia d'elles, que ás vezes o impellia a passos reprehensiveis.
Clemente vinha agitado quando entrou em casa aquella manhã. Era evidente que o regedor se tinha encontrado em uma das collisões, a que a vida publica o sujeitava.
A mãe, logo que lhe lançou os olhos ao rosto contrahido e levemente purpureado, conheceu que tinha havido novidade e interpellou-o:
—Que tiveste tu lá por fóra, Clemente? Essa cara não é de quem vem satisfeito com a sua vida.
—Deixe-me, minha mãe, deixe-me—rompeu o irritado rapaz.—Com'assim emquanto não largar esta coisa da regedoria, não tenho um momento de socego.
—Então que foi?
—Que foi? Que havia de ser? O que foi hontem e que ha de ser ámanhã, e que ha de ser sempre, emquanto… Emquanto se não fechar os olhos e se der para baixo, seja em quem fôr. Parece impossivel que gente de educação, gente que devia ter vergonha, e ser a primeira a mostrar o exemplo, seja a que anda por ahi dando escandalo, sem fazer caso da authoridade, nem da lei, nem de coisa alguma! E um padre então! e um doutor!…
—Pelo que vejo temos os do Cruzeiro fazendo das suas?
—Pois quem senão elles? Essa sucia de libertinos, de…
—Olha que está alli um primo d'elles, Clemente—admoestou a mãe, sorrindo.
Clemente reparou pela primeira vez em Mauricio.
—Ah! desculpe, snr. Mauricio, que ainda agora o vejo. Mas isto é assim. Aquelles senhores cuidam… Eu sei lá o que elles cuidam? Cuidam talvez que isto hoje é como d'antes, e que elles hão fazer a sua vontade…
—Mas a final de que se tracta?—inquiriu Mauricio.
—D'esta vez deram-lhe para metter em casa um refractario do serviço militar, contra quem ha um mandado de captura, e com o maior descaramento o declaram por ahi. Temos outra como quando esconderam em casa o assassino do reitor de Fieiras, e lhe deram escapula para o Brazil. Mas eu não quero saber, a lei lá está que diz bem claro o que deve fazer-se, e o snr. administrador não é para graças.
—Fia-te n'elle! Olh'agora!—atalhou a mãe—É fresco! Vendo-te mettido em talas, só se não puder deitar a mão á caravelha para te atenazar inda mais. Não te lembras do que elle fez quando foi da prisão do morgado dos Codeços, por causa das pancadas na feira? Ora bem me fio eu n'elle! Todo collaço com o Lourenço do Cruzeiro, e companheiro de sucias d'elles todos. Sabes que mais, meu filho? deixa-os lá e não te consumas com isso. Olh'agora!
Estas eram as maximas que o scepticismo inspirava já a Anna do Védor.
Clemente encolheu os hombros.
—Ou hei de ser regedor, ou não hei de ser. Por isso é que eu digo que vou pedir a demissão. Para injustiças é que eu não sirvo. Não quero que se diga que quando um pobre homem faz alguma coisa já tudo são pressas para o prender e castigar, e lá porque uns senhores… Senhores? Melhor tratassem de pagar o que devem a meio mundo, e não andassem por ahi a fazer o que fazem.
—Vamos, Clemente, perdoa-lhes as rapaziadas, por que a final elles são teus amigos—interveio Mauricio.
—Amigos elles?! Muito agradecido; mas nem acredito na tal amizade, nem tambem a desejo; isto é para dizer o que é verdade.
Interromperam-n'o n'este ponto duas vigorosas vozes masculinas, que bradavam da rua:
—Mauricio! Ó Mauricio! que diabo fazes tu ahi dentro, com o cavallo prêso á porta? Eh!
—Tu tambem pões mão na fornada?
—Parece-me mais certo que ponha mão nas forneiras.
A ti'Anna foi a primeira que tomou a palavra:
—Fallae no ruim… São os do Cruzeiro.
E chegando ao limiar da porta, exclamou com os seus modos desempenados:
—Que é lá, que é, meus fidalguinhos? Que temos nós que dizer das forneiras? Em minha casa não ha monte para caçadas de galgos, como vocemecês. Entendem? Deixem socegado o Mauricio, que já não pouco mal lhe teem feito com os seus conselhos e companhia.
Mauricio appareceu aos primos, rindo do sermão da ama.
Clemente permanecia carrancudo no fundo da cozinha.
Os primos do Cruzeiro, o doutor e o abbade, vestiam á maneira do campo, de jaqueta de alamares, faxa vermelha á cinta, chapéo de abas largas, de espingarda ao hombro, cães em redor, e as victimas das suas façanhas venatorias pendentes ao tiracolo, como tropheus de combate.
O padre respondeu á Anna do Védor:
—Ó mulher, guarde lá a sua lingua que não nos tira a sêde que trazemos, e dê-nos antes uma pinga do verde, porque o nosso pichel vae vazio de todo.
E com a maior sem-cerimonia entraram para o pateo, poisando as espingardas e os apparelhos de caça.
O doutor sentou-se nos degraus da porta da cozinha, o padre na pilha de lenha que havia no quinteiro.
A Anna do Védor, com as mãos na cinta, observava-os e proseguiu na objurgatoria:
—Com que então o snr. abbade, e o snr. doutor, e o snr. seu mano entendem que as leis d'estes reinos não foram feitas para vocemecês?
—A que vem agora essa cantilena, ó mulher? Dê-nos vinho—insistiu o padre.
—A que vem?—tornou a ti'Anna—ahi está o meu Clemente que melhor o póde dizer.
Os dois voltaram-se e viram Clmente que, pela sua vez, appareceu á porta.
—Ah! ah! snr. regedor!
—Pelos modos o homem está zangado comnosco por lhe escondermos o filho do soqueiro, queres tu vêr?
Mauricio tomou o partido de Clemente.
—Bem sabem que é da responsabilidade d'elle.
—Ora deixa-te de contos—atalhou o doutor.
—O peior é que, vistos os autos, não temos vinho—fez notar o padre.
—Está enganado, snr. abbade—veio-lhe á mão Clemente—fosse um criminoso que me pedisse de comer e de beber, quando passasse á minha porta, eu, com ser regedor, não lh'o recusaria. O que a minha casa não ha de ser, isso não, é escondrijo de ladrões, de malvados e de refractarios, nem sei que grande gloria venha d'ahi a quem tanto mal faz á sociedade, não deixando que se cumpram as leis. O vinho ahi está.
Effectivamente appareceram dois rapazes, empunhando cada qual uma caneca a trasbordar de purissimo vinho verde, que os dois caçadores esvaziaram de um fôlego.
—Ah!—disse o doutor, no fim da libação—Não te arrenegues, Clemente, que não és mau rapaz a final. Estás muito soberbo com a tua regedoria, mas isso ha de passar-te. Ora agora fica sabendo que na quinta do Cruzeiro, desde tempos immemoriaes, encontra asylo quem ahi se acolher.
—Mas o senhor sabe que a lei pune a quem der escondrijo a um refractario. Parece-me que um doutor não póde deixar de saber estas coisas.
—A lei diz muita coisa, que todos nós sabemos; mas deixa lá a lei, que está quieta.
—Mas se o snr. administrador ordenar uma busca na casa…
—Que veja se se mette n'isso—acudiu o abbade, sorrindo ameaçadoramente.
—Tem direito para o fazer—questionou Clemente.
—Pois que se contente com o direito.
Clemente ia-se irritando.
—Mas é preciso pôr côbro a isto, meus senhores. Não se póde soffrer que em tempos de leis e de authoridades, haja uma casa onde nem lei, nem authoridade entram.
—Pois tenta, ó Clemente; quando te sentires de pachorra, manda-nos lá o exercito dos teus cabos e commanda o assalto. Ah! ah! ah! Havia de ter graça!
—Pelos modos por que vejo irem as coisas, não direi que se não chegue um dia a isso.
—Hei de gostar de vêr.
—Pois eu não. Os meus desejos eram que todos vivessem em paz e socego. E o que me custa é que partam os maus exemplos d'onde deviam vir os bons.
—Ora sabes que mais, Clemente?—ponderou o padre.—Dou-te de conselho que não puxes de mais pelo fiado. O mundo é assim em toda a parte, rapaz; e é preciso fazer a vista grossa para certas coisas. As leis são boas, mas não ha remedio senão soffrer de quando em quando que as não cumpra, quem está no caso de ter vontade.
—Mas a vontade tira-se, se as authoridades forem o que devem ser.
—Viva, snr. regedor!
—Digo isto, snr. abbade, e…
—Um seu criado, snr. regedor!
—E um dia…
—Ás suas ordens, snr. regedor.
—Snr. regedor, sim! e honro-me d'isso muito. E emquanto fôr regedor, hão de me respeitar como tal. Já disse. O seu tempo já lá vae, snr. abbade, e hoje a justiça quando tem de entrar em uma casa, não repara no brazão que está á porta… ou não deve reparar. Ninguem tem direito de não respeitar a lei, e eu prometto-lhes, que já que assim o querem…
—Bem, bem—acudiu Mauricio, que receiou que a scena se tornasse mais azeda—não prosigamos n'esta contenda. Venham vocês d'ahi, que temos que conversar. Clemente, socega, que tudo se ha de arranjar. Adeus, Anna.
—Vamos lá, vamos lá—concordaram os dois primos, empunhando outra vez as espingardas—deixemos o snr. regedor que está hoje muito zangado.
E ao atravessarem o quinteiro o doutor e o abbade abraçaram, cada um por sua vez, uma das moças de Anna do Védor, que voltava da fonte com o cantaro de agua.
—Olá, olá, fidalguinhos!—bradou da porta da cozinha a patroa—já disse que isto aqui não é terras do Cruzeiro. Olhem se querem que eu os enxote como a rapozas do gallinheiro?
E quando a criada chegou ao pé d'ella, disse-lhes com aspereza:
—Tu não sabias chimpar-lhes o cantaro pela cabeça abaixo, minha maluca?
Sempre vocês não sei para que querem a esperteza.
Os rapazes retiraram-se rindo.
Anna voltou a ouvir e a mitigar as queixas do filho.
Mauricio mandou para casa o cavallo, no proposito de seguir os primos a pé. Estes enviaram tambem para o Cruzeiro os cães, as espingardas e os mais petrechos de caça.
Os dois manos riram por muito tempo da prosapia do regedor e não se deram por satisfeitos, senão depois de terem conseguido fazer tambem rir Mauricio que, ao principio, tentou admoestal-os.
—Deixemos o assumpto—disse a final o padre—que destino levas?
—Nenhum.
—N'esse caso vem por nossa casa, que não te has de arrepender.
—Que ha lá?
—Vem e saberás.
—O José recebeu hontem do Douro uns cascos promettedores—explicou o doutor.
—Adeus, adeus; ahi estás tu a desfazer a surpreza. Deixa-o vir.
—Vou—respondeu Mauricio—mas havemos de seguir o caminho que eu disser.
—Mas por onde diabo queres tu ir?
—Temos empreitada?
—Tambem vos prometto que se não arrependerão—insistiu Mauricio.
—Ó rapaz, se são olhos pretos e cabellos fartos, dize, e vamos lá vêr isso—alvitrou o padre.
—Olhos, cabellos, dentes, gesto, riso, figura, tudo uma perfeição—ampliou Mauricio.
—Onde desenterraste essa maravilha?
—Chegou aqui ha poucos dias.
—Não ponhas mais na carta.
—Já sei—interveio o doutor—fallaram-me n'ella. É a filha do Thomé da
Herdade.
—Exactamente.
—E então ella sempre é essas coisas?
—Só te digo que eu ando cada vez mais doido por a rapariga. Isto cá dentro está em imminente perigo de explosão. Que admira, se nunca até hoje vi uma belleza assim?
—Estás bem bom. Ó rapaz, o mais que posso fazer é casar-vos. Conjungo vós—disse o padre, cantarolando.
—Em uma palavra, para vocês imaginarem o estado d'isto, basta que vos diga, que me custou a conter a indignação quando ouvi ha pouco a Anna do Védor dizer-me que a Bertha era um bom casamento para o filho.
—Ai, para o snr. regedor!
—É verdade.
—Então s. exc.ª tenciona tomar estado?
—E vamos lá a saber—informou-se o doutor—a rapariga é arisca ou accessivel?
—Por ora parece-me desconfiada apenas, mas…
—Como disseste que se chama? Bertha?
—Sim.
O padre cantarolou:
Bertha, Bertha, meus amores,
Bertha do meu coração.
És a rainha das flores,
Trai lari lari larão.
E, cantando, trepava o muro de um pomar para colher laranjas que de lá o estavam seduzindo.
—Deixa lá as laranjas; anda d'ahi—dizia o mano doutor, que seguia á frente do rancho.
—A casa do cidadão é inviolavel—acrescentou Mauricio.
—Sim, senhor—tornou o padre, já a cavallo no muro—mas se me faz favor, nem isto é casa, nem um homem que móra na aldeia é cidadão.
E sahiu outra vez do muro com a sua colheita, e pôz-se a caminho, comendo as laranjas que roubára.
—Então dá cá uma—disse o doutor, voltando-se para traz.
—Ah! ah! já cubiças?
E o padre arremessou duas laranjas, que o mano destramente aparou nas mãos.
A companhia foi seguindo pelos accidentados caminhos da aldeia, cantando, saltando, pondo em confusão as lavadeiras moças que ensaboavam nas prêsas, abraçando á força na estrada as raparigas que, vergadas sob mólhos de herva ou de milho cortado, mal lhes podiam fugir; visitando todas as tavernas, fazendo correrias a gallinhas, porcos ou vaccas se se lhes deparavam na pastagem, calcando campos e escalando muros com o desassombro de senhores.
Mauricio imitava-os meio constrangido, mas imitava-os. Se ás vezes os seus melhores instinctos ou a influencia do tracto com Jorge o faziam conter, a reflexão maliciosa de qualquer dos primos, que ironicamente lhe celebrava a candura, impellia-o a vencer a primeira hesitação, e a final dava o passo que lhe repugnára.
Mauricio possuia um d'estes caracteres faceis de dominar; moveis, que cedem ao bem e ao mal e que tanto habilitam o homem a realisar heroicos feitos, como a perder-se. Tudo está na influencia que os rege.
Se teem faculdades para apreciar o gozo, que de uma acção grande e generosa resulta; se são capazes de a conceber e dão estimulos para a executar; tambem as seducções do vicio os enlevam, tambem a vertigem do abysmo os attrahe, e aproximam-se fascinados do precipicio, sem que a razão acorde para os suspender no progresso fatal.
Caracteres assim são instrumento poderoso do bem ou do mal, conforme a mão que d'elles usa, e a intenção que os dirige. São os que sentem a influencia das boas ou más companhias.
Dentro em pouco chegavam os tres rapazes á Herdade.
—Então a rapariga?—perguntou o padre, examinando as janellas vazias.
—Nem sempre apparece á janella—informou Mauricio.
—E de que meio te serves para chamal-a? tosses, cantas, assobias?—perguntou o doutor.—Qual é o teu systema?
—Eu não tenho systema.
—Então para que nos trouxe por aqui este innocente, não me dirão?
—Tu não tens entrada em casa?
—Meu pae não gosta que nós visitemos o Thomé.
—Ah! lá se o papá ralha…
—Este Mauricio tem coisas!
—Isto é mesmo uma menina innocente!
—Aqui não ha malicia alguma!
Estas observações dos manos estavam causando a Mauricio vergonha da sua propria candura.
—E então d'aqui?—interpellou o doutor.
—Então…—titubeou Mauricio.
—Segue-se dar meia volta á direita, e retirarmo-nos com caras de asnos, não é assim?
—Façam vocês o que quizerem—exclamou o padre—eu por mim, já que aqui estou, não me retiro sem vêr a pequena.
—Mas como?—interrogou Mauricio.
—Eu te digo já. A coisa é simples.
E dizendo, dirigiu-se a uma pequena porta que havia no muro da quinta e, sem a menor hesitação, impelliu-a com força e ella cedeu sem grande resistencia. O padre entrou primeiro, seguiu-o o mano doutor, e Mauricio, ainda que mais a mêdo, imitou-os.
Os do Cruzeiro caminhavam com a sem-ceremonia, que caracterisava todos os seus actos n'aquella terra, assobiando, cortando flores e fructas, e encurtando caminho por cima dos campos semeados.
De repente o padre, que ia adiante, parou, e voltando-se, disse em tom mais baixo:
—E ainda dirão que não sou bom caçador?
E, afastando-se para o lado, deixou-os vêr o objecto que elle designava, apontando para a extremidade da rua em que iam entrar.
Era Bertha.
A filha de Thomé da Povoa acabára de ajudar a pôr á cabeça de uma rapariguita aldeã o ultimo feixe de cannas de milho que os segadores haviam deixado no campo e ficára-a seguindo com a vista, tão attenta que nem deu pelos recem-chegados.
—Vejam que figura de fada—murmurou Mauricio para os primos.—É a Ruth da escriptura.
—Sim, a figura temos visto, agora quero vêr-lhe a cara—disse o padre; e acompanhado pelo mano bacharel, dirigiu-se para Bertha.
Mauricio, surprendido por este passo, que não esperára, seguiu-os para conter-lhes a brutal galanteria.
Bertha, ouvindo passos, voltou-se, e ao reconhecer os tres rapazes, não reprimiu um movimento de assustada surpreza, o qual porém se desvaneceu, reparando que Mauricio era um d'elles.
Todos se descobriram, cortejando Bertha.
O padre, fitando impertinentemente os olhos n'ella, principiou:
—Minha senhora, não repare n'esta invasão de territorio. Mas quem teve a culpa foi aqui o primo Mauricio. Fallou-nos com tal enthusiasmo da gentil filha do nosso velho amigo Thomé, que nós tomamos a resolução de vir admiral-a e cumprimental-a. E aqui estamos.
Bertha córou intensamente perante a grosseira sem-ceremonia do padre, e dirigiu a Mauricio um olhar, em que se fazia uma interrogação e se formulava uma censura.
Mauricio respondeu a este olhar, dizendo em tom de irritado:
—Desculpe, minha senhora, as maneiras pouco delicadas de meu primo. É um javali silvestre que não sabe amaciar as sêdas.
O mano bacharel soltou uma gargalhada, quasi tão grosseira como a apresentação do padre, e apimentou-a com a expressão de igual delicadeza:
—Ora toma! apara lá esse peão á unha! Ah! ah! ah!
O padre olhou espinhado para Mauricio, e redarguiu:
—Ora não querem vêr este senhor de salão, que se offende com as minhas sem-ceremonias! Javali! Tem graça! Quem o ouvir, ha de suppôl-o um cãosinho de regaço. Meu lindo priminho, esta menina não é nenhuma tola e sabe o que é o mundo; e escusas, para lhe agradar, de te apresentares como um galã choramigas. Ora é boa!
—Adeus, adeus, padre Lourenço, isso previa eu!
—Previas o quê? Então eu offendi alguem?
—De offender a ser menos delicado vae alguma distancia, mas…
—Dize tu que o que eu não sou é impostor e hypocrita, apesar de me terem feito padre. Eu disse o que era verdade. Nós, se estamos aqui, é por tua causa. Não é assim, Chico?
O mano Chico affirmou.
Bertha assistia a toda esta scena com visivel desgosto, mas sem interrompêl-a com uma palavra.
—Bertha, affirmo-lhe…—ia a dizer Mauricio para justificar-se da tacita arguição, que lia no olhar d'ella.
—Com licença—cortou-lhe o padre a palavra—se sou grosseiro e javali, hei de sêl-o até o fim. A coisa passou-se d'esta maneira. O Chico que o diga. Aqui o primo Mauricio parece que está perdido por a menina, e por tal modo nos fallou de si, tanto nos matou o bicho do ouvido para que lhe passassemos por a porta, que nós viemos. E como não estava á janella, nem elle tinha ainda combinado signal para a fazer apparecer, eu, para não perder o tempo e as passadas, abri brecha no reducto e entramos. Ora aqui está. Se isto é offensa…
Bertha respondeu, já serenamente:
—Creio que não é, porque não póde de certo haver intenção de offender-me, em quem entra em minha casa na companhia do snr. Mauricio. Elle bem se lembra de que eu fui em pequena a companheira de sua irmã Beatriz, de que sou a afilhada de seu pae, e n'aquella casa, a que elle pertence, julgo que ainda ha, como d'antes, muito respeito por este laços de familia e de amizade…
—Ha, Bertha, ha e tão sancto como em outros tempos. E ha mais, ha a firme resolução de os fazer respeitar aos outros, como lá se respeitam.
—Abranda-te, leão! Não estou disposto a luctar comtigo, apesar d'esses olhares ferozes. Esta menina far-me-ha mais justiça, reconhecendo que eu não a offendi…
—Não fallemos mais n'isso—acudiu Bertha friamente.
—Mas é um caso de consciencia—insistiu o abbade.
—Então ninguem tão habilitado para o decidir como um sacerdote—tornou-lhe Bertha, com desdem.
Gargalhada do mano bacharel.
—Chucha! Ora mette-te com ella, anda.
—Em coisas do coração—redarguiu o padre galanteadoramente—são melhores juizes do que os sacerdotes, as madamas.
Bertha contrahiu a fronte com desgosto e respondeu-lhe com maior severidade:
—Quando ellas teem um pae, podem elles tambem ser juizes. E o meu ahi vem.
Effectivamente chegava Thomé da Povoa.
O honrado fazendeiro, que tinha a sua opinião formada a respeito dos fidalgos do Cruzeiro, franziu o sobrolho, assim que os avistou com a filha.
Nem a presença de Mauricio bastou para tranquillisal-o.
Thomé conhecia de pequenos os rapazes da Casa Mourisca e sabia até que ponto se podia contar com o que em Mauricio havia de bom, e receiar do que n'elle havia de mau.
Depois a physionomia de Bertha denunciava que a conversação dos fidalgos não tinha sido demasiadamente apropositada.
Nem convinha á boa fama de uma casa, em que houvesse raparigas, a assiduidade de qualquer dos tres manos do Cruzeiro.
Tudo isto actuava no espirito de Thomé durante os instantes que precederam a sua introducção na scena.
—Olá! v. exc.as por aqui! Grande honra! grande honra!
—É verdade, Thomé—começou o padre a dizer—entramos, como rapazes de escóla, sem pedir licença ao dono da casa; mas confiamos que não se nos leve a mal…
—Ora essa! Levar a mal porquê? V. exc.as quizeram talvez vêr por seus proprios olhos como esta abençoada terra, que d'antes se definhava nas mãos de um fidalgo, medra agora nas mãos de um lavrador?
—Justamente. E depois tivemos a felicidade de encontrar a menina
Bertha, que é a maravilha d'estes sitios.
—Ah!—disse Thomé, com um meio sorriso, e voltando-se para a filha, que instinctivamente se aproximou d'elle:
—É verdade. Agora me lembra! Olha que tua mãe recebeu já aquellas meiadas. Se queres ir vêl-as.
—Vou, vou já—respondeu Bertha.
E cortejando levemente os tres rapazes, afastou-se d'alli.
—Até outra vez, Bertha—disse Mauricio, com voz affectuosa.
—Snr. Mauricio—correspondeu-lhe Bertha, e desappareceu por uma rua da quinta.
E pensava comsigo mesma:
—Agora… agora… já não sinto mêdo d'elle… nem de mim.
—Na verdade, Thomé, a sua casa está um perfeito paraizo e nem os anjos lhe faltam—disse o mano bacharel, depois que Bertha se retirou.
—O que eu posso affirmar—insinuou o abbade—é que não faltarão tambem em volta d'estes muros enxames de namorados. Que te parece, Mauricio?
—Bertha é digna de todos os respeitos—murmurou Mauricio, confuso.
—Bem, bem, quem diz menos d'isso? mas…
Thomé interrompeu o padre.
—Eu lhes digo, meus senhores, Bertha é filha de uma familia, em que todos trabalham, e pouco tempo póde ter para apparecer a namorados. Quando algum homem de bem se me affeiçoar á filha, não serei eu que lh'a recuse, se o coração d'ella estiver para esse lado; pois para freira a não quero. Emquanto aos enfeitados, que andam por ahi a zunir aos ouvidos das raparigas e a fazel-as doidas, Bertha sabe bem o que elles valem… mas, se por acaso a importunarem muito… eu sei como se dá cabo de um vespeiro.
E fallando Thomé da Povoa não ficára immovel, mas pozera-se naturalmente em caminho da porta, e os tres seguiam-n'o, sem fazer observação alguma.
Só quando o viram parar no portão é que perceberam que o lavrador como que tacitamente os convidava para sahirem.
O padre não pôde deixar sem uma reflexão este procedimento.
—Agradecemos, Thomé, o incommodo que teve a ensinar-nos o caminho da porta para sahirmos.
—Os lavradores da nossa terra teem estes excessos de hospitalidade—secundou o doutor.
Thomé córou e respondeu com certa confusão:
—A minha cabeça!… Desculpem. Isto em mim foi distracção. Quando a gente não está bem em si, faz, sem reparar, coisas que muitas vezes lhe podem estar na vontade, mas que por delicadeza não faria, se pensasse melhor. Queiram desculpar.
—Está desculpado. Nós tambem não tinhamos mais que fazer aqui. O fim da nossa visita estava preenchido.
—Sim, tambem me quiz parecer isso.
—Adeus, Thomé—bradou o doutor—Deixamol-o entregue á sua vida patriarchal.
—E está um verdadeiro patriarcha, este bonacheirão do Thomé—disse o padre, batendo familiarmente no hombro do lavrador.
—Bonacheirão?—repetiu Thomé, encolhendo os hombros e com um meio sorriso—Isso é conforme. Ás vezes… Ahi está que, sendo eu amigo do mestre-escóla, como sou e ha tantos annos, estive ha mezes para o esmagar. E sabem porquê? Porque passava eu por a escóla e ouvi chorar uma criança, e pareceu-me que era o meu pequeno; não me socegou o coração sem que me affirmasse se era elle ou não. Entrei e vi o desalmado do Zé Domingues que m'o desancava sem dó nem piedade. Escureceu-se-me a vista, entrei furioso por alli dentro, e por um triz que não deixava o homem a pernear.
Os rapazes estavam já fóra da porta quando Thomé acabou de contar o caso, e acrescentou:
—Não que se tractava de meu filho, e isto de amor de pae e de mãe… É como nos animaes. Sabem aquella vacca malhada que eu tenho? Um borrego, com que uma criança brinca; pois haviam de vêl-a uma vez em que lhe tiraram a cria! Estava furiosa e arremettia como um toiro bravo. É preciso cuidado com isto de paes e de mães!—concluiu o fazendeiro, em tom sentencioso e emphatico.
E dando as boas tardes aos tres rapazes, fechou a porta, murmurando:
—O padre ainda não aprendeu com a corrida que levou da abbadia. E este
Mauricio a acompanhar com elles! Valha-o Deus!
—Então que vos parece o snr. Thomé?—perguntou o bacharel cá fóra.
—Não está mau com a historia da vacca—disse o abbade, rindo.
Mauricio conservou-se silencioso.
—Tu a modo que vaes assim embaçado, ó Mauricio?—observou o bacharel.
—Estou arrependido de vos ter trazido commigo aqui—confessou Mauricio.
—Ora não sejas parvo! querias talvez que fizessemos muito gasto de excellencias com a filha do Thomé da Povoa?
—É uma rapariga de educação, e o pae…—ia a dizer Mauricio.
—E o pae—atalhou o padre—anda-me chiando muito alto, mas bom será que tenha mais cuidadinho comsigo.
—As ultimas palavras d'elle cheiraram-me a uma ameaça—observou o doutor.
—Eu nem dei por isso—respondeu o mano.
E os tres retiraram-se de mau humor.
Jorge, que ultimamente era menos assiduo em Casa de Thomé, sem que este pudesse atinar com a razão do facto, recebeu, na tarde d'aquelle mesmo dia, um bilhete do fazendeiro, pedindo-lhe que o procurasse na Herdade ás horas do costume. Jorge não faltou.
Thomé da Povoa recebeu-o com modos menos desenleiados do que os que lhe eram habituaes, e com ares de mysteriosa preoccupação conduziu-o a um gabinete mais retirado da casa, serrando a porta depois que entraram, com excepcional cuidado.
Jorge seguia-lhe com estranheza os movimentos.
Thomé, com um gesto denunciador do esforço que n'aquelle movimento fazia sobre si proprio, entrou no assumpto com visivel repugnancia:
—Snr. Jorge—principiou elle—sei que é meu amigo, e que tem o juizo e a prudencia de um homem feito, apesar de novo como é; por isso vou fallar-lhe com a franqueza de um homem de bem e de um amigo.
—Nem o Thomé sabe conversar de outra maneira. Diga.
—Pois bem. A coisa é esta… Eu antes queria não fallar n'isto, mas… emfim… se o negocio ha de ir a mais… e succeder por ahi alguma desgraça… emfim… a tempo é que é evitar o mal; quanto ao depois…
—Mas de que se tracta?
—Snr. Jorge. É um pae que lhe falla. Tenho uma filha e emfim preciso de vigiar por ella, emquanto não tem marido que a zele e proteja… não é verdade?
Jorge não pôde ouvir sem se perturbar estas palavras e, interiormente inquieto, sem bem saber porque, murmurou:
—De certo, mas…
—Ora bem. O snr. Jorge é rapaz sisudo e pacato, mas emfim sempre ha de saber o que são dezoito, dezenove ou vinte annos, hein? Pode-se ter o juizo muito claro, vêr as coisas como ellas são, mas… isto de sangue novo… parece que ferve e depois é como uma doença, e como uma febre, a cabeça desarranja-se e não ha conselhos que a concertem. Pois não é assim?
Jorge córou ouvindo estas considerações de Thomé, que lhe pareciam dirigidas, olhou para elle com desconfiança e respondeu confusamente:
—Talvez seja; porém…
—Ora então segue-se que o melhor é livrar-se a gente de trabalhos e fugir das occasiões, para que depois se não diga: «Ai, porque se eu soubesse; ai, porque o que eu devia ter feito era…» Entende-me?
—Entendo, Thomé, mas, a final a que quer chegar?—interrogou Jorge, cada vez mais sobresaltado.
—Ora eu lhe digo. A minha Bertha é uma rapariga de juizo.
A confusão de Jorge redobrou. O rosto tingiu-se-lhe de rubor, em que
Thomé não reparou.
—É—proseguiu o fazendeiro—tenho a certeza d'isso, mas é rapariga, e emfim teve uma educação bem bonitinha; e Deus me perdoe se fiz mal em lh'a dar; ora eu, com quanto seja um rustico, sei o valor que teem certas coisas, e que quem se costumar a ellas com ellas sonha. Isso é que é verdade! E nem eu me admirava de que a pequena tivesse sua inclinação para rapazes da cidade. Era natural, já digo. Mas aqui não veem elles, os da terra são assim meios… meios… emfim rapazes de lavoura, como eu fui; muito bons para raparigas como era a minha Luiza. Ora agora o que por ahi ha, são, e perdoe-me dizer-lhe isto, uns fidalguinhos que não teem que fazer, e que passam o seu tempo a inquietar as raparigas da terra. D'esses é que eu tenho mêdo! E se quer que lhe falle a verdade, cá em relação á minha pequena, ha um sobre todos de que eu muito me receio.
—Quem é?—perguntou Jorge, ainda não senhor de si.
Thomé hesitou por algum tempo, mas a final, como tomando uma resolução, respondeu:
—É seu irmão Mauricio.
—Mauricio!—repetiu Jorge, contrahindo a fronte.—Pois acaso tem elle dado já motivos para suspeitar?…
—Poucos; isto em mim é mais mêdo do que outra coisa. Hoje porém já me não agradou o que elle fez.
E Thomé narrou a Jorge a scena da manhã, acrescentando:
—Ora dos do Cruzeiro não tenho eu mêdo. Bertha conhece-os e é o que basta para ficar livre de perigo; mas com o snr. Mauricio já não é assim. Apesar das suas doidices, não se póde deixar de se gostar do rapaz, porque o fundo é bom e generoso, e depois… conhecem-se ha muito… e elle é estouvado e um rapaz bonito… e ella… ella tem dezoito annos… Emfim, snr. Jorge, isto anda-me cá a pezar, e por isso pedia-lhe que visse se obrigava seu irmão a deixar-me em paz a rapariga, porque nada de bom póde resultar d'aqui.
Jorge sentia apertar-se-lhe o coração ao ouvir aquella confidencia. Era pois certo que Bertha amava já Mauricio!
—Thomé—respondeu elle, sem trahir a sua agitação—socegue. Eu fallarei a Mauricio. Não creio que elle fizesse com intenção o que me diz; mas em todo o caso concordo em que é preciso evitar a tempo peores occorrencias. Faço justiça a Bertha; mas quero que meu irmão seja o primeiro a respeital-a. Eu lhe fallarei, creia.
—Muito bem—respondeu Thomé, apertando-lhe a mão.—Eu estava certo de que me daria essa mesma resposta.
Jorge acrescentou:
—Demais, Mauricio pouco se demorará aqui. Espero que em breve parta para Lisboa.
—Bom será. Talento tem elle para o poder aproveitar na vida, e aqui o que ha de elle fazer? Depois a companhia d'aquelles primos!…
Jorge separou-se de Thomé, sem que se occupasse n'aquella noite do assumpto habitual das suas conferencias.
Ao sahir, mais cêdo do que o costume, atravessou uma sala aonde Bertha costurava á luz de um candieiro.
Ao vêl-o passar, Bertha estendeu-lhe familiarmente a mão, dizendo com um sorriso affectuoso:
—Retira-se muito cêdo hoje; durou pouco a lição.
—Ás vezes é quando mais se aprende—respondeu-lhe Jorge, com mal disfarçada ironia.
—E até quando?—proseguiu Bertha, parecendo não attentar no sentido da resposta.—Ha já bastante tempo que não o viamos.
—Até… até cêdo.
—O snr. Mauricio vejo-o mais vezes… ainda hontem ahi passou.
—Sim—disse Jorge com um malicioso sorriso—Mauricio tem essa habilidade, de ser visto todos os dias por as mulheres bonitas da terra.
Bertha olhou admirada para Jorge; feriam-n'a aquellas respostas sêcas e sarcasticas, que não esperava ouvir-lhe.
—Então dá-se ao trabalho de se mostrar a todas?—perguntou ella sem desviar os olhos.
—Sim, provavelmente—tornou Jorge no mesmo tom—e parece que todas se dão ao trabalho de lhe apparecer.
—Ah!
E Bertha calou-se; fixou os olhos na costura e pareceu até esquecer-se da presença de Jorge na sala.
Este finalmente despediu-se, estendendo a mão a Bertha.
—Boa noite, Bertha.
Sem levantar os olhos da costura e portanto sem lhe corresponder ao gesto de despedida, Bertha respondeu:
—Boa noite, snr. Jorge.
—Offendeu-se—pensava Jorge ao retirar-se—então ha fundamentos para as apprehensões de Thomé. Juizo de rapariga a final! Cabeça doida, que não espera que o coração se declare e alimenta paixões com reminiscencias de romances. Pobre Thomé! É o que elle a final colhe dos seus sacrificios para a educar. Eu logo o suppuz…
As reflexões de Jorge succederam-se e encadearam-se n'este teor. Crescia n'elle mais do que nunca a sua irritação contra Bertha.
—Mas que tenho eu com Bertha?—reconsiderava elle—para me importar com isto? A final são pequenas fraquezas de rapariga e… Mas a amizade que consagro ao pae obriga-me a intervir. Mauricio é um louco, e ella já vejo que não tem mais prudencia do que outra qualquer rapariga da sua idade.
E esta ideia de Bertha ser sensivel aos galanteios de Mauricio era o que mais que tudo o incommodava.
E Bertha? Que ficou pensando, com a cabeça inclinada sobre a costura, mas com a mão parada e o olhar pensativamente fixo?
—Porque é esta severidade de Jorge para commigo?—pensava ella—Não posso já duvidar. Ha n'elle não sei que prevenção contra mim. Ou não me falla, ou falla-me d'este modo. Um motivo leve não póde ser, porque Jorge é, ao que dizem, um rapaz de tão bom senso, que de certo por uma insignificancia não me tractaria assim. Mas que faria eu? Nada; se em mim ha loucuras, ficam-me no pensamento e ahi quem as vae devassar?… E que fossem?… E que as achassem?… Eu podia dizer-lhes: Sim, estão ahi, mas eu bem sei que estão, e ahi mesmo as suffoco e venço. Não sou responsavel perante ninguem do que se passa em mim só. Entre mim e Deus é que essas coisas se julgam. Quando me revelar, quando me trahir, que me peçam contas então. A que vem estas severidades? Que fiz eu a este generoso rapaz? Imaginará elle que o galanteio de Mauricio me terá fascinado? É um caracter tão serio, que talvez por isso me condemne. Fascinar-me! Mauricio!!… Ao principio talvez; agora porém vejo que se vão desvanecendo essas phantasias de criança, nascidas e robustecidas nas minhas horas de solidão no collegio, e que senti alvoroçarem-se ao chegar aqui, e ao vêl-o. Mauricio não é o caracter de que eu me posso receiar. E ainda bem. Mas Jorge por que me quererá mal? Lembra-me que meu pae me disse que, se elle não fosse meu amigo, não me dizia que o era… E elle ainda m'o não disse.
Estas reflexões foram interrompidas pela entrada de Thomé, que, satisfeito pela promessa de Jorge, já não sentia nuvens a escurecer-lhe o pensamento.
Jorge chegou a casa antes do irmão.
Era noite de luar, tepida noite de outomno, languida e serena, como a podem desejar os mais exaltados devaneiadores. Havia uma limpidez no céo, uma quietação nos bosques tão completa, que parecia que a natureza toda parára em suspensão a contemplar o solemne progresso da lua pelo firmamento, que inundava de luz.
Era uma d'estas noites em que só a custo se troca o ar livre dos campos pelo ar confinado do gabinete, em que se hesita ao cerrar as janellas aos raios da lua que invadem a sala, para os substituir pela luz vacillante da lampada, que alumia as vigilias do estudo.
O proprio Jorge, habituado como estava ao trabalho, cedeu ás seducções d'aquella noite e deixou-se ficar sob as arvores da quinta. O peito precisava de ar livre que o desopprimisse.
Os carvalhos e castanheiros seculares temperavam a claridade da lua, coando-a atravez da folhagem, de que o inverno os não despira ainda. Uma luz mysteriosamente discreta penetrava no bosque; raros sons interrompiam aquelle silencio, além do rumor longinquo e monotono das fontes e cascatas.
O pensamento de Jorge perdêra a placidez habitual; como que despertavam n'elle os instinctos de juventude, povoando-lhe de visões o campo da phantasia, de ordinario occupado por mais severas imagens.
Os seus calculos, os seus projectos de futuro, os problemas de administração, que lhe absorviam o pensamento, cederam agora o logar a ideias menos positivas, a meditações vagas, a quasi devaneios, em que raras vezes a sua razão se deixava arrebatar. Primeiro dominou-o a magia do passado; evocou do silencio dos tumulos aquelles dos seus antepassados, que trouxeram com todo o esplendor o nome que hoje era seu, os que mais alto elevaram o ennegrecido brazão que honrava ainda a frontaria d'aquelle solar em ruinas. Depois, saudades mais pungentes, d'essas que ainda trazem vestigios de lagrimas, como restos da sua natureza de dôr, de que só o tempo as vae privando, occuparam-lhe o coração e o pensamento. A sombra da pallida e estremecida irmã, que a morte arrebatára quando mais seduzia com sorrisos e afagos, a sombra de Beatriz, que era a mais querida e mais dolorosa recordação d'aquelles rapazes e d'aquelle velho, parecia surgir ao mysterioso apello da noite, e vaguear, como uma apparição phantastica, por entre essas arvores que menina a viram e menina a protegeram do sol abrazador dos campos.
Jorge ainda não esgotára as lagrimas consagradas á memoria da irmã.
Tinha-as nos olhos, quando a tinha no pensamento a ella.
Pouco e pouco, por uma insensivel transição, a imagem de Bertha substituiu a de Beatriz.
Differentes eram as impressões que esta nova imagem lhe produzia, differentes e indecifraveis quasi.
Já vimos que antagonismo de sentimentos havia no coração de Jorge em relação á filha de Thomé da Povoa.
Como luctavam a involuntaria attracção que por ella sentia, com a reflectida resistencia que lhe oppunha. Lidava por levantar obstaculos ao progresso do violento affecto que lhe ia tomando o coração, e a seu pezar via que esses obstaculos eram inuteis. Inventava defeitos que lhe desprestigiassem o caracter de Bertha, accusava-a de vicios de educação que ainda lhe não reconhecêra, fingia-se convencido da leviandade d'aquella pobre rapariga, e com toda a austeridade do seu caracter sisudo lavrava contra ella a sentença condemnatoria; mas no fim de tudo isto achava-se cada vez mais subjugado; revoltava-se-lhe debalde a consciencia contra esta fraqueza, em vão revelava com maneiras rudes e quasi hostis para com Bertha este desgosto de si mesmo que estava experimentando… o effeito era cada vez mais pronunciado.
O que tinha acabado de ouvir a Thomé augmentára-lhe aquella inquieta lucta de espirito.
A ideia de inclinação reciproca de Bertha e de Mauricio irritava-o e affligia-o.
Não eram as consequencias do facto que o assustavam. Jorge não acreditava na sinceridade das affeições de Mauricio; sabia quanto ellas eram fugazes e estava convencido de que a proxima partida do irmão bastaria para desvanecer essa paixão nascente.
E comtudo não lhe sahia do pensamento aquillo. Torturava-o aquella ideia, não lhe permittia repouso.
A consciencia de Jorge aventurava, muito a mêdo, a vaga explicação d'este enigma psychologico que se estava passando n'elle, mas Jorge recusava dar attenção áquella voz.
Ha casos assim, em que nem comnosco somos sinceros, em que se faz mais evidente do que nunca esta especie de dualidade unificada em todo o individuo, porque guardamos discretamente de nós um segredo nosso, e luctamos comnosco em opposição declarada.
A dominios tão intimos da consciencia seria porém irreverente levar a luz da analyse; aguardemos que a ulterior evolução de affectos melhor nos revele o segredo que ia no coração de Jorge.
Era já noite avançada quando chegou aos ouvidos do pensativo rapaz o ruido de uma porta que se abria; pouco depois passava Mauricio pela extrema do bosque, cantando distrahidamente:
Além, n'aquella avenida
De platanos e salgueiros,
Foi que em teus beijos primeiros
Bebi a primeira vida.
A luz do luar batia-lhe em cheio na figura e não o deixou passar incognito.
Jorge, reconhecendo-o, chamou-o em alta voz.
Mauricio parou surprendido.
—Quem me chama?
—Sou eu.
—Tu?! Jorge!
—Sim, pois quem havia de ser?
Mauricio caminhou ao encontro do irmão.
—Transportas-me de surpreza em surpreza! uns dias a seguir da janella do teu quarto o caminhar das nuvens, outros a errar á meia noite por entre as sombras dos bosques! Em que havia de dar a arithmetica!
—Cheguei ha pouco. Abafava lá dentro. Vim para aqui esperar-te, porque desejava conversar comtigo.
—O tom é grave e serio; é de crer que o assumpto corresponda.
—Não te enganas. É bastante serio o que tenho para dizer-te.
—Penetremos então na sombra druidica d'este bosque, para augmentar a solemnidade da scena.
—Peço-te que deixes para outra occasião as tuas observações joviaes; repito-te que é serio o que tenho a dizer-te.
—Pois aqui me tens serio como o assumpto. Falla.
Jorge guardou ainda por instantes silencio. Sob os passos dos dois irmãos ouvia-se estalar as folhas sêcas que alastravam o chão.
—Mauricio—principiou Jorge a final—Thomé procurou-me hoje para fazer-me um pedido.
—Hum!—atalhou Mauricio com meio riso—não me enganei, previ logo que se tractava d'isso.
—De quê?
—Fizeram-te queixa de mim, não é verdade? Pintaram-me como um lobo voraz rondando e assaltando o curral da tenra ovelhinha, creada com tanto mimo e recato? e tu, na tua inexperiente imaginação de rapaz serio, viste logo um drama pavoroso em tudo isso e distribuiste-me n'elle o papel de tyranno. Confessa que tudo isto é verdade.
—E estimaria bem que não fosse.
—É o que eu digo. Olha, Jorge, eu sou mais novo do que tu, mas, vivendo mais da vida commum da sociedade, não estou tão sujeito a vêr as coisas sob o colorido particular do prisma, atravez do qual as vêem os que, como tu, trazem quasi sempre o pensamento tomado por altas e abstractas especulações. Com a maior franqueza te confesso que Bertha me agrada, que todos os dias procuro vêl-a, que, se lhe fallo, não perco tempo a dizer-lhe que o anno vae bom para as colheitas ou que hontem esteve mais calor do que hoje; não tenho razões para suppôr que as minhas visitas a importunem. Esta é que é a verdade; mas d'aqui a realisar o typo de Lovelace ou D. Juan Tenorio, incumbindo a ella a parte de Clarisse ou de Elvira, vae muita distancia. Estas coisas, se tu não andasses tão alheado dos negocios terrenos, devias saber que são da pratica commum, em qualquer parte, onde se encontra uma rapariga bonita e um rapaz que se preza de saber apreciar o bello. Ora agora vê lá se ha motivo para o terror tragico que te infundiram.
—Não é terror tragico, é desgosto. Eu bem sei que são usuaes esses galanteios que dizes, essas falsas ostentações de amor, com as quaes se profana e desprestigia tudo quanto ha de mais sancto e respeitavel no coração do homem. Ás vezes succede, é verdade, que uma das partes interessadas, talvez por andar alheada dos negocios terrenos, como dizes, entra com a alma n'essas comedias sociaes, e quando a scena finda, muito a bel-prazer do outro actor e sob os applausos dos espectadores que riem, essa alma sente-se ferida de um golpe mortal. As illusões da mocidade, o suave perfume de um affecto virginal, as primicias de um amor casto, tudo se desvanece n'estas profanações, e não sei que haja espirito tão leviano que ouse tentar a representação d'estas comedias ridiculas e ao mesmo tempo perversas com uma pessoa a quem se devem affeições leaes e respeitos.
—Mas…
—Em uma palavra, Bertha é a filha de um homem honrado; Bertha era a amiga e a companheira de Beatriz e muitas vezes se sentou comnosco á mesa, a que presidia nossa mãe, que a abençoava, quando nos abençoava a nós. Não te lembras d'isso?
—Lembro, e por isso mesmo a amo. Não te disse que havia entre nós recordações de infancia?
—Amas!—exclamou Jorge com uma impaciencia, a que era pouco sujeito.—Que amor! Um amor de que fazes confidentes os primos do Cruzeiro, que sabes tractarem irreverentemente todos os amores, um amor que ostentas sem recato, chegando a sujeitar á apreciação cynica d'esses doidos a mulher que dizes objecto d'elle, um amor que não procuras occultar com aquelle casto e natural pudor de uma alma devéras apaixonada. Que amor esse que apregoas sem escrupulos nem reservas diante de quem quer que seja!
—Mas… como imaginas tu então que se ama, quando se ama devéras? O systema da publicidade applicado ás paixões não será antes uma garantia da boa natureza d'ellas?
Como se nem tivesse escutado estas palavras, Jorge, acelerando um tanto a rapidez dos seus passos, proseguiu com exaltação crescente:
—Nunca amei, nunca senti por uma mulher uma d'estas paixões unicas, dominadoras, exclusivas, a que se sacrifica tudo; mas ás vezes tenho pensado n'isto e julgo haver concebido o que seria para mim o amor, se o sentisse. Se eu um dia amasse, parece-me que procuraria esconder de todos os olhos essa paixão; desejaria que ninguem m'a suspeitasse nem por uma palavra, nem por um gesto, nem por um olhar. Ouvir estranhos fallar sequer na mulher que eu amasse, ferir-me-ia como uma profanação. Não escolheria confidentes, a ninguem revelaria esse segredo da minha alma. A mais alta, a mais casta voluptuosidade, que me produziria este amor seria o poder dizer, quando estivesse só, ninguem no mundo sabe, ninguem suspeita este mysterio do meu coração, senão ella. Para ella só, para essa mulher que eu amasse quereria reservar todas as manifestações dos meus sentimentos, as mais serias e as mais pueris, pertenciam-lhe; e permittir que outros as percebessem era profanar o culto. Só com ella, sim, todas as reservas acabavam; então no gesto, na palavra, no olhar revelaria inteira a minha alma, sem mysterio nem discrição. Aspiraria assim n'esses instantes todo o suave e delicado perfume do amor. Que o mundo, ao vêr-me frio e concentrado, pensasse: «Ahi está um homem de gêlo, este não sabe amar», e que ella só pudesse dizer: «Oh! eu é que sei de que extremos é capaz aquelle amor que ninguem suspeita.»
Mauricio estava maravilhado de ouvir Jorge, que parecia dominado por uma excitação nervosa, ao fallar assim, mais para si do que para o irmão.
Taes expansões eram raras em Jorge e esta era a mais vehemente e completa que o irmão presenciára.
—É singular!—notou Mauricio—N'esta vida tropeça-se a cada passo em uma maravilha. Quem te ouvisse agora não acreditaria que és aquelle rapaz serio, para quem as raparigas nem se atrevem a lançar um olhar furtivo, porque nunca uma phrase de galanteio ou um sorriso as animou a tanto. Estou admirado! e quasi me convenço de que a final sou apenas um simples curioso na arte de amar, cuja metaphysica transcendente tu professas como verdadeiro mestre. A minha sensibilidade é menos exigente, mas por essa mesma razão admiro a suprema delicadeza da tua!
Jorge como que voltou a si e estranhou a exaltação de que se deixára possuir. Rindo e fallando já em tom natural tentou attenuar a impressão produzida, e disse para o irmão:
—A lua tem decididamente uma influencia poderosa até nos animos mais fleugmaticos. Ahi está que querendo eu fallar-te de coisas serias, esqueci-me em uma divagação sentimental, que Deus sabe até onde me levaria. Deixemos isto. Vaes prometter-me, Mauricio, que desestirás de inquietar Bertha e tranquillisarás o espirito a Thomé!
—Ora que ridicula promessa exiges tu de mim! Deixa-me vêr de quando em quando aquella rapariga, que eu te afianço que não corre perigo algum com isso. Quanto mais que eu não posso assegurar que ella de facto me corresponda.
—Não anticipes juizos sobre o effeito incalculavel que póde produzir no espirito d'aquella rapariga a assiduidade das tuas attenções. Bertha é muito nova, tem habitos e gostos de cidade, e não é de crêr que possas ter na aldeia concorrentes que te offusquem. Por isso o melhor é acabar com esse galanteio perigoso para ella. Lembra-te das consequencias que póde ter um tal capricho da tua parte. Além do que parece que já te esqueceste da gravidade da nossa posição e das resoluções que ha dias tomamos.
—Não, não me esqueci; estou prompto para a primeira voz; mas, emquanto espero, desejo dar um adeus á vida de rapaz.
—Mas evita sahir d'ella, semeando remorsos que fructifiquem na tua vida de homem.
—Mas…
—Terminemos. Peço-te, em nome de Beatriz, que não continues galanteando
Bertha. Promettes?
Mauricio acabou por prometter.
E horas depois voltavam a casa os dois irmãos.
A lua declinava já no arco esplendido que descrevia no céo.
Em uma das seguintes madrugadas foi Jorge sobresaltadamente acordado pelo velho jardineiro, que depois das ultimas reformas estava empregado no serviço interno da casa. O homem tinha uns ares de espantado, como se viera a communicar a noticia de um incendio.
—Que temos?—perguntou Jorge, sentando-se inquieto no leito.
—É que não tarda ahi a snr.ª baroneza. Já estão lá em baixo umas bagagens e uns criados, e… não está nada preparado.
—Cuidei que era outra coisa. E o que querias tu que estivesse preparado?
—Ora pois então? Sempre é uma pessoa… Lá o padre já deu ordem para se ir pedir a baixella aos…
—Não se pede coisa alguma. Ahi principia o frei Januario a fazer das suas. Dize-lhe que deixe tudo ao meu cuidado. Que se não estafe, nem afflija, que não é necessario.
—Mas… olhe lá, snr. Jorge! O fidalgo mesmo não ha de gostar…
—Faze o que eu te digo. Isso em ti, a fallar a verdade, até me admira. Não parece franqueza de soldado. Para occultar aos olhos de minha prima a nossa pobreza, que não é vergonha nenhuma, querias que fosse descobrir ás familias que teem baixellas, a nossa vaidade, que essa, sim, seria uma vergonha? Não estou resolvido a fazel-o.
O velho meneou a cabeça por algum tempo, e acabou por dizer:
—Parece-me que tem razão, snr. Jorge, como sempre. Ai, se n'esta casa todos tivessem tido o seu juizo, ella não chegaria ao estado a que chegou. Lembro-me agora de que quando o imperador…
—Deixa o caso para outra occasião. Vae arranjar, como puderes, essa gente e essas coisas todas; emquanto eu me visto e preparo para ir receber a prima…
O velho criado obedeceu com presteza militar.
Meia hora depois ouviam-se tilintar as campainhas dos machos da liteira, em que vinha a baroneza.
Gabriella, a baronezinha viuva de Souto-Real, ainda não tinha trinta annos, e mais nova parecia do que era. Alva, loira e delicadamente formosa, realisava o typo da mulher elegante, creada na atmosphera dos bailes e dos theatros, e mais á luz artificial que á luz do sol. Apaixonada por perfumes e rendas, observadora fiel da moda, sujeitava-se aos mais extravagantes caprichos d'ella, sabendo-os porém corrigir pela influencia do seu gosto apuradissimo. Tinha a languidez e a particular côr pallida das formosas de Lisboa, que não recebem do sol da provincia a vigorosa encarnação de saude. Indole verdadeiramente feminina, exercia mais imperio sobre as suas paixões, do que sobre os seus caprichos. Com difficuldade sacrificaria o mais ligeiro d'estes; aquellas, porém, subjugava-as com fortaleza varonil. Possuia um genio alegre e ás vezes um tanto satyrico, mas sem malignidade. Não professava os principios d'aquella moral intractavel, que se arma da severidade puritana contra as paixões e defeitos dos outros; pelo contrario era tolerante e latitudinaria, não se esquivando a apertar a mão aos maiores peccadores, com quem se encontrava no mundo, sem que, sob essas apparencias de leviana indifferença, deixasse de manter um descernimento seguro do bem e do mal, e um grande fundo de moralidade e de justiça.
Além d'isto possuia um bom coração e uma alma generosa.
No tracto de mais illustrada sociedade lisbonense e nas viagens em que acompanhára o barão, seu fallecido marido, adquirira uma variada cópia de conhecimentos, de que o seu natural bom senso sabia usar, sem abuso. Passava por uma das mais espirituosas damas de Lisboa, sem que se lhe notasse a ostentação pedantesca, que é o escolho em que tanta vez naufragam as que a tal nome aspiram. As primeiras capacidades artisticas, litterarias e politicas frequentavam as salas da baroneza e apreciavam a sua conversação.
Gabriella casára por conveniencia, que não por inclinação, com um homem mais velho do que ella, sem fóros de nobreza, mas pertencendo á classe argentaria, que é a verdadeira aristocracia moderna.
Apesar d'isso soube ser esposa fiel e dedicada d'aquelle homem que a livrára da precaria condição em que a decadencia da sua casa a collocára. Viuvando, Gabriella não deu indicios de se alistar nas diminutas phalanges das viuvas inconsolaveis, mas não se precipitou na escolha de esposo. A sua belleza, o seu espirito e os rendimentos que herdára attrahiram uma nuvem de adoradores, que ella ia deixando viver de illusões, sem se dar para isso ao trabalho de fabricar, á imitação de Penelope, uma interminavel teia. Esta vida e estes galanteios enfadavam-n'a, e, para distrahir-se, emprehendia pequenas viagens. Foi ao voltar de uma que fizera pela Hespanha, que recebeu a carta do tio, e resolveu desenfadar-se por algum tempo da vida das capitaes, visitando a sua provincia e os logares onde passára a infancia.
Tal era a baronezinha de Souto-Real, que acabára de apeiar-se no pateo lageado da Casa Mourisca.
Jorge ajudou-a cortezãmente a descer.
—Agradecida, Jorge—disse ella, apertando-lhe a mão.—Fazes as honras do teu castello com a galhardia de um perfeito cavalleiro.
—A prima não repare na modestia com que a recebemos, mas pareceu-me que seria mais digno da nossa amizade e do seu caracter apresentarmo-nos taes quaes somos, do que encher o pateo de criados e jornaleiros a quem vestissemos á pressa fardas…
E completou a meia voz:
—… Emprestadas.
—Oh! por certo; e eu reconheço melhor a tua fidalguia, Jorge, na franqueza d'esta recepção, do que na libré dos teus criados e nos brazões dos reposteiros.
E conversando familiarmente com o primo, a quem tomára o braço, a baroneza subiu os degraus da escadaria, que subia para a sala nobre.
Á porta encontraram-se com frei Januario, que voltava azafamado da cozinha, aonde tinha ido dar ordens accommodadas á solemnidade do caso e ás impaciencias e appetite do proprio estomago.
O padre limpava ainda os labios ao lenço, para fazer desapparecer os vestigios de uma libação extra-official que de passagem fizera.
—Queira v. exc.ª perdoar, snr.ª baroneza, o apparecer-lhe ainda agora, mas as obrigações do meu cargo…
—Ó snr. frei Januario, por quem é, lembre-se de que somos conhecidos antigos, e que até por vezes lhe dei motivos para me abjurar como jacobina. Tinha que vêr se me preparava a honra de uma felicitação em fórma. Onde está meu tio?
—O fidalgo não estava prevenido de que v. exc.ª chegava tão cedo, e por isso ainda está recolhido no seu quarto, mas eu vou…
—Ai, não, não; por amor de Deus não o acorde!
—Não; elle está já a pé; mas emfim fazer a barba e tal… sempre leva alguns minutos.
—Que se não apresse por minha causa. Eu illudirei a grande vontade que tenho de lhe beijar a mão, conversando com o primo Jorge.
—Então, se v. exc.ª me dá licença…
—Até logo, frei Januario.
E quando este ia longe, acrescentou:
—Ó snr. frei Januario, aquelle grande dia que estava já para chegar na ultima vez que nos vimos, aquelle dia de redempção, ao que parece não chegou ainda?
O ex-frade encolheu os hombros, e respondeu com ar de mysterio:
—Ainda não é tarde, minha senhora. Pouco viverá quem não o vir.
Gabriella entrou rindo com Jorge para a sala.
—E Mauricio—inquiriu ella—tambem já tem barba para fazer?
—Parece-me que sahiu, ainda com estrellas, para uma partida de caça.
—Bom; esse, pelo que vejo, conserva puros os tradicionaes habitos de familia.
Jorge sorriu.
—Tu é que degeneraste. Deu-me que scismar a novidade. Estou tão costumada a vêr a deterioração progressiva na linha dos representantes das familias que tomam a peito não caldearem o sangue de primeira qualidade que lhes corre nas veias, que ao vêr sahir d'esta velha casa um rapaz de juizo, fiquei espantada.
—É pouco lisongeiro para a nobreza, mas muito lisongeira para mim a sua opinião.
—Digo-t'o com franqueza; e já agora deixa-me aproveitar este tempo, em que estamos sós, para fallar n'isto e assentar as bases do meu proceder. Vamos direitos á questão. As finanças não correm bem cá por casa, ao que entendi.
—Correm muito mal.
—Não admira; é doença da época. E tu tomas a peito endireital-as?
—Tentei-o.
—E conseguel-o. Consegues, porque o teu genio é o de uns certos homens que eu tenho conhecido, que conseguem tudo quanto querem, só a querer e sem fazer barulho. Ai, Jorge, lá por Lisboa ouço dizer que ha tanta falta de financeiros, que estou tentada a exportar-te. E Mauricio?
—Mauricio…
—Percebo; é mais difficil de accommodar esse. Era facil, se não fossem as pieguices de teu pae, que ha de morrer assim. Dize-me uma coisa, ó Jorge, tu és absolutista tambem?
—Eu quasi que não tenho ideias fixas em politica.
—Bom, bom, já entendo. Não queres declarar-te por contemplação para com as tradições de familia. Estás como eu; eu sou, sem duvida alguma, liberal; porque emfim deves concordar que para se ficar toda a vida a ser absolutista é preciso viver, assim como teu pae, em uma aldeia como esta e com um padre procurador a dizer-nos ha vinte annos a mesma coisa; porém, como meu pae foi militar no exercito realista, não tenho remedio senão obrigar a guardar certas conveniencias ao meu liberalismo. Ora tu estás no mesmo caso.
—Talvez. É certo que do que está feito, acho muita coisa boa.
—Então estás como eu. Mas como dizia, Mauricio podia encontrar muita carreira aberta, mas era necessario que o papá o deixasse partir sem levar o topete vermelho e azul muito á vista, ou a vera effigie ao pescoço; salvar as apparencias, porque das ideias ninguem quer saber. Á sombra da Carta engorda muito absolutista encapotado.
—Meu pae está hoje em um estado de tão facil irritação, que duvido que chegue a consentir.
—Então o remedio é procurar por ahi alguma descendente de Egas Moniz ou de Martim de Freitas, que por milagre não tenha a casa ainda em ruinas, e enxertar esse garfo illustre na vossa arvore genealogica.
—Mau remedio para finanças. Deu o arejo nas arvores genealogicas,
Gabriella; estão por aqui todas muito enfesadas.
—Então, então…
N'este momento ouviram-se passos ligeiros nas escadas, como de quem as subia duas a duas.
—Ahi vem Mauricio—disse Jorge, escutando-os.
Foi de facto Mauricio que appareceu á porta da sala.
A baroneza correu-lhe ao encontro, estendendo-lhe as mãos, que Mauricio galanteadoramente levou aos labios, curvando-se.
—Bravo! Já vejo que observas irreprehensivelmente as tradições dos bons tempos em que se era cortez com as damas. A provincia mantem-se mais delicada do que a côrte. Se soubesses como a moda hoje capricha por lá em um á vontade com senhoras, que até ás vezes chega a ser grosseria!
—Devéras, prima? Felizmente com certas bellezas femininas sente-se a necessidade de ser delicado, independente de proposito ou dos preceitos da moda.
—E se eu te deixasse completar a phrase, far-me-ias o favor de me incluir no numero das taes. Que requinte de lisonja! E isto a perder-se nas selvas!
—Não zombe da minha sinceridade provinciana.
—Não calumnies tu a provincia, dando esse epitheto á tua sinceridade. Nada, nada, o tio que tenha paciencia. Conservar em casa um cortezão d'esta força é quasi uma usurpação feita aos direitos da corôa.
—Bem; deixe-me fallar-lhe com seriedade. Como se sente da jornada?
—Hei de sentir-me cansada, quando tiver satisfeito toda a minha curiosidade, que por emquanto não me deixa sentir coisa alguma. Por exemplo, quaes são os teus projectos, os teus calculos sobre o futuro?
—Ó prima Gabriella, sempre cuidei que só na provincia se perdia tempo a calcular futuros. Uma pessoa de bom senso não calcula o futuro, que em um momento se transtorna.
—Bem, entendo o subterfugio. O priminho Mauricio ainda não tem planos definidos sobre a sua carreira na vida. Mas é preciso que saibas que vim aqui principalmente por tua causa. Tracta-se de te arranjar uma collocação qualquer, um assento nas camaras, um emprego na alfandega, seja o que fôr, com que tu possas transigir; foi a condição unica imposta por teu pae. Por isso vê lá.
—Olhe, prima, já que a sorte me levou á dura impertinencia de me vêr obrigado a adoptar um modo de vida, não quero tornar a impertinencia dupla, encarregando-me eu proprio de o escolher. Subscrevo ao accordo a que chegarem; decidam por mim, que ou me façam general ou tabellião, a tudo me resignarei.
—Desconfio de tanta condescendencia. Quer-me parecer que havemos de encontrar difficuldades mais serias do que as intransigencias sonhadas por o tio Luiz. Dar-se-ha que haja aqui por estes bosques scenas de Romeu e de Julieta?
—Ai, não falle n'isso a Mauricio—disse Jorge com um sorriso não de todo despido de ironia—por quem é, prima! É a sua corda sensivel, e tem de o aturar por muitas horas!
—Ah! então existe a Julieta?
—As Julietas, as Desdemonas, as Ophelias e todos os typos imaginaveis.
É um enxame que elle traz constantemente poisado no coração.
—Ah! ah! pois tu és dos que declinam o amor sempre no plural? Não sabia!
—Deixe-o fallar, prima Gabriella. O Jorge bem sabe que n'esta mesma occasião tão absorvido ando por uma só imagem, que é sem fundamento a accusação de inconstante que me dirige.
Jorge contrahiu a fronte, ao perceber a allusão, e disse sêcamente:
—Julguei que havias resolvido devéras ter juizo.
—Não é tempo agora de examinar esta questão—acudiu Gabriella—porque me parece que vem ahi o tio Luiz.
De facto o fidalgo apparecia á porta da sala e um pouco atraz d'elle o padre procurador.
O velho D. Luiz vestira-se quasi elegantemente para receber a sobrinha. Elegancia severa, accommodada á sua grave figura de ancião, mas elegancia inquestionavel. D. Luiz tinha uma presença magestosa e um todo de diplomata que impunha respeito.
O vestuario preto de que usava, sobre o qual sobresahia a gravata cuidadosamente lavada e engommada, augmentava o effeito natural dos seus dotes physicos.
O procurador formava inteiro contraste com o fidalgo. Curvado, olhando por cima dos oculos, com o lenço constantemente empunhado para acudir ás instantes reclamações de um defluxo chronico, parecia dominado por uma infantil timidez, mas não perdia um só gesto dos outros, que manhosamente observava.
A baroneza inclinou-se para beijar a mão do tio, que a acolheu nos braços.
—O tio Luiz!—dizia a gentil viuva, olhando-o—sempre o mesmo! Não o acho mudado.
—Não?!—disse o fidalgo com leve ironia na intonação e no sorriso.
—Olhe que não. E é natural. Bem vê que se golpes dolorosos o teem feito padecer, tambem lhe servem de conforto o socego d'estes sitios, a pureza d'estes ares, a tranquillidade d'esta vida e o affecto dos filhos que ainda lhe restam.
D. Luiz abanou a cabeça, mais triste e sombrio do que antes.
—Na sua idade, Gabriella, cicatrizam depressa as feridas. Quando se chega aos meus annos, golpe que se receba, é ferida com que se morre.
—Diga o snr. D. Luiz—interveio o padre—que o que tem é muita resignação christã, que n'estes tempos que vão correndo não é coisa vulgar.
E assuou-se.
—Mas para isso vale a meu tio o seu exemplo, snr. frei Januario—acudiu Gabriella.—Resignação ahi! Eu sou testemunha da heroicidade com que arrosta as vigilias e os jejuns.
Os presentes, incluindo o proprio D. Luiz, não puderam ouvir sem um sorriso a allusão da baroneza.
O padre córou, assuou-se com mais força e resmoneou com azedume:
—Bem sei que não é quanta Deus manda, nem quanta a alma precisa… e por peccador me tenho.
—Deve vir cansada, Gabriella—lembrou D. Luiz—Eu julgo que terão tido o cuidado de…
—Tudo está prompto. Logo que a prima queira descançar…—respondeu
Jorge.
—Não sinto grande necessidade de descanço. Descançarei depois do almoço, se me fizerem o favor de dar alguma bebida quente, porque tenho frio.
Em virtude d'esta reclamação, sahiram successivamente da sala Jorge, o procurador e Mauricio, ficando Gabriella só com o fidalgo.
Este parecia hesitar em alludir ao principal motivo da visita da baroneza.
Foi ella quem rompeu o gelo da entrevista.
—Recebeu a minha carta, tio?
—Recebi, sim, e agradeço.
—Diga que perdoa. Se quer que lhe falle a verdade, julgo que não lhe escrevi em estylo muito apropriado, mas tão desacostumada ando de escrever-lhe, e a gente com quem de costume me correspondo permitte-me tal familiaridade, que me descuidei.
—A carta nada tinha de censuravel. O que por ella vi foi que deveremos renunciar aos projectos que formei a respeito de Mauricio.
—Perdão; mas como viu por ella isso?
—Desde o principio ao fim. Não me diz que para que Mauricio abra carreira no mundo, é necessario condescender com certas coisas?…
—Ai, sim, mas quem é que não tem de condescender n'esta vida?
—Gabriella—tornou D. Luiz com certa aspereza—já ha pouco lh'o disse; as nossas idades differem. Quando se possue a sua juventude ha movimentos faceis, a que se não prestam as fibras inflexiveis dos meus sessenta annos.
—Sim, mas quando se é joven como Mauricio e se está nas circumstancias d'elle, das quaes estou informada pela sua obsequiosa confidencia, é menos prudente não ceder um pouco no tempo em que se póde ainda ceder com dignidade; porque depois… a vida para elle é longa, e quem sabe a que provações e sacrificios o sujeitará? O tio está em uma idade avançada, não espera numerosos annos de vida, não ama demasiadamente o mundo, e para a lucta conta com a inflexibilidade das suas fibras de sessenta annos. Mas elles, seus filhos, são novos, teem futuro, amor á vida e não possuem ainda a tal inflexibilidade para sustentarem o pêso de uma instituição morta sem vergar ou quebrar debaixo d'ella. Veja bem.
—De uma instituição morta!—repetiu o fidalgo, accentuando as syllabas e levantando os olhos para o tecto.
—Morta, sim, meu tio, desengane-se. Deus me livre de fallar agora em politica com o tio. Mas a verdade é que quem vive em certa sociedade, e ouve certas coisas, e estuda certos homens, acaba por convencer-se, mesmo sem pensar muito n'isso, de que um sonho como o de meu tio é… é… é um sonho.
—Seu pae morreu por um sonho assim, Gabriella.
—E eu venero a memoria de meu pae, não o duvide; assim como venero o caracter e as opiniões de meu tio; porque venero todas as convicções sinceras. Mas o que eu não queria é que se sacrificasse mais do que deve. A sua vida, a sua felicidade tem o direito de dar esse sacrificio. Mas a vida, o futuro, a honra e a felicidade de seus filhos, isso não.
—A honra?! A honra é que eu quero salvar-lhes.
—E quem lhe diz que elles teem as suas convicções?
Os olhos de D. Luiz fuzilaram ao ouvir esta insinuação.
—Se meus filhos…
—Sei o que vae dizer—atalhou Gabriella—mas não diga, porque contradiz os seus proprios actos. Esmerou-se em dar educação a seus filhos, em desenvolver-lhes a intelligencia, e agora quer que elles não usem d'esse instrumento que possuem, e que para pensar lhe venham pedir licença? Não valia ensinar-lhes a raciocinar n'esse caso.
—A razão deve-lhes ter mostrado a verdade.
—A verdade… a verdade… Ora valha-nos Deus, meu tio; e quem sabe onde ella está? Pois todas estas mudanças que succedem no mundo de que procedem, senão de se julgar a cada passo ter-se descoberto que a verdade não está onde se suppunha?
—Vejo que a convivencia social lhe tem dado uma boa dóse de philosophia para bem viver no mundo. Mas que quer? Eu regulo-me ainda por as cartilhas velhas.
—E o que lhe ensinam a fazer as cartilhas velhas a favor de seus filhos? O que é que, em harmonia com ellas, tem tentado e tenciona executar?
—Dar-lhes o exemplo de como se soffre a adversidade, quando se tem brios, e um nome que respeitar.
—A nobreza não está em soffrer de braços cruzados a adversidade, quando elles se podem empregar nobremente em repellil-a; Jorge bem o comprehendeu. Esse illustrará devéras o seu nome da unica maneira por que n'estas circumstancias elle póde ser illustrado. O que é preciso é que a ociosidade de Mauricio lhe não annulle os esforços.
D. Luiz ia a replicar quando o padre procurador entrou a annunciar que o almoço estava na mesa.
O fidalgo aproveitou de boa vontade o ensejo para cortar o dialogo que evidentemente o incommodou.
Cedo estava a familia da Casa Mourisca reunida á mesa na sala do almoço, da qual d'esta vez a voz alegre e a jovial presença da baroneza parecia afugentar parte das sombras que de ordinario pesavam sobre ella.
E na noite d'esse dia Gabriella escreveu uma longa carta a uma das amigas da capital, em que lhe narrava por miudo os episodios da sua jornada, a sua recepção na Casa Mourisca e as impressões que recebera.
Esta carta terminava por as seguintes palavras:
«Do que te tenho dito parece-me que podes concluir que se desvaneceram aquelles projectos de sacrificio que trouxe d'ahi e com os quaes não te conformavas. O meu primo Jorge é um rapaz mais serio ainda do que eu o suppunha. Não fazes ideia. Affirmo-te que é incapaz de casar por interesse, e como o espirito d'elle anda muito occupado por calculos e combinações economicas, não é tambem provavel que se deixe tomar por o amor, e portanto não casa. Assim fico dispensada de sacrificar os meus queridos habitos de vida de Lisboa, ao que vinha devéras decidida para salvar esta familia com os meus capitaes, que mal sei gerir. Este rapaz se amar, o que não é provavel, ha de ser de alguma maneira extravagante, inesperada.
O outro é uma criança, que não se póde tomar a serio por marido.»
Por aqui se vê quaes eram as generosas tenções de Gabriella ao chegar á Casa Mourisca, e quaes as modificações que no decurso d'aquelle dia os seus projectos haviam soffrido.
Ao outro dia pela manhã, estava Mauricio apparelhando por as proprias mãos o cavallo favorito, quando Jorge foi ter com elle.
—Tencionas ir hoje ao Cruzeiro?—perguntou Jorge.
—Talvez passe por lá. Porquê?
—Porque n'esse caso podias poupar-me o trabalho de lhes mandar convite especial para o jantar d'ámanhã.
—O jantar de ámanhã!?
—Sim; o pae insiste em celebrar com um jantar a chegada de Gabriella, e bem vês que não é possivel deixar de convidar os do Cruzeiro, ainda que, por minha vontade, os deixaria quietos no seu antro.
—Eu os convidarei. D'esses me incumbo. E a outra parentela?
—Mandar-se-hão cartas.
—Um jantar na Casa Mourisca! Ó sombras dos nossos antepassados, folgae!
—Estremecei, dize antes, que mais razão teem para isso.
—Estes velhacos não deitaram hontem de comer a este pobre animal—observou Mauricio, afagando o cavallo.
—Seria uma prova de affeição que lhe dariamos se lhe proporcionassemos occasião para mudar de dono—murmurou Jorge, sorrindo.
Pouco depois, Mauricio montava e partia a trote para o Cruzeiro.
A casa do Cruzeiro, solar dos asselvajados primos de Mauricio, ficava no extremo da povoação, exhibindo nos campos que a cercavam uma agricultura preguiçosa e mesquinha, e dominando um vasto tracto de mal cuidadas bouças, onde os senhores da propriedade perseguiam implacaveis as lebres e perdizes, que alli se acoutavam.
Causava lastima o estado de decadencia a que a má administração e a vida dissipada dos senhores do Cruzeiro tinham levado aquella casa, de cuja passada grandeza já nem se descobriam vestigios.
Na actualidade não era mais do que um velho casarão ennegrecido, mal vedado aos ventos e ás chuvas, onde cada dia realisava um novo estrago, que nunca mais era reparado. Por fóra e por dentro a mesma absoluta carencia de confortos; porque não sentia a necessidade d'elles a robusta organisação de qualquer dos proprietarios; afeitos á vida dos montes, ás longas caçadas e ás luctas com os rigores do tempo. O solo árido, os celleiros vazios, a abegoaria deteriorada, os curraes desertos, a cultura perdida… era desolador o aspecto do solar do Cruzeiro! Parecia havel-o fulminado um d'aquelles tremendos anathemas de que rezam os livros sanctos, os quaes feriam de esterilidade igual as entranhas da mulher e as entranhas da terra. Os pinhaes, cortados sem methodo nem prudencia, cahiam sacrificados ás penurias monetarias do morgado, que ia a pouco e pouco transmutando em vinho toda a propriedade. As aguas vendidas para acudir a iguaes urgencias abandonavam as terras á sêde que as fazia infecundas. Umas apparencias de movimento agricola, que ainda se divisavam na quinta, eram-lhe mais fataes do que beneficas, e podiam comparar-se ao fervedouro das larvas nas carnes em decomposição. N'aquelle vasto corpo, que se decompunha, tambem se agitavam seres que viviam dos seus detritos.
Trabalhava-se alli para destruir e não para semear ou edificar. O desbarato com que os proprietarios sacrificavam os seus bens, attrahia os ávidos visinhos, como córvos sinistros em volta do cadaver exposto na estrada.
Era meio dia, quando Mauricio se apeiou no espaçoso pateo da casa, onde reinava o silencio das ruinas. Apenas se ouvia o latir de uma matilha encerrada nas lojas e impaciente por ir bater as mattas e bouças. O aspecto que feria a vista de quem entrava era de uma propriedade inteiramente abandonada; alli apodrecia um arado inutil; além oxydavam-se os metaes de inactivos instrumentos de lavoura; a agua empoçada das ultimas chuvas estancava, cobrindo-se de uma crusta esverdeada; as ortigas e parietarias vegetavam em plena liberdade, nas junturas das lageas e nos buracos das paredes. Nos telhados cresciam em verdadeira floresta as hervas parasitas; fragmentos de louça, de garrafas, velhos arcos de pipa, farrapos, montões de caliça pejavam, desde tempos immemoriaes, a superficie do pateo. Manchas verdes de musgos e de lichens, que a humidade desenvolvera, cobriam a fachada do edificio, por onde havia muitos annos não passára a brocha do caiador.
Mauricio subiu as escadas d'esta casa humida e entrou nos corredores que estavam tão desertos como o pateo. Passeavam por elles imperturbadas as gallinhas e as pombas como em terreno familiar, e occasiões havia em que pela porta meia aberta dos aposentos se insinuava curiosa uma cabeça suina. Só os criados não appareciam; a ociosidade dos amos era contagiosa. Conhecedor da topographia da casa, Mauricio foi ter direito ao quarto dos primos que procurava.
Dormiam ainda os dois mais novos, emquanto o morgado andava labutando com alguns lavradores visinhos no destroço do que ainda lhe restava.
O somno do padre e do doutor não era para ceder á primeira chamada. Ainda depois de lhes bater á porta, Mauricio continuou a ouvil-os ressonar em um duo assustador.
A final respondeu a voz rouca de um d'elles com um som inarticulado, que claramente expressava o mau humor que lhe assistia ao despertar.
—Sou eu, abram—disse Mauricio, continuando a bater.
Respondeu-lhe uma praga, e depois outra voz acrescentou:
—A porta está aberta. Levanta a tranqueta e entra.
Mauricio assim fez e entrou para a sala, que servia de aposento commum dos dois manos.
Havia dentro uma atmosphera quente, abafadiça e viciada de fumo de cigarro que suffocava.
A sala era ampla, mas de um desarranjo e desconforto indescriptivel.
Dois catres de ferro ao lado um do outro, uma cadeira sem fundo, sustentando a bacia e jarro mutilados, servia de lavatorio, a roupa pendurada em cabides fixos na parede mal caiada e salitrosa, ou cahida pelo chão, o espelho pendente dos caixilhos da janella, velas de sebo meio gastas mettidas em garrafas, cuja superficie era adornada de gordurentas stalactites, e em palmatorias de metal pintado de lagrimas verdes pela oxydação; a um canto o deposito da roupa suja, em outro o arsenal, composto de espingardas, rewolvers, paus ferrados, chicotes e cassetetes; além os arreios de cavalgadura; na mesa, ao pé da cama, os restos das grosseiras iguarias da ceia da vespera, alguns usados baralhos de cartas, de mistura com umas insignias pobres e desprezadas da vestimenta do padre, tudo ennodoado de azeite e de vinho, e pontas de cigarro por toda a parte.
Os dois achavam delicias n'este viver, que chamavam escolastico, e que diziam avivar-lhes recordações dos seus tempos de estudante.
Bem poderia comtudo o aposento ter mais um grau de limpeza, sem que n'isso tivesse de despir a feição de desordem, caracteristica a um quarto de rapaz solteiro.
Quando Mauricio abriu para traz as portas das janellas, os dois primos saudaram com uma jura a luz do dia, que foi incommodar-lhes com os seus raios a retina preguiçosa. Depois de um ruidoso e prolongado bocejo, o doutor sentou-se na cama com os olhos mal abertos e os cabellos cahindo-lhe em desordem sobre a testa; e o padre, meio amuado, voltou-se para a parede, no intento de encetar outro somno.
—Que vida de inuteis vadios esta!—exclamou Mauricio, puxando para o meio da sala a mais desoccupada e limpa cadeira que encontrou, e pondo-se ás cavalleiras n'ella.—Ao meio-dia!
—Isso! Vem para cá fallar da vida de vadios. Olha se me convences de que te afadigas muito a trabalhar.
—Em todo o caso já vim de minha casa até aqui e tu, ao que parece, ias no meio de um somno e lá o padre então… esse vae, pelo que estou vendo, no principio d'outro.
—Mas como diabo te deu para vires por aqui tão cêdo?
—Cêdo? Olha que é meio-dia! Mas… vim encarregado de uma missão.
—De quem?
—De meu pae.
—De teu pae?! Para nós?!
—É verdade. Estou incumbido de vos convidar a todos tres para jantar ámanhã.
O padre deu uma volta na cama, ao ouvir este convite e fitando Mauricio com olhos espantados, ainda que mal abertos, exclamou com voz rouca de somno:
—O tio Luiz dá ámanhã um jantar?!
—Sim, senhor. Em obsequio á Gabriella, a baronezinha de Souto-Real, que lá está desde hontem de manhã.
—Ora essa!—acrescentou o padre, e tornou a voltar-se para a parede.
—Bravo!—applaudiu o doutor—isso já me cheira melhor do que a tal historia do Jorge feito guarda-livros. Aquelle Jorge com'assim ha de ser sempre d'essas ratices. E dize-me cá: que tal está agora a Gabriella?
—Não me pareceu mal; ainda que, para te fallar a verdade, não lhe dei muita attenção.
—Sim, tu andas agora distrahido com a…
N'este ponto interrompeu-se subitamente, e dando uma palmada no travesseiro, a qual lhe fez cahir na cama a cinza inflammada do cigarro que principiou nos lençoes uma centesima combustão, exclamou:
—É verdade! que me ia esquecendo? fizemos uma grande descoberta esta noite, homem!
—Qual foi?
O padre, ao ouvir as palavras do irmão, deu um salto para sentar-se na cama, e preparando tambem um cigarro, disse, fitando Mauricio com um sorriso alvar:
—Olha lá, ó Chico. Vê como contas a coisa, porque o Mauricio é nervoso; não sei se sabes.
—Mas de que se tracta?
—De um caso muito engraçado. Rimos a perder. Mas ainda havemos de rir mais, porque a historia promette dar de si.
O padre, meio estendido pela cama fóra para pedir lume ao irmão, confirmou o dito d'este com um gesto e um grunhido.
—Mas digam lá o que foi—insistia Mauricio.
—Hontem á noite—principiou o doutor—fui eu aqui com o Lourenço á espadelada do Martinho. Aquillo não esteve de todo mau. Bem boas raparigas, e a luz conveniente. Mas, alli pelas onze horas, appareceram uns apaixonados armados de varapaus, e com uns certos modos, que principiaram a fazer ferver-me o sangue.
—Eram os mesmos da feira do mez passado—acudiu o padre—mal fiz eu em não ter quebrado os ossos ao Gaudencio, quando o deixei atordoado na estrada.
—O certo é—proseguiu o mano doutor—que os homens começaram a fazer-se finos, e eu que vi o Lourenço já a fumegar, previ logo o caldo entornado e fui procurar o marmeleiro que deixára atraz da porta, para o que desse e viesse.
—Não era preciso. Para aquelles basto eu só—annotou o padre, sugando com força o cigarro, que teimava em não arder.
—Meu dito, meu feito—continuou o outro—nós a sahirmos e elles comnosco. O Lourenço pôz logo dois fóra do combate; eu arquei com o terceiro, que me derreou o braço esquerdo, mas a quem escangalhei a cabeça; o ultimo fugiu-nos. Era o João do Pinhão.
O padre interveio:
—Eu, que lhe ando com sêde, disse logo para o Chico: «Vamos d'aqui cortar-lhe o caminho e dar-lhe uma lição.» E tomamos pela quelha do regedor.
—E viemos sahir mesmo defronte da porta do Thomé! por traz da prêsa.
Sabes?
—Sei muito bem.
—Ora o homem não appareceu.
—Mas appareceu cousa melhor—acudiu o padre.
—Havia de andar peia meia noite e nós sem fazer bulha ainda escondidos na sombra. Percebes?
—Mesmo defronte da casa do Thomé—insistiu o padre.
—E depois?—interrogou Mauricio impaciente.
—Depois…
A mulher é um catavento,
Que com os ventos varia;
Seu amor dura um momento,
Tolo é quem n'ellas se fia.
Cantarolou o doutor.
Mauricio olhou interrogadoramente para o padre.
—Meu caro priminho—disse-lhe este—põe as tuas crenças de môlho e prepara-te para arrancares um punhado de cabellos; um ou dois.
—Mas que queres dizer com isso?
—Quero dizer que a porta do Thomé abriu-se sorrateiramente e sahiu de lá um patusco… Trai la rai lai lai.
—É impossivel!—exclamou Mauricio com indignação, comprehendendo as malignas allusões do primo.
—Qual impossivel?—confirmou o padre—Não ha impossiveis n'este mundo.
Desengana-te, menino.
—Mas teem a certeza de que se não illudiram?
—Ora se temos. Era um homem em corpo e alma.
—E viram quem era? Conheceram-n'o?
Os dois irmãos, a esta pergunta, trocaram entre si um olhar e um sorriso de velhacaria.
—Com certeza, não; mas suspeitamos—respondeu o doutor.
—Quem é?
—Alto lá! Nada de ferver em pouca agua. Isso fica para segunda observação. Por ora não possuimos ainda a certeza. Porém já mais de uma noite temos encontrado o tal ratão, de quem suspeitamos, não muito longe do sitio, e já andavamos com a pedra no sapato.
—Ó Chico, olha que o Mauricio não está bom. Estes golpes repentinos…
—Qual! Se eu não acredito uma unica palavra do que vocês estão para ahi a dizer—tornou-lhe Mauricio, erguendo-se e passeiando na sala agitado.
—Não que a cousa é muito para se não crer—disse o doutor, principiando a vestir-se—uma rapariga de dezoito annos, que vem do collegio, ter um apaixonado?… Sim, o caso é tão raro!
—Vocês não conhecem Bertha.
—Tu, sim, que a conheces. Papalvo de olhinhos fechados que ainda anda a sonhar por este mundo com princezas encantadas—observou o padre, tirando de entre a roupa da cama um volume de Paulo de Koch, com que adormecêra na vespera.
—Então lá por que um homem sahe de noite de casa do Thomé, já não póde ser senão por amor de Bertha. É boa!—insistia Mauricio, contra a sua propria convicção.
—Sim, meu menino, sim; isso tudo e o mais que tu quizeres—respondeu-lhe o padre, apertando outro cigarro.
—Veremos o que tu pensas, assim que vires o tal homem—tornou o doutor.
—Ora mas digam-me: Pois não ha tanta gente em casa?
—Pois ha, ha.
—Então…
—Então tem vocemecê razão—concluiu impertinentemente o padre.
—Muito bem—propôz o doutor.—Para sahir de duvidas queres tu vir comnosco bater a mata esta noite para conhecer o coelho?
—Quero, sim.
—Muito me hei de rir esta noite!—exultou o padre, saltando abaixo da cama.
—Mas promettes não assassinares a pequena na furia do teu ciume?
—Não creio verdadeira a vossa supposição, mas se o fosse…
—Que farias? Ora dize lá—perguntou o padre, piscando um olho emquanto esperava a resposta.
—Achava essa mulher tão desprezivel que…
—Pumba! Ora ahi temos outra. Na verdade ha nada tão desprezivel como uma mulher que abre a porta a qualquer pessoa de preferencia ao menino Mauricio, a joia dos namorados!—ponderou zombeteiramente o padre.
—Não quero dizer isso, mas…
—Pois, meu menino, prepara-te para o desengano, e volta ás priminhas dos Barrocaes, que essas são fieis.
—Ora, mas digam-me vocês uma coisa—insistia Mauricio—quem querem que seja o homem que possa estar já com Bertha n'esse tom de familiaridade?
—Não entremos n'essa questão. A seu tempo cahirão as cataratas.
—Já digo, eu não acredito.
—Pois nosso Senhor te dê sempre essa commoda incredulidade; antes de casar e depois de casar.
E entre os tres ficou pactuada para aquella noite uma espionagem cerrada á casa de Thomé, com o fim de reconhecerem a mysteriosa visita.
Mauricio passou o dia todo pensativo e preoccupado com a revelação que os primos lhe fizeram.
Ainda quando Bertha não tivesse adquirido grande preponderancia sobre os pensamentos de Mauricio, bastaria a ideia de que outro o preterira no coração de uma mulher, a quem elle havia dedicado um olhar de galanteio, para devéras o irritar.
Mas, de justiça é que se diga, o amor, a paixão, a inclinação, o capricho, ou como mais rigoroso nome tenha, o sentimento de Mauricio para Bertha attingira a maxima intensidade, a que podiam subir os affectos d'aquelle caracter voluvel. Se não amava ainda devéras, é certo tambem que nunca amára melhor. Bertha demais possuia sobre as outras mulheres, que nas épocas successivas haviam reinado na imaginação d'este rapaz, o prestigio das recordações de infancia, a distincção de tracto adquirida na educação da cidade, e até a desaffectada reserva com que lhe tinha acolhido o galanteio.
As reflexões de Jorge contra aquelles amores, a perspectiva das repugnancias de familia, dos obstaculos a vencer, dos preconceitos e paixões com que luctar, longe de extinguirem a chamma em que elle procurava abrazar-se, antes mais a activavam.
A ideia de um amor entre dois corações jovens, amor constante em despeito do antagonismo, das animadversões e dos odios das familias; esse eterno e poetico thema de tantas obras de arte, era sympathico á phantasia de Mauricio, que, seduzido por ella, chegou a convencer-se de que estava destinado a ser mais um exemplo do caso; estimulo este sufficiente para o apaixonar.
Jorge estranhou-lhe o ar pensativo, mas não o interrogou.
A baroneza, usando dos privilegios de mulher nova e elegante, costumada a não refrear a sua curiosidade feminina, interpellou-o directamente:
—Não voltaste muito amavel do teu passeio matinal, Mauricio. Que foi isso?
—Perdoe-me, prima. Isto é uma das muitas mudanças de colorido que, sem que se saiba porque, se opéra no humor de uma pessoa.
—Hum! Não andará ahi influencia do coração?
Mauricio soltou um meio riso de descrente, respondendo:
—O coração! O meu coração é modesto. Não aspira a dominar. Nunca lhe conheci essas tendencias.
—N'isso mesmo que dizes d'elle se está a perceber que ha espinho lá dentro.
—A prima ha de perdoar-me a franqueza; mas já vejo que tem o defeito do seu sexo, que é não poder imaginar que haja sobre o caracter e a boa ou má disposição de um homem outra influencia que não seja a de uma mulher.
—E quando os homens se occupam tão pouco de coisas graves, como… certos que nós conhecemos, a lei não deixa de ser verdadeira.
—Engana-se; vê? Os homens da minha indole são exactamente aquelles que estão menos sujeitos á influencia que diz. Aceitamos a infidelidade e a inconstancia feminina como um facto natural e com que já contavamos, porque em nós nunca se desenvolvem aquellas illusões que levam muitos espiritos a endeusar a mulher. Estamos prevenidos para todas as occorrencias, porque nunca nos esquecemos da fragilidade d'esses delicados objectos, que amamos só por que são frageis e delicados. As grandes desillusões e os profundos desespêros são para os que fazem do amor um culto e sonham a mulher de uma essencia superior. Persuadem-se de que é de crystal a bola de sabão matizada que os seduz, e portanto ficam muito desconsolados quando ella se lhes desfaz no ar.
—Cada vez confirmo mais a minha supposição. Eras bastante delicado para me poupares a essa theoria de mau gosto sobre a mulher, se não estivesse fallando em ti o despeito por uma causa recente.
A exactidão da observação da baroneza feriu Mauricio no riso e fêl-o balbuciar, córando:
—Peço perdão se a minha franqueza a offendeu, porém…
—Não te canses a desculpar-te. Eu até achei graça a essa profissão de scepticismo, já muito meu conhecido, mas que não sabia que tambem nascia nos bosques, onde julguei que se haviam refugiado as boas crenças desde que emigraram das cidades. Ámanhã espero que estarás mais senhor de ti.
—Estou a sangue frio, creia.
—Veremos com mais vagar esse coração. É-me isso preciso para os meus planos.
—Os seus planos?!
—Então já te esqueceste de que eu estou aqui principalmente por tua causa?
—Ah! sim, agradeço-lhe o cuidado; mas estou receiando ter de dar-lhe muito que fazer.
—Veremos.
A noite chegou e bem vagarosa para a impaciencia de Mauricio.
Pouco mais seria de Ave-Marias, já elle instava com os primos do
Cruzeiro para que fossem pôr-se de vigia.
—Isso não vae assim!—diziam elles—Pois que cuidas tu? Não sabes que o passaro é dos que só voam de noite? Falla-nos lá para as onze horas.
Mauricio illudiu em todo este tempo a sua impaciencia, tentando provar aos primos com argumentos novos, que lhe tinham occorrido em casa, a impossibilidade de ser para Bertha a visita nocturna da Herdade.
Os primos respondiam rindo só com phrases equivocas, que Mauricio não comprehendia.
—Olha cá, ó Mauricio—perguntou o mano doutor—em tua casa sabe-se do teu namoro com a filha do Thomé?
—Ahi vens tu com o namoro!…
—Pois seja o que quizeres; da tua affeição, se achas mais bonito; mas sabem?
—Apenas o Jorge me fez a esse respeito algumas reflexões.
—Ah! o Jorge fallou-te n'isso?
—Ha dias. Pelos modos o Thomé queixou-se-lhe…
—Ai, o Thomé queixou-se ao Jorge? Sim senhor, tem graça. Que te parece, ó Lourenço?
—É bem bom! e então o Jorge deu-te conselhos, hein?
—Sim, disse-me alguma coisa; que era preciso cautela, que não era prudente o meu proceder…
—Ah!
—E quasi me fez prometter que desistiria.
—Ah! fez-te prometter isso?
—Quasi.
Os dois não podiam suster o riso.
—É impagavel aquelle Jorge!—repetia de quando em quando o padre.
—Vocês bem sabem o genio d'elle.
—Ai, sabemos. Pois nós bem sabemos… o genio d'elle. Ah! ah!…
E os risos redobravam.
Mas a noite chegára emfim e cerraram-se cada vez mais as sombras sobre os caminhos do campo. Mauricio pôde finalmente acompanhar os primos ao logar da espia.
Dirigiram-se alli por os sitios menos frequentados, e sem soltarem uma palavra.
Mauricio, a seu pezar, sentia-se dominado por uma commoção profunda. Não era só despeito, era já uma nascente repugnancia pelo acto que praticava. Envergonhava-se d'aquelle furtivo mister de espião.
Chegados ao local, o padre escolheu a posição de maneira que podessem vêr, sem serem vistos.
Por muito tempo nada descobriram; nem ouviram mais algum som além do melancolico gemer dos sapos, a distancia.
Mauricio, entre impaciente e satisfeito por o resultado nullo da espionagem, principiava a dirigir aos primos alguns ditos epigrammaticos, quando a mão do doutor lhe tapou a bôca, ao mesmo tempo que o padre se voltava para lhe recommendar silencio.
Effectivamente encostado ao muro da Herdade caminhava um homem, que a sombra da noite não deixava conhecer.
Chegando á porta, que devia estar apenas cerrada, empurrou-a e entrou, e fechou-a de novo sem fazer ruido.
Mauricio quiz correr atraz d'aquelle homem. Retiveram-n'o os primos.
—Espera, pateta! Deixa-o sahir, que eu te prometto que havemos de conhecêl-o.
—Que diabo queres tu fazer, maluco? Não vês que espantas a caça?
—Hei de vêr quem elle é!
—Pois sim, mas para isso é preciso prudencia.
—A porta ficou aberta. Eu vou…
—Vaes aonde? Ora tem juizo. Á sahida pilhamol-o.
Mauricio porém insistiu e os primos condescenderam em passar um cauteloso exame á entrada por onde o vulto desapparecêra.
Reprimindo a custo os impetos de Mauricio, o padre dirigiu a exploração, e mui de mansinho entreabriu a porta e entraram no pateo da casa; perto ficava a escada, por onde se subia para as salas.
Mauricio ia a transpôl-a, mas os primos impediram-n'o. D'aqui originou-se uma pequena altercação que, ainda que em voz baixa, foi percebida pelos cães que latiram furiosos.
De uma das janellas da casa partiu uma voz, perguntando:
—Quem está ahi?
Era a voz de Bertha.
Mauricio ia a responder-lhe, cheio de indignação, mas o padre tapou-lhe a bôca e obrigou-o a retirar-se.
Esta retirada foi feita com tal pericia, que não excitou mais attenção da gente da casa.
Tudo recahiu em socego.
A presença de Bertha foi para Mauricio a confirmação das suspeitas dos primos.
Por isso mais excitado e impaciente do que até alli, aguardava a sahida do mysterioso incognito.
O padre collocou-se em sitio apropriado para poder tolher a passagem ao visitador nocturno.
Perto de hora e meia aguardaram os tres. A final ouviu-se ruido na porta, e depois de algumas palavras ditas para dentro a meia voz, o homem espiado sahiu.
Ouviu-se atraz d'elle correr a chave na fechadura cautelosamente.
A vinte passos, pouco mais ou menos, de distancia da casa de Thomé, o personagem que tanta curiosidade excitava, viu o vulto de tres homens immoveis, que lhe estorvavam a passagem.
Mais perto d'elles, parou a perguntar-lhes:
—Tenho o caminho livre?
—Apenas depois de satisfeita a simples formalidade de se dar a conhecer—respondeu o padre.
—Á ordem de quem?
—De tres contra um.
—É direito que não reconheço.
E o individuo, desembaraçando um pouco os braços, que levava envolvidos em uma manta, parecia disposto a fazer face a uma d'essas aggressões, que não são raras em algumas das nossas freguezias ruraes.
N'este tempo porém Mauricio, a quem a voz d'este homem havia ferido desde as primeiras palavras que lhe ouvira, adiantou-se para elle, e ao vêl-o desembaraçado, exclamou:
—Mas… elle é Jorge!
Os primos soltaram uma risada.
Jorge, que o leitor já tinha reconhecido, vendo emfim quem eram os seus suppostos aggressores, deixou outra vez cahir a manta sobre os hombros e perguntou em tom de leve despeito:
—Então que brincadeira é esta?
—Não é nada, primo Jorge—respondeu o doutor—quizemos apenas verificar uma suspeita.
—Uma suspeita?!
—Vamos, perdoa-nos a indiscrição, mas bem vês que ha poucos prazeres para uns peccadoraços como nós, iguaes ao que nos causa o vêr cahir um sancto nas mesmas fraquezas de que nos accusam.
Isto disse o padre, o doutor acrescentou:
—O que te pedimos de hoje em diante é menos severidade nos teus juizos e mais indulgencia para as miserias dos humanos.
Jorge principiou a irritar-se com as palavras dos primos; voltando-se para Mauricio disse-lhe com certa rispidez e quasi tremendo de indignação:
—Tu, que estás mais habituado do que eu a lidar com estes senhores, não me saberás explicar estes ditos, que não percebo, e ao mesmo tempo a significação da tua presença aqui, a tolher-me os passos, como um ladrão nocturno?
O silencio de Mauricio significava tambem muita indignação e cólera concentrada.
A presença de Jorge n'aquelle legar sómente a podia explicar aceitando a hypothese maligna dos do Cruzeiro; e na recordação da conversa que tivera com o irmão, a respeito da filha de Thomé, via agora um excesso de dissimulação e hypocrisia, que o revoltavam tanto mais vehementemente, quanto maior era o respeito que até alli lhe mereceu o caracter de Jorge.
Por isso a sevéra interpellação d'este fez rebentar em explosão aquella cólera mal reprimida.
—Escusas de te armares com os teus costumados ares de juiz e de censor, Jorge—exclamou Mauricio indignado—bem vês que, desde este momento, perdeste para mim todo o prestigio e toda a authoridade moral. Tive até hoje candura bastante para tomar a serio o teu caracter de prudencia e a tua lealdade, mas desde que vejo a hypocrisia, que havia em tudo isso, sou eu que domino e que tenho o direito de interrogar e de censurar.
—Enlouqueceste, Mauricio?—perguntou Jorge em tom quasi de piedade, que mais irritou o irmão.
—Que indigna e ridicula comedia andas tu a representar n'este mundo?—tornou este quasi allucinado—Na tua idade tens já coragem para tanto! Armares-te de severidades pedantes contra as minhas loucuras de rapaz, loucuras leaes a final de contas e a descoberto, loucuras, mas não vilezas, e occultares na sombra actos, que a mim, ao estouvado e perdido, fariam córar de vergonha. Oh! não te invejo o talento de comediante, Jorge.
—Mauricio, repara que não estás em ti.
—Sim, eu tenho esse defeito. Não sei medir as minhas palavras, não sei encobrir, nem disfarçar; tudo o que penso me vem aos labios. Hontem dizia que te estimava e respeitava, e era verdade; hoje digo-te que te desprézo e te lastimo, e é verdade tambem. Cuidas que não me recordo das tuas palavras e dos teus conselhos ha poucos dias? Invocaste o nome sagrado de nossa mãe, a memoria venerada de Beatriz, para quê? para exigires de mim uma promessa; dizias tu, que era a de respeitar a paz de coração de uma rapariga, que uma abençoára e a quem a outra quizera como a irmã; mas sob a capa d'essa promessa ia a de te deixar em paz no gozo das tuas aventuras nocturnas e dos teus amores traiçoeiros e escandalosos.
—Silencio!—exclamou Jorge, com um tom intimativo que cortou em meio as palavras do irmão.
—Podia perdoar-te todos os insultos feitos ao meu caracter; não posso consentir que calumnies quem não está aqui para se defender, e quem tinha direito a esperar encontrar em ti um defensor e não um calumniador. Ordeno-te silencio em nome de alguns restos de honra, que ainda te deixassem intacta as companhias devassas que frequentas.
—Que é lá isso, priminho, que é lá isso?—acudiram immediatamente os dois manos.
Jorge não se intimidou.
—Não me assustam as suas ameaças. Sei agora o que significa esta espionagem e aquellas gargalhadas cynicas e alvares de ha pouco. Cabe-lhes bem o papel degradante que desempenham aqui, e nem é de estranhar o conceito que formam das intenções dos outros de que julgam pelas suas. O que lamento é vêr-te associado a esta empreza, Mauricio, porque, faço justiça ao teu caracter, deve repugnar-te intimamente o passo que déste.
—Em vez de sermões, priminho, não acha que seria melhor explicar-nos o que veio fazer a horas mortas a esta casa?
—Não sinto a necessidade de explicar as minhas acções diante de taes juizes. Pouco me importa a estima em que teem a minha reputação os senhores do Cruzeiro. Resignar-se-hão portanto a prescindirem das explicações que pedem.
Os dois riram-se maliciosamente. Jorge proseguiu:
—Entendo esse riso. Conheço-os. Sei que depois da espionagem se segue a calumnia; mas o meu desprezo é muito grande para transigir. Calumniem.
—Ora essa! Nós sabemos guardar um segredo. Socega.
—Sei qual é o alimento com que se nutre a sua ociosidade. Não importa. Á vontade, meus senhores, teem a estrada livre e contem que não serei eu que os estorvo n'aquella que costumam seguir, porque não a frequento.
Dizendo isto, deu alguns passos para se afastar; depois, voltando-se para Mauricio:
—Repara que já desceste o primeiro degrau da infamia; espiaste; agora vê se desces o segundo, calumniando. Ha n'aquella casa uma familia tranquilla e respeitada, ajuda agora esta gente a manchal-a de lama, ajuda; o insulto é facil para quem não precisa de se abaixar muito para a apanhar.
Os primos, ainda que valentes e atrevidos, ouviram com excepcional prudencia a correcção que lhes infligira as palavras de Jorge e limitaram-se a acompanhal-o de risadas quando elle se retirou.
Mauricio estava já sentindo remorsos do que dissera ao irmão. Este adquirira sobre elle o seu antigo ascendente.
—Parece-me que foi bem infame o que fizemos aqui—disse Mauricio, arrependido.
—Sim? Parece-te isso? Pois vae pedir perdão ao mano—tornou-lhe o padre, rindo com desdem.
—Parvo!—exclamou o doutor—Querem vêr que engoliu a arara?!
—Deixa lá, então que queres? a innocencia tem d'estas canduras.
—Mas vocês ainda acreditam?…
—Ora adeus, adeus! Vae-te deitar e vê se nos arranjas umas indulgencias do mano Jorge.
E os primos deixaram Mauricio, e partiram zombando da candura d'elle.
Mauricio voltou a casa desgostoso de si e com o espirito fluctuando entre o remorso e a suspeita.
Amanheceu alvoroçada e ruidosa a Casa Mourisca no dia destinado para o jantar, em homenagem a Gabriella.
N'aquelle tranquillo e silencioso edificio, que parecia constantemente absorvido nas recordações dos seus tempos de gloria, notava-se um movimento excepcional.
O velho fidalgo não quizera faltar ás tradições de hospitalidade que a familia lhe legára.
Ordenou que, embora á custa de qualquer sacrificio, se celebrasse a chegada da sobrinha, segundo o velho estylo, convidando-se para jantar os representantes da mais preclara nobreza dos arredores.
Ainda que a tristeza e misanthropia, de que era victima, o trouxessem, havia muito tempo, arredado dos parentes e dos amigos de outras épocas, o senhor da Casa Mourisca preferiu sujeitar-se á impertinencia de lhes abrir mais outra vez as suas salas, a deixar de cumprir uma pratica que lhe impunham os brios de fidalgo creado nos habitos de grandeza e liberalidade de um solar de provincia.
Jorge tentára ainda oppôr algumas sensatas reflexões a esta dispendiosa exhibição de uma opulencia mentida; mas encontrou o pae inflexivel.
Frei Januario, que antevia a perspectiva d'um d'aquelles regalados jantares, que se tinham ido com os dizimos, com os foraes, com as luctuosas, com os conventos, com as milicias e com muitas outras coisas igualmente despertadoras das suas clericaes saudades, frei Januario, dizemos, sentia em si uns jubilos de criança, que nem podia nem procurava disfarçar.
Eloquente como nunca, corroborou a opinião do fidalgo, fazendo-lhe bem sentir o deslustro que soffreria o brazão da casa se não se observassem essas praticas senhoris dos tempos passados, e dando como faceis de aplanar todas as difficuldades que, á primeira vista, apresentava o projecto.
A Jorge, que lhe suscitava algumas objecções, o egresso sómente respondia:
—Tenha paciencia, snr. Jorge, a nobreza obriga!
—Obriga a ser nobre, que é ser leal, sincero, honrado, sem affectação, sem prodigalidade, e sem sumptuosidades que se sustentem á custa alheia.
—Á custa alheia?!
—Emquanto esta casa tiver uma divida é á custa alheia que vive, gere dinheiro de outros e não lhe é airoso gastar em festas e banquetes o que precisa para remir-se primeiro e para prosperar depois.
—Uma casa de fidalgos não é uma casa de commerciantes. Que estes, que não teem um nome a respeitar, se não mettam em cavallarias altas, entende-se. E é até muito para sentir vêr por ahi fazer o contrario, como se vê! Mas agora quem tem brazão na porta e retratos nas paredes…
—Quem tem brazão e retratos, e vive como n'esta casa se tem vivido, arrisca-se muito a ter de vender um dia brazões e avós, por preço modico, ao commerciante que teima em metter-se em cavallarias altas, e que tem a felicidade de não cahir do cavallo abaixo.
—Adeus, elle ahi vem com as suas! Eu já lhe disse, não percebo que ideias são essas com que o menino me anda ha tempos. Ora para o que lhe havia de dar! O filho mais velho de uma casa como esta, aparentado com as primeiras familias do reino, com marquezes e duques da melhor linhagem, tudo nobreza antiga e da que não admitte duvida a fallar como qualquer d'esses bacharelitos que veem de Coimbra, mações nos ossos e republicanos na alma! Uma coisa assim!
Apesar da repugnancia que sentia pela festa ordenada por o pae, Jorge julgou prudente superintender nos aprestes d'ella, para obstar a que fossem dirigidos pelos alvitres do padre procurador.
Um d'estes alvitres fôra o de se pedir emprestadas ás proprias familias convidadas diversas peças de baixella, de que estava desprevenida a cópa da Casa Mourisca.
Este ridiculo expediente era pelo padre tido na conta de engenhosa tactica, porque, explicava elle: cada familia, conhecendo apenas a prata que lhe pertencia, havia de suppôr que toda a mais era da casa, que em tempo fôra das mais bem providas n'esta especie. Por tal fórma, não se tornaria notada a falta, e cada qual se daria até por lisongeado em haver merecido do proprietario esta prova de confiança.
Jorge não se deixou convencer, apesar do persuasivo da logica; e em despeito de vehementes protestos do padre, exigiu que o serviço se fizesse sómente com o pouco ou muito que houvesse em casa.
O padre appellou para o fidalgo, que nisto porém decidiu a favor do filho.
Os convidados para o jantar eram todos da mais genuina fidalguia da provincia. Por muitas d'aquellas veias andava globulo de sangue, que já pertencêra a Fuas Roupinho ou a Egas Moniz e que por um mysterio physiologico, que só se dá n'aquella esmerilhada casta, conseguira transmittir-se inteiro de veias para veias, atravez de vinte gerações, com o fim providencial de manter inabalaveis os brios da raça.
Era um gosto seguir pelos seculos fóra a linha, pela qual alguns dos presentes procediam muito direitamente de qualquer notavel heroe das origens da monarchia. Havia tal que tinha tirado a limpo o numero de ordem que lhe competia n'aquella illustre enfiada de morgados, e que deixava evidente, por um autem genuit nobiliario, ser o vigesimo ou o decimo-setimo rebentão de sua preclarissima cêpa. Bom fôra que elle se tivesse entregado a esses calculos, por não ser provavel que apparecesse, no succeder dos tempos, outro espirito de igual alcance, que ousasse mergulhar em tão transcendentes e uteis computações; e assim ficaria a humanidade privada de uma noção valiosissima.
Embora estivessem um tanto enfesadas e pêcas quasi todas aquellas vergonteas, sempre derivavam de uma profunda cêpa; e quem não havia de preferil-as a ramos embora cheios de viço, cujas raizes estivessem á flôr da terra?
Os dotes physicos tinham, é verdade, soffrido um pouco com os extremos e cuidados empregados para conservar a crase aristocratica d'aquelle sangue livre de toda a mistura que o derrancasse; os dotes intellectuaes, em geral, resentiam-se do cordão sanitario, de que os chefes d'aquellas familias as haviam cingido para precavêl-as da infecção de ideias novas, propagadas pelos livros e jornaes da actualidade. Mas lá estava o fermento da fidalguia, que era o essencial, e que suppria bem a saude e a illustração.
Algumas familias, que cedendo um pouco ás exigencias da época, não tinham trancado de todo os portões dos seus solares a certas innovações, eram por esse facto olhadas com desconfiança por os puros, que as accusavam de eivadas pela lepra do seculo.
Emquanto se esperava pelo jantar, formavam os convidados na sala nobre da Casa Mourisca grupos variados e caracteristicos. As senhoras de idade madura, tias e mães, sentadas em semi-circulo em um dos angulos da sala, narravam pausadamente umas ás outras as occorrencias domesticas relativas ao intervallo de tempo em que se não tinham visto; exaltavam os dotes pessoaes do filho primogenito e as prendas da menina da casa.
Finalmente combinavam enlaces matrimoniaes entre os seus filhos e sobrinhos, de maneira que o sangue dos descendentes sahisse ainda mais rico em essencia aristocratica, se é que era susceptivel de maior apuro.
Os chefes de familia, passeando na sala, ou formando grupos nos vãos das janellas, lidavam na sua tarefa de vinte annos: a de demonstrar que o que perdêra a causa realista fôra a traição e o suborno; e, arvorados em prophetas, entoavam trenuos sob a imminente dissolução social, periphraseando os artigos de fundo da Nação e do Direito.
A abolição dos morgados e vinculos, definitivamente decretada poucos annos antes, fornecia forte alimento para aquellas jeremiades; os dissipadores fidalgos, que tinham arriscado o futuro e bem-estar dos filhos, desbaratando-lhes a legitima com a sua imprevidencia e prodigalidade, lançavam agora á conta da lei o que era a consequencia logica da sua má administração.
As raparigas fallavam umas com as outras, de vestidos e de enfeites, e dispunham de quando em quando de algum olhar mais terno para qualquer dos primos presentes, em cujo numero se continham os namorados de cada uma ou de mais do que uma. Estas representantes das poeticas e vaporosas castellãs, que na meia idade premiavam os campeadores na liça, os guerreiros na volta dos combates, e os menestreis e pagens que lhes endereçavam conceituosos galanteios nos estrados das salas, tinham perdido muito da poesia do typo primitivo. Vivendo em uma época em que não havia campeões, guerreiros, nem trovadores para premiar, limitavam-se as meninas a acceitar a côrte dos primos, tambem muito pouco parecidos com os seus cavalleirosos avós, e com a maior candura, que póde medrar na provincia, roubavam umas ás outras os noivos e os namorados.
Algumas havia alli mais revolucionarias, que tinham conseguido introduzir o piano em casa e com elle as musicas da moda, obtendo uma ou outra vez dos paes a concessão de dar uma partida, onde a nata da nobreza provinciana dançava os Lanceiros como qualquer sociedade de artistas.
Os rapazes reunidos no terraço fumavam e atiravam a rewolver aos troncos das arvores ou ás avesitas que poisavam nos ramos.
A maioria, ou morgados ou filhos segundos, era de ignorantes e vadios; se alguns haviam descido até ao ponto de irem a Coimbra fazerem á sciencia a honra de a estudar, poucos d'esses mostravam as habilitações adquiridas, exercendo qualquer mester social. Seria dobrar o desdouro. Commettida a fraqueza de sentar-se nos bancos das aulas ao lado dos filhos dos commerciantes e lavradores, devia-se pelo menos seguir o exemplo do mano bacharel do Cruzeiro, o qual evitára a circumstancia aggravante de servir depois para alguma coisa.
Formava grupo á parte frei Januario em animado colloquio com outros dois padres, tambem appensos a casas fidalgas, e igualmente fervorosos na defeza dos legitimos direitos da nobreza e abominadores dos pedreiros livres.
Mauricio, na companhia dos rapazes no terraço, entre os quaes se achavam os dois primos do Cruzeiro, tomava parte nas suas diversões, mas sem perder certo ar de melancolia, que lhe ficára das scenas da vespera.
Jorge attendia a todos, mas n'elle era ainda mais evidente do que em
Mauricio a preoccupação de espirito.
Desde a vespera os dois irmãos não haviam trocado uma palavra. Gabriella notára-o, e desconfiava de que alguma coisa se tivesse passado entre elles.
Não deixava porém a baroneza de desempenhar pela sua parte, com superior sciencia, o papel que lhe cumpria, como a pessoa em honra de quem tinha logar a festa de familia. Ia de grupo a grupo, tendo uma amabilidade certeira para cada individuo, e conseguindo desvanecer com as inebriantes inhalações de lisonja a superciliosa desconfiança que os seus ares de côrte da actualidade despertavam n'aquelles espiritos, escrupulosos respeitadores da côrte velha.
Houve uma circumstancia que excitou a curiosidade da baroneza. Notára ella que a maior parte dos rapazes, com quem os manos do Cruzeiro haviam conversado e rido, seguiam Jorge com olhares maliciosos, e que sempre que este lhes voltava costas, trocavam uns com outros risos mal suffocados. Da roda dos rapazes communicára-se o mesmo effeito á das raparigas, por intermedio dos colloquios de alguns namorados, e dentro em pouco viu-as olharem tambem para Jorge com certa estranheza, e cochicharem e rirem umas com as outras, quando livres da observação d'elle.
A mysteriosa confidencia passava de labios para ouvidos com rapidez tal, que momentos depois estava nas visinhanças de Gabriella.
Não pôde a curiosidade d'esta tardar mais tempo em informar-se do que assim agitava a sociedade moça, e que até já havia deixado estupefacta mais de uma respeitavel matrona, que por acaso fôra partícipe do segredo.
—O que é que se diz por ahi, priminha?—perguntou a baroneza á rapariga mais proxima—corre de certo alguma noticia estranha, porque as vejo todas em alvoroço.
—E com razão. Então não sabe? O primo Jorge tem um namoro!
—E o caso é para taes espantos?
—Pudera não! Então não conhece o primo Jorge, já vejo. Ainda não houve quem lhe merecesse um comprimento, que não fosse de simples ceremonia. Todos iriam jurar que era impossivel que elle gostasse de alguem. E vejam lá.
—É porque pertence á especie rara dos que amam só uma vez, e dos que amam de maneira tal que não podem sem remorsos amar por passatempo.
—Pois será. Mas vejam aonde foi elle cahir!
—Então quem é ella?
—A Bertha. A filha do Thomé!
—Fico na mesma, priminha.
—Não conhece o Thomé? O Thomé da Herdade. Um lavrador que foi criado do tio Luiz e que está hoje rico.
—Ah! bem sei, então é uma rapariga do campo.
—Envernizada na cidade, onde o pateta do pae a mandou educar. Chegou ha dias a casa.
—E Jorge conhecia-a?
—Em criança, sim. Depois julgo que se não viram senão agora.
—E quem descobriu essa paixão?
—Viram-n'o sahir umas poucas de noites de casa d'ella.
—Jorge?!
—É verdade. Os primos do Cruzeiro viram-n'o, e parece até que o primo
Mauricio.
—Ah! Mauricio?!
—Sim, e o mais bonito é que esse tambem pelos modos tinha suas pretenções, por passatempo já se sabe, olha o outro! a esse então tudo lhe serve. De maneira que hoje estão que nem palavra dizem um ao outro.
—Isso já eu notei; mas custa-me a crêr que Jorge…
—E a todos. Pois aquelle sonsinha…
—Não é isso o que eu dizia. O que eu acredito é que, sendo o que me diz verdade, Jorge ama devéras essa rapariga, e elle não tem caracter para abusar de alguem. Deus sabe o que de tudo isso póde resultar.
—Quer dizer a prima que é capaz de casar com ella?
—Sim, estou convencida de que se elle a ama, formou já essa tenção e ha de cumpril-a.
—Tinha que vêr a prima Bertha da Povoa!
—Eu lhe digo, para a menina talvez tivesse que vêr, para mim, que já estou costumada a esses espectaculos, seria a coisa mais natural do mundo.
Assim informada do que se passava na sala, Gabriella observou com mais attenção Mauricio e Jorge, e estudou nas physionomias de ambos os vestigios d'aquelle mysterio.
Era manifesta a frieza que os separava n'aquella manhã. Evitavam-se tanto, quanto podiam. As frontes d'um e d'outro estavam contrahidas, e os sorrisos gelavam-se-lhes nos labios, sempre que queriam forçal-os a apparecerem.
—Será verdade que Jorge ame essa rapariga? N'esse caso deve ser uma paixão bem séria a d'elle—pensava Gabriella.
N'este tempo a porta da sala abriu-se e D. Luiz appareceu aos seus hospedes vestido com aquelle esmero e gravidade, que sabia guardar em todos os actos da vida.
O fidalgo não tivera pressa em apresentar-se na sala.
Fizera-se substituir por Jorge na solemnidade da recepção e na da apresentação de Gabriella a todos os primos, que ainda não a conhecessem.
Frei Januario explicára a ausencia do fidalgo, attribuindo-a a incommodos habituaes, que sómente mais tarde lhe permittiam sahir dos aposentos.
A verdade, porém, era que D. Luiz desejava encurtar, quanto lhe fosse possivel, o tempo em que tinha de conviver com os seus parentes n'aquelle dia dedicado aos deveres de hospitalidade.
Produziu alvoroço na sala a entrada de D. Luiz.
Todos correram a comprimental-o com aquella deferencia, que a indole séria e melancolica do fidalgo e a evidente superioridade da sua intelligencia e educação a todos impunha.
—Como vaes tu, D. Luiz?—disse, apertando-lhe a mão um ex-coronel de milicias, que havia acabado, pouco tempo antes, de ameaçar com a espada que tinha em casa na gaveta todas as constituições do mundo.
—Graças a Deus que déste signal de vida, homem!
—O primo D. Luiz devia procurar mais distracções—acudiu a vigesima descendente de um dos guerreiros de Ourique.
—Ainda bem que a priminha Gabriella o veio tirar do seu lethargo—acrescentou outra, ramo infructifero de arvore igualmente illustre.
O titulo de baroneza raros o concediam a Gabriella, porque era de origem suspeita para aquelles pechosos aristocratas.
D. Luiz respondeu com um forçado sorriso aos comprimentos, dizendo:
—Devem procurar-se as distracções, quando o espirito não se dá bem com as ideias tristes. Mas isso não succede commigo. Já não posso viver sem esta escura companhia dos meus pensamentos. O esforço para fugir-lhe mais me afflige.
—Ora essa! Sentir-se um homem bem com a tristeza! Ora essa!—estranhou o ex-miliciano.
—São contradicções apparentes—disse Gabriella para o tio.—As saudades teem d'isso. Por isso lhes chamaram «gosto amargo e pungir delicioso.»
—Quem é que lhes chama isso?—perguntou uma fidalga de oculos, um pouco sentimental e litterata, que estava ao pé de Gabriella.
—Foi Almeida Garrett—respondeu esta, sorrindo, como quem suspeitava que não ficaria satisfeita a curiosidade da interrogante.
Effectivamente a historia litteraria de Portugal parára para ella em
José Agostinho de Macedo.
—Almeida Garrett!!—repetiu um dos mais intractaveis realistas presentes que ouvira a resposta—eu conheci um d'esse nome, que era secretario ou coisa assim do duque de Palmella n'aquelles bons governos do Porto em 1834, isso era um liberalengo dos quatro costados.
Na linguagem pittoresca d'este sujeito, a palavra liberalengo era a mais eloquente expressão com que s. exc.ª conseguia traduzir todo o desprezo que lhe mereciam as ideias e os homens de 1820 e 1832.
—E perdeu-o de vista depois?—inquiriu Gabriella com leve ironia.
—Sim, perdi. Eu conheci-o por acaso.
—Então não o conheceu orador no parlamento, ministro, poeta, prosador e chefe de uma revolução litteraria?
O fidalgo abriu os olhos, prolongou os labios e sacudiu a cabeça, dizendo:
—Olhe, prima; eu, a respeito de parlamento…. Temos conversado; não sei se me entende. De ministros tambem não quero saber, porque tenho receio de que me digam que nos governa o filho do meu sapateiro. Agora a respeito de poetas… se quer tambem que lhe diga, eu nunca tive quéda para sonetos. Lá chefe de revolução estou convencido de que elle seria, porque para guerrilheiro estava talhado.
A baroneza deu muita razão a este seu primo e foi para um grupo de raparigas, que passaram a interrogal-a sobre a ultima moda do talho dos vestidos.
Annunciou-se emfim o jantar. Houve geral reboliço na sala, e a companhia seguiu mais ou menos anarchicamente para o banquete.
Frei Januario tinha meditado maduramente a ordem de collocação dos diversos convivas, segundo as regras da etiqueta em que elle era mestre. E como n'este ponto ninguem lhe contrariasse os planos, havia-se sahido muito á sua vontade da tarefa.
Assumindo pois as funcções de mestre de ceremonias, começou a designar a cada convidado o logar que lhe competia.
Infelizmente, porém, nem todos foram doceis ás indicações do padre, e sobre tudo os rapazes que, sem lhe darem attenção, iam sentar-se onde muito bem queriam, e ao pé quasi sempre de alguma prima, que não desgostava da visinhança.
Isto transtornou completamente os estudos do padre, que tivera mais que tudo era vista a separação dos sexos e das idades; mas debalde protestou contra a anarchia que invadira a mesa.
Quem, porém, acabou por o perturbar foi D. Luiz, quando do alto da mesa e com a hospitaleira cordialidade, que conseguiu affectar, exclamou:
—Queiram sentar-se á vontade. É bom que os velhos se misturem com os moços para temperar os ardores da juventude com a prudencia dos annos. Outras desigualdades não ha aqui a attender.
Esta ultima parte fez torcer o nariz a um ou outro fidalgo que tinha motivos para se suppôr mais preclaro do que os primos, mas não houve protesto formulado, e todos obedeceram ao convite do dono da casa.
O padre esteve em risco de perder o appetite.
Valeu-lhe porém a judiciosa reflexão que lhe fez ao ouvido o collega, dizendo:
—Sentemo-nos, que bom logar é todo aquelle onde se come bem.
Jorge ficou aos pés da mesa e portanto fronteiro ao pae.
Os primos do Cruzeiro, um de cada lado da mesa e perto da cabeceira, continuavam a sorrir provocadoramente e a fazer rir os outros.
Ao passar perto de Jorge, para tomar logar, a baroneza murmurou-lhe:
—Falla-se muito de ti, Jorge.
Jorge fez um signal de quem estava informado do facto, e respondeu sorrindo de uma maneira especial:
—Talvez se falle mais e mais alto d'aqui a pouco.
O jantar não desdizia do puritanismo d'aquella sociedade.
Era um jantar á portugueza e digno de portuguezes, que não querem: nostrum regnum ire fore de Portucalensibus.
A Casa Mourisca, bem explorada, ainda deu para ostentar um esplendor, que se nada era em comparação com o dos magnificos festins, que em tempos passados a animaram, não envergonhava o seu brazão perante os fidalgos presentes que, pela maior parte, o tinham tanto ou mais deteriorado.
Os criados suppriram com diligencia o numero, de modo que o serviço correu regular.
Emquanto se servia a sôpa e não se havia encetado as libações, reinou na sala aquelle silencio momentaneo, proprio da occasião.
Só se ouve o tocar das colheres nos pratos, e o sôrvo mais ruidoso de alguns convivas, que se não constrangem. O appetite satisfaz-se, dão-se tregoas ás conversas. Depois retiram-se os primeiros pratos, enchem-se os copos, repousam os commensaes, e de visinho para visinho trava-se a meia voz um dialogo cortado, sobre assumptos insignificantes. Depois o tinir das louças e dos crystaes, o vapor oloroso das iguarias, os effeitos excitantes dos vinhos animam o espirito; o tom das conversas eleva-se, o visinho fronteiro intervem, cresce a confusão, os risos misturam-se com as palavras, a timidez dissipa-se, cada qual sente-se com um arrojo que desconhece, vencem-se reservas e resistencias que pareciam insuperaveis, reina a vida na sala do banquete.
Por estas diversas e successivas phases passou o jantar em casa de D. Luiz. No meio d'elle, berrava-se politica alli, jogavam-se epigrammas acolá, segredavam-se requebros em outro ponto, e dava-se largas á maledicencia em quasi todos.
Jorge conservava-se serio e reservado, como estivera toda a manhã.
Mauricio fazia esforços para mostrar-se despreoccupado, porém mal o conseguia.
Para o fim do jantar percebia-se pelo tom de algumas risadas e pelo theor de algumas conversas, que os restos da garrafeira da Casa Mourisca não tinham desmentido os seus antigos creditos, firmados em tantas façanhas.
Os primos do Cruzeiro sobre todos fallavam em um tom de voz, que mais do que uma vez attrahira as geraes attenções e fizera contrahir o sobr'olho a D. Luiz.
A cada momento as allusões a Jorge, que elles entremeiavam nos seus informes discursos, tinham obrigado a maioria dos olhares a convergirem para o filho mais velho de D. Luiz, que os arrostava com uma serenidade desprezadora.
Encetaram-se os brindes. Brindou-se a baroneza, brindaram-se na pessoa dos seus chefes as familias illustres alli presentes, brindaram-se os caudilhos do partido realista, brindou-se em honra da sancta causa, em honra da imprensa fiel, em honra das velhas instituições, em honra do throno e do altar e de muitas outras coisas.
Frei Januario, para mostrar o seu fervor, esgotava o calix a cada brinde, e aproveitava os intervallos para fazer com os collegas, a meia voz, os seus brindes particulares.
Já quando os animos estavam um pouco excitados por estas successivas libações, o primo padre levantou-se, e com os olhos injectados e o gesto um tanto transtornado, disse:
—Meus senhores, tenho notado que o primo Jorge está com um ataque de melancolia, de que não póde livrar-se. Os brindes que aqui se teem feito ainda o não desanuviaram. É verdade que se brindaram familias antigas e coisas velhas, e o passado não é lá das ideias mais alegres. Eu por isso vou propôr um brinde menos soturno, a vêr se o distraio. Bebo á saude do Thomé da Herdade e da sua familia, com particular menção da menina Bertha, a quem Deus faça muito feliz, assim como a todos quantos lhe querem bem.
Este inesperado brinde produziu grande sensação. A parte moça da companhia, prevenida como estava, principiou a suffocar os risos e a fallar ao ouvido dos visinhos; os velhos abriam os olhos espantados ou indignavam-se com o desconchavo de brindar uma familia plebeia depois de outras de tão apurada raça. A consequencia foi que ninguem correspondeu ao brinde e os calices ficaram na mesa intactos. Seguiu-se um silencio profundo na sala.
O primo do Cruzeiro, sem se intimidar, perguntou:
—Então que é isto?! Ninguem me secunda?
E corria a vista em redor da mesa com expressão ironica, que, a seu pezar, se desvaneceu ao encontrar a vista de Jorge, que, pallido de intima commoção, tambem se erguêra e levantára o calice para responder:
—Secundo eu, primo—disse elle, corn um leve tremor na voz—e creia que da melhor vontade o faço. Brinda-se uma familia honrada, laboriosa e justa. A ninguem deve repugnar o brinde, e muito menos a mim, a quem motivos particulares obrigam a veneral-a.
—Ah!—murmurou provocadoramente o padre, sentando-se com ares de victoria.
Um meio sorriso passou por os labios de alguns dos espectadores d'esta scena.
—Levante-se!—ordenou Jorge ao padre com intimativa—ouça-me de pé, que eu também estou de pé para secundar o seu brinde.
É singular! O padre ergueu-se, como se não pudesse resistir ao olhar indignado e imperioso de Jorge.
—Repito—continuou este—brindo aquella familia honrada, porque é honrada e porque motivos particulares me levam a veneral-a. E para lhes não dar occasião de sorrirem outra vez, ou de afagarem a vibora venenosa, que ahi soltaram, eu lhes explico as minhas palavras. Se ouvirem verdades que lhes firam o orgulho de fidalgos, lancem a culpa da vexação a quem m'as provocou. Meus senhores, eu acordei um dia com a firme resolução de luctar contra esta torrente que nos arrasta e afoga a todos, apesar dos nossos brazões, dos nossos solares, dos nossos pergaminhos e das nossas galerias de retratos. Todos quantos aqui estão podem contar das glorias passadas e da decadencia e das humilhações presentes. E nós como todos. Eu era novo, tinha diante de mim a perspectiva de uma longa vida, pensava no futuro e não podia resignar-me á ideia de morrer assim cobarde e ingloriamente. Reagi, encontrei felizmente em meu pae o auxilio preciso, e, authorisado por elle, tomei sobre meus hombros a tarefa de sustentar as ruinas vacillantes d'esta casa. A empreza porém era mais difficil do que a suppozera. Tolhia-me os movimentos a rede complicada, em que a errada gerencia de muitos annos embaraçára a administração. Cada passo dado para salvar-nos era mais um para a total ruina. Devem comprehender bem isto os que me escutam, porque a sorte das nossas casas é quasi a mesma. De todos os lados, para onde nos viramos, surge-nos a usura, o dolo e a má fé. N'estas circumstancias só me podia valer a experiencia dos negocios, e essa faltava-me, o credito, e quem m'o reconheceria e aceitaria? o capital, e por que preço poderia obtel-o? Perguntem ao nosso antigo administrador, aqui presente, o preço por que elle o encontrava. Pois bem, senhores, um homem chegou-se a mim n'estas condições e pôz á minha disposição, leal e desinteressadamente, a sua experiencia, o seu credito e o seu capital. Graças a este homem, era-me possivel libertar-me, sem baixeza, da usura que havia tantos annos nos devorava, applicar vantajosamente os capitaes obtidos e encetar um systema, lento mas seguro, de administração que preparasse o caminho para um futuro resgate d'esta casa. Graças a este homem, sorriam-me as esperanças de poder dizer um dia ás cinzas dos nossos antepassados, que eu tambem respeito, que repousassem em paz na sepultura, pois não viriam estranhos disseminal-as; e á memoria querida de minha mãe e de minha irmã que os que ellas amaram não desertariam cobardemente dos logares que lhes eram caros e que as viram morrer. Mas contra o generoso auxilio d'este homem havia velhos preconceitos de familia, mais apaixonados do que justos; era-me pois impossível recorrer a elle abertamente. Entre as prevenções e a gloria da minha casa não hesitei porém. A consciencia dizia-me que não devia hesitar. Resolvi acolher o offerecimento leal, mas tive de occultar na sombra da noite actos que não se envergonhariam da mais clara luz do dia. Quando precisava do conselho experiente d'esse homem, procurava-o de noite e clandestinamente. Os diffamadores, que correm nas trevas á procura de alimento para a calumnia, surprenderam-me. Medindo as acções dos outros pela sua capacidade moral, suppõe-lhes sempre um motivo infame. O homem de quem lhes fallei tem uma filha. No que ha de mais puro e mais sensivel nas familias, é ahi que a calumnia gosta de ferir. Essa pobre menina foi pois a victima escolhida. Agora se querem saber o nome do homem honrado, a quem devo experiencia, credito e capital, dir-lhes-ei que se chama Thomé da Povoa, a filha é Bertha, a afilhada de meu pae; os calumniadores são esses que propõem o brinde, lançando no calice a peçonha de sua natureza de vibora; mas brinde que eu de novo secundo sem receio nem hesitação.
—E eu—exclamou a baroneza, imitando-o; mas por ninguem mais foi seguida, porque uma nova occorrencia veio absorver as attenções.
D. Luiz, que revelára a mais profunda estranheza desde o principio da scena, provocada pelo fidalgo do Cruzeiro, crescêra em agitação á medida que as palavras de Jorge iam tendo para elle um sentido mais claro.
As ultimas fizeram-lhe passar o rosto por uma serie de mudanças, cada uma d'ellas denunciadora de uma paixão violenta.
Ao nome de Thomé da Povoa, á ingenua e leal declaração de Jorge, os olhos do irritado fidalgo faiscaram e um rubor fugaz e intenso correu-lhe nas faces, succedendo-lhe uma pallidez profunda.
Quando o filho terminou de fallar, foi elle quem, por sua vez, se ergueu na cabeceira da mesa.
A commoção que o dominava não lhe permittiu desde logo o uso da palavra.
Todos os olhares se desviaram para aquelle velho, pallido, vestido de negro, severo e mudo, que, com as mãos apoiadas sobre a mesa e o olhar fulgurante, seguia com a vista por todos os espectadores d'esta scena.
A final com a voz tremula e meia abafada, mas que a pouco e pouco se foi animando, o velho fidalgo começou, dizendo:
—Meus senhores, quando ha dias os convidei para virem a esta casa solemnisar a honra que eu recebia da hospedagem da minha sobrinha, estava persuadido de que esta casa ainda era minha. Não sabia que, abusando da confiança que eu depositára n'elle, um filho meu, o mais velho, o primeiro representante, no futuro, do nome e das glorias da sua familia, havia empenhado a um dos criados d'ella o solar em que nascêra. Soube-o agora. Peço-lhes humildemente perdão de os haver, pela minha ignorancia, sujeitado a esta baixeza. Desde este momento estamos todos aqui em situações iguaes, todos somos hospedes do Thomé da Herdade. Em outros tempos, nos festins e saraus das nossas casas, os criados subiam disfarçadamente as escadas, para virem das ante-camaras e corredores espreitar para as salas, fascinados pelo esplendor que n'ellas viam; permittia-se-lhes isso. Hoje porém, senhores, se aqui nos demorassemos, vêl-os-iamos subir com outro intento, para vigiar que nas expansões do nosso jubilo não deteriorassemos as alfaias, a mobilia, a baixella e a casa, que já lhes pertence. A esta espionagem não me sujeito eu. Meus senhores, as minhas obrigações de dono da casa terminaram. Hospede como os outros, tomo a liberdade de seguir o caminho que a dignidade me impõe. Cada um consulte o mesmo conselheiro.
E D. Luiz, curvando-se diante de todos que o escutaram espantados, sahiu da sala sem dar tempo a que o interrogassem ou detivessem.
Frei Januario foi o primeiro que pressurosamente o seguiu.
O resto da companhia parecia immobilisado nos seus logares.
Jorge, com os cotovêlos apoiados na borda da mesa, conservava o rosto escondido entre as mãos.
Gabriella foi quem se subtrahiu primeiro áquella influencia paralysadora.
—Parece-me que, depois do que se passou, dá-se a triste necessidade de nos separarmos. O tio Luiz está muito agitado, e preciso dar-lhe tempo para serenar e vêr as coisas sob um aspecto mais racional do que aquelle em que a paixão lh'as apresenta agora. Por isso…
A reticencia foi seguida de um arrastar de cadeiras, prova de todos haverem comprehendido a conveniencia da retirada.
Formaram-se ainda na sala alguns grupos, conversando sobre o facto.
Os primos do Cruzeiro foram os primeiros a retirar-se. O padre ainda manifestou desejos de pedir a Jorge uma satisfação pelos insultos que elle lhe dirigira, mas intervieram terceiros que o dissuadiram.
Os fidalgos velhos tentaram procurar D. Luiz para o acalmarem; mas foi-lhe dito por frei Januario que o fidalgo não podia recebel-os.
Pouco e pouco foram os convidados abandonando a Casa Mourisca, e os caminhos que d'ella partiam eram momentos depois cobertos de cavalgadas, liteiras e carroções, em que aquellas nobres familias regressavam aos seus solares.
As occorrencias singulares do jantar foram entre ellas assumpto de conversa em toda a jornada. Todos, com quanto criticassem a esquisitice do velho D. Luiz, que tão pouco urbano se mostrou com os seus hospedes, eram accordes em attribuir a principal culpa a Jorge.
Ficaram apenas na sala Jorge, Mauricio e a baroneza.
A indignação de D. Luiz parecia haver desvanecido a energia de Jorge; a consciencia do pobre rapaz, como que vacillando ao embate das violentas paixões paternas, quasi lhe censurára a precipitação do passo que déra.
Igualmente abatido, Mauricio sentia remorsos ainda mais vivos. Não podendo já duvidar da innocencia do irmão; como perdoaria a si proprio as suspeitas e insultos com que o ferira?
Do vão da janella a baroneza observava-os immovel e silenciosa.
Mauricio ergueu emfim a cabeça, e tendo nos olhos ainda vestigios de lagrimas; hesitou alguns instantes; depois, por um d'esses movimentos promptos e irresistiveis, a que a violencia dos affectos o provocava, caminhou agitado para Jorge.
—Jorge—disse elle, intima e sinceramente commovido—se ainda se não esgotou a generosidade da tua nobre alma, não me retires a affeição, que por tanto tempo te mereci.
Jorge apertou-lhe a mão com affecto.
—Nunca t'a retirei, Mauricio. Podes crêl-o. Affligem-me alguns dos teus desvarios, principalmente porque sei que elles estão em contradicção com os nobres sentimentos da tua alma. Mas para te perder a affeição não é isso motivo. Para mim és n'esses momentos, como uma criança que se vê a dormir á beira de um precipicio. Inspiras-me, como ella, apenas sustos, e não cólera nem aversão.
E os dois rapazes abraçaram-se com effusão.
—Vamos—disse a baroneza, intervindo—a situação precisa de que se pense n'ella seriamente. As pazes estão feitas, em boa hora; pensemos agora como gente de juizo.
—Antes de mais nada, Jorge, o que ha de verdade em tudo isto?
—O que eu disse.
—Vê bem; falla-me com franqueza. Eu não acreditei no que de ti se espalhou. Concederia que Jorge podésse praticar uma loucura, mas uma acção indigna, um abuso de confiança, sabia que não. Porém não ha em toda esta historia alguma coisa que não disseste ainda? Bertha é para ti completamente indifferente? Esta é que é a questão.
Só a muito custo Jorge pôde disfarçar a turbação em que a pergunta de
Gabriella o lançou, mas respondeu com apparente serenidade:
—Bertha é uma rapariga, que por todos os motivos respeito.
E com mais custo ainda, acrescentou:
—E nada mais.
—E para Mauricio o que é Bertha?—continuou a baroneza, sorrindo ao voltar-se para o primo mais novo.
Não obteve logo resposta.
—Bem vêem—insistiu ella—que ha uma coisa que eu não posso ainda explicar. Assisti á vossa reconciliação, signal de que tinha havido uma desintelligencia. Qual foi pois o motivo d'ella?
—Uma das minhas loucuras—respondeu Mauricio a final—cedi a um movimento de paixão, encontrando-me com Jorge hontem, quando elle sahia da casa de Thomé da Povoa, e soltei expressões, que parece que ainda me estão queimando os labios.
—Então, visto isso, achavas-te com direito de sentir ciumes. Segue-se que amas Bertha. E é devéras esse amor?
A fronte de Jorge contrahiu-se levemente ao ouvir a pergunta, e emquanto aguardava a resposta do irmão.
—Se responder pelo que penso d'elle—disse Mauricio—juro que é.
D'esta vez um ligeiro sorriso deslizou nos labios de Jorge.
—Isso quer dizer—tornou a baroneza—que respondendo pelo que pensas de ti, receias muito que não. Pois, meu caro priminho, a occasião exige que se ponham de lado caprichos e brinquedos de criança, e que se siga com sisudeza e tenacidade de homem um caminho qualquer. Não estámos em tempo de brincar. Dá-se uma grave crise, em que todos os bons planos de Jorge podem ser destruidos de encontro á resistencia do tio Luiz. Eu nem posso calcular o que resultará de tudo isto. E portanto….
Interrompeu-a n'este ponto a entrada de um criado, pedindo-lhe para chegar ao quarto de D. Luiz, que desejava fallar-lhe.
—N'este caso esperemos o resultado d'esta entrevista para adoptar um partido—dizia ella, apressando-se em satisfazer os desejos do tio.
Em caminho para o quarto de D. Luiz, a baroneza notou nos corredores e nas salas intermedias um movimento extraordinario, que não sabia a que attribuir.
Os criados iam e vinham apressurados, communicavam ordens uns aos outros, abriam e fechavam portas, desciam a duas e duas as escadas, e transportavam differentes objectos, como se se tractasse dos preparativos de uma jornada.
Nos aposentos de D. Luiz achou Gabriella o fidalgo em pé no meio da sala, emquanto frei Januario, de joelhos junto de uma arca, introduzia n'ella algumas peças de roupa, que aquelle lhe ia indicando.
—Eu não sei o que v. exc.ª vae fazer, snr. D. Luiz—murmurava no entretanto o egresso, que parecia cumprir a tarefa de má vontade, suando em bagas—isto não tem pés nem cabeça. Olhem agora, sem commodos nenhuns… assim de um momento para outro….
D. Luiz, sem responder ás reflexões do procurador, continuava a indicar-lhe os objectos que devia arrecadar.
Gabriella dirigiu-se a elle:
—Mandou chamar-me, meu tio?
—Ah! mandei, sim, Gabriella. Desculpe importunal-a. Mas tenho que lhe pedir um favor—respondeu D. Luiz com forçada placidez.
—Mil que sejam.
—Depois do que se passou, não quero demorar-me n'esta casa uma só noite. Peco-lhe por isso hospitalidade na sua. Se me não engano, tencionava partir ámanhã para lá. Não é verdade? Pois bem, faça o sacrifício de partir hoje e permitta-me que a acompanhe. Um quarto e uma enxerga bastam-me. Preciso de me ir costumando a tudo.
A baroneza ficou por alguns momentos muda de surpreza.
—Mas… Por quem é, meu tio… Grande prazer me dará a sua visita… porém em outras circumstancias e por outros motivos. Não tome resolução alguma emquanto assim está dominado pela paixão. Veja o que vae fazer! O que se dirá? O que se fallará por toda a parte!
—Já de sobra teem em que fallar. A vergonha não é maior—tornou o velho mais agitado.
—Pois sim—acudiu o padre—mas reunir a vergonha ao incommodo… a fallar a verdade… é… é…
—A vergonha… a vergonha… Mas tem a certeza, tio, de que julga bem e despreoccupado de paixões, os actos de seu filho? Quem lhe diz que outros não chamarão virtude áquillo a que chama baixeza?
A cólera relampagueou de novo nos olhos do velho:
—Gabriella, por quem é, desista de contrariar-me. Asseguro-lhe que me não demove da resolução em que estou e que sómente me afflige. Se não quer conceder-me o abrigo dos seus tectos, irei bater a outra porta.
Gabriella não insistiu.
—A minha casa é sua sempre, meu querido tio. Vou dar as ordens para partirmos.
—Não esperem por mim—recommendou ainda o fidalgo—eu irei com frei
Januario mais tarde, porque tenho que fazer antes. Sinto o incommodo que
isto lhe vae causar, Gabriella. Mas os criados ficarão na estalagem da
Encruzilhada.
—Todos cabem; visto que tambem os quer levar, escusam de ficar a meio caminho. Então fecha-se a Casa Mourisca, ao que estou vendo? Muito bem. A casa de meu pae é bastante espaçosa, e com os arranjos que eu mandei fazer-lhe ultimamente, deve bem servir para nós todos. Agora um pedido.
—Qual é?
—Jorge está consternado, pelas suas asperas palavras ao jantar. Não ha de reconciliar-se com elle?
—Gabriella, se é amiga de Jorge, não procure trazêl-o á minha presença, e se quer que isto que sinto cá dentro contra meu filho não cresça ou degenere em paixão peior, não pronuncie diante de mim por ora o nome d'elle.
Gabriella tinha certo dom para conhecer quando convinha luctar e quando era preferivel ceder. D'esta vez percebeu que o animo de D. Luiz não estava para acalmar de prompto.
Sahiu sem aventurar mais uma palavra a tal respeito e foi ordenar os preparativos da partida.
Ao passar na sala onde ainda estavam Jorge e Mauricio, apenas lhes disse:
—Tracta-se de partir já.
—Para onde?
—Para a minha casa, nos Bacellos.
—E meu pae?
—Tudo parte. É uma emigração completa.
—E a Casa Mourisca?…
—Fechada, ao que parece, até… acabar o interdicto.
—Mas isso não póde ser!
—Mas é, e eu vou já dar ordens precisas para a mudança.
—E eu vou fallar com meu pae—exclamou Jorge, erguendo-se.
A baroneza reteve-o.
—Não vás. É inutil e perigoso. Deixa que os factos succedam naturalmente. Eu já estou convencida de que esse é o melhor expediente. É preciso que teu pae desafogue a paixão que lá tem dentro. Entende que deve sahir d'aqui, deixemol-o sahir. Estas exterioridades acalmam-n'o. Depois lhe apparecerás.
—Então agora recusa vêr-me?
—Recusa. O que não tira que não possas estar muito á tua vontade na minha casa dos Bacellos. Ha lá um pavilhão na quinta, ao talhar para um refugiado como tu.
Passados poucos minutos os moradores da Casa Mourisca punham-se em movimento para a quinta dos Bacellos.
Os preparativos não occuparam muito tempo, porque o fidalgo mandára apenas levar o que fosse estrictamente necessario.
A baroneza veio despedir-se do tio, que insistiu em querer ser o ultimo a sahir de casa.
Jorge e Mauricio partiram em companhia de Gabriella.
O fidalgo ficou só com frei Januario, que continuava a protestar por todas as fórmas contra a resolução da mudança de quartel a horas improprias.
D. Luiz nem lhe respondia.
Quando o procurador, a fim de suavisar as agruras do desterro, pretendia fazer transportar algum objecto que podia ser de utilidade para melhor accommodação da familia, o fidalgo ordenava-lhe sêcamente que o deixasse ficar, o que cada vez mais exasperava o padre.
Vendo que tudo estava prompto, D. Luiz deixou por alguns instantes o procurador na sala e subiu vagarosamente as escadas que conduziam aos antigos aposentos da filha que perdêra.
Ao penetrar alli, que doloroso estremecer o do coração do velho! Ia desamparar tambem aquelle quarto! Esta ideia só poderia fazer vacillar-lhe a inabalavel coragem! Era um logar de reconhecimento aquelle para o desconfortado ancião. Tudo alli dentro se conservava como no fatal dia em que ella morrêra. Todos os objectos que haviam pertencido á infeliz criança alli se guardavam religiosamente. E ia deixal-os! O leito, o genuflexorio, o toucador, a harpa, parecia possuirem uma voz para fallar-lhe d'ella. E havia de fugir-lhes! A coragem porém não sossobrou na lucta. D. Luiz fechou discretamente a porta para si; depois com fervorosa commoção beijou quasi um por um esses differentes objectos, e ao chegar junto do leito, o mesmo em que a vira adormecer do ultimo somno, ajoelhou soluçando, e cobriu de beijos e de lagrimas as almofadas onde tantas vezes se encostára a pallida cabeça da sua Beatriz.
Mais tranquillo depois d'esta effusão de dôr, ergueu-se, enxugou os olhos e desceu com a mesma lentidão as escadas até o portal, onde o padre o esperava já com impaciencia e inquieto pelo adiantado da hora.
Um criado segurava pela redea os cavallos, que deviam transportal-os.
—Vamos, vamos, snr. D. Luiz, olhe que nos apanha a noite na estrada e os caminhos não são lá essas coisas—exclamou o padre afflicto.
D. Luiz, em vez de responder-lhe, disse para o criado que segurava os cavallos:
—Vae esperar-nos na baixa do Paul. Nós já lá vamos ter.
—Então v. exc.ª quer ir a pé até á baixa do Paul?!—perguntou o padre assustado.
—Vou?
—Mas… é um estirão e….
—Então que fazes? Parte—disse D. Luiz com impaciencia para o criado, e este obedeceu-lhe promptamente.
O padre ficou a resmonear:
—Eu cada vez ando mais ás aranhas com a gente d'esta casa. Sempre tenho visto e ouvido coisas ha tempos a esta parte! Olhem que preparos estes! Havemos de ceiar a boas horas, não tem duvida nenhuma!
—Agora feche a porta, frei Januario—ordenou D. Luiz.
O padre tomou com ambas as mãos a enorme chave do portão, e fêl-a girar na fechadura.
Este movimento produziu um som agudo, similhante ao gemido de uma ave, o qual resoou tristemente pelo interior d'aquella casa deserta.
O padre tirou a chave, que juntou ao mólho que trazia, deu um encontrão á porta, para verificar se ella estaria bem fechada, e depois olhou para D. Luiz.
—Vamos—disse este.
O padre ia pôr-se a caminho, mas parou vendo o fidalgo seguir a direcção opposta á da quinta dos Bacellos.
—V. exc.ª por onde vae?
—Por aqui—respondeu sêcamente o fidalgo, continuando a andar.
—Mas… v. exc.ª está enganado. Esse não é o caminho.
—Bem sei.
O padre seguiu-o, murmurando contra as venêtas do fidalgo:
—Esta cabeça já não regula direita. Onde diabo quer ir este homem?
O caminho que D. Luiz continuava a seguir, ia tão divergente do que o padre esperava, que outra vez o interpellou:
—Mas v. exc.ª onde quer ir?
—A casa do Thomé da Povoa—respondeu D. Luiz e acrescentou:—E advirto-lhe, frei Januario, que não me sinto com disposições para conversar.
O padre sabia que sempre que D. Luiz fazia certas observações em certo tom e com certa inflexão de voz, era inutil e imprudente contrarial-o. Por isso calou-se, o que augmentou o mau humor que já trazia accumulado.
—A casa do Thomé da Povoa!—resmungava elle—O homem está doido! Ora isto! E eu a atural-o! O que me estava reservado!
A intenção com que o fidalgo demandava a casa do fazendeiro era um mysterio indecifravel para o espirito do procurador.
Tinham descido a encosta, a meio da qual se erguia a Casa Mourisca. Aproximavam-se da ponte que atravessava o valle. A tarde ia no fim. Era já a claridade do crepusculo que illuminava a paisagem. A azafama do trabalho acalmára. Nos marcos dos campos, á soleira das portas e nos parapeitos das pontes repoisavam finalmente os lavradores das fadigas do dia. O gado caminhava para as prêsas, conduzido por crianças de seis e sete annos. Nos arvoredos ouvia-se um cantar de aves, timido como elle é, ao aproximar do outomno e ao aproximar da noite. Era tal a serenidade da tarde, que se percebia o sino de uma freguezia distante, dobrando a finados.
A suave melancolia d'aquella hora influiu no animo de D. Luiz. Que densidade de tristeza a que poisou n'aquelle coração! Saudades, mas saudades escuras de velhice, saudades de quem não tem futuro, era o que havia n'aquella alma. Com o passado lhe tinham ido todos os objectos das suas crenças, do seu amor, das suas affeições. Já não era capaz de enthusiasmo, e os olhos em que o enthusiasmo não influe, vêem tristemente coloridas todas as scenas da vida. Ao desencantamento do presente juntavam-se as apprehensões pelo futuro a entenebrecer-lhe o espirito. Era devéras infeliz aquelle velho!
Depois da ponte seguia-se a collina, onde prosperava a Herdade de Thomé.
D. Luiz reuniu alento para subil-a.
O padre aventurou outra observação:
—Snr. D. Luiz, eu não atino com as razões que trazem v. exc.ª aqui, mas não vejo que possa resultar bem algum de similhante visita. Veja o que faz! A prudencia…
—Socegue, frei Januario—atalhou D. Luiz com um sorriso amargo.—Não imagine que venho praticar alguma violencia. Já lá vae o tempo em que nós resolvíamos á força de braço os nossos pleitos. A nossa vez passou, bem vê.
O padre conheceu pelo tom da resposta que o fidalgo estava já mais quebrado, mas ainda pouco disposto para explicar-se.
Para se chegar á casa de Thomé da Povoa por o lado por onde D. Luiz seguia, tinha-se de tomar por uma avenida de olmeiros, orlada por sebes naturaes formadas de madresilvas e de rozeiras. No fim d'esta avenida ficava uma das entradas da quinta do fazendeiro, era a parte que elle cedêra ás predilecções da filha e da mulher, e onde as balsaminas, os limonetes e hortensias cresciam vigorosas, e a relva rescendia com as violetas e malvas que a entremeiavam.
D. Luiz desceu lentamente a avenida, com os olhos fitos no portão da quinta.
—É aquella uma das entradas da propriedade, não é?—perguntou elle ao padre.
—É, sim, senhor. Repare v. exc.ª que é um portão de quinta nobre.
Falta-lhe o brazão.
O fidalgo calou-se e não tirou os olhos do portão da quinta, da qual se ia avisinhando. Passados alguns instantes respondeu á observação do procurador, dizendo:
—Dentro de alguns annos mais póde comprar barato o da Casa Mourisca. Os meus filhos não serão exigentes no preço.
O padre não soube bem o que devia dizer n'este caso. Limitou-se por isso a expellir um simples «Oh!» sem entonação que o definisse.
Chegaram emfim ao portão. D. Luiz ordenou ao padre que tocasse a sineta.
Este ia a fazêl-o, quando se voltou dizendo:
—Anda gente cá dentro.
D. Luiz não foi superior a certo sobresalto ao ouvir a noticia; vencendo-se, porém, caminhou resoluto e com a fronte contrahida para diante. De repente estremeceu, parou, e comprimindo o peito como se fora ferido alli, murmurou:
—Ó Sancto Deus!
—Que tem v. exc.ª?—interrogou inquieto o padre, que reparára no gesto de D. Luiz—Foi pontada?! Estes passeios violentos e fóra d'horas…
O fidalgo não respondeu e continuou com os olhos fitos em não sei que ponto do interior da quinta.
Frei Januario desviou para alli a vista, a fim de elucidar-se na explicação do mysterio.
Chegava n'este momento ao portão uma rapariga, singelamente vestida de branco, que correu ao encontro d'elles.
Era Bertha.
—O meu padrinho!—exclamava ella dirigindo-se ao fidalgo—O snr. D.
Luiz! Até que emfim o vejo! Julguei que não chegava este dia!
E pegando-lhe na mão, beijou-a com respeito e affecto.
E D. Luiz não lh'a retirou, nem teve uma palavra que lhe dissesse.
Continuava a olhal-a, como esquecido de tudo e profundamente perturbado.
O padre observava a scena boquiaberto.
—Ha que tempos o não via!—proseguiu Bertha com uma carinhosa volubilidade de criança—Pois tinha bem saudades! Quantas vezes olhava para aquellas janellas, a vêr se por acaso o descobria em alguma? Mas nunca, nunca! Que vontade que tinha de lá ir, mas… Disseram-nae que o padrinho nunca sahia, e que vivia quasi sempre só no seu quarto. Para que é que vive assim? Isso faz-lhe mal. Mas… que tem, snr. D. Luiz? Meu Deus… está a chorar!
O padre deu um passo á frente, como duvidando do que ouvira.
D. Luiz afastou-o com a mão.
—É verdade—disse elle a final, profundamente commovido.—É singular isto em mim! Mas que quer, Bertha? Quando aqui cheguei e a vi…
—Não me tracta já por tu?—interrompeu-o Bertha, sorrindo tristemente.
O fidalgo, depois de uma curta hesitação, repetiu:
—Quando aqui cheguei e te vi, lembrei-me da minha pobre Beatriz. Parecias-me ella. Ella era mais moça quando morreu, mas ultimamente tinha deitado corpo e… depois trazia ás vezes um vestido d'essa côr, e emfim… ha tanto tempo que não via uma rapariga que se lhe assimilhasse… Sim, porque ha muitas por ahi, mas nenhuma ainda m'a recordou como tu. É notável! a mesma côr de cabello, a mesma estatura, certas maneiras e até o metal de voz… Não é verdade, frei Januario? É notavel! A minha pobre filha! Como tu m'a recordas, Bertha, ai, como tu m'a recordas!
—Não se afflija.
—«Não se afflija» era mesmo assim que ella me dizia; não que era mesmo assim. Pois não era, frei Januario? «Não se afflija.» Se tu soubesses o que eu estou sentindo, Bertha? se tu soubesses o que vão de saudades aqui dentro?
—Então não sei? Não era eu amiga de Beatriz tambem? O tempo mais feliz da minha vida não foi aquelle em que a conheci? Inda hontem chorei ao reler as cartas que ella me escrevia.
—E ella escrevia-te?
—A ultima que tenho d'ella é datada de oito dias antes da sua morte.
—Pobre criança! E… e dizia-te que sabia o estado em que estava?
—Dizia; mas que fingia illudir-se para não affligir os seus.
—E era assim, era. Nunca se ouviu uma queixa d'aquella bôca. Morreu a sorrir o pobre anjo.
E o saudoso pae quasi soluçava ao avivar aquella permanente chaga do seu coração.
—Snr. D. Luiz—acudiu frei Januario—olhe que lhe faz mal estar a recordar essas coisas. O passado, passado. A noite está comnosco e…
—É verdade!—atalhou Bertha—e eu a demoral-o aqui! Faça favor de entrar, meu padrinho, a mãe anda lá para a quinta. Meu pae está para a cidade e julgo que só ámanhã virá, mas….
Estas palavras recordaram a D. Luiz o motivo que o trouxera alli. Chamaram-n'o á realidade de sua presente situação, afugentando as memorias do passado, melancolicas, mas suaves para o seu espirito.
Mudou immediatamente de expressão, as lagrimas como que se lhe secaram aos estos da paixão que crescia n'elle. Ergueu a cabeça que a tristeza curvára. Assumiu aquella apparencia magestosa que costumava apresentar aos olhos dos estranhos, e em tom não rispido, porém menos cordial do que até alli, disse para Bertha, que era agora para elle a filha de Thomé da Povoa e já não a companheira de Beatriz:
—Bertha, ia-me esquecendo o que me trouxe aqui. O coração domina-me ainda ás vezes. Mas a crise passou. Vinha procurar teu pae. Visto que não o encontro, peço-te que lhe transmitias o meu recado. Soube hoje que um de meus filhos havia recebido d'elle adiantamentos de dinheiro a titulo de emprestimo para melhorar a nossa propriedade, e isto sem garantia alguma. Não sei a quanto monta a somma recebida, mas em todo o caso não posso aceitar o emprestimo… ou a esmola. A divida ha de ser paga em breve tempo; mas, emquanto não o fôr, deixo em penhor de minha palavra aquella casa, que hoje mesmo abandono, e tudo que n'ella se contém. As chaves aqui ficam. Virei a seu tempo buscal-as.
E, fazendo signal ao procurador, tomou as chaves das mãos d'este, que continuava a estar abysmado, e entregou-as a Bertha.
A estupefacção da rapariga era tal, que machinalmente as recebeu, sem bem saber o que fazia.
—Parece-me que será bastante garantia—acrescentou D. Luiz.—Se eu não sou victima de uma perseguição do céo, espero resgatal-as ainda. Senão… Adeus, Bertha.
—Mas—pôde emfim dizer a filha de Thomé, sahindo da sua abstracção—isto não póde ser! Eu… nem sei o que estou fazendo. Por quem é, padrinho, meu pae não póde querer….
—Não te pertence julgar d'estes negocios, Bertha. Faze o que te digo.
—Deixar a Casa Mourisca! a casa em que tem vivido sempre, onde nasceu e morreu Beatriz! E porque?… Que somos nós para si então, padrinho?
O fidalgo tornou-se de novo sombrio ao responder:
—Bertha, quando a minha consciencia me impõe um acto na vida, é inutil tentar demover-me.
—A consciencia!—repetiu Bertha, timidamente, como exprimindo uma duvida.
—Se queres tambem chamar a isto um preconceito de classe, como já lhe chamou um de meus filhos, chama-lh'o embora. Em todo o caso obedeço-lhe e de obedecer-lhe me orgulho.
E o fidalgo ia para retirar-se, quando Bertha lhe disse, hesitando:
—E não me consente que lhe beije outra vez a mão?
O animo irritado do senhor da Casa Mourisca abrandou outra vez ao som d'aquellas palavras meigas. D. Luiz estendeu a mão a Bertha, que lh'a beijou chorando.
Ao sentir-lhe as lagrimas o fidalgo ergueu-lhe amigavelmente a cabeça, perguntando-lhe:
—Porque choras, Bertha?
—Porque sinto que já não me tem a amizade que d'antes me tinha.
—Criança—disse o fidalgo com uma brandura que havia muito tempo ninguem conhecêra n'elle—que tens tu com as paixões áridas das nossas almas de homens? Os entes como tu e como aquelle que eu perdi, nasceram para as dissipar e não para soffrel-as.
E cedendo á commoção que de novo a dominava, o severo e implacavel D. Luiz, com admiração crescente de frei Januario, apertou a afilhada nos braços e poisou-lhe na fronte um beijo, como os que dava em Beatriz.
E ao separar-se d'aquelle logar ia outra vez com as lagrimas nos olhos.
Ao fim da avenida, d'onde se avistava o portão, voltou-se. Bertha permanecia no mesmo sitio, a seguil-o com a vista.
—Repare, frei Januario, repare; a quem vê d'aqui, a distancia, não parece mesmo a minha Beatriz, quando nos esperava á porta da Casa Mourisca?
—Sim, as raparigas ao longe todas se parecem; mas olhe que é noite fechada, snr. D. Luiz.
—Jesus! e agora a dizer-me adeus!—continuava D. Luiz, dizendo adeus tambem—é mesmo aquelle anjo que eu perdi. Fujamos, fujamos d'estes sitios, que tenho medo de enlouquecer.
—E até porque é noite fechada—acrescentou o padre.—Valha-nos Deus!
Depois de longo tracto de caminho andado em silencio, D. Luiz parou, e levantando os olhos ao céo, exclamou com paixão:
—Que tremendas culpas estou eu expiando, meu Deus! Porque me roubas tudo, para tudo dares áquelle homem?! Até a filha! até a suave consolação d'aquelle amor de filha, que eu perdi, até esse elle possue! Que tremendo castigo, Senhor!
D'ahi até o termo da jornada, na quinta dos Bacellos, não tornou a pronunciar uma só palavra.
Quando lá chegaram ia a noite adiantada; e já havia desassocego pela demora dos dois.
O padre procurador estava furioso. Dizia elle completamente desconcertado:
—Uma estafa assim depois de um jantar lauto! Esta gente não tem consciencia! Deus queira que não me venha por ahi alguma apoplexia! Os filhos são doidos, o pae está pateta, e eu que os ature!
E correu á cozinha a vêr se havia alguma coisa quente que o confortasse.
O antigo solar da familia da baroneza, chamado a Casa dos Bacellos, como que ao despertar de um somno de muitos annos, abrira á luz do dia as suas amplas janellas, reacendêra o fogo nos lares apagados, e restaurára o movimento e a vida nos aposentos vazios.
Era a primeira vez, depois do seu casamento, que a baroneza voltava aos sitios onde lhe corrêra a infancia, cujas suaves memorias ainda os povoavam. Ao vêr de novo aquellas velhas paredes e aquellas arvores frondosas, ao seguir pelos extensos corredores, ao penetrar nas espaçosas salas e nos mais retirados gabinetes da casa, Gabriella, ainda que pouco propensa a melancolias, não pôde subtrahir o espirito a uma impressão de saudade.
Vestigios mal apagados d'aquelle tempo longinquo a cada passo lh'o relembravam; alli fôra o theatro dos seus brinquedos e jogos, além estava um objecto ao qual se prendia a reminiscencia de uma provação infantil, aquelle era o logar favorito de seu pae, acolá desenhava-lhe vagamente a sua recordação a imagem da mãe, que perdêra em criança, e dominada por esta influencia, Gabriella suspirava e conhecia que ainda não morrêra de todo em si o coração provinciano.
Mas uma tal disposição de espirito não podia durar muito. A baroneza era uma mulher de acção, e não se esquecia de que tinha muito em que pensar e que fazer em virtude dos acontecimentos ultimos da Casa Mourisca.
Não eram sómente as canceiras de dona de casa, que deseja accommodar convenientemente os seus hospedes, que a preoccupavam, mas tambem, e mais ainda, o desejo de restituir áquella familia a harmonia tão inesperadamente interrompida e de reconciliar o irritado fidalgo com o filho, que pelo seu nobre proceder incorrêra no desagrado do velho. Gabriella tomava devéras a peito esta pacificadora empreza; mas para isso era ainda cêdo. A paixão ensurdecia ainda muito D. Luiz, para que lhe fosse possivel escutar conselhos.
Na manhã immediata á noite da installação solemne da familia de D. Luiz na casa dos Bacellos, Gabriella foi procurar Jorge ao pavilhão no fundo da quinta, onde elle desde a vespera se alojára, longe dos olhares paternos.
A baroneza tinha sabido de frei Januario tudo o que se passára entre D. Luiz e Bertha á porta da quinta de Thomé, e desejava fallar n'isto ao primo.
Jorge recebeu-a com umas apparencias de serenidade, que não eram de todo sinceras.
—E meu pae?—foi a primeira pergunta de Jorge, depois das palavras de comprimento.
—Um pouco menos affrontado, depois que realisou uma ideia cavalheirosa e vindicou, como entendeu, a sua dignidade aristocratica.
—Pois que fez elle?
—Foi entregar pessoalmente as chaves da Casa Mourisca nas mãos do Thomé da Povoa. O frei Januario contou-me tudo. A aristocracia é assim em toda a parte. Tem a cabeça cheia de tradições da idade media e por ellas se regula. Procura sempre dar ás suas acções uma feição dramatica, e sempre que o consegue, sahe desopprimida de qualquer situação apertada.
—E Thomé aceitou-as?
—O Thomé não estava em casa. A entrevista teve logar á porta da Herdade entre o tio Luiz e Bertha, a heroina de toda esta historia, e a proposito….
—Perdão, mas… o que se passou n'essa entrevista?
—Pelo que me disse o padre, correu muito sentimental ao principio. A vista de Bertha recordou ao tio a imagem de Beatriz e commoveu-o a ponto de chorar. A rapariga parece que lhe disse algumas coisas ternas, que acabaram de o sensibilisar; abençoou-a, beijou-a e quasi se ia esquecendo do que o levára alli, mas de repente recordou-se e fez a entrega das chaves com uma gravidade igual á de Martim de Freitas, cuja vaga recordação foi o que provavelmente lhe suggeriu a ideia da scena. Tu sorris? Olha que é o que te digo. Eu conheço os achaques d'estes nobres. Os mais serios e ajuizados são perdidos por umas coisas assim. Se em uma occasião de crise tiverem um dito sentencioso, uma acção, um gesto dramatico d'estes que se tornam proverbiaes, ficam muito satisfeitos e resignam-se ás consequencias da crise. O certo é que as chaves lá ficaram.
—Thomé por certo lh'as restitue.
—Póde ser, mas é peior. Teu pae socegará, sabendo que as chaves estão nas mãos de Thomé. Então que queres? É uma puerilidade que se deve respeitar. O acto em si, olhado á luz da actualidade, não tem o minimo valor. Bem sabemos. Mas visto como o tio Luiz o vê, illuminado pelo crepusculo dos bons tempos passados, é um desforço e uma acção fidalga, capaz de o desaffrontar perante os seculos passados e futuros. Mas vamos ao que importa. Em toda esta historia figura o nome de uma mulher. Ora é sabido que nos attribuem sempre as primeiras honras no travar e complicar da acção dos differentes dramas e comedias da vida; por isso, com quanto o papel de Bertha se nos tenha apresentado até aqui como secundario, ninguem me tira da ideia de que ella é a figura principal da historia. Que te parece, Jorge?
Jorge, evidentemente enleiado pela reflexão da baroneza, respondeu:
—Bem vê que não é. A prima está já ao corrente de tudo, póde portanto julgar da parte da acção que cabe a essa rapariga.
—Estou ao corrente de tudo? Isso é que eu não sei. Mauricio tem por ella uma grande paixão, ao que parece.
—Não creio—acudiu Jorge vivamente.
—Como se explica então que, sendo elle tão teu amigo, se irritasse por uma errada interpretação dos teus actos, a ponto de estar imminente uma acção tragica, de que nem quero lembrar-me?
—Ora essa! Então não conhece o genio de Mauricio?—tornou Jorge quasi impaciente—Os primeiros movimentos são n'elle sempre impetuosos. Aquelle rapaz não se conhece. A cada instante se engana comsigo proprio. Anda persuadido ha certo tempo de que ama Bertha, e essa persuasão é tal que dá logar a scenas como essa que sabe.
—E porque dizes que não a ama?
—Porque o conheço e porque o tenho visto amar assim muitas mulheres.
—Uma serie de amores verdadeiros, é o que se conclue d'ahi; verdadeiros, mas curtos.
Jorge sorriu.
—Parece-me que não acreditas que sejam verdadeiros os que são curtos?
Tu amarias sempre, se amasses?
—Creio que sim. Ou pelo menos, quando visse acabar um amor, dizia commigo: enganei-me, não era amor ainda.
—Sympathica theoria, mas não sei se muito aceitavel. Porém quem te diz que Mauricio não se fixaria d'esta vez? E olha que não seria uma má resolução da vossa crise. O Thomé julgo que está em condições de ser um sogro salvador, assim não houvesse a prevenção do tio Luiz.
—D'essa maneira não quereria eu nunca regenerar a nossa casa—replicou
Jorge gravemente.
—Ah! tambem tens d'esses escrupulos? Pois olha, filho, é o processo hoje mais seguido.
—Bem sei, mas em um homem acho-o ignobil.
—Não havendo amor, concordo; mas quando o amor absolve a alma…
—Mais honra haveria em vencêl-o.
—Esta provincia é um terreno onde as velhas plantas duram eternamente. Não ha vento revolucionario, nem corrente de ideias novas que as derrubem.
—Mas deve confessar que são bellas e boas arvores essas!
—Algumas; outras são inuteis e damninhas, e fariam muito bem se cedessem o logar a melhor e mais productiva cultura. Agora outra pergunta: e Bertha ama a Mauricio?
Jorge córou a esta pergunta e evidentemente contrariado respondeu apenas:
—Talvez.
A baroneza ia a insistir, quando o colloquio foi interrompido pela voz do padre procurador pedindo licença para entrar.
Frei Januario entrou tossindo e assuando-se de uma maneira particular, que para quem o conhecesse era indicio claro de uma grave preoccupação de espirito.
—Então, snr. frei Januario, como se tem dado n'estas ruinas?—perguntou-lhe a baroneza com a amabilidade de dona de casa.
—Excellentemente, minha senhora. Então até direi a v. exc.ª que ha muito tempo não dei com um cozinheiro que melhor atinasse com o meu paladar.
—Sim? O Gavião merece-lhe esse conceito? Se o rapaz o sabe! É capaz de se me estragar de vaidade. Não o gabe na presença. Recommendo-lhe toda a discrição, snr. frei Januario. Olhe lá.
—Mas é que é verdade o que eu digo. Que lhe pareceu a v. exc.ª aquelles bifes hoje ao almoço? Olhe que aquelles bifes!… Não lhe digo nada! O rapaz é geitoso. Mas deixemos isso. Tracta-se de uma coisa que me dá cuidado.
—Então que é?—perguntou a baroneza, recostando-se—Não quer sentar-se, snr. frei Januario?
O padre puxou uma cadeira, sentou-se e tornou a tossir e a assuar-se.
—O snr. D. Luiz—disse elle, interrompendo-se a cada momento—emfim… eu ha tempos a esta parte ando assim a modo de doido….
—Vamos, snr. frei Januario, solte a grande novidade que nos traz debaixo do capote. Depois fará os commentarios, que entenderemos e apreciaremos melhor.
—O snr. D. Luiz chamou-me ha poucos momentos ao seu quarto para me dizer… para me ordenar….
—O quê?
—Para me confiar de novo a procuração que me retirára, e ordenar-me que participasse isto mesmo ao snr. Jorge para seu governo. Emfim….
—Cumpra-se a vontade de meu pae—disse Jorge—e Deus permitia que elle tenha motivos para se applaudir por ella.
—Eu fazia melhor conceito do bom senso do tio Luiz—observou francamente a baroneza—confesso que fazia. E o snr. frei Januario acha-se com forças de desenredar esta meiada, embaraçada como está?
—Pois ahi é que bate o ponto—acudiu o egresso.—Eu… é verdade que por mais de vinte annos dirigi estas coisas e, se mais não fiz, foi porque os tempos eram o que nós todos sabemos. Mas, depois que o snr. Jorge tomou conta disto, perdi o fio da meiada, entende v. exc.ª? Eu tinha cá o meu systema e por elle me guiava. Agora porém venho encontrar as coisas todas mudadas e… emfim, póde ser que estejam muito bem, não digo menos d'isso, mas eu é que não as entendo. Para pôr tudo outra vez no pé de d'antes, isso leva um tempo dos meus peccados; para continuar no caminho em que isto vae, era preciso ter muito trabalho e a fallar a verdade, já não estou na idade d'isso.
—E então que tenciona fazer?
—Eu sei? O fidalgo não ha quem o convença. Credo! Vão lá hoje contrarial-o na mais pequena coisa! Vae tudo pelos ares! Por isso, a mim lembrava-me….
—O que lhe lembra, snr. frei Januário?—perguntou Gabriella, fitando-o com olhar penetrante.
—Lembrava-me dizer ao fidalgo que sim senhor, que tudo se havia de fazer como elle mandava, que eu me encarregaria da direcção da casa, mas, por baixo de mão, continuar o snr. Jorge a levar as coisas lá pelo seu systema.
—E quer tomar sobre si a responsabilidade dos meus actos, snr. frei Januario? Repare bem. Já sabe a que portas costumo ir bater, quando preciso de capital, e quaes os meios que adopto. As suas crenças e opiniões devem soffrer com isso.
—E a mim que me importa?—tornou o padre impaciente—A final de contas, a casa é sua e não minha. O mal que fizer mais o ha de sentir do que eu.
—Não depõe muito a favor da sinceridade do seu affecto á minha família esse dizer. Eu queria antes vêl-o oppondo-se energicamente á administração viciosa que principiei.
O padre não tinha coragem para tomar conta da gerencia da casa sob a inspecção de Jorge, a quem tomára um mêdo excessivo; tentava porém colorir airosamente a proposta que alli viera fazer.
A baroneza interpellou-o muito terminantemente.
—A sua posição n'esta casa, snr. frei Januario, e as exigencias moraes do seu caracter e da sua missão traçam-lhe distinctamente o caminho que deve seguir. Ou entende na sua consciencia que póde fazer mais e melhor do que Jorge, e n'esse caso deve obedecer ao tio Luiz, ou tem a convicção contraria e só então é admissivel a sua proposta, mas depois de confessar com franqueza e lealdade o motivo d'ella.
O padre torceu-se, balbuciando:
—Eu não digo… isto é… quero dizer… no estado em que as coisas estão… no pé em que as puzeram…. Sim… cada qual tem lá o seu systema… e eu… sim, v. exc.ª bem sabe….
—Deixemo-nos d'isso. Claro, claro. Notou alguns defeitos na administração do primo?
—Defeitos… defeitos… não digo defeitos….
—Mereceu-lhe alguns reparos? Seja franco. Não se admittem palavras ambiguas.
—Não, minha senhora, eu não tenho reparos a fazer… quero dizer….
—Achou-a boa?
—Sim… achei… isto é….
—Parece-lhe que não é capaz de fazer melhor?
—Não tenho vaidades….
—Tem medo de estragar o bem que está feito?
—Todos podem errar… emfim….
—Temos entendido. Parece-me que Jorge, em vista d'isso, não discordará do seu parecer. Não é verdade, Jorge?
—Custa-me continuar a trabalhar clandestinamente; mas não me eximo a esforço algum para salvar a minha casa.
—Muito bem; agora o snr. frei Januario póde dizer ao tio Luiz que se cumprirão as suas ordens, e o mais que terá a fazer é assignar, sem lêr, alguns papeis que por ventura sejam necessarios, isto nos primeiros dias, porque eu confio ainda na boa razão do tio. E agora côma, beba e durma, e deixe correr o mundo, que ha de correr para bom lado.
O padre retirou-se mais desafogado, mas pouco satisfeito com os modos da baroneza, que o obrigaram a despir-se de toda a diplomacia e a confessar a sua inaptidão administrativa.
*PORTO*
TYPOGRAPHIA DO JORNAL DO PORTO
Rua Ferreira Borges, 31
1871
Emquanto frei Januario conferenciava com Jorge e com a baroneza sobre a maneira de melhor harmonisar a vontade e as ordens expressas do fidalgo com os interesses da casa e com a commodidade pessoal de sua reverendissima, D. Luiz, a quem desde a vespera uma impaciencia nervosa não deixava repousar ainda, e que não podéra conformar-se aos seus novos habitos de vida, sahiu do quarto e veio passeiar agitado e meditativo na vasta sala da entrada, de cujas paredes o contemplavam sisudos os velhos retratos da familia.
Não vergava sob uma ideia unica e exclusiva o espirito do velho fidalgo, perdia-se no redemoinhar de ideias diversas e antagonistas, que umas ás outras o disputavam. Saudades, terrores, despeitos, desalentos e até remorsos dos seus passados odios e vinganças, eram os demonios perseguidores e implacaveis, cujo voltear phantastico, rapido como o de um circulo de feiticeiras, quasi lhe alienava a razão, ferindo-a de vertigem.
D. Luiz envelhecêra ultimamente de uma maneira rapida. De encontro á sua organisação robusta, quebrára-se por muito tempo a força da corrente dos annos e amortecera a violencia dos embates da adversidade, sem que elle experimentasse a leve vacillação que preludia a queda. Porém desde o momento em que se manifestaram os primeiros signaes de fraqueza, o progresso na declinação foi rapido, e de dia para dia sentia-se desfallecer aquelle corpo vigoroso e aquelle espirito energico.
A manhã estava sombria, o céo carregado e a chuva miúda, continua, persistente, sem vento que a agitasse, e ainda mais desesperadora por isso; porque um dia de inverno sem vento é como a tristeza sem a explosão das paixões, perde-se a esperança de o vêr terminar.
A sala em que D. Luiz passeiava era a menos confortavelmente mobilada de toda a casa; o alto fogão, que occupava o espaço das duas janellas, jazia apagado, frio, e conservando apenas, como memoria da vida que já o animára, as cinzas sem calor. O aspecto de um fogão apagado é triste; tem o que quer que seja de um cadaver. A tristeza da manhã e a tristeza da sala augmentavam evidentemente com a presença d'esse fogão. Por muito tempo apenas o som dos passos do fidalgo despertava os eccos d'aquellas altas e despidas paredes e tectos elevados.
De repente porém ouviu-se rumor á porta da entrada.
D. Luiz voltou para alli instinctivamente os olhos, sentindo que alguem a abria; e estremeceu, como se de improviso fosse ferido, ao vêr surgir detraz do reposteiro a figura de Thomé da Herdade.
O pae de Bertha vinha todo molhado, e parecia chegar de longa jornada. Trazia as faces mais afogueadas do que o costume, e os olhos mais brilhantes. Em cada gesto e em cada movimento denunciava uma funda agitação, que lhe não era habitual. Ao avistar D. Luiz, não pôde reter uma exclamação, como quem déra com o objecto que anciosamente procurava.
Vencida a turbação dos primeiros instantes, o senhor da Casa Mourisca fez uma cortezia muito grave ao recem-chegado, e dispôz-se para sahir da sala.
Thomé da Povoa não lh'o permittiu.
—Não, não, tenha paciencia, snr. D. Luiz, não se retira assim. Eu vim para lhe fallar e não me vou embora sem o fazer.
D. Luiz parou e respondeu friamente:
—Os negocios da minha casa tractam-se com o meu procurador. Eu não posso…
—Deixemo-nos d'isso, fidalgo. Eu nada tenho, nem quero ter com o procurador de v. exc.ª. Não foi elle quem me offendeu; não é a elle que devo dirigir-me.
—Ah! então vem aqui pedir-me satisfações?!
—Venho, sim, senhor.
—Tem graça!—observou o fidalgo, com um sorriso cheio de aristocratico sarcasmo.
—Então v. exc.ª acha que um homem que é insultado, não tem o direito de vir perguntar á pessoa que o insultou a razão por que o fez?
—E suppõe que eu já alguma vez me occupei a insultal-o?
—Supponho, sim, senhor; e supponho mais, supponho que v. exc.ª bem sabe quando e de que maneira me insultou. Porque era preciso não ter brios para imaginar que um homem de bem não se offenderia com acções, como as de v. exc.ª para commigo.
—Ora essa! commentou D. Luiz, voltando-lhe as costas e caminhando desdenhosamente para a janella.
Thomé da Povoa, a quem este movimento augmentou a excitação de que já estava possuido, deu alguns passos mais agitados para o seu orgulhoso interlocutor.
O fidalgo, sentindo-o, voltou-se subitamente e encarou-o fixo.
—Vem aqui decidido a alguma violencia, ao que parece.
A irritação de Thomé desvaneceu-se. O olhar de D. Luiz parecia avivar-lhe memorias do tempo, em que elle se costumára a obedecer-lhe e a temêl-o quasi.
A reflexão venceu esta timidez de instincto, comtudo foi menos aggressivo do que até ahi que elle respondeu:
—Não, snr. D. Luiz; venho aqui decidido a explicar-me. É preciso que fiquemos ambos sabendo o que um e outro somos. Não posso por mais tempo soffrer calado os desprezes e as desfeitas de v. exc.ª, sem perguntar qual o motivo que dei para ellas. Palavra de honra, snr. D. Luiz, que, por mais que me mate, não posso vêr em toda a minha vida uma só acção, uma unica, que me merecesse da parte de v. exc.ª este procedimento para commigo; não posso.
—Está sonhando, Thomé? Cuida que eu não tenho mais em que pensar do que em desfeiteal-o? Que mania se lhe metteu na cabeça!
—E que foi senão uma desfeita o que v. exc.ª me fez no outro dia, indo á porta da minha casa entregar nas mãos da minha propria filha as chaves do seu palacio, que deixou só por que eu havia adiantado ao snr. Jorge um pouco de dinheiro por um contracto honesto e leal? Que foi aquillo senão uma desfeita?
—Se não comprehende os motivos que me levaram áquelle passo, não sei que lhe faça. Nas familias, como a minha, ha certas regras tradicionaes de conducta que talvez pareçam estranhas a outras, educadas em habitos differentes, no que eu não tenho culpa….
—Entendo o que quer dizer, snr. D. Luiz. Foi acção de fidalgo a sua, e, por ser tal, eu, que nasci em palhas, não posso entendêl-a bem. Mas porque é que só commigo usa v. exc.ª das taes acções? Por acaso fui eu o primeiro que emprestei dinheiro aos senhores da Casa Mourisca? Quando o padre procurador de v. exc.ª andava por ahi batendo de porta em porta a levantar dinheiro, não para o empregar em melhoramentos que, mais anno menos anno, podéssem remir a divida, mas para o desperdiçar sem tom nem som, e obtinha esses capitaes a 10, 12 e 15 por cento; quando elle lavrava hypothecas e arrendamentos vergonhosos e a gente de má fé, que faziam d'elle o que queriam, o orgulho de v. exc.ª nunca o obrigou a sahir de sua casa, que se perdia n'esse andar, e a ir pôr as chaves d'ella nas mãos d'esses usurarios, que viviam á custa das tolices e dos desperdicios do padre; e agora então todo se espinhou por que eu, honestamente e sem má tenção, antes pelo muito amor que ainda tenho a esta familia e a estes meninos que trouxe ao collo, puz á disposição de um d'elles, que é hoje um rapaz de juizo, o dinheiro de que precisava para se ir livrando da usura, que o roía até os ossos, e emendar os erros da administração do padre! Só agora é que v. exc.ª se sente ferido na sua fidalguia e sahe da casa, em que vive ha tantos annos, clamando que já não é sua. Isto é collocar-me abaixo d'esses miseraveis, a quem me pejo de apertar a mão. O contracto feito entre mim e o filho de v. exc.ª é um contracto que não envergonha nem a mim nem a elle. Póde apparecer á luz do dia, e tenha a certeza de que não ha de haver muitos, mais de cavalheiros do que elle. Não dei dinheiro sem garantias, nem também o dei com usura. Nenhum de nós aceitou favor do outro. Então qual é a razão dos escrupulos de v. exc.ª?
—Vejo que está mais informado dos negocios de minha casa, do que eu proprio. Póde ser que eu devesse ha mais tempo fazer o que fiz. A culpa é da minha ignorancia. Quando porém tão publica foi a confissão da nossa baixeza, a minha dignidade obrigava-me a proceder como procedi.
—A dignidade… a dignidade… Perdoe-me o fidalgo, mas se quer que lhe falle a verdade, eu já não sei bem o que seja dignidade, quando vejo o que por ahi se faz á conta d'ella. Dignidade acho eu que a tem tido seu filho, trabalhando como um homem de bem, para desempenhar a sua casa, e confessando diante de todos os seus actos, que não o envergonham; dignidade teve elle, quando defendeu uma pobre rapariga das calumnias de uns miseraveis, que tambem se dizem fidalgos, e que tambem fallam muito na sua dignidade.
—Creio que é melhor não discutirmos. Os nossos principios são diversos, não podemos entender-nos.
—Não ha tal. Os nossos principios, aquelles que me levam a fallar, são os mesmos, são os de qualquer homem de bem. E eu prézo-me de o ser e v. exc.ª tambem o é. Havemos de entender-nos por força. N'isto até o homem e Deus se entendem, não é muito que v. exc.ª, por mais fidalgo que seja, se entenda commigo.
—Mas que quer a final? Não terei eu a liberdade de deixar a minha casa quando entender que me convem fazêl-o? Não serei o mais competente juiz das minhas acções?
—V. exc.ª sahiu de sua casa, declarando a todos porque era que o fazia; e já ahi o meu nome e a minha pessoa andaram envolvidos. Depois foi affligir a minha pobre Bertha, que nada sabe d'estas coisas, obrigando-a a aceitar as chaves da Casa Mourisca para m'as entregar, como se eu fosse um miseravel que tivesse sequer sonhado um dia em especular com a confiança que seu filho pôz em mim! As novidades correm depressa na aldeia e não falta gente para denegrir o caracter de um homem. Depois do passo que v. exc.ª deu, o que se não terá dito? Que eu andava sugando os ultimos restos de sangue da sua familia e abusando da boa fé e da pouca experiencia do seu filho, mas que o fidalgo me desmascarou a tempo! E se se disser isto, não sentirá v. exc.ª remorsos por ter dado azo a uma calumnia? Falle-me francamente, fidalgo, aqui diante de mim e de Deus que nos ouve, em sua consciencia e sob a sua palavra de honra, que sempre honrou, falle-me franco, snr. D. Luiz; em toda a minha vida, desde os tempos em que servi a sua casa até hoje, no meio dos meus trabalhos, das minhas felicidades e dos meus revezes, pratiquei já alguma acção que obrigue v. exc.ª a desconfiar de mim? Falle-me franco, snr. D. Luiz. Hoje mesmo, agora, n'este momento em que me vê e me escuta, crê, na sua consciencia, que está na presença de um miseravel?
D. Luiz respondeu sem hesitar e em tom grave e digno:
—Não, nunca o accusei, Thomé, e creio que é um homem trabalhador e honrado.
—Então para que ha de ter sómente para mim essa má vontade? Para que me ha de desprezar como se eu fosse um vil? a mim, que o servi fielmente, emquanto o servi, que então ganhei e conservei até hoje á sua familia um amor cá de dentro, como se ella me pertencesse, que chorei a sua pobre menina, aquelle anjo que Deus lhe levou, como choraria morta uma filha minha? Para que ha de ter só para este homem, que apenas bens deseja á sua casa, esses desprezes e essas afrontas? para este homem, que tem uma filha que lhe chama padrinho? E não quer que eu me sinta? Pois julga que não ha aqui dentro um coração? Ah! fidalgo, fidalgo, creia o que lhe digo, em cada um d'esses jornaleiros que passam o dia vergados a trabalhar nas propriedades de v. exc.ª, ha um coração de carne como o dos nobres; e emquanto elles trabalham, elle não pára de bater.
—Está inventando aggravos para se dar por aggravado. Nunca tive tenção de offendêl-o. N'estes ultimos tempos azedou-se-me um tanto o genio, e confesso que não me é demasiado agradavel a convivencia dos homens. Eis o motivo por que vivo retirado.
—Snr. D. Luiz, v. exc.ª não é franco. Não ha por essa aldeia quem não saiba que os filhos de v. exc.ª, se alguma vez se atrevem a procurar a Herdade em que eu vivo, correm o risco do desagrado do pae. Não sei quem é que em minha casa os póde corromper. V. exc.ª porém acha menos perigosa para elles a companhia dos fidalgos do Cruzeiro do que a minha. O snr. Jorge fez mal em arriscar-se a entrar n'aquella casa excommungada; mais seguro andou o snr. Mauricio frequentando a dos primos, apesar de…, perdoe-me a sua fidalguia, apesar de não serem mais do que uns bebedos, uns devassos e uns calumniadores.
—Está fora de si, Thomé—observou o fidalgo, que córou ao ouvir estas affrontas a uns parentes tão proximos, mas a quem não se sentia com animo de desaggravar.—Terminemos esta desagradavel conferencia. Que quer a final de mim?
—Restituir-lhe as chaves da sua casa, que me não servem para nada—respondeu Thomé, tirando do bolso o molho de chaves, que Bertha recebêra do fidalgo.
D. Luiz com um gesto desviou de si as chaves que o fazendeiro lhe offerecia.
—É inutil insistir. A minha resolução está formada.
—Mas é uma resolução disparatada; perdoe-me dizer-lh'o, fidalgo, uma resolução sem valor algum, sem significação perante a lei, sem effeito senão o de affrontar-me.
—Eu já lhe disse que nós temos umas leis especiaes por que nos regulamos.
—Então se v. exc.ª entende que deve pôr nas mãos dos seus credores as chaves de sua casa, é preciso saber quem tem mais direito a ellas. Na lista não está só escripto o meu nome. Deite v. exc.ª pregão para saber quem deve ser o depositario d'isso, que eu por mim sou o menos habilitado.
E Thomé da Povoa arrojou sobre a mesa as chaves, com irritação crescente.
D. Luiz fitou-o por momentos com um olhar de cólera, que aquelle movimento desafiára, mas conseguiu dominar-se, e respondeu com firmeza:
—Leve comsigo as chaves, Thomé! A minha dignidade não me consente ficar com ellas. Fiz um protesto, hei de cumpril-o. Se os meus credores são muitos, seja o representante d'elles todos. Em poucos posso depositar mais confiança.
—Muito agradecido pela confiança que mostra…. Olhe, fidalgo, quer que lhe diga o que tudo isto significa? quer que lhe diga o que penso d'este maior rigor commigo? Pois ouça. Cada qual tem os seus defeitos; o meu é o da franqueza. A razão de tudo isto está no grande orgulho de v. exc.ª. É o que eu lhe digo.
—Póde ser; o orgulho é o defeito de certa classe….
—Pois não lh'o invejo, nem lh'o gabo. Orgulho entendo eu que se deve ter de certa maneira; d'essa não, que não é nobre. V. exc.ª préza muito o nome de sua familia, deve então trabalhar honestamente para o conservar illustre. Mas não receie que lhe possa fazer sombra a casa do seu antigo criado, ainda que em cada anno elle levante um sobrado e metta mais um campo dentro dos muros da quinta. O valle que nos separa é muito largo, fidalgo; e ainda quando o sol se esconde, a sombra da minha chaminé não chega nem sequer ao principio dos dominios de v. exc.ª. Deixe-me pois crescer, snr. D. Luiz, e não me leve a mal o trabalhar para ganhar para meus filhos pão, que não lhes falte para o futuro.
D. Luiz, ao ouvir estas palavras, estremeceu, como se ellas o ferissem no vivo; as faces tingiram-se-lhe de um intenso rubor, e foi tal a sua perturbação que, sem tirar os olhos do fazendeiro, não pôde articular uma palavra que lhe respondesse.
Thomé proseguiu mais exaltado:
—Deixe-me crescer e medrar, fidalgo, que as minhas plantações para terem viço, não vão roubar o succo das suas terras. Não é por isso que ellas estão maninhas, não. E se quizer offuscar-me, deixe seu filho Jorge empregar o talento, a honestidade e o amor ao trabalho que deve a Deus, em tornar a sua casa no que ella foi em outros tempos. Então sim, então terá razão o orgulho de v. exc.ª, porque ninguem será mais para louvar e admirar do que o moço que der um tal exemplo, a criança que se fez homem para trabalhar, e o fidalgo que se fez lavrador para salvar a sua casa, e que por isso não deixou de ser fidalgo, antes mais do que nunca mostrou que o era. Este orgulho entende-se; mas ha um de má casta, que se parece muito com a inveja.
A esta ultima palavra D. Luiz não conteve um movimento de violencia.
—Basta. Desde que principia a ser insolente, não devo escutal-o. Talvez tenha feito mal em ouvil-o tanto tempo. Do motivo das minhas acções só tenho a dar contas a Deus. A si, basta que lhe diga que não recebo essas chaves, nem volto para a Casa Mourisca, emquanto não estiverem saldadas as minhas contas comsigo.
—Commigo! E sempre commigo? Pois bem; teima em offender-me?… aceito as chaves, levo-as para casa. Mas faço-lhe aqui, eu tambem, um protesto, fidalgo. Juro que hei de, a seu pezar, fazer-lhe o bem que podér. Se os meus soccorros o humilham e envergonham, ha de ter a paciencia de se humilhar e envergonhar por muito tempo, porque de hoje em diante vou trabalhar como nunca na restauração da sua casa. Ah! cuida que é só desfeitear-me e eu calar-me envergonhado? Enganou-se. Enganou-se. Enganou-se. Apre! Eu também tenho vontade. Ha de vêr com quem se metteu. Ainda que o fidalgo quizesse agora dar cabo do que lhe resta, eu lhe juro que não o conseguiria. Fica por minha conta a empreza de pôr no pé em que esteve a sua casa e a sua propriedade. Ora aqui está. Agora queixe-se, insulte-me, desfeiteie-me á vontade; ande, não tenha escrupulos. A minha tenção está formada. Não quero saber se o seu orgulho se offende, ou se se não offende. Se se offender, tanto melhor, que d'elle tambem é que eu recebi offensa. Apre! Cuidam que nós não temos brio nem pundonor? É só affrontar-nos como se não fossemos capazes de sentir? Sim? Elle é isso? Pois nós veremos. Ora deixa estar que eu lhes direi como as coisas correm. Quer que eu lhe fique com as chaves, não quer? Pois não, com muito gosto. Olhe, cá as levo. Vê? Passe muito bem v. exc.ª, passe muito bem. Eu lhe prometto que ha de ter noticias minhas. Ora é boa! A paciencia esgota-se. A gente tambem tem cá uma medida de soffrer; cheia ella, acabou-se, vae tudo por ahi fóra. Adeus, fidalgo, eu lhe protesto de novo que lhe hei de fazer todo o bem que podér.
E Thomé da Povoa, inflammado n'aquelle ardente desejo de sancta e honrada vingança, sahiu da sala, resmoneando ainda:
—Estes fidalgos que cuidam que a outra gente não sente! Ora deixa que já que elle tanto se espinha com o bem que lhe faço, eu o flagellarei. Vou tomar mais a peito a casa d'elle do que a minha, e se eu não conseguir o que quero… Ora deixa estar! Apre! Que é demais!
D. Luiz ficou ainda mais triste e pensativo depois que Thomé se retirou.
A seu pezar a entrevista com o fazendeiro impressionára-o profundamente.
O honesto caracter do pae de Bertha transparecia tão claro sob a franca rudeza da sua linguagem!
A unica vingança concebida por aquelle velho, no auge de indignação contra a humilhadora aristocracia do seu nobre visinho, era mais uma prova da sua generosa indole.
Vingava-se a fazer bem! E o mais é que se vingaria, se o conseguisse fazer. O beneficio recebido das mãos d'elle seria peior castigo para D. Luiz, do que a perseguição mais cruel.
O fidalgo sentia-o no intimo da consciencia, e um pensamento, que nem as palavras ousaram formular, atravessou-lhe-o espirito como a luz rapida do relampago.
—Terá razão este homem? Será inveja isto?!… Inveja!…
Passados momentos pensava ainda:
—O que é certo é que é um homem honrado. Porque me irrito pois com o auxilio que vem d'elle?… Inveja!
E, perseguido por este grito da consciencia, D. Luiz correu a encerrar-se no seu gabinete, onde passou o resto do dia.
A violencia das impressões que deixára em Thomé da Povoa a entrevista com o fidalgo da Casa Mourisca não era para se desvanecer com o inquieto somno de uma só noite.
No dia seguinte, pela manhã, o fazendeiro acordou ainda indignado e firme na resolução que abraçára, de se vingar a seu modo. Nem o animo impaciente lhe soffria grande demora na execução.
Logo de madrugada principiou a dispôr as coisas para n'aquelle mesmo dia inaugurar a empreza. Deu contra-ordens a criados que tinham serviço talhado de vespera, foi mais expedito na visita quotidiana ás diversas repartições do casal, afagou mais distrahido a egoa fiel, que lhe cheirava os bolsos, habituaes portadores de uma lambarice matutina, deu um beijo nas crianças, sem se demorar a fazêl-as saltar nos joelhos, mandou que lhe fizessem o almoço mais cedo, depois de almoçar calado, contra o seu costume, ergueu-se da mesa, ordenou que tres criados se preparassem para sahir com elle, levando alguns instrumentos de lavoura, e a final acabou por pedir á mulher as chaves da Casa Mourisca.
Luiza, a boa, a prudente Luiza, que desde a vespera observava, sem reflexões, os signaes de desassocego de espirito que manifestava o marido, não pôde, ao ouvir a ultima ordem, reprimir um movimento de estranheza, e violentando um pouco o seu respeito conjugal, disse, olhando fixamente Thomé:
—As chaves da Casa Mourisca?! Para que queres tu as chaves da Casa
Mourisca?
—Provavelmente para abrir as portas.
—E tu vaes lá?
—Vou, e olha que já ha mais tempo lá me queria.
—E que vaes tu fazer á Casa Mourisca, Thomé?
—O que vou fazer? Vou trabalhar.
—Trabalhar?! Pois tu tomaste-a de renda?!
—Tomal-a de renda? Para quê? Então o fidalgo não me deu as chaves? Então não embirrou em que eu havia de ficar com ellas? Pois para espantalho não me servem cá em casa. As chaves são para abrir as portas, e quem as tem entra quando quer.
—Sim, mas que tens lá que fazer?
—Oh! não me falta tarefa. Aquillo não viu enxada ha bom tempo. Os canos estão entupidos, as minas por limpar, os tanques rôtos, as ruas cobertas de herva, os muros no chão, e tudo o mais por este gosto.
—E então tu é que vaes pôr isso tudo em ordem?
—Vou, sim senhora. É assim que hei de ensinar aquelle soberbo, que se julga deshonrado, só por que eu lhe fiz um serviço insignificante. Pois agora veremos como roe estes que lhe vou fazer. Olha, mulher, vês aquelle casarão negro, coroado de dentes, muitos dos quaes já lhe cahiram de velhos? Pois se eu não lhe puzer dentadura nova e lhe lavar aquelle cara, de maneira que pareça que está a rir e perca o ar carrancudo com que d'alli nos olha, não seja eu quem sou.
—Tu não estás em ti, Thomé. Vê lá no que te vaes metter. São despezas grandes, e nem tu tens direito para similhante coisa.
—Não sei de historias. O homem não quer tomar conta da casa emquanto não pagar as suas dividas; pôz-m'a ao meu cuidado e eu do que está ao meu cuidado cuido assim.
—Ih! Jesus, que homem este! Não faças as coisas no ar, Thomé.
—Qual no ar; prometti que hei de trabalhar para pôr aquella casa em cima, só para fazer uma pirraça ao fidalgo; e ainda que tenha de hypothecar todos os meus bens e de arriscar o futuro dos meus filhos, hei de fazêl-o.
—Mas, já fallaste com o snr. Jorge a esse respeito?
—Não, nem preciso.
—Pois devias fallar. É um rapaz ajuizado e que põe as coisas no seu logar.
—O que elle me vinha dizer sei eu, e por isso é que não desejo fallar-lhe, porque não quero que me tire isto da cabeça, nem quero brigar com elle. Mas os rapazes já estão á minha espera. Vamos lá. Dá cá as chaves, ouviste?
—Thomé, Thomé! Olha lá o que fazes! Eu não sei…
—Pois por isso; se não sabes, deixa-me cá. Basta-me a chave grande. Eu hoje não passo da quinta.
E pegando na chave que a mulher lhe deu a medo, o lavrador sahiu á frente dos tres criados, em direcção da Casa Mourisca.
Luiza, a cujo bom senso não agradava a resolução do marido, veio desabafar com a filha.
O que sobre tudo levava a mal a bondosa Luiza era o não haver o marido consultado Jorge. Para Luiza Jorge era um conselheiro infallivel. A sympathia que sempre lhe inspirára aquella criança, «que se não mettia com ninguem» como a boa mulher tantas vezes dizia, crescêra e misturára-se á admiração, ao respeito e á absoluta confiança, assim que o viu, adolescente, tomar aos hombros o pesado encargo da direcção e reforma da sua casa, e que ouviu os louvores em que o enthusiasmo de Thomé se desafogava, fallando d'elle. Luiza afez-se a suppôl-o um ente privilegiado, incapaz de errar, com faculdades creadas para levar ao fim qualquer empreza e realisar todas as suas tenções, por menos exequiveis que parecessem.
O dogma da infallibilidade de Jorge fôra por ella definido.
Transpirára além d'isso cá fóra o grande successo do dia do jantar na Casa Mourisca, e por ventura a versão mais seguida sahira colorida por aquellas tintas maravilhosas, com que o povo illumina as suas narrativas. O que é certo é que este facto acabou de divinisar Jorge no conceito de Luiza, e agora menos do que nunca ella estava disposta a perdoar ao marido o haver prescindido dos conselhos de um rapaz tão brioso e prudente.
Bertha escutou o arrazoado materno com ar pensativo e triste. Ouviu, sem a interromper, a longa exposição das excellentes qualidades do filho mais velho do fidalgo e os artigos de benevola accusação, acremente formulados contra Thomé por quem aliás menos do que ninguem estava disposta a condemnal-o.
De quando em quando a vista de Bertha erguia-se para o vulto escuro da Casa Mourisca, e parecia que o aspecto d'ella lhe augmentava a melancolia.
Luiza sahiu emfim da sala, chamada por as exigencias do serviço domestico.
Bertha ficou só. Reclinando a cabeça á mão e apoiada no peitoril da janella, conservou por muito tempo a immobilidade e a fixidez do olhar, que denunciava uma grande abstracção.
Em que pensaria Bertha?
Que nuvem cruzaria o seu firmamento, para assim lhe projectar sobre a fronte aquellas sombras de tristeza?
Operava-se uma revolução moral n'aquelle espirito. Bertha sahira criança da aldeia, levando entre as mais agradaveis memorias da infancia, a dos momentos passados na Casa Mourisca e a das pessoas a quem alli déra então os seus primeiros affectos.
Crescêra, e essas imagens modificaram-se pela influencia do amor na phantasia, pela influencia de solidão e dos devaneios de juventude; a de Beatriz, como que sanctificada pela morte, cercára-se de um resplendor angelico, claro e suave como os raios do luar em luminosas noites de estio; a de Jorge apparecia-lhe como a de um amigo leal e seguro, a quem se não confiam puerilidades do coração, mas de que se póde esperar auxilio e conselho nas provações da vida; a de Mauricio, porém, fôra a que a imaginação que despertava, colorira de mais seductores reflexos. O seu campeão da infancia assumira as fórmas nobres e prestigiosas dos heroes de todos os poemas de amor. Belleza propria de uma juventude varonil, coragem, generosidade, tudo quanto exalta e ennobrece a alma, a phantasia d'aquella rapariga, entregue a si, elaborando a sós sobre as memorias do passado, associára ao nome de Mauricio. Fôra isto que Bertha trouxera no coração para a sua aldeia. Era o seu romance. Tinha ella a razão bastante clara para não o tomar por outra coisa mais real do que um verdadeiro romance, e bastante poder de reflexão para não se deixar dominar por elle.
Percebendo que em Mauricio não estavam ainda extinctas tambem as memorias do passado, e que ainda os seus sentimentos presentes recebiam d'elle luz e calor, Bertha assustou-se, desconfiou de si, e mais do que nunca procurou precaver-se, fugindo á influencia de que se temia, mas cedendo a ella sem querer.
Seguiram-se porém as scenas que sabemos; e o iris que rodeava Mauricio aos olhos de Bertha, dissipou-se como um verdadeiro iris em tardes humidas de inverno.
O ideal de Bertha não era sómente bello, era generoso e impeccavel, e Mauricio não attingia tão alto. O instincto do coração denunciou a Bertha o segredo do caracter de Mauricio; não havia depravação n'elle, sómente leviandade e insconstancia; mas já era bastante para o desprestigiar. Nem leviano, nem inconstante era o Mauricio que sonhára. Pelo contrario, de dia para dia lhe apparecia mais na sua verdadeira luz o caracter de Jorge, d'esse rapaz honesto, generoso, grave, respeitado por todos. As suas qualidades moraes attrahiram emfim a attenção de Bertha, e muita vez, emquanto conversava com Thomé, absorvido em uns vastos e generosos projectos, ou quando seguia pensativo pelos irregulares caminhos dos campos, era elle, sem o suspeitar, o objecto da contemplação de Bertha, em quem só então parecia terem feito impressão a nobreza e intelligencia, que nos gestos, na physionomia e nas palavras d'aquelle adolescente se revelavam.
A scena do jantar na Casa Mourisca augmentou a intensidade d'estas nascentes impressões. Nem podia deixar de ser assim.
É natural suppôr que a imagem de Jorge, d'esse rapaz corajoso e leal, que perante uma desdenhosa companhia do fidalgo, se erguêra a reivindicar a boa fama da familia plebeia, perfidamente calumniada por um d'elles, occupasse o pensamento da que mais soffrêra da calumnia, e offuscasse a do outro, leviano e estouvado, que concorrêra para levantar o aleive.
Poderia deixar de insinuar-se em um coração aberto a sentimentos generosos, como era o de Bertha, esse rapaz de vinte annos, diante de quem os velhos se descobriam, cheios de respeito pelas suas nobres qualidades de alma e pela superioridade da sua intelligencia?
Uma outra causa influira porém, além d'estas, no espirito de Bertha e no mesmo sentido que ellas; ainda que á primeira vista se podésse julgar que diversa deveria ter sido a sua acção.
Esta causa fôra a frieza, a quasi hostilidade delicada com que Jorge a tractava. Bertha não se illudia. Via bem claro que Jorge lhe fallava sempre constrangido, e como se tivesse pressa de interromper um dialogo, que o impacientava. Ás vezes havia nas palavras que d'elle obtinha, um leve tom de ironia, que ella não sabia a que attribuisse. Este proceder de Jorge deu que pensar a Bertha. Formando um conceito elevado do são juizo e da seriedade do joven amigo de seu pae, convencia-se de que aquellas maneiras frias com que era tractada por elle, não podiam deixar de ter um fundamento. E este fundamento occulto procurava-o Bertha com ancia em si mesma, estudava profundamente o seu proprio caracter, na esperança de descobrir a solução d'este enigma que a affligia; e ao mesmo tempo estudava em Jorge o effeito dos esforços com que fazia por vencer aquella prevenção, qualquer que fosse.
Succedeu o que era natural que succedesse. Não é sem perigo que a imaginação de uma rapariga como Bertha se entrega ao estudo de um caracter de rapaz, como o de Jorge, que lucra sempre em ser estudado e conhecido. Á medida que caracteres como este melhor se observam, mais virtudes se lhes descobrem, ao inverso de outros, cujos vicios latentes vão a pouco e pouco transparecendo no decurso de uma attenta observação, e destruindo a impressão favoravel que ao principio produziram.
Bertha reconheceu um dia que não obrigára impunemente o espirito a pensar a todo o instante em Jorge.
Assustou-a a descoberta, mas o effeito já não podia evital-o. Inquieta com os novos sentimentos que lhe invadiam o coração e a levavam a estas vagas apprehensões, áquellas tristezas que tão frequentes lhe estavam sendo, não era outro o motivo da distracção com que escutára a mãe e da melancolia em que se deixou ficar á janella, depois que ella sahiu.
De repente estremeceu.
Jorge, que já não procurava occultar-se nas visitas que fazia a Thomé, e dava aos seus actos uma publicidade mais conforme com o seu caracter, acabára de entrar no pateo da Herdade, e desmontando-se, prendia o cavallo, em que viera, ao esteio da ramada.
Alguns criados que andavam por alli, occupados em diversos serviços de lavoura, descobriram-se ao vêl-o entrar. Jorge cortejou-os com affabilidade e passou a interrogal-os sobre promenores de trabalho em que elles se entretinham. Os homens davam-lhe as informações pedidas com os maiores signaes de deferencia.
Depois Jorge subiu lentamente as escadas que conduziam á sala onde estava Bertha. Ao vêl-o subir o primeiro degrau, ella tentou retirar-se; mas susteve-a uma inexplicavel hesitação, e quando Jorge abriu a porta, ainda a encontrou na sala.
O olhar de Jorge desviou-se de Bertha, como se contrariado com a sua presença.
—Vim talvez importunal-a? Perdoe. Ignorava que a acharia aqui—disse
Jorge com apparente placidez.
Bertha não estava menos constrangida, ao responder-lhe:
—Importunar-me? De maneira alguma…. Eu é que sinto que meu pae não esteja em casa, que é de certo quem o snr. Jorge procurava.
—Ah! seu pae não está em casa?
—Não; sahiu agora mesmo.
Bertha não ousou dizer para onde.
O nome da Casa Mourisca recordaria a scena do jantar, e Bertha tremia de recordal-a diante de Jorge.
Este caminhou para a janella, distrahidamente. E passeiando a vista por os campos, perguntou, sem ainda olhar para Bertha:
—Não sabe se o pae tardará muito?
—Eu… julgo que sim… Mas talvez minha mãe o possa informar melhor.
A proposito chegava Luiza para dar as informações precisas e para fazer cessar o constrangimento d'aquelle dialogo, cuja prolongação seria um martyrio para ambos.
—Ah! snr. Jorge, snr. Jorge—exclamou Luiza logo que o viu—ainda bem que veio, e pena é que não viesse meia hora mais cedo.
—Então era cá tão necessaria a minha presença?
—Ora se era! Eu ponho as mãos n'umas horas se estando cá o snr. Jorge, se mettia aquella scisma na cabeça do meu Thomé.
—Que scisma é essa de que falla?
—Pois então não sabe para o que havia de dar áquelle homem de Christo?
—Não sei, não.
—Ó Bertha, então tu não disseste ao snr. Jorge para onde teu pae foi?
—Eu… eu ignorava…
—Ora adeus! Se eu não tenho fallado de outra coisa, desde que elle sahiu! Ignorava! Vocês sempre teem coisas! Pois o meu Thomé está a estas horas na Casa Mourisca.
—A fazer o quê?
—Isso só elle sabe e Deus. Mal almoçou foi para lá com tres criados. Diz elle que já que o fidalgo teima em lhe pôr as chaves em casa e que todo se espinhou por elle lhe querer ser prestavel, vae fazer o bem que podér a sua familia, e melhorar a quinta e a Casa Mourisca, e que ainda que tenha de empenhar os seus teres e os dos filhos, se ha de vingar do fidalgo, fazendo-lhe todo o bem que estiver na sua mão. E tirem-lhe lá isso da cabeça!
—É uma alma generosa a de Thomé, mas eu o dissuadirei d'essa vingança, que viria transtornar os meus planos e tirar-me a gloria, a que aspiro, de trabalhar por minhas proprias mãos n'essa obra de restauração.
—Eu não o disse? «Thomé tu não faças nada sem fallares com o snr. Jorge.» Mas qual! Bem lhe importava elle com o que eu prégava! É um bom-serás o meu Thomé. Em vinte annos de casada, nunca me deu um desgosto. Póde haver maridos tão bons como elle, melhores não posso crêr que haja. Devo dizer o que é verdade. Mas, lá de quando em quando, em se lhe mettendo umas scismas na cabeça! adeus, minhas encommendas! já se lhe não dá volta. Só o snr. Jorge. Elle lá ao snr. Jorge ainda cede. E o que elle lhe não fizer escusam ahi de vir os poderes do mundo, que nada fazem. Lá o snr. Jorge! credo! Isso basta ouvil-o fallar em si. Ora, não é agora por estar presente, mas razão tem elle para fazer o que faz.
—Obrigado, snr.ª Luiza.
—Obrigado por quê? Ó filho, não, a minha bôca não é para gabar quem não o merece. Mas, diga-me cá, que rapaz ha ahi que faça o que o menino faz? Que na sua idade, em que emfim todos sabemos que o que se quer é brincar, olha como um homem por a sua casa, como nem muitos velhos sabem. E depois, ó snr. Jorge, sempre lhe digo que ainda ha bem poucos dias estes olhos choraram bastantes lagrimas por sua causa.
—Por minha causa?! Pois eu fil-a chorar, snr.ª Luiza?
—Oh! não foi por mal que me fizesse, foi porque emfim … ha certas acções, que bolem cá dentro com uma pessoa e… quando me contaram o que se passou em sua casa, com aquelles vadios de seus primos, e em que o menino…
—Oh! não fallemos n'isso, snr.ª Luiza, que não vale a pena.
—Se não vale!… Olhe que não fui eu só que chorei. E Bertha?
—Ah! sinto devéras ter sido motivo de um desgosto para Bertha—disse
Jorge no tom de que habitualmente usava fallando d'ella.
Bertha não pôde responder.
—Desgosto?—acudiu Luiza—Ora essa! Antes ella deve agradecer-lhe; e querem vêr que ainda o não fizeste, Bertha?
A confusão de Bertha augmentou com esta arguição da mãe.
Jorge atalhou:
—Eu é que me esqueci de pedir a Bertha perdão por haver dado ensejo, com os meus actos, a que o seu nome andasse por bôcas de pessoas a todos os respeitos indignas de pronuncial-o. Coisas minhas; ando tão alheio ao tracto do mundo, que a cada passo caio n'estas imprudencias, e sacrifico os outros, sem o querer. Bertha tem razão para estranhar este caracter bravio; mas espero que me perdoará.
Bertha ia a responder, mas era tal a sua commoção, augmentada pelo modo por que Jorge dissera estas palavras, que sentiu não lhe ser possivel formular uma resposta; os olhos inundaram-se-lhe de lagrimas e o rosto trahiu-a.
Levantando-se agitada, sahiu da sala em silencio, como se precisasse de estar só para desafogar em lagrimas a oppressão que a angustiava.
Luiza viu-a sahir e ficou admirada. Olhou para Jorge com estranheza, olhou para a porta, como se não soubesse explicar a scena a que assistira.
—Estas raparigas teem uns modos! Já viram uma coisa assim?!—murmurou ella, passada a primeira surpreza.—Queira perdoar, snr. Jorge.
Igualmente enleiado, Jorge procurou mudar o sentido da conversa, fallando outra vez de Thomé, em procura do qual sahiu poucos minutos depois.
Assim que o viu deixar a sala, Luiza ficou pensativa por algum tempo e no fim disse em voz alta, como era costume seu:
—Deixal-os. Se assim fosse, tanto melhor. Coisas mais incríveis se teem visto. Seja o que Deus quizer!
Ao passar no patamar das escadas que davam para o quinteiro, Jorge encontrou alli Bertha, que parecia esperal-o. Cortejando-a, procurou nos olhos d'ella o vestigio de lagrimas.
—Snr. Jorge—disse-lhe Bertha, com voz triste e levemente tremula—perdoe-me a minha perturbação de ha pouco. Fui obrigada a sahir da sala sem lhe dizer nem uma simples palavra de agradecimento por o muito que lhe devia; mas creia que não é porque o desconheça.
—O que me deve! Então quer que lhe repita o que já lá dentro lhe disse?
Eu sou que tenho a pedir perdão.
—Basta, snr. Jorge—atalhou Bertha, tentando sorrir, mas raiando-lhe o sorriso por entre mal contidas lagrimas, como o sol no meio da chuva do inverno.—Hoje não… mas… em outro dia… ha de dizer-me por que não é meu amigo.
Jorge estremeceu, e olhando para ella repetiu:
—Por que não sou seu amigo?! Que quer dizer, Bertha?
—Oh! creia que ha signaes, que não enganam. Seja o que fôr, mas no seu pensamento ha alguma coisa contra mim, snr. Jorge. É pouco dissimulado, bem vê, não o póde disfarçar.
—Bertha! mas que criancice! Pois que ha de haver contra si no meu pensamento?
—Não sei. Um dia m'o dirá; não é verdade? É muito leal e muito generoso para não m'o dizer. Bem vê que preciso sabêl-o para me emendar; porque… eu desejava que fosse meu amigo, snr. Jorge. Todos o respeitam, todos fallam na sua generosidade; espero que não a desmentirá commigo.
—Porém…—ia Jorge a objectar, quando Bertha o interrompeu, dizendo:
—Agora não, agora não. Lembre-se só de que eu fico acreditando que será sincero commigo, no dia em que eu o interrogar, e que de certo não se recusará então a fallar-me com franqueza. Adeus, snr. Jorge. Creia que desejava devéras que fosse tão meu amigo, como é de meu pae.
E retirou-se depois de pronunciar estas palavras.
Jorge desceu vagarosamente as escadas, montou distrahido o cavallo que o aguardava no quinteiro e deixou-lhe a redea livre, de maneira que o animal seguiu a passo o caminho da casa, que por tanto tempo lhe déra abrigo, o caminho da Casa Mourisca.
Desapercebidamente ia passando Jorge por todos os logares intermedios. As palavras de Bertha, animadas por aquella sentida commoção, que a dominava ao fallar-lhe, estavam-lhe ainda nos ouvidos, e nos olhos a imagem da gentil rapariga, em quem uma grave expressão de dôr mais realçava a belleza.
—E se voltar a interrogar-me—pensava Jorge—que posso eu dizer-lhe? que devo confessar-lhe? Nada. Pois que tenho eu contra ella? Pobre rapariga! Mas é certo que me parece que tenho sido um tanto rude, um tanto desabrido… E porquê?
Jorge parecia n'este momento estar sondando o fundo do seu proprio coração, para investigar a verdade. De repente fez um movimento com a cabeça, como tentando regeitar uma ideia pertinaz.
—Mas isto não póde ser, Senhor. Isto é uma loucura que não tem razão de existir. Pois não hei de ter força de a abafar á nascença? Acaso o sangue de minha idade tambem me ha de fazer doidejar como aos outros? Eu felizmente não possuo o temperamento de Mauricio e hei de vencer na lucta, hei de. Mas em todo o caso é uma puerilidade a maneira por que estou procedendo com Bertha. Porque é certo que o modo por que a tracto não é natural. É medo de me trahir? Mais me traio ainda por esta fórma. É despeito por as attenções que a vejo dar a outro?… a meu irmão?! Mas é uma vileza da minha parte… A meu irmão!… É verdade que se elle a amasse devéras… mas eu que o conheço… É uma loucura a final, é o que é. E fiem-se no juizo de um rapaz de vinte annos?! Ahi estou eu tão doido como qualquer d'esses estouvados. E o mais é que a mim é que se não perdoaria a loucura. A loucura em um rapaz de juizo é um delicto imperdoavel. Se soubessem por ahi… se descobrissem… «E quem havia de dizer! Ora vejam, um rapaz que parecia tão ajuizado!» É como elles principiam logo. Ai, tem pesadas responsabilidades o que na minha idade mereceu que lhe chamassem «um rapaz de juizo.» É preciso a cada momento suffocar a revolta do temperamento e da idade, luctar incessantemente com a imaginação… E hei de luctar! É forçoso que não deixe sahir cá de dentro os meus desvarios de rapaz. Doideje o coração á sua vontade, comtanto que só eu o saiba… Mas a meta é commigo e não com ella… Bertha tem razão em perguntar-me o motivo da minha hostilidade. A minha hostilidade! Ah que se ella tivesse um olhar mais penetrante… D'isso é que me receio… Não ha que vêr, hei de preoccupar tanto, tanto, tanto a minha cabeça com algarismos e negocios, que hei de por força perder a consciencia dos affectos, e é assim que hei de matal-os.
N'este momento vencia Jorge o declive que levava á porta principal da Casa Mourisca. O caminho desaffrontado n'aquella altura de arvores e de sebes altas subia á vista do casal de Thomé e permittia descobrir na encosta fronteira as veredas que para lá conduziam.
Jorge desviou naturalmente a vista para aquelle sitio.
Na varanda de entrada divisava-se ainda o vulto de Bertha, na mesma posição em que a deixára.
Alvoroçou-se o coração do rapaz com isso; ao mesmo tempo porém ia subindo na direcção da Herdade, um cavalleiro que elle reconheceu ser Mauricio.
Esta nova descoberta desagradou-lhe manifestamente. Purpurearam-se-lhe as faces por momentos, e a fronte contrahiu-se-lhe com uma expressão de desgosto. Pela primeira vez fustigou o cavallo, que até alli deixára entregue ao capricho.
Mauricio, que tambem da outra margem avistára o irmão, fez-lhe um acêno com a mão, ao qual Jorge respondeu apontando-lhe para a Casa Mourisca, como a designar-lhe o destino do seu passeio. Mauricio replicou-lhe com um movimento de braço, exprimindo que o seu giro era mais extenso e para o outro lado. E na direcção que seguia era inevitavel a passagem por casa de Thomé da Povoa.
—Por isso ella se demorou na varanda—murmurou Jorge com amargura—e proseguiu olhando para Mauricio:
—Aquelle póde ser louco á sua vontade; ninguem lh'o estranhará, ninguém lhe fará d'isso um crime. E a final talvez que de nós dois não seja elle o mais louco. A loucura é inseparavel do homem; umas vezes toma-lhe a cabeça e deixa-lhe em paz o coração, que nunca se empenha nos desvarios a que ella é arrastada; é o caso de Mauricio; outras vezes ha na cabeça a frieza da razão e ao coração desce a loucura para o perturbar com affectos; quer-me parecer que é o que succede commigo.
O cavallo parou espontaneamente á porta da Casa Mourisca e arrancou
Jorge á corrente de vagas cogitações em que lhe fluctuava o espirito.
—Vamos, Jorge—dizia elle a si mesmo, ao desmontar—já agora é necessario ser rapaz de juizo até ao fim. Tu não tens direito de condescender com a tua mocidade, homem. Ninguém te relevaria os ardores da juventude, porque todos te suppõem o sangue de gêlo.
E serenando outra vez a physionomia, até alli um pouco alterada sob a influencia de encontrados pensamentos, entrou para a quinta em procura de Thomé, que o precedêra ahi. Quando, depois de algumas pesquizas, Jorge, guiado por o som de vozes e por um ruido de sachos e de enxadas, conseguiu avistar o fazendeiro, não pôde reter um sorriso de estranheza e de sympathia, que o espectaculo que via lhe provocava.
E tão grato effeito parecia produzir-lhe esse espectaculo, que, sem ter querido interrompêl-o com a sua presença, continuou por algum tempo, observando-o.
Effectivamente para quem soubesse a verdadeira significação dos actos em que Thomé estava empenhado n'aquelle momento, não seria para estranhar o sorriso de Jorge, nem a sua expressão duplice de sympathia e de espanto.
Thomé não havia meditado no plano para a vingança que jurára contra o fidalgo. Anciava por principiar a pôl-a em pratica, e encetou-a sem methodo nem systema. Intimou os criados para que o acompanhassem, sem que tivesse ainda pensado no que lhes mandaria fazer.
Chegados que foram á quinta, fixou-se na primeira avenida á entrada e ahi principiou a azafama, arrancando as hervas inuteis, decepando os ramos mortos, varrendo as folhas cahidas, amparando os arbustos derrubados sobre o caminho, desassombrando as plantas affrontadas e á mingua de sol, enxugando e nivellando os passeios alagados, e desobstruindo os encanamentos de rega. A rua ficou que era um primor.
No momento em que Jorge o avistou, limpavam os criados o limo depositado em um tanque, emquanto Thomé, suando, tentava erguer sobre o pedestal a estatua de pedra de não sei que divindade pagã, que havia muitos annos repoisava em leito de malvas e ortigas, coberta de lichens esverdeados.
—É dia de festa por cá, á balburdia que estou vendo!—disse Jorge, adiantando-se emfim, e apparecendo aos olhos do fazendeiro, que se voltou precipitado ao ouvir-lhe a voz.—Quem visse dizia que passa por aqui procissão, em que nós somos mordomos.
Thomé, readquirindo a sua presença de espirito, respondeu:
—Procissão não digo, mas festa em que eu sou mordomo, ha de haver aqui, se Deus me der saude.
—Bem, visto que o Thomé é o juiz da festa, póde dispôr do seu tempo sem pedir licença a ninguem. Por isso ha de conceder-me um momento de conversa.
—Não, não, snr. Jorge, tenha paciencia; mas eu tenho grande empenho em dar andamento a isto.
—E eu absoluta necessidade de fallar-lhe.
—Ora valha-me Deus! E eu então que estou quasi a adivinhar o que me vae dizer!
—Talvez que não.
—O que lhe affirmo é que se me quer tirar da cabeça isto que se me metteu cá dentro, é tempo perdido.
—Não faça conjecturas anticipadas, Thomé. E sente-se primeiro.
—Pois vá lá. Vocês sigam por ahi adiante—disse o lavrador, voltando-se para os criados—e além n'aquella nora….
—Póde mandal-os embora, Thomé—atalhou Jorge.
—Embora? Adeus! É o que eu digo! Olhe que se é com o fim de me dissuadir que…
—Mande-os embora, que está a cahir meio-dia e pouco serviço podem fazer até lá. De tarde ou ámanhã continuarão, se o Thomé achar conveniente.
—Não, não, hei de achar. Emfim vão lá á sua vida, mas em sendo duas horas…
—Ora adeus; deixe as ordens para lh'as dar em casa, que tem tempo—atalhou pela segunda vez Jorge.
—Pois tenho, tenho, mas emfim… Ide lá com Deus.
E ficando só com o joven fidalgo, Thomé da Povoa cruzou os braços, e interrogou em tom de amigavel enfado:
—Aqui me tem. Então o que é que me quer?
Jorge enfiou o braço no d'elle e encaminhando-o para o tanque de pedra, limpo e esfregado de pouco pelos criados da Herdade, disse-lhe:
—Vamos sentar-nos alli, que o que eu tenho a dizer-lhe é serio e precisa de ser tractado com socego e descanço.
E sentando-se ambos na borda do tanque, voltados na direcção da Casa Mourisca, cuja fachada se descobria por entre uma das arvores, Jorge proseguiu:
—Agora que estamos sós, Thomé, vae dizer-me o que significa toda esta brincadeira.
Á palavra «brincadeira», o fazendeiro deu um salto.
—Eu não o disse?! Elle ahi vem com as suas reflexões! Por essa esperava eu. Mas não tem duvida, eu estou prompto para explicar-lhe a brincadeira. Se o snr. Jorge visse, como eu vi, olharem as minhas acções como insultos, não serviços, que bem sei que não os fiz, mas pelo menos bons desejos, como são os que tenho de lhe ser util e aos seus, tambem não havia de soffrer com tanta paciencia a injustiça, que não procurasse tirar desforra.
E Thomé, levantando-se, pôz-se a passeiar agitado.
—Mas venha cá, Thomé, quem lhe diz que não tem razão em se offender e até em se vingar nobremente, como emprehendeu fazêl-o?
—Sim, mas então não chame brincadeira ao que faço—tornou o fazendeiro amuado.
—Chamo, por vêr que não realisa a sua vingança por essa fórma. O Thomé, se pensar a sangue frio, ha de ser o primeiro a concordar commigo. Ora diga, pois acha que a obra mais difficil de levar a effeito em nossa casa é a limpeza d'estas ruas e d'estes tanques? Acha que vale a pena principiar por aqui a exercer a sua actividade? Se um dia entrando em bom caminho a administração dos nossos bens, nos restituir, como espero, o pleno gozo d'elles, livre das demandas, dos onus e da usura que os definham, não lhe parece que os nossos criados farão em dois ou tres dias obra correspondente ao valor da sua vingança?
—Lá iremos. Da quinta subirei os degraus e entrarei em casa, que remoçarei do portal até aos telhados.
—E que é tudo isso para o muito que ainda haveria por fazer, e onde os seus auxilios poderiam ser-nos mais vantajosos? Não vale muito mais tudo o que já tem feito? O Thomé bem sabe que o nosso grande mal não está n'aquellas pedras cahidas, isso é apenas o symptoma da doença, que é preciso combater primeiro.
—Pois sim, mas…—titubeou o lavrador já abalado.
—Sabe o que consegue com isso, Thomé? consegue uma vingança apparente, que falla mais aos olhos, isso é verdade; mas não a vingança real, generosa e nobre, representada pelo seu empenho em auxiliar-me devéras na obra que emprehendi. Consegue contrastar as minhas ambições; sou eu quem mais soffro da sua vingança. Esta casa, como sabe, é apenas uma pequena parte da nossa propriedade, mas é a que, por assim dizer, a representa. O povo, emquanto não vir renovar aquellas ameias cahidas, aclarar aquellas paredes negras, restaurar aquella capella abandonada, nunca se persuadirá de que a nossa casa conseguiu escapar do naufragio em que esteve para perder-se. Quando eu tivesse assentado em bases solidas esta propriedade que encontrei vacillante, quando podésse desafogadamente chamar meu ao mesmo que meus avós chamaram d'elles, havia então de renovar esta velha habitação, que só então teria o direito de sorrir defronte da sua Herdade, Thomé, e d'essas alegres casas que ahi se estendem por a collina abaixo. N'esse dia ficaria o povo sabendo que eu tinha cumprido um dever e havia de respeitar-me por força. Mas o Thomé quer privar-me d'essa gloria. Vae fazer sorrir esse fiel confidente dos nossos infortunios, quando ainda o sorriso é uma mentira e uma ironia aos seus proprietarios. Depois, embora eu lucte e obre prodigios, e consiga vencer, o povo dirá: Os fidalgos da Casa Mourisca estão hoje melhor do que já estiveram. Houve um homem, o dono do casal alli defronte, que teve compaixão d'elles e lhes restaurou por esmola a casa que cahia em ruinas. Não fallarão nos seus outros valiosos serviços, que não os conhecem, nem apreciam; não fallarão d'aquelles de que me não envergonho, antes me orgulho de confessar. Fallarão apenas do unico que me humilha, do unico que tem effectivamente um caracter de esmola, do menos importante de todos, do que se realisaria com o rendimento da nossa menor tapada, depois de remidos. Agora veja lá, Thomé; se o seu intento é realmente o de humilhar-me, prosiga na sua obra, que eu prometto não a embaraçar com os meios legaes que não desconhece; mas se a sua vingança é, como supponho, mais nobre, rnais digna de si, se ousa a fazer-nos bem, apesar do orgulho que lh'o rejeita, sem se lhe importar que um bem seja apparente para que os outros nos vejam humilhados, então deixo ao seu juizo resolver se este é o melhor caminho que tem a seguir.
Thomé da Povoa ouviu tudo isto com os olhos no chão, apertando o labio inferior entre o polex e o index e balanceando lentamente com o corpo.
Depois que Jorge acabou de fallar, permaneceu assim ainda por algum tempo, e acabou por dizer:
—Bem; visto isso desisto. Engulirei os meus protestos, conforme podér. Não digo que não tem razão, acho até que a tem. Quando me resolvi a isto, pensava só no fidalgo, não pensava no snr. Jorge… Agora vejo que fui muito apressado. Muito bem, farei por me resignar. Lá me custa, mas…
—Não lhe peço que desista da sua vingança. Quero tambem que um dia a verdade obrigue meu pae a reconhecer que a nobreza não está só nos pergaminhos e que a alliança com um homem honrado honra sempre quem a contrahe.
Thomé já tinha lagrimas nos olhos, ao apertar a mão a Jorge.
—Peco-lhe até que continue o seu auxilio, sem o qual eu nada faria, e até vou indicar-lhe um genero de serviços, que espero dever-lhe.
—Falle, falle, snr. Jorge, o que o senhor de mim não conseguir, ninguem consegue.
—Ha muito que eu desejo ir ao Porto. A especie de exilio, a que meu pae me condemnou, facilita-me agora essa empreza. Queria conversar directamente com os nossos advogados na demanda do Casal do Reguengo. Parece-me que ha circumstancias de valor que no processo não se tem feito sentir devidamente. Depois aquelle documento que lhe mostrei não me sahe da ideia. Emfim, póde ser uma illusão minha, mas tenho com tanto afinco estudado a questão, que me parece que vejo claro n'ella. E como sabe, Thomé, se ella se nos resolvesse favoravelmente era meia victoria ganha.
—Isso era.
—Portanto quando o Thomé podér dispôr de si, desejava que me acompanhasse á cidade, para me apresentar aos juizes e letrados, que conhece. Depois, tenho ainda outro fim em vista; desenredadas estas teias que me embaraçam, preciso de um grande capital para encorporar á terra, para tirar d'ella os recursos, que d'outra maneira não póde dar. A sua generosidade e os seus sacrificios não podem ir tão longe; graças a elles, já a usura me deixa respirar mais livremente; e já a equidade substituiu o dolo de muitos dos contractos de nossa casa. Mais tarde a escala do emprestimo tem de subir forçosamente para realisar em grande os aperfeiçoamentos agricolas que em pequeno vou ensaiando. O capital particular não me bastará para esse intento. Lembrei-me da nova companhia de Credito Predial, que se installou agora no paiz. Preciso pois informar-me dos negocios attinentes a estas operações e da regularidade de alguns titulos que possuimos. Póde auxiliar-me no que lhe peço?
—Amanhã partiremos, se quizer.
—Pois seja amanhã. E não acha que encaminho melhor a sua vingança por este lado, Thomé?
—Acho que quem tem o juizo do snr. Jorge póde muito bem passar sem o auxilio de pessoa alguma. Mas emfim cá estou ás ordens.
Passada meia hora, entrou Thomé em casa e participou á mulher que ia no dia seguinte ao Porto, na companhia de Jorge, e que talvez ahi se demorassem alguns dias.
Luiza ficou comprehendendo que os projectos de restauração da Casa Mourisca haviam sido pelo menos adiados, e com isto cresceu n'ella a admiração pelo caracter de Jorge.
Mas Luiza tinha durante aquella manhã recebido impressões, que não se atrevia a revelar totalmente ao marido, mas que a não deixavam estar socegada, emquanto não transpirassem em vagas insinuações.
Estavam á janella os dois esposos, conversando placidamente de Jorge e de D. Luiz, e da proxima jornada á cidade, quando Luiza, depois de uma pausa na conversa, disse ex-abrupto para o marido:
—Ó Thomé, e que dirias tu, se um dia a tua filha morasse n'aquella casa?
E, ao dizer isto, designava com a cabeça a Casa Mourisca.
Thomé olhou para a mulher, como se aquellas palavras lhe fizessem duvidar da firmeza do juizo d'ella.
—Que queres tu dizer com isso?
—Ora! isto de rapazes e raparigas… quando se vêem a miudo…
Thomé córou, exclamando com mau modo:
—Tu estás doida, Luiza?
—Ora adeus! Quem sabe lá?
—Ó mulher, não queiras que eu perca a confiança que sempre tive no teu bom juizo.
—Eu não digo… mas emfim…
—Ora adeus, adeus!—atalhou Thomé, quasi agastado—ha certas coisas que nem a brincar se dizem.
—Pois que mal havia?…
—Mau! Ó Luiza, peço-te por favor que te não ponhas com essas graças.
Ora para o que te havia de dar!
—Então, porquê?…
—Ora, porque não. Ha certas lembranças que até me envergonho de pensar n'ellas.
Luiza, em vista da repugnancia do marido, não ousou insistir. Mas a pobre mulher, com as ambições de mãe, já não podia deixar de olhar a Casa Mourisca e imaginar o effeito que produziria a sua Bertha em uma das balaustradas ou das ogivas d'aquelle antigo edificio.
Jorge apenas a Gabriella deu parte do seu projecto de jornada.
No dia seguinte partiu effectivamente para o Porto na companhia de Thomé da Povoa.
D. Luiz, ainda firme no proposito de não querer vêr o filho, nem ouvir fallar d'elle, nada soube d'esta excursão.
Mauricio estranhou a ausencia do irmão; mas, desde que a baroneza lh'a explicou, dizendo-lhe a verdade, não pensou mais em tal.
O padre, quando soube que Jorge tinha ido ao Porto, cidade que, no conceito do egresso, era um fóco de corrupção, e onde mais risco havia para a juventude de infeccionar-se com a peste da maçonaria e outros males correlativos, abanou tres vezes a cabeça, em signal de mau prognostico; mas não ousou fallar das suas apprehensões ao fidalgo, porque andava desconfiado, havia algum tempo, com os humores em que o via.
De facto D. Luiz, depois de algumas das sevéras palavras que ouvira a Thomé da Povoa, não podia vencer um tal ou qual resentimento contra o padre, cuja imprevidente gerencia tinha talvez concorrido para o estado precario da sua casa e as humilhações que soffria.
Apenas attenuava este resentimento a ideia fatalista de que a decadencia das casas nobres era inevitavel, e que baldado era tentar reagir.
Para elle o padre não podia ser mais que o instrumento cego da sua desgraça irrevogavelmente decretada.
Toda a energia moral de D. Luiz exercia-se pois em encarar com rosto firme a adversidade, e cahir sem perder na quéda a fidalga compostura do porte.
D'estas successivas impressões que recebêra nos ultimos tempos resultava para o animo, já de indole irritavel de D. Luiz, uma impaciencia, uma quasi permanente exaltação nervosa, que augmentava á medida que se lhe depauperavam as forças e o vigor corporeo. Quem melhor sabia agora lidar com elle era a baroneza. O instincto feminino é o mais proprio para descobrir o lado accessivel d'estes caracteres azedados e para movêl-os sem os magoar.
Frei Januario, que percebia isto, afastava-se cada vez mais do quarto do fidalgo e cada vez mais se aproximava da dispensa e da cozinha.
Em casa de Thomé proseguiam os trabalhos agricolas sob a activa vigilancia de Luiza, que, na ausencia do marido, tomava a seu cargo aquella provincia do governo domestico.
Bertha olhava então pelos irmãos e pelo arranjo da casa.
Havia porém alguns dias que uma ideia fixa não deixava tranquillo o espirito de Bertha.
Quando, ao cahir da tarde, os ultimos raios do sol parecia encandecerem as vidraças da Casa Mourisca, e á sua luz se tingiam de um leve doirado as frondes dos carvalhos seculares da quinta, ainda não despidos pelo outomno, apoderava-se de Bertha uma saudade intima, profunda, que lhe desafiava as lagrimas. Toda a infancia era evocada então. Resurgiam-lhe as recordações dos jogos, dos risos, das alegrias que havia gozado n'aquelles sitios onde os olhares se lhe fixavam com insistencia, e a pouco e pouco cresceu n'ella um natural e vehemente desejo de visital-os, de tornar a vêr de perto aquellas arvores, fontes e salas, cada uma das quaes lhe guardava uma memoria do passado.
As chaves d'esse como relicario das suas mais gratas recordações, tinha-as ao alcance da mão; a distancia não era grande, as tardes corriam amenas e no campo ninguem estranharia a uma rapariga um passeio d'aquelles.
A ideia ganhou vulto e Bertha resolveu realisal-a.
Tomou a chave que abria uma das pequenas portas da quinta, e uma tarde sahiu e dirigiu-se lentamente à Casa Mourisca. Em pouco tempo chegou á ponte que reunia as duas margens do ribeiro do valle. Ao transpol-a, porém, reteve-a um vago rumor que soava nos ares. Eram as surdas detonações de uma trovoada longinqua.
Bertha olhou em roda um tanto inquieta.
O colorido do céo e o dos campos era bello, mas pouco tranquillisador.
O firmamento estava esplendidamente pintado, não com o azul uniforme dos dias serenos, mas com as variadas tintas que recebia da influencia electrica de uma tempestade imminente. Grandes nuvens isoladas illuminavam-se, ao sol poente, de reflexos doirados. O campo, em que ellas se desenhavam, ostentava todas as gradações do azul, desde o anil carregado até um quasi verde esvaecido que interrompiam leves e longos stractus tingidos de roixo e violeta. Ao nascente, no seio de um denso cumulo de vapores amarellados, desenhava-se vagamente o magestoso iris. O verde das arvores e dos prados recebia d'esta luz uma cambiante mais viva. Principiava a soprar a viração quente e rasteira, que levantava em redemoinhos as folhas cahidas no chão.
Tudo annunciava uma tempestade proxima.
Bertha não ousou ir mais adiante.
A visinhança da noite e da tempestade obrigou-a a retroceder.
N'este momento porém entrava na ponte um cavalleiro, que assim que avistou a filha do Thomé, desmontou com ligeireza e dirigiu-se para ella a pé.
Era Mauricio.
Bem desejaria Bertha evital-o, mas já não o podia fazer sem uma affectação mais indiscreta do que a propria entrevista.
Em poucos momentos Mauricio estava a seu lado.
—Até que finalmente a encontro, Bertha. Quasi me tinha chegado a convencer de que uma fatalidade ou um proposito nos separava. Ha tanto tempo que não conseguia vêl-a!
—E procurava-me, snr. Maurício?
—Todos os dias o tenho feito.
—O mais natural era procurar-me em casa; ahi é que passo a maior parte do meu tempo, auxiliando minha mãe, que bem precisa de quem a ajude.
—Em casa? E seria eu bem recebido lá?
—Já alguma vez meu pae deixaria de receber, como merecem ser recebidos, os filhos do snr. D. Luiz?
—Como merecem—ahi é que está a dificuldade. E se a consciencia me dissesse que eu não merecia esse bom acolhimento?
—Muito grandes deviam ser as suas culpas, para que meu pae se esquecesse da amizade que lhes deve, a si e aos seus, snr. Mauricio. Creio bem que a consciencia não lhe diz isso.
—Não, Bertha. Eu julgo-me com imparcialidade. Sei o que ha de reprehensivel no meu proceder inconsiderado; ainda que nada me peza na consciencia, emquanto ás minhas intenções.
—É o essencial.
—Não é para os outros. Por os actos me julgam e esses ás vezes condemnam-me.
—Nem todos os seus actos hão de ser maus. Os bons desfarão os effeitos dos outros—tornou-lhe Bertha, sorrindo.
—Succederá isso comsigo, Bertha? Não estarei ainda condemnado no seu conceito?
—Se principio por ignorar as culpas de que é accusado!
Maurício calou-se por algum tempo, como concentrando alentos para mais difficil resolução, e rompeu depois com maior vivacidade:
—Pois bem; escute-me e julgue depois; condemne ou absolva, conforme a consciencia lh'o dictar. Não lhe vou fazer uma geral confissão da minha vida, apenas dos ultimos tempos d'ella. As acções boas ou más, os actos irreflectidos, a que me impelle este temperamento estranho com que nasci, tenho-os ultimamente executado sob o influxo de uma paixão forte, irresistivel, que nasceu e assoberbou rapidamente todo o meu coração, Bertha, desde que a vi, quando voltou de Lisboa. Com a franqueza propria do meu caracter, com a lealdade que lhe devo, Bertha, confesso-lhe que a amo. Deve têl-o percebido. Eu não sei dissimular. É este amor que me perturba, que me faz ser injusto, desconfiado, louco, que me arrasta a extremos, d'onde não volto sem remorsos.
—Devia pois fazer por destruil-o, vendo a maligna natureza que tem—respondeu Bertha, sorrindo.
—Não zombe, Bertha.
—Não zombo, pois não diz que o arrasta a acções que lhe causam remorsos?
—Mas é por esta incerteza em que estou. Assegure-me porém, Bertha, de que o seu coração é ainda o que em outro tempo conheci…
—Snr. Maurício—tornou-lhe Bertha, d'esta vez sem a menor inflexão de gracejo—seria faltar á amizade que lhe devo, se o deixasse continuar. Quero suppôr que não zomba de mim ao fallar-me d'essa maneira; quero convencer-me de que é sincero, ou de que julga sêl-o, pelo menos, n'essa declaração que me faz, e vou responder-lhe como se assim fosse. Peco-lhe que faça por esquecer isso que diz sentir por mim e que não póde ter futuro.
—Para me dar esse conselho, para ter direito de dar-m'o, é necessario que me faça uma confissão, é necessario que me diga: Eu não posso amal-o.
—Direi: Eu não posso amal-o, snr. Mauricio.
—E será sincera no que diz? Veja bem. Interrogue sómente o coração. Não a amedrontem as difficuldades e as resistencias que possam offerecer-nos. Eu as vencerei, arrostarei eu só com todas.
—Eu disse: eu não posso amal-o, e não: eu não devo amal-o, como n'esse caso diria.
—E porque não póde? Que ha na sua alma contra mim, Bertha, que nem as recordações da infancia me valem? E comtudo eu tinha n'esse tempo adquirido direitos á sua affeição.
—Que valor que dá aos brinquedos da infancia!
—É porque em mim a juventude do coração principiou cêdo. Eu já então sabia amar.
—Mau é que não ache differenca entre o amor de que é capaz agora e o de então; é pois claro que ama como uma criança.
—Com a ingenuidade d'ellas.
—E com a inconstancia tambem.
—Bertha, não me falle assim. Nas suas palavras sinto um tom de duvida que me afflige. Responda-me: porque é que não póde amar-me? Ha já no seu coração outro amor?
Bertha córou e não foi superior a certa confusão, que se esforçou por vencer, dizendo:
—Ainda que não haja, não é isso motivo para o abrir ao primeiro que appareça. Com toda a sinceridade da minha alma lhe fallo, snr. Mauricio. Creia que para todas as pessoas que teem o nome da sua familia ha no meu coração muito respeito, muita estima e muita gratidão. De todos estes sentimentos se póde dar razão. Mas o amor não é assim. Ninguem sabe porque ama ou porque não póde amar. Julgo eu. É uma coisa que se sente, mas que se não explica. Pois não concorda? E agora peço-lhe que me não acompanhe mais longe. Repare que a tempestade está para breve. Espero, snr. Mauricio, que será sempre nosso amigo.
E dizendo isto, estendia-lhe a mão, que Mauricio apertou silenciosamente.
E separaram-se, seguindo direcções oppostas.
Mauricio murmurava:
—E comtudo creio que me amas. Não é essa frieza que me ha de illudir.
Pela sua parte, pensava Bertha:
—D'aqui não vem perigo para o meu coração. Acabei de convencer-me agora. Basta vêr a tranquillidade que sinto. Assim podésse dizer o mesmo do outro.
Mas a Casa Mourisca continuava a attrahil-a. De noite á claridade vaga do luar, ás tardes quando os ultimos e desmaiados raios do sol lhe tremiam na fachada ennegrecida, de madrugada, no meio das neblinas do rio, que phantasticamente o envolviam, a todo o momento emfim, as encantadas memorias da infancia de Bertha adejavam sobre o deserto solar, e as saudades, evocadas por ella, como que se lhe levantavam do coração a encontral-as.
Ás mesmas horas da tarde, repetiu Bertha no dia seguinte ao do seu encontro com Mauricio, a tentativa para visitar o solitario palacio. D'esta vez passou além da ponte, subiu a ladeira da collina opposta, e chegou a tocar com a mão na porta da quinta. Faltou-lhe porém ainda a resolução para a abrir e entrar. Apoderou-se d'ella uma especie de pavor sagrado no momento de penetrar alli. Parecia imporem-lhe respeito aquellas arvores seculares, aquellas heras vigorosas que forravam os muros da quinta e o silencio que pairava n'aquella habitação abandonada. As sombras melancolicas da tarde cresciam, e Bertha retirou-se no fim de alguns momentos, quasi tomada de entranhado terror.
No dia seguinte voltou ainda á Casa Mourisca. Armára-se, ao partir, de maior resolução. Promettêra a si propria não hesitar um só momento ao abrir a porta, para não dar tempo a possuir-se da mesma fraqueza.
Assim fez; ao chegar á porta pequena da quinta, introduziu resolutamente a chave e abriu-a. Estava emfim dentro dos muros da Casa Mourisca. Cobria-a o denso tolde de ramos entrelaçados dos carvalhos, dos freixos e dos cedros, estalavam-lhe sob os pés as folhas crestadas, de que os ventos do outomno haviam alastrado o chão; prendiam-se-lhe aos vestidos as silvas espinhosas, que cresciam á vontade de mistura com os fetos e as ortigas; á sua chegada houve um subito rumor de aves esvoaçando surprendidas, e de reptís escondendo-se por entre a folhagem sêca do chão. O bosque tinha um aspecto de braveza selvagem, adquirida durante longos annos de independencia de cultura. Era esplendida a anarchia d'aquella vegetação.
Bertha parou affectada de inexplicavel susto.
Tudo recahiu em silencio; apenas se ouvia um leve ramalhar das arvores, denunciando a passagem d'uma briza ligeira, a quéda de algum ramo sêco desprendendo-se da arvore, o pio timido de algum passaro escondido, e, um pouco mais distante, o rumor monotono e confuso das fontes e cascatas.
Dissipadas as primeiras impressões, o sagrado terror que infunde no espirito o aspecto de um bosque secular áquella adiantada hora da tarde, Bertha aventurou alguns passos e pôde percorrer os sitios da quinta que lhe eram mais conhecidos.
Quem póde referir as saudades que lhe pullulavam do coração, ao voltar, depois de tantos annos decorridos, áquelles logares saudosos?
Quem não tenha ainda experimentado na vida sensações d'aquellas, nunca chorou as mais sentidas e ao mesmo tempo as mais consoladoras lagrimas que os olhos podem verter.
Voltar com os pensamentos da juventude ou da virilidade, com a experiencia adquirida no tracto do mundo, com a memoria dos dolorosos embates soffridos no meio das luctas da vida, e a impressão das paixões gravada fundo na alma; voltar assim ao logar dos nossos jogos de infancia, dos nossos risos e chóros pueris, uns e outros tão sem razão nem vestigios, olharmo-nos outra vez, depois de longa ausencia, em frente dos objectos que nos assistiram aos brinquedos, e que parece saudarem-nos ainda como se nos vissem crianças, sentirmos em um momento dissipar-se-nos da memoria todos os tempos intermedios e como que resuscitarem as ideias, os gestos, os pensamentos d'aquella época, como se apenas tivessem adormecido para acordarem mais vivos, é uma das mais violentas e ao mesmo tempo mais gratas commocões que póde experimentar uma alma humana; e a que não ceder e se não abrandar sob essa influencia é uma alma perdida para os affectos e para a regeneração.
Poderia a de Bertha estar n'este caso, a d'ella, alma sensivel e amoravel, para a qual o passado era objecto de um fervoroso culto? Poderia olhar sem lagrimas para aquelles logares onde lia como que pagina por pagina a sua vida de então?
Chorou, chorou sentada no banco musgoso, junto de uma fonte, onde ella e Beatriz tantas vezes vinham sentar-se, e onde Jorge e Mauricio corriam a ter com ellas, logo que terminavam as suas horas de estudo.
Era tarde quando voltou a si o pensamento d'aquella digressão pelo passado. Não tinha já tempo d'esta vez de visitar a Casa Mourisca. Procurou de novo a porta da quinta, por onde entrára, e sahiu com saudades d'aquelles logares.
No momento em que Bertha se afastava, dois caçadores, que desciam una pinhal visinho, d'onde se descobria a entrada da Casa Mourisca, viram-n'a e reconheceram-n'a.
—Ó Chico, olha lá, aquella não é a Bertha do Thomé?—disse um d'elles para o outro.
—Nem póde ser outra coisa.
—Só! a estas horas… e próximo da Casa Mourisca! Que quer dizer isto?
—É que vem de lá.
—Mas… a casa não está vazia?
—Tanto melhor. Se lá estivesse o velho, a coisa mudava de figura.
—Mas, falla serio, ó Chico, que conjecturas tu de toda esta historia?
—Que ou o Mauricio ou o Jorge fazem tambem as suas visitas á capoeira.
—O Mauricio foi hoje para a caçada dos Monteiros do Rio-baixo, e o
Jorge, segundo ouvi dizer, está no Porto.
—Quod probandum—redarguiu o outro, recorrendo ás suas reminiscencias escolasticas; e, como se receiasse que o companheiro o não comprehendesse, traduziu:
—Isso é o que resta provar.
—Foi o mesmo Mauricio que o disse.
—E tu a dares muita importancia ao que diz o Mauricio! Então não sabes que se o Jorge lhe disser que está Papa, o toleirão é capaz de lhe beijar o pé?
—Mas lá em casa, pelos modos, todos o fazem no Porto.
—Pois ahi é que está a finura. E se elle, pilhando fóra do ninho a rapoza velha, se veio alli estabelecer muito á sua vontade?
—Se eu o acreditasse….
—Que farias?
—Era bem feito dar-lhe uma assaltada.
—Já me lembrou isso, mas é melhor outra coisa. Vigiamos isto a vêr quando a pequena cá volta, temos o Mauricio debaixo de mão e trazemol-o então comnosco. O caso deve ser interessante!
—Apoiado!
—Emquanto a mim, ninguem me tira de que aquelle velhaco do Jorge anda a comer-nos a todos com os seus ares de sancto. Vou ainda jurar que as taes visitas a casa do Thomé levavam agua no bico. Se agora o pilhavamos!
—Era soberbo! Mas o Mauricio anda esquisito comnosco, depois da historia do jantar.
—Deixa que eu o amansarei; era bom que elle estivesse um pouco picado n'esse dia; tudo se arranja, deixa estar.
E os dois caçadores seguiram, combinando e commentando o plano que tinham traçado.
O leitor, que já os conheceu pelos primos do Cruzeiro, fica sabendo que estes esperançosos jovens proseguiam nos seus habitos de vida fidalga, em cata e preparação de escandalos, e cada vez mais implacaveis contra Jorge, cuja desdenhosa frieza para com elles ha muito tempo os irritava, antes mesmo que o acontecimento do dia do jantar viesse augmentar essa irritação.
A impaciencia de D. Luiz tocára o extremo. Em vão procurava apparentar resignação e conformidade á sua nova vida nos Bacellos. Os laços que o prendiam ás velhas paredes da Casa Mourisca eram mais fortes do que julgára, ao separar-se d'ellas. Estava-o sentindo pelo mal-estar que experimentava agora.
Todos os objectos da antiga residencia, que tão precipitadamente abandonára, pareciam occupar um logar no seu coração; e o vasio em que o deixaram era terrivel para uma velhice já sem esperanças.
A corrente d'aquella vida, ainda que turvada pelas paixões, seguia desde muitos annos regular e silenciosa pelo alveo e margens invariaveis. De repente, porém, como succede ás aguas de subito constrangidas a mudar de leito, perdeu a serenidade melancolica, a calmante monotonia, tão salutar a um espirito atribulado; e atravez de novas perspectivas e de novas scenas precipitava-se inquieta e turva.
Recrudesceram violentamente as torturas d'aquella alma exagitada, como despertam as dôres d'um membro enfermo ao arrancar-se da quietação e repouso em que adormeceram.
Em certa idade as diversões não distrahem, affligem. Vive-se do passado, e para que o pensamento o retracte, é mister que o remanso lhe dê a limpidez do lago tranquillo.
Só o orgulho e o pundonor de fidalgo é que impediam D. Luiz de voltar de novo aos lares abandonados.
Esta disposição de espirito era insustentavel.
Uma manhã viram-n'o, mais nervoso de que nunca, medir a passos largos o comprimento da maior sala do solar dos Bacellos, parando ás vezes junto das janellas a olhar abstracto, atravez dos caixilhos das vidraças, para as franças das arvores mais distantes que d'alli se descobriam, entre as quaes avultavam as do parque da Casa Mourisca. De subito interrompeu uma d'estas mudas contemplações, manifestando que lhe apparelhassem o cavallo para de tarde.
O procurador, a quem fôra dada a ordem, perguntou timidamente se s. exc.ª sahia a cavallo.
Com o sêco laconismo de que, havia certo tempo, usava nas respostas ao padre, o fidalgo limitou-se a dizer:
—Parece que sim.
O padre tocou a campainha a chamar por um criado, a quem transmittiu a ordem recebida, acrescentando a de que fosse avisado o escudeiro para acompanhar s. exc.ª.
D. Luiz acudiu com vivacidade:
—Quem lhe disse isso? Eu não preciso de acompanhamento. Que me tenham apparelhado o cavallo para de tarde.
—Então v. exc.ª sahe só?!—perguntou o padre, em quem esta quebra de pragmatica causava grande confusão.
—Vou—respondeu D. Luiz, continuando o seu passeio na sala.
O padre sahiu d'alli estupefacto para a cozinha, onde foi assistir á ultima demão de uma empada, e n'esse exame conseguiu felizmente desvanecer a violencia da impressão, que a ordem do fidalgo lhe havia produzido.
Effectivamente, pouco depois do jantar, ao qual Mauricio não assistira, D. Luiz montou a cavallo, e cortejando garbosamente a baroneza, que veio despedir-se d'elle á janella, partiu a meio trote pelos caminhos dos campos.
Era um ultimo lampejo da sua elegancia passada.
Na maneira por que dirigia o eavallo não se notava, porém, a indecisão propria de quem vae ao acaso. Percebia-se que o fidalgo havia marcado destino áquelle passeio.
Tomou por atalhos de montes, evitando o centro da povoação rural, rodeou quasi toda a freguezia, e, seguindo pelas raias das contiguas e por desvios ermos de casas e de cultura, por chapadas maninhas e pinhaes, onde apenas se entrevia a choça do guardador, foi dar ao extremo opposto da aldeia, nas proximidades da Casa Mourisca.
E quanto mais perto se achava do abandonado solar, mais crescia o cuidado que o cavalleiro parecia ter em não ser observado e em dirigir por veredas pouco frequentadas a sua cautelosa carreira.
Entrou por fim em uma bouça pertencente á casa, collocada, porém, fóra dos muros da quinta e separada d'elles por uma especie de valia, que servia de caminho publico.
D'alli avistavam-se as arvores, os telhados, as torres, e as mais elevadas janellas da Casa Mourisca.
D. Luiz fez parar o eavallo e fixou melancolicamente os olhos no velho solar onde nascêra e onde apprehendia não poder morrer, como haviam morrido os seus avós.
Ia adiantada a tarde, e á luz desmaiada do sol, que declinava, crescia a tristeza do velho. Os olhos tinham um fulgor que denunciava lagrimas.
Era solemnemente triste aquelle quadro. A nobre figura do ancião, assim immovel, extatico, no ermo alpestre de um pinhal, a que os ventos da tarde arrancavam um gemer monotono e triste, com os olhos fitos nas ameias do seu palacio acastellado, d'onde as paixões o expulsaram, com o rosto illuminado pelos tremulos raios do sol, que desenhava distinctamente o rendilhado da rama dos carvalhos longinquos, atraz dos quaes se escondia, era uma personificação vigorosa do desalento e da saudade sob o colorido de desesperança que a velhice lhe dava.
A immobilidade do cavalleiro contrastava com a impaciencia do fogoso animal, que escarvava insoffrido o solo, sem que podésse satisfazer a ancia do movimento que o devorava. De subito o cavalleiro fez um movimento, como de quem adopta uma resolução, a que por muito tempo repugnára.
Pôz-se de novo a caminho, seguindo sempre a direcção do muro da quinta, e sem abandonar o pinhal.
Pouco adiante encontrou as ruinas de uma antiga casa de guarda, já quasi destelhada, e em cujo recinto cresciam á vontade as giestas e as tojeiras, por entre os montões de telha e de caliça cahida, e onde encontravam tranquillo abrigo reptís de toda a especie.
D. Luiz levou para alli o cavallo, que prendeu ao varão oxydado e torcido de um caixilho de janella, e sahiu outra vez, continuando a rodear a quinta.
Havia um logar onde o muro era parte derrubado e facilitava extremamente o ingresso. Sabiam-n'o bem uns certos rondadores noctivagos, que tantas vezes por alli effectuavam as suas explorações depredatorias no mal vigiado terreno da Casa Mourisca.
Foi por o mesmo caminho d'esses visitadores suspeitos, que o proprietario d'aquelle nobre solar ahi entrou furtivamente, e córando do passo a que a violencia de uma entranhada saudade o impellia.
Dentro em pouco achava-se na quinta.
Caminhou inteiramente agitado pelas ruas solitarias, atravessou as devezas, onde áquella hora não penetrava um só raio de sol, e sem vacillar seguiu na direcção da casa. Ao chegar ao pateo, viu aberta uma pequena porta por onde habitualmente se fazia o serviço do palacio.
Occorreu-lhe-só então que poderia estar alguem lá dentro, áquella hora.
Se se encontrasse alli com Thomé, como conseguiria arrostar com a vergonha de ser por elle descoberto n'aquella visita furtiva? Ia a recuar, mas o impulso interior a obrigal-o a progredir era mais forte. Venceu. Aproximou-se cautelosamente da porta e ficou-se a escutar por alguns instantes. No interior havia o mais completo silencio. Não se divisavam vestigios que denunciassem presença de alguem estranho. D. Luiz deu a medo alguns passos no limiar, subiu os primeiros degraus da escada, hesitando e escutando a cada passo que dava e a cada degrau que subia.
Sempre o mesmo silencio.
Pensou então o fidalgo que bem poderia ser que na precipitação da sahida tivesse ficado aberta aquella porta; e animado por esta hypothese adiantou-se mais resoluto.
Havia nas largas escadas uma luz froixa e quasi mysteriosa; esta luz e aquelle silencio eram dos que infundem no animo um sentimento quasi de pavor.
N'esses corredores e escadas vazias e obscuras, elle, o senhor e proprietario do solar, movendo-se, com o receio de ser descoberto! Que situação a sua! Que humilhadora situação para o seu orgulho!
As correntes de ar sibillavam melancolicamente ao enfiarem-se pelas fechaduras das portas e frestas, que deitavam para a escadaria; os passos do fidalgo tinham sob aquellas abobadas uma resonancia estranha.
Eram sem numero os objectos que lhe recordavam os amargos momentos da sua alvoroçada sahida da Casa Mourisca; caixões vazios, sacos, bocêtas, papeis de empacotar, tudo jazia ainda em confusão nos corredores, como, na pressa dos preparativos, frei Januario os deixara. Signaes eram estes que parecia indicarem que desde aquelle dia ainda ninguem entrára na Casa Mourisca.
Mais seguro já na persuasão de que não seria surprendido n'esta clandestina visita, D. Luiz subiu sem o menor receio as escadas que levavam ao Sancta Sanctorum das suas affeições, á torre onde haviam sido os aposentos de Beatriz, aonde ella tinha vivido e expirado. Era esta a peregrinação que emprehendêra aquelle desconfortado velho; para alli era que as suas intensas saudades o chamavam. Tinha já subido mais de meio lanço da escadaria, quando subitamente estremeceu, parando a escutar um mal distincto som que lhe chegára aos ouvidos. Correu-lhe no rosto uma pallidez mortal e a fronte principiou a cobrir-se-lhe de um suor, como de agonia.
A turbação que sentia, foi tão intensa, que teve de apoiar-se á parede para não cahir.
Eram os sons longinquos de um instrumento de musica, que partiam do logar para onde elle se dirigia. Vagos, confusos ainda, mas melodiosos como de harpa que, pendurada dos ramos dos carvalhos, vibra ao perpassar das brizas da tarde.
Na triste solidão d'aquella casa abandonada, á hora mysteriosa do escurecer do dia, aquelles sons resoando pelos longos corredores e pela vastidão das salas desertas, tinham de facto não sei quê de sobrenatural; dir-se-ia musica de fadas em um d'esses paços encantados, que ergue no meio das florestas a imaginação popular.
Mas não era sómente o inesperado e a estranheza do facto que feriam de espanto o senhor da Casa Mourisca. Aquelles sons exerciam sobre elle outra e superior influencia.
Conhecia-os; não eram vozes estranhas aos ouvidos do ancião ralado de saudades, e que se achava alli attrahido por ellas.
Conhecia-os; em outras épocas tinham já resoado entre aquellas tristes paredes e sob os altos tectos dos aposentos hoje deshabitados. N'esses tempos, havia alli dentro corações que pulsavam de sympathia ao escutal-os. Eram o signal de que o anjo da familia velava; de que a meiga criança, sobre cuja cabeça se condensavam todos os castos affectos d'aquella alma de homem, praticava com os anjos, seus irmãos, na mysteriosa linguagem da musica.
Aquelles sons… podia elle desconhecêl-os?… eram os da harpa de
Beatriz.
Mas que mysterio revelavam elles agora? Que magia os faria renascer, quando, havia tanto, cahira gelada a mão que os desferia?
As sombras dos mortos teriam vindo povoar a casa abandonada pelos vivos? A alma querida de Beatriz viera por ventura chorar e lamentar-se da solidão em que os seus haviam deixado os logares que ainda conservavam tão vivas as memorias d'ella?
Quem póde analysar o confuso turbilhão de ideias que atravessou n'aquelle momento o espirito do fidalgo?
Piedosas crenças da infancia, superstições que a razão subjugara, chimericos productos d'um cerebro febril, tudo se levantou em enxame alvoroçado e revolto a obscurecer a intelligencia do ancião, que tremia sob um inexplicavel terror.
—É uma allucinação—pensava elle, esforçando-se por dominar aquella fraqueza—é uma quasi loucura produzida por esta ideia fixa, que nunca me abandona.
E continuava a subir com passos ainda mal seguros as escadas da torre.
Mas os sons, que elle julgava effeito dos sentidos allucinados, longe de se desvanecerem, cada vez se ouviam mais distinctos. Sem duvida alguma partiam dos aposentos de Beatriz.
Estava terrivelmente pallido o fidalgo. A vista vagueava-lhe com a mobilidade que produz o delirio. Ha situações na vida em que a razão mais segura vacilla e sente-se vergar sob a influição das mais supersticiosas crenças.
D. Luiz n'aquelle momento acreditava sinceramente na realidade das apparições.
A distancia permittia-lhe já distinguir a melodia que executava a harpa. Tambem lhe era conhecida; era a de uma canção predilecta de Beatriz, uma musica cheia de recordações para o pobre pae. O presente desapparecia n'aquelle momento; o passado resurgia com toda a luz, que desde muito se lhe apagára na carreira da vida. Chegára quasi á porta do quarto d'onde partiam os sons. Restava entrar… Mas o que o esperava alli? Talvez se desvanecesse o encanto e a vazia realidade o aguardasse para o punir!
A razão de D. Luiz não podia formar juízos sobre o que se estava passando. A mão tremula, que se estendeu para abrir a porta do quarto mysterioso, pendeu desfalecida, e o velho permanecia immovel no patamar, subjugado pela força d'aquelle encantamento.
N'este tempo juntára-se aos sons da harpa a voz de uma mulher; baixinho, quasi a medo, como a ave a ensaiar o canto ao renascer da estação, cantava a letra da mesma canção que Beatriz preferia. Era um timbre juvenil, sonoro, agradavel, o d'aquella voz, e na meia altura a que se elevava, havia um não sei quê de mystico e sobrenatural, que veio completar a allucinação do velho.
—Meu Deus! meu Deus! tende misericordia de mim!—murmurava elle, passando a mão na fronte pallida.—Se isto é um sonho, deixae-me morrer a sonhal-o!
E vergaram-se-lhe os joelhos diante d'aquella porta mysteriosa, e, soluçando e rebentando-lhe emfim impetuosas as lagrimas dos olhos, cahiu dizendo em uma desvairada exclamação:
—Ó minha filha! minha filha! Se és tu que assim me arrebatas d'este mundo, tem compaixão de teu velho pae, e não partas sem que lhe appareças um instante que seja!
Calaram-se de subito os sons da harpa e da voz feminina. E, pouco depois, a porta abria-se e Bertha apparecia no limiar.
Ao vêr o fidalgo de joelhos, com a cabeça escondida entre as mãos e soluçando, a filha de Thomé da Povoa correu para elle commovida:
—O snr. D. Luiz! O meu padrinho! Ó perdão, perdão!—exclamava ella.
E o susto que a voz do velho lhe havia causado, ao interromper-lhe inesperadamente o canto, cedeu o passo á mais sentida afflicção.
Á voz de Bertha, D. Luiz ergueu a cabeça e fitou a afilhada com um olhar espantado e interrogador.
As lagrimas desciam-lhe ainda a duas e duas pelas faces emmagrecidas.
—Perdão, perdão, meu bom padrinho—proseguia Bertha, tentando erguêl-o—fiz mal, bem o vejo, bem o sinto agora… mas havia tanto tempo que eu desejava visitar estes sitios! mas não chore, snr. D. Luiz, por amor de Deus perdoe-me!
O fidalgo, quasi ainda alheio ao que se passava, deixou-se erguer e conduzir por Bertha para dentro do quarto, e sentou-se, sem consciencia dos seus actos, na cadeira junto da harpa, cujas ultimas notas parecia ainda vibrarem no espaço.
A commoção violenta quebrára-lhe as forças.
Os braços e a fronte pendiam-lhe em um desfallecimento profundo.
Bertha ajoelhou-se-lhe aos pés, tomando-me as mãos, beijando-as, e cobrindo-as de lagrimas.
—Se eu imaginasse que podia causar-lhe esta pena, não teria vindo. Foi uma loucura minha; agora é que vejo; mas trazia isto na ideia havia tantos dias!… Só hoje me atrevi a subir aqui… Se soubesse como chorei ao tornar a vêr este quarto e estes objectos, que todos conhecia. Todos! Oh não se afflija, snr. D. Luiz, e perdoe-me, perdoe-me por quem é, perdoe-me por amor d'ella. Fiz mal, bem conheço, mas, como tambem lhe queria muito… Depois, assim que vi esta harpa… Ó meu Deus, que saudades! Como me lembrei d'ella, da musica que tantas vezes lhe ouvi, da canção que ella preferia… Quiz avivar essas recordações e… Mal sabia eu o que estava fazendo! Como era cruel sem o suspeitar! Quem me ha de perdoar o mal que lhe fiz? Imagino o que soffreu, o que está soffrendo ainda… E ser eu quem lhe avivou essas feridas!… Não me queira mal por isso. Foi a saudade que me trouxe até aqui, a saudade d'aquelle anjo que eu conheci no mundo. Por amor d'elle lhe peço que me perdoe a dôr que lhe causei.
E a voz de Bertha tremia ao fallar assim. D. Luiz não a interrompêra, porque a agitação era ainda n'elle muito forte para o deixar fallar.
Poisando porém as mãos na cabeça de Bertha e afastando-lhe os cabellos da fronte com um gesto de paternal carinho, fitou-a com os olhos ainda ennevoados de lagrimas e disse-lhe, suspendendo-se a cada palavra, em lucta com a commoção que o suffocava:
—De que me pedes perdão, Bertha? D'estas lagrimas? Oh! deixa-as correr, que ha muito não chóro lagrimas que me dêem um allivio assim. Eu sou que te digo: Obrigado, Bertha, obrigado, que me fizeste entrever a felicidade que o céo me póde ainda dar; n'estes curtos instantes da minha illusão luziram-me uns lampejos de alegria celeste. Tu só podias resuscitar-me a filha e eu quasi a senti ao ouvir-te, ao escutar essa abençoada musica e a voz, que julguei que só me chegaria outra vez aos ouvidos, se um dia me fosse dado escutar a dos anjos no céo. Agradecido, Bertha. A este meu coração são mais conhecidas as dôres que o despedaçam e queimam, do que estas que o desafogam em lagrimas. Agradecido, filha.
E o severo fidalgo da Casa Mourisca, sensibilisado, sem o menor vestigio da sua habitual rigidez, aproximou dos labios a fronte de Bertha e beijou-a com a doce affabilidade de um pae.
Bertha beijava-lhe as mãos, chorando com elle.
Por muito tempo assim se entenderam mudos aquelle velho e aquella rapariga, trazidos alli por uma mesma saudade, consagrando lagrimas a uma mesma recordação. D. Luiz estava cada vez mais fascinado. Nem por a ideia lhe corria que fosse a filha de Thomé da Povoa, quem tinha na sua presença, e quem abençoára e beijara.
Era a companheira de Beatriz, a encarregada pela alma d'aquelle anjo de conservar no mundo a sua memoria, de avivar as sympathias que ella inspirára na alma dos que a choravam ainda, e que a choral-a morreriam.
As mãos de Bertha não tinham profanado a harpa de Beatriz, tocando-a; nem ultrajára a sua memoria a voz que cantava a ballada favorita da infeliz menina.
D. Luiz cedia á influencia d'aquelle brando caracter feminino, e adorava em Bertha a imagem da filha que perdêra.
Ambos se esqueciam do presente, fallando d'ella. D. Luiz mostrou a Bertha todos os objectos, que haviam pertencido á filha e que elle alli conservava ainda como reliquias sagradas.
A poucos olhos os revelaria assim, como fazia aos de Bertha. Mas a quem conservava tão bem a memoria de Beatriz não era sacrilegio o devassal-os.
—Ai, Bertha, Bertha, para que me quiz mostrar Deus aquella alma na vida, se havia assim de roubar-m'a?—exclamava D. Luiz no decurso d'este melancolico exame.
—Para lhe dar um anjo que o veja do céo e vele pelo destino d'esta familia, que ella tanto estremecia na terra.
—O destino d'esta familia!—repetiu o fidalgo, assombrando-se-lhe o semblante.—Triste destino!
—Confio nas orações d'aquelle anjo.
—Quando uma familia cumpre no mundo uma dolorosa expiação, nem as orações dos anjos podem allivial-a d'ella. Deus afastou do mundo a innocente e fraca, para me deixar só a mim o pêso do meu infortunio e o das longas culpas dos nossos. Elle bem sabia que emquanto a tivesse ao meu lado para arrimo, nem sentiria o castigo. Aceito a sentença de Deus, procurarei cumpril-a com firmeza, e oxalá que meus filhos, recebendo o sinistro legado, não desfalleçam como covardes.
—Não pense n'essas coisas, meu padrinho. Tenho fé que ainda voltarão dias felizes para esta casa.
—Sim; quando a comprar em hasta publica qualquer proprietario endinheirado, que faça depois resoar por estas salas os sons dos bailes e dos festins. A casa verá então dias alegres, verá. E quem se lembrará dos velhos senhores d'ella, cujos descendentes talvez aceitem um logar de conviva á mesa do novo proprietario? Porque vamos para uma época de faceis condescendencias.
Bertha calou-se, baixando os olhos, porque pressentia perigos na direcção que levava a conversa.
D. Luiz tinha delicadeza para comprehender a discrição de Bertha, e mudando de tom, continuou:
—Mas perdoa-me, Bertha, estas ideias tristes da velhice não são para a tua idade. É uma crueldade da minha parte não guardar para mim estes pensamentos.
—Se eu podésse desvanecel-os!
O fidalgo limitou-se a fazer um gesto de negação.
N'este momento ouviu-se nas escadas um rumor de passos e de vozes, que a ambos fez estremecer.
—É teu pae, Bertha?—perguntou D. Luiz, erguendo-se e olhando em redor com inquietação.
—Meu pae não está na terra. Ha tres dias que partiu e não o esperamos ainda hoje—respondeu Bertha, sobresaltada tambem.
Calaram-se como para melhor escutarem o rumor que parecia já mais proximo.
Ouviu-se uma voz dizer:
—Vejamos comtudo d'este lado; a torre póde muito bem servir para pombal.
D. Luiz estremeceu ao som d'aquella voz.
Outra respondeu em tom mais baixo:
—Parece-me que entrevejo uma porta aberta. De vagar, de vagar.
—Animo, Mauricio; olha se deixas perder as vantagens da tua bella posição.
—Mauricio!—exclamaram ao mesmo tempo D. Luiz e Bertha, e uma intensa pallidez cobriu o rosto d'esta.
D. Luiz desviou para ella um olhar, em que havia um fulgor de desconfiança.
—Ouviste?
Bertha fez-lhe signal affirmativo.
—Sabes o que significa isto?
—Não—respondeu Bertha com firmeza, levantando a vista para o fidalgo que a observava.
Na firmeza e limpidez d'aquelles meigos olhos, que não fugiam dos seus, elle conheceu a verdade da resposta.
—Não, juro-lhe que não—repetiu Bertha com energia.
—Bem—tornou o velho, carregando o sobrolho e apertando a mão de Bertha em signal de protecção—esperemos então.
Os que subiam estavam já na proximidade da porta.
D. Luiz recuou alguns passos e ficou occulto pelo cortinado do leito da filha; Bertha permaneceu immovel com a mão apoiada á harpa.
Depois de alguns instantes de demora, a porta moveu-se vagarosamente sobre os gonzos, e no vão deixou apparecer a figura de Mauricio, e mais atraz, meio encobertos pelas sombras do corredor, os dois malignos semblantes dos manos do Cruzeiro.
Mauricio trazia o olhar desvairado e certa desordem de feições denunciadoras da orgia, com que os primos traiçoeiramente o tinham preparado para o escandalo que meditavam.
Ao reparar em Bertha, Mauricio fitou-a com uma expressão de quasi cynica ironia.
—Boas tardes, Bertha—disse elle, curvando-se com gesto de escarneo—não sei se a minha presença interrompeu alguma doce meditação, que esta luz amortecida da tarde lhe estivesse inspirando. Mas tão longe estava de esperar encontral-a aqui!
Bertha tremia e baixava os olhos sem atinar o que dissesse. A consciencia de que o fidalgo estava escutando Mauricio não era o menor motivo para a sua confusão. Se se achasse só encontraria coragem para arrostar com o insulto. No olhar, nas palavras, no gesto de Mauricio percebêra o desarranjo de razão em que elle estava. Temia pois mais por elle do que por si.
Mauricio proseguiu:
—Julgavamos encontrar outra pessoa n'esta velha casa abandonada, porque vimos um cavallo guardado furtivamente, ahi perto, em uns pardieiros arruinados. Isto indicava a presença do cavalleiro. Saber-me-ha dar noticias d'elle, Bertha?
Bertha não respondeu.
—Então não falla! Parece perturbada. É inexplicavel a sua confusão diante de mim, Bertha. Conhecidos ha tanto tempo! companheiros de infancia!… Não se lembra de que brincamos n'esta sala eu, minha irmã, Bertha e… e Jorge?
Um dos primos tossiu ao ouvir o ultimo nome.
Mauricio voltou-se:
—Que é? Que reflexões vos despertou este nome? Parece que tambem Bertha não o ouve a sangue frio.
Bertha tremia cada vez mais.
—Aqui ha um mysterio. Bertha está dominada por alguma influencia má. Desconheço-a. Dar-se-ha que o mau espirito se occulte de nós, tres bons rapazes inoffensivos, que respeitam todas as entrevistas secretas, todas as doces affeições da alma, e que só querem que se seja franco e leal com elles nas palavras e nas obras, e se ponha de parte a falsa moralidade dos hypocritas?
Depois, deixando o tom de sarcasmo pelo da vehemencia, bradou:
—Se alguém me ouve e ainda tem uns restos de brio e de vergonha, que se não esconda, que appareça. É tempo de acabar a comedia. Appareça, ou eu prometto tentar a sua covardia, obrigando-o pela honra a acudir á mulher que furtivamente corteja, se a quizer livrar do galanteio que ella desdenhosamente rejeita.
Estavam mal acabadas estas palavras e D. Luiz achava-se já em frente do filho, fitando-o em silencio e com um olhar de severa e expressa interrogação.
Mauricio recuou, como se aquella apparição o ferisse em pleno peito. Os do Cruzeiro envolveram-se a mais e mais nas sombras dos corredores.
Seguiram-se alguns momentos de silencio; D. Luiz foi o primeiro a interrompêl-o.
—Aqui estou prompto para responder ao interrogatorio de meu filho e d'esses senhores que se escondem… por modestia na sombra do corredor. Interroguem.
—Meu pae…—balbuciou Maurício, baixando os olhos.
—Então deu n'isso a bravata da atrevida provocação que me fez apparecer? E os senhores não serão mais ousados? Muito bem; se é a consciencia que os abaixa ao logar de reus, eu tomo o meu logar de juiz. Que significa toda esta scena de orgia? Que infamia, que vileza os fez subir estas escadas e empurrar aquella porta? Julguei perceber que se tractava de insultar uma senhora. Boa diversão para fidalgos!
E voltando-se para Mauricio, proseguiu:
—D'antes aquelles que traziam o nome de que usas, baixavam cortezmente os olhos diante das damas e erguiam-n'os para cruzar a vista de homem, quem quer que elle fosse, que procurasse a sua. Tu hoje deshonras esse nome, fazendo o contrario. És insultante e provocador com a fraqueza, e baixas a vista ignobilmente sob o peso da tua covardia. Envergonho-me de te ter por filho.
—Senhor!
—Basta. Não quero augmentar a minha vergonha, devassando o intimo das tuas intenções vindo aqui, em companhia dos teus camaradas das devassas orgias. Bertha, bem vê. Quando movida por um sentimento generoso, subiu os degraus d'estas escadas no intento de se entreter com a alma de Beatriz, que melhor do que ninguem conheceu, confiava de mais na boa fé dos outros, julgando-a pela sua. Devia lembrar-se de que n'esta casa em ruinas, d'onde voou para o céo aquelle anjo, crearam-se os hospedes das ruinas, os reptis e as viboras, que se arrastam até aqui para a ferirem com o insulto e com a calumnia, aqui mesmo, n'este logar que devia ser sagrado para meus filhos, se a fatal influencia que pesa sobre esta familia não tivesse já apagado n'elles todos os instinctos de dignidade e de nobreza. Deus, porém, trouxe-me aqui para protegêl-a do insulto e espero que apesar de tremulo, ainda o meu braço lhe servirá de seguro apoio. Talvez que a depravação n'estes homens perdidos não tenha chegado ainda ao ponto de ousarem ameaçar-me; uns restos de respeito filial lhe servirão de salvaguarda.
E D. Luiz, dando o braço a Bertha, que machinalmente lhe obedecia, sahiu do aposento com a cabeça erguida e o gesto severo.
Mauricio e os primos do Cruzeiro afastaram-se timidamente para os deixar passar.
Mauricio deixou-se cahir em uma cadeira e escondeu o rosto entre as mãos, exclamando:
—Eu sou um miseravel!
Os primos olharam-se com o gesto comico de dois collegiaes encontrados em flagrante delicto de insubordinação.
No dia seguinte pela manhã, D. Luiz mandou pedir á baroneza authorisação para fazer-lhe uma visita, reclamada por motivos urgentes.
Gabriella respondeu que o ficava aguardando com impaciencia.
E não foi por mero comprimento que o disse; os negocios d'aquella familia achavam-se em um estado tal, que era de esperar de momento para momento uma crise importante, e o menor successo podia provocal-a.
Gabriella sabia-o e aguardava-a.
Meia hora depois entrou D. Luiz sombrio e grave no gabinete da sobrinha.
Esta acolheu-o com a maior deferencia, procurando lêr-lhe no semblante o pensamento que o trouxera alli, mas empregando no exame toda a dissimulação.
—Para que se incommodou, tio Luiz? Se quizesse ter a bondade de esperar eu iria receber as suas ordens.
—Ergui-me cedo. E ergui-me sem ter dormido. Por isso fui tão matinal.
—Meu Deus! achou-se então incommodado?
—De espirito, muito; muito.
E D. Luiz passou a mão pela fronte, suspirando.
—E posso proporcionar-lhe algum allivio, meu tio?—perguntou Gabriella, conduzindo-o para um sofá, onde se sentou ao lado d'elle, olhando-o com ar de interrogação e de interesse.
—Gabriella, a sorte de minha familia está jogada. É uma família perdida—rompeu vehementemente o fidalgo.
—Não diga isso, tio Luiz.
—Digo-o e sinto-o—continuou elle mais exaltado.—Quando uma casa como a nossa, que não póde já conservar o antigo esplendor e o estado que em melhores tempos sustentou, não sabe de mais a mais manter o prestigio que teve por as praticas tradicionaes de nobreza, por acções de fidalguia, emfim por estes actos de superioridade que fazem dobrar a cabeça aos mais insolentes e intimidar a vista dos invejosos, quando uma casa chegue a um tal estado de decadencia, nenhum apoio solido tem a sustental-a e em pouco tempo cahirá em ruina total. A minha está perdida!
—Seus filhos…
D. Luiz estremeceu de irritação a estas palavras.
—Meus filhos! Que me quer dizer d'elles? D'elles me queixo eu. Jorge fez-me córar pela pouca dignidade dos seus sentimentos; Mauricio pela vileza dos seus actos.
—Mauricio?! Sancto Deus! Pois que succedeu mais?
D. Luiz, ainda tremulo de indignação, contou á baroneza a scena da vespera. A cólera do velho contra o filho era violenta e contrastava com a brandura e quasi respeito que o dominava ao fallar de Bertha.
A baroneza ia notando estes phenomenos todos.
Assim que D. Luiz concluiu, Gabrieila, encolhendo os hombros, formulou a emenda:
—Loucuras de rapaz.
—Loucuras! Loucuras de rapaz! Que diz, Gabrieila? Nem tudo se póde permittir ou desculpar ao verdor dos annos. E quando nas acções de um rapaz se nota, já não apenas o estouvamento e a inconsideração que é propria dos annos, mas os signaes de uma profunda depravação moral, esse rapaz, aos vinte annos, tem já a alma corrompida.
—Mas o que vê mais do que estouvamento nos actos de Mauricio?
—Que ia elle fazer embriagado, e na companhia de devassos, á Casa
Mourisca?
—Saiba então, meu tio, que o primo Mauricio tem o fraco de se julgar apaixonado por todas as raparigas bonitas que vê. É o seu defeito. Portanto julga-se tambem apaixonado por Bertha, que me dizem ser gentil. Parece porém que não tem sido feliz por esse lado. D'ahi os seus desafogos. Depois os planos de Jorge, mal interpretados, e as malevolas instigações d'aquellas sanctas creaturas dos nossos primos do Cruzeiro fizeram-lhe já por mais de uma vez vêr no irmão innocente um rival preferido, e ahi está. Acrescentando a isto a influencia do estado anormal em que diz que elle hontem se achava, tudo se explica. Loucuras de uma cabeça estouvada; que por o coração fico eu.
—Perde-se, perde-se—insistia D. Luiz.—Não respeitar os sentimentos mais puros! nem pelo menos lhe merecer respeito aquella pobre rapariga, que tem as mais sanctas tradições de nossa familia a protegêl-a! Nem ella! É uma infamia!
—Sabe o que tudo isto está pedindo, meu tio?
—O que é?
—É que se tire Mauricio d'aqui. Esta ociosidade perde-o. Este viver apertado no pequeno circulo da aldeia ha de acabar por suffocar n'elle as melhores aptidões e desenvolver-lhe as más. Creia. O tio deve vencer os seus escrupulos em deixar Mauricio partir.
—Lembrei-me já d'isso. E n'esse intuito a procurei. Mas pense bem, Gabriella. Engolfal-o na grande sociedade, onde os vicios e as tentações se conspiram para embriagar e seduzir a juventude, e elle em quem germinam já tão maus instinctos…
—Tem dotes de alma que lá se desenvolverão e neutralisarão os vicios e as tentações.
D. Luiz curvou a cabeça pensativo. Os seus preconceitos politicos eram muito vivazes, não cediam sem resistencia.
—Para que me deu o Senhor filhos!—exclamou elle, revoltando-se contra a sua perplexidade, e acrescentou:
—Mas a final que carreira póde elle seguir?
—Não fixemos d'antemão planos. Em geral os acontecimentos annullam-n'os. Decida-se a partida. Eu o recommendarei de maneira que elle proprio possa dentro em pouco escolher a carreira que lhe convenha.
—Mas, se tiver de ceder…
—Meu tio, permitta-me uma reflexão. Se quizermos prevenir todos os fortuitos inconvenientes de uma resolução qualquer, antes de a tomarmos, nehuma abraçaremos. Deixemos as objecções e os reparos para o momento apropriado. Quer que Mauricio parta?
—Se elle ha de perturbar a paz d'essa família e obrigar-me mais uma vez a humilhar-me diante d'ella… Porque meus filhos teem tido a rara habilidade de deixar a humilhação por o unico expediente ao meu pundonor! Collocaram a razão e a justiça da parte dos meus inimigos, forçoso era, para poder ter a cabeça erguida, curval-a primeiro e implorar perdão.
Gabrieila fingiu não attender á primeira parte das reflexões do tio.
—Muito bem. Vou fallar ao Mauricio. Tudo se ha de decidir em pouco tempo. Tenha fé em que se não perde uma familia, cujos futuros representantes teem, um o caracter honrado e a razão clara de Jorge, outro os bons instinctos e as brilhantes qualidades de Mauricio. Pelo contrario, creio que ella está destinada a dar um salutar exemplo áquelles, cuja estrella tambem declina, ensinando-lhes a unica maneira de continuar, nos tempos que correm, as nobres tradições dos seus antepassados.
—E qual é essa maneira unica?—interrogou o fidalgo, quasi ironico, como se já esperasse a resposta.
—Entrar nobremente no caminho da actividade e do trabalho; distinguir-se ahi, como se distinguiram outr'ora nas guerras de Africa e nas navegações os que tinham o mesmo nome para ennobrecer. Ser ocioso, por não poder ser guerreiro, é fraco titulo para a veneração dos contemporaneos. Cada seculo tem a sua tarefa, meu tio; a de hoje não se cumpre ás lançadas, nem ás cutiladas. O bom senso do tio Luiz ha de dar-me razão. Sabe além d'isso muito bem o que se faz lá por fóra, o que se faz na Inglaterra, por exemplo, onde tambem ha nobreza e orgulhos nobiliarchicos, como por cá, e mais talvez ainda.
—Bem vê que não desprezei a educação de meus filhos, nem impedi que Jorge trabalhasse, quando me pediu para o fazer. Pelo contrario, n'esse dia julguei receber uma lição d'aquella criança, e cheguei a córar dos meus setenta annos de incuria e de ociosidade. A minha velhice achou-se menos veneranda do que aquella juventude. Mas repare, Gabriella, que disse: entrar nobremente no caminho do trabalho. E nobremente não é andar a estender a mão á esmola dos antigos servos da nossa casa.
—Não houve esmola. Foi um honrado contracto aquelle, feito entre dois homens igualmente honrados. Se faltaram n'elle todas as seguranças do costume, tanto melhor; foi porque ambos se conheciam e confiavam um no outro. As garantias mais poderosas são a final essas. Contractos d'estes só se dão entre homens de bem. Olhe, tio Luiz, longe de mim discutir agora o proceder de Jorge; mas, se quer que lhe diga, tenho a intima convicção de que ahi dentro, bem no fundo da sua consciencia, não se conserva já grande resentirnento contra seu filho mais velho. Ha forçosamente uma voz interior que lhe clama que Jorge é um nobre e generoso caracter.
—Não disse ainda que Jorge fosse vil e infame. Mas diz bem, Gabriella, não discutamos agora isto. Peço-lhe então que decida Mauricio a sahir para evitar novas imprudencias e indignidades; não tanto por nós, como por essa boa rapariga, que é digna devéras de toda a sympathia. Que parta e que não me appareça.
E D. Luiz sahiu do quarto, repetindo esta ultima recommendação.
A baroneza ficou pensando:
—Decididamente é preciso pôr Mauricio d'aqui para fóra. Este caracter em uma cidade grande é uma coisa insignificante; a agitação que causa perdia-se na grande agitação d'aquelle mundo. Aqui é um terrível elemento de desordem e talvez de sérias catastrophes. Agora quem me agrada mais e muito mais é o tio Luiz. Sim, senhores. Acho-o menos bravo, apesar dos seus furores. Como elle fallava da filha do Thomé! Do Thomé, que é a final a pedra de escandalo d'isto tudo! Quem o domaria a este ponto? A rapariga, ao que parece, tem condão para se insinuar. O tio Luiz tem um grande fraco por ella, conhece-se. Já o que o padre me contou de quando foi a historia de entrega das chaves, e agora esta entrevista… Preciso de conhecer Bertha; está dito. É uma influencia que é bom cultivar. Digam o que quizerem; não ha nada melhor para amansar um velho bravio como este. É vêr a falta que fez aquella pobre Beatriz. Ao pé de um velho quer-se sempre uma rapariga para não os deixar azedar e tomar estes ares selvagens e opiniões avinagradas, que o tio Luiz já ia adquirindo. Nada; o padre procurador o mais distante d'elle possivel, que prégue a outros os seus soporiferos sermões sobre o direito divino e sobre a corrupção da época; no logar d'elle colloquemos Bertha, e quero saber se o leão não ha de amansar. Agora vamos lá vêr Mauricio. Para fallar a verdade, ainda não sei bem o que se ha de fazer d'elle; mas em todo o caso, mandemol-o para Lisboa, porque nos está causando muito embaraço aqui.
E Gabriella dirigiu-se para a sala do almoço, onde Mauricio todas as manhãs a precedia.
Encontrou-o na varanda, que deitava para uma ribanceira, como absorvido na contemplação do abundante jorro de agua que d'alli se despenhava por entre fetos vigorosos, cuja rama encobria o fundo do precipicio. Os raios do sol da manhã irisavam a humida poeira, que a a agua, ao quebrar-se, levantava do abysmo.
Gabriella aproximou-se de Mauricio sem ser percebida, e depois de o observar alguns momentos, poisou-lhe a mão no hombro.
Mauricio voltou-se quasi sobresaltado. Ao vêr a prima sorriu.
—Não a senti chegar.
—Isso vi eu. Que profunda meditação era essa? Queira Deus que não estivesses sentindo a attracção do abysmo. Dizem-me que é irresistivel; sobre tudo para certas organisações.
—Não, os abysmos physicos não são os que me attrahem.
—O que é o mesmo que dizer que os moraes alguma attracção exercem sobre ti.
—Estou quasi a persuadir-me disso.
—De quê?
—De que me impelle uma força irresistivel por um caminho, no fim do qual a minha quéda é inevitavel.
—É um presentimento tragico.
—É uma opinião dictada pela experiencia.
—Experiencia! Essa palavra na tua bôca, Mauricio! O eterno mote dos velhos, glosado por um rapaz de dezoito annos, e estouvado como todos sabemos!…
—E porque não ha de ser esse mesmo estouvamento o que me perde? Os estouvados são os homens que não teem na razão força bastante para conterem os impulsos das paixões, e que por isso obedecem a estas, sem que os façam parar os preconceitos do mundo e os conselhos dos juizos frios.
—Se me faz favor, esses são os apaixonados. Os estouvados não chegam nunca a ir muito longe sob o impulso de uma paixão, porque mudam de soberana a cada momento, d'onde resulta um mover indeciso, um fluctuar sem rumo, um jogar entre ventos encontrados, que não lhes permitte vencer longo caminho.
—N'esse caso rejeito o epitheto de estouvado.
—Achas então que ha já o governo constituido e definitivo no teu coração?
—Estou convencido de que se fixou o meu destino.
—Pelo lado do amor?
—Sim; pelo lado do amor.
—A noticia contraria grandemente os meus planos.
—Os seus planos?
—Sim; não sabes o que me trouxe aqui? Vim para declarar-te que o tio Luiz exige terminantemente que o Mauricio parta quanto antes para Lisboa, por se ter a final convencido de que, apesar de todos os perigos da vida da capital, é esse um passo preferivel a deixal-o permanecer aqui, no seio da ociosidade que, como sabes, é a mãe dos vicios todos.
—N'esse caso principia hoje a lucta. Eu declaro que não parto.
—Devéras?
—Devéras. A minha sorte está decidida, prima. E qualquer que seja o resultado d'esta resolução…
—Mas, vamos a saber, primo Mauricio, e Bertha?… (porque me parece que se tracta de Bertha) e Bertha corresponde-te?
—Creio que sim. Por timidez procura fugir-me, ou por desconfiança talvez. Por isso mesmo hei de provar-lhe que sou sincero, e que atravez de todos os preconceitos…
—Está a tentar-te o papel de Romeu, é o que estou vendo. Desconfio da sinceridade d'essa exaltação.
—Pois verá.
—Ora ponhamos as coisas no seu logar. Não principies tu a phantasiar escaramuças de Montechi e Capuletti, que provavelmente não terão logar, com grande damno das feições romanticas do caso. A coisa ha de passar-se mais prosaicamente, como hoje se passa tudo. O primo Mauricio, depois de uns arrufos do tio Luiz, havia de, mais anno menos anno, vêr sanccionado por elle o seu casamento. Muito bem. Ahi o tinhamos patriarcha rural, burguezamente installado na lareira da Herdade, com os filhos a treparem-lhe aos joelhos, e conversando em sancta paz com o papá Thomé e com a mamá Luiza, ouvindo o estalar das pinhas, e abrindo a bôca de somno, quando a ceia se demorasse alguns minutos além das nove horas. Por este mesmo tempo, outros rapazes da sua idade, e talvez com menos aptidão do que elle, caminhariam por entre os fulgores da moda, da elegancia e da gloria, conhecidos e apreciados nos circulos onde radia a intelligencia e onde as brilhantes qualidades do espirito encontram sempre em que se exercerem. Não chegariam a este solitario Mauricio ás vezes umas invejasinhas d'esses taes, mesmo ao suave calor da fogueira patriarchal?
—E quem me impediria de os seguir tambem?—disse Mauricio contrariado.—N'esses caminhos que diz não é força progredir solitario. O apoio de um coração…
A baroneza abanou a cabeça em signal de duvida, dizendo:
—Desengana-te, Mauricio, se ainda te sorri a vida da grande sociedade, não procures a companhia de corações como o de Bertha.
—Porque não?
—Os corações como o de Bertha precisam do calor suave da vida de familia para rescenderem o grato perfume do seu amor. Para um homem a quem ainda attrahem as luctas da vida e as lides da gloria, não é das mais adequadas companhias a d'estas mulheres extremosas e modestas, que sómente se satisfazem com affectos, e cujo amor não se nutre da gloria do objecto que amam, mas exclusivamente do amor que d'elle exigem. Almas que o ciume desalenta, que a ausencia definha, não são para companheiras d'aquelles homens. Se um dos taes mais imprudente liga um d'estes corações ao seu destino, ou o martyrisa, cedendo aos proprios instinctos de gloria, ou sacrificando-lh'os, tortura-se, e a tortura reflecte-se sobre essas almas amoraveis, que a adivinham.
—E poderá ser verdadeiro um amor que não tenha essas qualidades que diz?
—Póde. Pois não póde! É preciso que evites, Mauricio, o preconceito que tem muita gente de que tudo é falso e mau nos brilhantes circulos sociaes. Não é. Lá ha tambem amores e affeições verdadeiras, podes crêl-o, mas, nascidas e creadas em condições diversas, vivem e resistem a ventos que definham as outras. Uma mulher d'aquelle mundo, sem que deixe de amar seu marido, não aspira a monopolisal-o para o seu amor. Pelo contrario, deseja que elle desempenhe a sua missão na sociedade. Com a gloria que ahi adquirir, se illumina ella tambem, e em vez de o reter na obscuridade do lar domestico, impelle-o para a luz e sente que o seu amor por elle cresce na proporção em que os outros o admiram. É uma vaidade que se converte em estimulo. Estas mulheres assim servem de incentivo ás aspirações, e são as que convem aos artistas, aos politicos, em uma palavra, aos ambiciosos.
—Mas quem lhe disse que eu era ambicioso?—perguntou Mauricio, já em tom differente, e demorando na baroneza um olhar analysador, como de quem pela primeira vez descobria n'ella qualidades dignas de attenção.
—E podes negar que o és?—proseguiu Gabriella—Ora falla-me com franqueza. Resignar-te-ias sem pesar á ideia de passar o resto da tua vida esquecido e obscuro n'este canto da provinda, tendo por unica diversão uma caçada de lebre? Conformar-te-ias com as modestas aspirações de Jorge, que se satisfaz com dirigir em bom caminho a administração d'esta casa? Não sonhas muita vez com a brilhante sociedade dos salões da capital, onde todas as aristocracias se confrontam, onde se tracta com tudo quanto ha de elegante, de nobre, de distincto nas sciencias, nas letras e nas artes? Não tens já sentido a anciedade de viajar, de te engolfares nos focos da civilisação moderna; finalmente de viver em um mundo, onde os teus talentos, as tuas qualidades possam ser devidamente apreciadas?
—É muito lisonjeira, prima Gabriella. Mas, quando eu sonhasse com tudo isso… E não negarei que mais de que uma vez essas phantasias me tenham enlevado, mas de que me serviria? Acaso o mundo está á minha espera para me patentear todas as portas d'esses logares de fascinação?
—Para os rapazes de vinte annos, de talento e de vontade não ha barreiras no mundo. Querer é poder. O mundo é menos feroz do que parece. Quando alguem se aproxima d'elle com a intrepidez e o arrojo do domador, esta terrivel fera abaixa a cabeça e não ataca.
—E qual póde ser a minha carreira n'esse mundo?
—Não se escolhe de longe. Na presença dos caminhos escuta-se uma voz interior, que nos diz: «Por aqui?»
—Mas creia que eu sou um inexperiente. Fóra d'estes ares sentir-me-ia embaraçado.
—Eu prometto acompanhar-te nos primeiros passos.
—Sómente nos primeiros?
Maurício fez a pergunta com uma entonação de voz e com um olhar, que causaram estranheza a Gabriella.
Fitou-o, como para perscrutal-o, e depois com um sorriso malicioso nos labios, tornou-lhe:
—Pareceu-me perceber uma musica de galanteio n'essa pergunta? Vê lá.
Pois nem eu te merecerei indulgencia e contemplação?
—Demasiada contemplação me tem merecido até, e Deus sabe se por meu mal.
—Um calembourg ao que percebo. Bonito. Onde está aquelle fiel Romeu de ainda agora? Se eu insistisse, era capaz de te arrancar uma declaração formal, estou vendo.
—Tem razão para zombar, prima, porém…
—Previno-te, Mauricio, de que não vale a pena perder o tempo commigo. Eu tenho uma maneira prompta e rasgada de tractar as coisas, que se não compadece com as longuras e alternativas de um galanteio a teu modo. Bem vês que já não sou criança de quinze annos, e que perdi a paciencia d'essa idade. Mas vamos almoçar, que nos estão chamando.
Durante o almoço, ao qual não assistiu D. Luiz, a conversa resumiu-se em observações de critica e analyse culinaria de frei Januario e nas glosas laconicas de Gabriella, que pôz final á prelecção, levantando-se da mesa e ordenando que lhe apparelhassem a egoa para um passeio.
Quando, momentos depois, descia ao pateo, apanhando a longa cauda do seu vestido de amazona, encontrou Mauricio, que parecia esperal-a para a ajudar a montar e por ventura para lhe servir de jockey.
—Então que quer dizer isto? Encarregaste-te agora das funcções de monteiro-mór?—perguntou-lhe Gabriella.
—Se me permitte que desempenhe estas funcções, muito me honrarei com ellas.
—Quem póde recusar um offerecimento tão amavel? Mas que me encontras tu de novo para me olhares com esses olhos?
—É porque effectivamente ainda a não tinha visto assim.
—Assim, como?
—Tão…
—Tão?…
—Com esses vestidos.
—Ai, ainda não? É verdade que ainda me não tinha dado para isso aqui.
Então tambem ainda me não viste cavalgar?
—Ainda não.
—Olhem que descuido o meu!—disse Gabriella, saltando agilmente sobre o sellim, auxiliando-se da mão de Mauricio; e emquanto ageitava as dobras do vestido, preparava as redeas e acabava de apertar as luvas, proseguiu:
—Pois n'esse caso vaes ver o que são primores na arte. Ao que parece vens tambem?
—Se me permitte?—disse Mauricio, parando junto do cavallo, que ia já a montar.
—Com uma condição.
—Qual é?
—Quando eu te disser que nos separemos, hás de condescender.
—Obedecerei, embora me custe.
—É indispensavel. Tenho hoje uns projectos, que não posso realisar senão sósinha.
—Acompanhal-a-hei até onde me permittir.
—Está dito. A cavallo!
E, instigando de subito a egoa, partiu a galope, fazendo signal a
Mauricio para que a seguisse.
Apesar de toda a diligencia d'este em montar, e da desfilada em que lançou o cavallo, não lhe foi facil attingil-a. Sendo emfim alcançada, a baroneza afroixou a rapidez da egoa, e os dois cavalgaram a passo, um ao lado do outro.
A violencia do exercicio avivara o carmim nas faces da baroneza e dera-lhe ao olhar uma animação maior do que a que lhe era habitual.
O sorriso que lhe entreabria os labios, e o arfar do seio, agitado pelo impeto da carreira, realçavam os dotes naturaes d'aquelle typo feminino, no qual se já se desvanecêra o frescor da primeira juventude, sobreviviam ainda os traços permanentes de uma belleza correcta.
Mauricio não se fartava de a admirar aquella manhã. Fôra para elle uma imprevista revelação. Dir-se-ia que até alli uma nuvem lhe occultára as perfeições da prima e que, de repente, essa nuvem se rasgára para o surprender.
O prestigio da elegancia, da moda, dos distinctos habitos sociaes, do espirito cultivado na frequencia da mais selecta sociedade, estava actuando no coração de Mauricio, predisposto como o de poucos para aquelle influxo.
A belleza e a intelligencia de Gabriella, aprimoradas ambas por uma arte, que sabia occultar-se para não prejudicar os effeitos que obtinha, attrahiam Mauricio de uma maneira irresistivel.
A baroneza tinha a perspicacia necessaria para o perceber. O seu amor proprio feminino era naturalmente afagado pela descoberta; mas, além d'esta desculpavel fraqueza, outras razões havia mais poderosas para que essa observação a lisonjeasse.
Gabriella, como já dissemos, ficára viuva muito joven, do barão de Souto Real. Tendo ainda instinctos de juventude a satisfazer, promettêra a si propria consultar o coração antes de prender-se segunda vez.
Quando recebeu a carta de D. Luiz e veio ter com elle á Casa Mourisca, sabedora das difficuldades financeiras com que luctava o fidalgo e dos nobres esforços de Jorge para remedial-os, occorrêra-lhe o pensamento generoso de favorecer o empenho do primo, offerecendo-lhe com a sua mão os recursos de que elle precisava para realisal-o. A admiração e o respeito que lhe inspirava o caracter sisudo de Jorge permittiam-lhe dar esse passo com o coração folgado.
Custava-lhe apenas ter de renunciar aos fulgores da capital, a que se habituára e que amava com toda a paixão de uma mulher da moda; mas confiava em que o seu bom senso e os subsequentes cuidados de familia lhe suavisariam o sacrificio. Tractando porém mais de perto com o primo, comprehendeu que devia desistir do seu projecto.
Jorge pareceu-lhe incapaz de se apaixonar; e com certeza, não a amando, não se resolveria a aceitar a mão que ella lhe offerecesse, mórmente por levar comsigo os recursos que o poderiam auxiliar na sua nobre empreza.
Gabriella abandonou pois a ideia que tivera. Em Mauricio não pensára ao principio. Achava-o tão leviano, que, como ella dizia, não podia lembrar-se seriamente de fazer d'elle um marido. Agora porém, notando a subita impressão que occasionalmente lhe produzira, e cujos effeitos duravam e progrediam, a baroneza principiou a encarar o caso debaixo de differente luz.
Se Mauricio se apaixonasse por ella, ser-lhe-ia facil fazêl-o partir para Lisboa e vencer a repugnancia que elle parecia oppôr a abandonar a aldeia justamente na occasião em que a resistencia do pae havia cedido.
Se, depois de deixar tomar maior incremento a este novo capricho de Mauricio, ella subitamente partisse para Lisboa, sem duvida que o arrastaria atraz de si. O resto fal-o-iam as seducções da capital.
Para conseguir este resultado, julgou pois Gabriella que não devia apagar aquelle fogo que principiava a atear-se no inflammavel coração do primo; lavareda rapida e fugaz, que importava? com tanto que durasse até extinguir a outra que lá ardia.
E se durasse mais? Quem sabe? Talvez que o primeiro pensamento de Gabriella se podésse realisar com uma variante. Mauricio não era Jorge. O caracter voluvel e inconstante do filho mais novo de D. Luiz não o garantia como um modêlo de maridos. Mas a baroneza, segundo elle proprio dissera ao primo, não era d'estas mulheres exigentes que zelam a posse de todos os pensamentos e de todos os instantes do homem que amam. A vida da alta sociedade ensinára-a a ser condescendente. Se encontrasse no marido verdadeira estima e delicadeza, não seria uma ou outra infidelidade que a obrigaria ao papel lacrimoso de esposa abandonada.
Depois, Mauricio tinha pelo menos sobre Jorge uma vantagem.
Não exigiria d'ella o sacrificio dos seus queridos habitos, nem a desterraria dos luzidos circulos que ella amava tanto. Antes lhe abriria ampla carreira de gozos, quando soltasse os vôos ás ambições, que lhe adivinhára.
Assim pois Gabriella deixava-se galantear por o primo e ensaiava n'elle a sua tactica admiravel, que o encontrou mais inexperiente do que era de suppôr em quem de tanta fama de experimentado gozava.
Mauricio porém achava-se pela primeira vez diante de uma mulher educada na alta escóla d'esta especial esgrima. A arte era demasiadamente subtil para elle a descobrir. Todo o artificio estava em simular a mais completa ausencia de affectação. Parecia tudo espontaneidade, irreflexão, imprudencia até, e julgando conquistar um coração indefezo e sem arte, o novel combatente era victima de um gladiador previdente, armado de vizeira e coiraça e jogando magistralmente com armas de melhor tempera.
A baroneza estava a acabar de convencer-se de que a supposta paixão de
Mauricio por Bertha não passava de uma illusão ou de um capricho.
Mas não haveria em Bertha algum sentimento menos ephemero e que podésse ameaçar-lhe o coração?
Era esse o problema que restava resolver. E para esse fim sahira a baroneza. A presença de Mauricio impedia-a de proceder n'essa investigação, por isso exigira d'elle a promessa de a deixar, quando lh'o pedisse.
Cavalgaram por muito tempo juntos, antes que fosse reclamado o cumprimento d'essa promessa. Mauricio ia cada vez mais enlevado. Sómente proximo da estrada, que conduzia á Herdade, foi que a baroneza lhe pediu para se separarem.
Mauricio quiz romper o contracto, Gabriella porém insistiu.
Ao despedirem-se a baroneza disse para o primo, com uma inflexão de voz que alvoroçou o coração do pobre rapaz:
—Agora provavelmente vaes procurar vêr a menina Bertha?
Mauricio respondeu expansivamente:
—Conceda-me que lhe beije a mão, prima, e correrei a encerrar-me em casa com as impressões d'esta memoravel manhã.
Gabriella concedeu-lhe o pedido e recompensou-lhe com um sorriso o galanteio.
E Mauricio foi effectivamente para os Bacellos, com o pensamento occupado pela imagem da prima.
No meio dos seus enlevos pungia-o uma ideia.
«E Bertha?» pensava elle.
A pobre Bertha, que a vaidosa imaginação do rapaz teimava em representar perdida de amores, não soffreria muito se outra lhe disputasse com vantagem a posse do coração d'elle. E não estava esse perigo imminente?
É porém de notar que esta contrariedade era um dos maiores incentivos para augmentar a chamma da sua nascente paixão por Gabriella.
Havia uma perspectiva de lagrimas e de dôres a servir-lhe de fundo do quadro, e Mauricio, sem ser cruel e compadecendo-se até de antemão do mal que suppunha ir causar ao coração de Bertha, sentia-se seduzido por a situação que creára.
Expliquem como podérem estas contradicções de caracter, na certeza de que o facto não é excepcional, antes muito da regra commum.
Depois de separar-se de Mauricio, a baroneza guiou a egoa na direcção da Herdade. Decidida a vêr e a estudar Bertha, para saber até que ponto estava o coração da rapariga empenhado nos conflictos domesticos dos senhores da Casa Mourisca, Gabriella adoptou a resolução de procural-a sem simular pretexto algum. Os costumes singelos do campo authorisavam esta suppressão de ceremonias; demais, como parenta que era de Jorge e de Mauricio, tinha a certeza de ser bem recebida lá.
Desviando-se da estrada para seguir por um atalho que ladeava a collina, avistou uma pequena capella rustica, com a sua galilé e o seu pequeno bosque de sovereiros a rodeal-a, e tão pittorescamente situada em uma das eminencias proximas, que não pôde resistir ao desejo de subir até alli.
A capellinha, erigida sob a invocação de Sancta Luzia, um dos nomes de mais devoção entre os do florilegio christão, poisava sobre a collina em uma d'essas situações que o povo, com seus instinctos poeticos, costuma escolher para assentar esses modestos monumentos da sua fé e piedade.
O valle feracissimo, por onde se estendiam os vergeis, as searas, as quintas e os lameiros de duas ou tres freguezias, descobria-se todo d'alli. A vista seguia nos seus successivos meandros o pequeno rio que se estirava em chão de areia, por entre moitas de azevinhos, de laurentins e de salgueiros, cujos ramos aqui e além se abraçavam de margem para margem. O campanario da igreja parochial, a ponte de dois arcos, os açudes, as azenhas, as prêsas onde cantavam, lavando, as raparigas do campo, os estendaes onde a roupa de linho branqueava sob os raios do sol, as noras toldadas de parreiraes completavam a feição campestre da paisagem.
Prendendo a egoa ao ramo vigoroso de um d'estes carvalhos decepados, a que na provincia chamam tocas, Gabriella caminhou a pé para a galilé da ermida.
Ao chegar alli descobriu no muro sobranceiro ao lado menos accessivel da collina, uma rapariga sentada costurando.
A baroneza adivinhou logo que era Bertha e applaudiu-se do palpite que a fizera desviar do caminho para subir alli.
Bertha saudou-a affavelmente, como quem tambem a reconhecêra.
A baroneza dirigiu-se-lhe sem rodeios.
—Não é verdade que é a menina Bertha da Povoa que tenho a felicidade de encontrar aqui?
—Sou, sim, senhora baroneza… porque me parece que estou fallando com….
—Justamente. Achamo-nos pois conhecidas. Tanto melhor, para não perdermos tempo com apresentações. Agora permitte-me que a abrace, como a uma pessoa a quem estimo?
—Oh minha senhora!
E as duas mulheres abraçaram-se, saudando-se affectuosamente, como se uma subita sympathia as aproximasse.
—Sabe—proseguiu a baroneza, sentando-se ao lado de Bertha—que ia procural-a?
—A mim?!
—É verdade. Veja que feliz acaso o que me fez subir a esta capella, para gozar do panoramma que se descobre d'aqui.
—É um dos passeios mais bonitos d'estes sitios.
—Pelo que vejo costuma fazer d'aqui a sua casa de lavor?
—Ai, não; raras vezes; hoje vim para esperar meu pae, que chega do
Porto. D'aqui avista-se quasi meia legua de estrada. Vê?
—Ai, volta hoje o pae? Visto isso tambem o meu primo Jorge.
—Tambem… julgo que tambem.
Bertha não foi superior a uma leve turbação, ao ouvir o nome de Jorge e ao responder á baroneza. Quem tem no coração um segredo que de todos quer recatar, trahe-o muitas vezes, á força de disfarçal-o. Em cada olhar suspeita uma espionagem, em cada palavra uma allusão, e se a conversa se aproxima do assumpto, segue-a tremulo, como se segue o caminho que se abeira de um precipicio.
A baroneza, que tinha ainda os olhos fitos em Bertha com a curiosidade propria de uma mulher ao observar outra que sabe causar impressão nos animos masculinos, notou aquelle indicio de confusão, e não o desprezou.
—É um generoso rapaz o meu primo Jorge, não acha?—interrogou ella, demorando o olhar no rosto de Bertha.
Esta sentiu o perigo em que estava de trahir-se, e concentrando por isso toda a sua coragem, conseguiu levantar os olhos para fitar a baroneza e responder com apparente serenidade.
—É um nobre caracter, um rapaz a quem se deve respeitar como a um velho honrado.
—Respeitar como a um velho honrado, diz bem; amar como a um rapaz é que não é possível.
Bertha córou d'esta vez, respondendo:
—Não queria dizer isso.
—Bem sei que não. Mas digo-o eu. Jorge é um escravo do dever, e tão absorvido anda nos seus grandes e generosos projectos, que não ha para sonhos de amor logar n'aquella cabeça. As raparigas não podem amar um homem assim, em quem os olhares da mais affectuosa sympathia não insinuam calor no coração. Tem umas maneiras para todas uniformemente polidas e affaveis, que excluem a ideia da menor preferencia. Pois não lhe parece?
—Os nobres sentimentos da alma tambem podem exercer algum prestigio…
—Mas valha-me Deus, Bertha, esse prestigio revela-se em taes casos por uma veneração, que não é amor. É como a que temos pelos sanctos. De virtuosos e justos que nol-os pintam, fogem do nosso nivel e temos de elevar a vista para contemplal-os; e d'esta maneira, com os olhos no céo, adora-se, mas não se ama.
Bertha, com os olhos fitos em não sei que ponto da perspectiva, não respondia e parecia engolfada na corrente de profundos pensamentos.
A baroneza, sem interromper a sua observação, continuou:
—Já assim não é Mauricio.
A abstracção de Bertha não lhe deixou reprimir um movimento que estas palavras lhe provocaram. Dir-se-ia que lhe custava a aceitar a comparação.
Gabriella, observando-a sempre, proseguiu:
—Mauricio não tem o juízo de Jorge, é verdade; porém é mais amavel. Os seus mesmos defeitos fazem com que seja possivel fital-o mais directamente, sem que o esplendor dos seus meritos nos offusgue. É um rapaz, que sem deixar de ser generoso, permanece no nivel commum, em que todos vivemos, e ahi é bem mais facil amal-o.
Bertha escutava quasi distrahida; só passados instantes, depois das ultimas palavras da baroneza, foi que rompeu o silencio, dizendo vagamente:
—São ambos duas almas generosas e merecedoras de estima.
—De certo—insistiu a baroneza.—Mas, minha querida Bertha, eu não sei se lhe succede o mesmo… mas em geral estes rapazes serios e de juizo, como Jorge, intimidam-nos a nós outras, mulheres; não ousamos fital-os com um olhar de sympathia, com medo de que só por esse olhar elles nos accusem, mentalmente pelo menos, de estouvadas, e o resultado d'isto é que não olhamos para elles.
Bertha sorria, sem responder.
—Conhece ha muito esta familia?—perguntou a baroneza.
—De pequena. Brincamos muitas vezes, eu, Beatriz e todos elles na Casa
Mourisca.
—E Jorge era então já assim sisudo?
—Foi sempre mais ajuizado do que as crianças da sua idade.
—É um rapaz singular. Já tenho pensado em que era preciso casal-o, porque dará um excellente chefe de familia. O essencial é passar em claro os tramites de um galanteio, porque para isso é que elle não é.
Bertha nada disse ainda.
A baroneza proseguiu:
—Por isso é necessario que os estranhos tractem d'isso e escolham por elle.
Bertha aventurou timidamente algumas palavras.
—E aceitará elle a intervenção em um acto tão essencial da sua vida? Elle que está costumado a olhar em pessoa por os negocios que lhe dizem respeito?
—Isso é verdade, mas contentar-se-ha em fallar directamente com a noiva que lhe propozerem e dizer-lhe com aquella natural franqueza todo o seu pensamento, e feito isto póde a escolhida ter a certeza de que terá n'elle um marido leal e affeiçoado, talvez sem grandes requebros de amante, mas com a verdadeira estima de um amigo.
—De certo que a pessoa a quem o snr. Jorge estender a mão póde confiar n'ella como na de um pae.
Bertha, julgando dizer estas palavras naturalmente, não pôde tirar-lhes um tremor de commoção, que a baroneza notou.
Bertha foi quem primeiro rompeu o silencio, que se seguiu a estas palavras:
—Mas dizia a snr.ª baroneza que viera procurar-me?
—É verdade. Andava anciosa por conhecêl-a. Adivinhava-a pela impressão que via causar em quantos se aproximavam de si. O tio Luiz fallava-me de Bertha com uma ternura a que já é pouco sujeito; Mauricio com um enthusiasmo de apaixonado; e Jorge….
Gabriella fez aqui intencionalmente uma pausa, durante a qual estudou a physionomia de Bertha.
Esta baixára-se, como para cortar uma malva do chão, mas nas faces estendia-se-lhe um rubor fugaz, que denunciava um intimo alvoroço.
—E Jorge—concluiu a baroneza—com aquelle modo apparentemente frio que tem para dizer todas as coisas, mas em termos que exprimiam bem a sua estima por a pessoa de quem fallava; d'aqui o meu desejo de conhecêl-a; não me admiro agora de todo aquelle effeito, porque eu mesma o estou sentindo já.
Bertha sorriu, agradecendo-lhe o comprimento.
—Creia-me, Bertha. Conhecemo-nos de pouco, mas olhe que sou já sua amiga e talvez possa ainda mostrar-lh'o um dia.
—Agradecida, snr.ª baroneza.
—Não tome esse tom de ceremonia para me fallar. O que eu digo não é um comprimento. Sabe que mais, Bertha? Talvez que pouca gente esteja tão adiantada no conhecimento do seu coração como eu, depois d'esta nossa primeira e curta entrevista.
Bertha córou d'esta vez intensamente, e olhando para Gabriella com um olhar assustado, balbuciou quasi tremula:
—Do meu coração?… Por ventura…
—Não se assuste. Não quero fallar mais nisto emquanto não me conhecer melhor. Só lhe digo que eu não passo de uma pobre mulher com bastante coração e com o grau de loucura preciso para me enthusiasmar pelo partido dos sentimentos generosos e sinceros, quando luctam com as convenções e os preconceitos sociaes. E agora deixe-me mostrar-lhe um grupo de cavalleiros que estou d'aqui vendo, e que talvez o seu olhar melhor possa distinguir do que o meu.
Bertha, seguindo com os olhos a direcção que a baroneza lhe indicava, exclamou:
—São elles, são! É meu pae e Jorge… e o snr. Jorge.
E aproximando-se do angulo do adro, d'onde melhor poderia ser vista, pôz-se a acenar com o lenço para os recem-chegados.
Thomé não respondeu logo, mas passado algum tempo tremulava na ponta da vara do cavalleiro, como flammula em mastaréo de navio, o lenço de quadros, que o vento desenrolava.
Gabriella, seguindo com os olhos os movimentos de Bertha, pensava:
—O mysterio d'esta já eu descobri. Pobre criança! tem muito pouca astucia para occultal-o. Ha n'ella uma transparencia que deixa vêr até ao coração. E aquelle?—proseguiu, dirigindo os olhares para Jorge, que ainda vinha longe—Enganar-me-ia eu? Não será aquillo sómente frieza, será reserva? Póde ser, póde. Estes homens assim morrem ás vezes com uma paixão no peito, e morrem por esforços que fazem para occultal-a. Se o facto se dér com Jorge, é uma coisa gravissima; quem póde calcular o que se seguiria? Emquanto a Mauricio, já vejo que está tudo bem; parece-me que por este lado não deixará muitas lagrimas por vestigio da sua passagem, nem terei de sentir remorsos se o arrebatar para longe d'estas paragens. Mas observemos.
Bertha, que corrêra a esperar os cavalleiros, estava nos braços do pae, que a beijava com effusão. A baroneza, meio occulta por um tronco de sovereiro, notou um rapido olhar de Jorge para Bertha, quando a rapariga ainda o não podia vêr, porque Thomé lh'o encobria; notou mais que assim que Bertha o procurou, estendendo-lhe a mão, Jorge correspondeu com ceremoniosa deferencia, e nunca mais dirigiu para ella a vista.
A baroneza foi emfim ao encontro dos viajantes.
Recebeu de Jorge um acolhimento sem comparação muito mais expansivo, do que o que Bertha lhe merecêra. O penetrante espirito de Gabriella interpretou esta differença a seu modo.
A companhia desfez-se passado pouco tempo.
Thomé tinha pressa de chegar a casa; segurando a egoa pela arriata, despediu-se da baroneza e de Jorge, e partiu, em companhia da filha, caminho da Herdade.
A despedida de Jorge e Bertha teve a mesma apparencia de reserva e de constrangimento, que caracterisára o primeiro encontro.
Observou porém Gabriella que, proximo a dobrar uma curva do caminho, além da qual se perdia de vista Thomé da Povoa e a filha, que seguiam em direcção opposta, Jorge se voltou para traz com apparente naturalidade.
—Então que resultados colheste da tua excursão?—inquiriu a baroneza, não demonstrando as descobertas que ia fazendo, emquanto cavalgava ao lado do primo.
—Excellentes—respondeu Jorge, em tom de verdadeira satisfação.—Estes dias foram preciosos. O nosso pleito entrou em muito melhor caminho depois da minha conferencia com os advogados. Não me havia illudido sobre a importancia do tal documento que a incuria de frei Januario deixára encher de môfo nas gavetas.
Os advogados quasi me asseguraram o exito da causa. Se assim fôr, posso dizer meio vencida a tarefa que emprehendi. As informações que colhi sobre a nova instituição de Credito Predial animaram-me. Legalisados alguns titulos menos regulares, e alienando uma parte da nossa propriedade, que é apenas um estorvo ao melhoramento da outra, poderei habilitar-me a usar prudentemente do credito, recorrendo á nova instituição; resgatar a nossa casa, e dentro de alguns annos remir a divida, graças á eficacia dos melhoramentos que espero realisar. E dizem ainda mal das instituições modernas! Ellas apenas sacrificam os que a ellas recorrem com uma intenção má. O dissipador que julga illudir o credito sob falsas promessas de melhoramentos, é um dia por elle severamente castigado. E justo é que o seja. Mas quem o procurar com boa fé, com lizura, com intelligencia e com o animo decidido para trabalhar, encontrará n'elle auxilios milagrosos.
Jorge faltava com tanto enthusiasmo, que a baroneza, ao ouvil-o, ia sentindo dissiparem-se as suspeitas que ao principio concebêra.
—Este enthusiasmo enche completamente todo aquelle coração—pensava ella—não póde haver lá dentro vazio que o atormente.
Jorge proseguiu informando minuciosamente a prima do estado dos seus negocios, dos seus planos de reformas, das suas esperanças no futuro, e quasi lhe não poupou o calculo de annuidades, pelo qual chegava a determinar a época em que poderia amortisar totalmente a divida contrahida, segundo as bases da legislação hypothecaria.
Só próximo á quinta dos Bacellos foi que a baroneza conseguiu dar á conversa a direcção que havia muito lhe desejava vêr tomar.
Discutindo com o primo o valor dos meios a que se poderia lançar mão para trabalhar na empreza em que elle se empenhara, Gabriella lembrou-lhe o de um casamento com mulher abastada.
Jorge sacudiu a cabeça em signal de repugnancia.
—E aconselha-me isso?—exclamou elle—Não seria regenerar-me, seria vender-me, e venda mais vergonhosa do que aquella aonde nos conduziria o systema de administração seguido até agora n'esta casa; porque n'esse apenas se punha em venda a propriedade, e n'este vendia-se o proprietario.
—Isso é conforme a maneira de vêr as coisas; além de que eu a ti já faço a concessão de não suppôr um casamento exclusivamente por interesse, mas quero que um pouco de amor authorisasse o contracto, que sem tal sancção te repugnaria. Tudo se póde combinar.
—Eu não tenho tempo para amar—respondeu Jorge sacudidamente.
—Ora; o amor não espera occasião opportuna. E eu não posso acreditar que uma alma como a tua não esteja conformada para uma affeição verdadeira.
—Não digo que não; mas quero fugir de pôr em pratica essa aptidão, se a tenho, porque talvez que depois não sentisse bastante contemplação para com o mundo, para aceitar a restricção que elle costuma impôr á satisfação das paixões.
—Mas quem te diz que se estabeleceria esse conflicto entre ti e o mundo?
—Era o mais provavel.
—Queres dizer que mais depressa te apaixonarias por alguma rapariga do povo, pobre, costumada á vida do trabalho e da economia, do que por qualquer das tuas ociosas e fidalgas primas d'estes arredores.
—Com certeza que não me seduzirão essas.
—Mas vamos; se apesar das tuas precauções o facto se désse—porque emfim… estas coisas nem sempre é possível evital-as—romperias abertamente com o mundo?
—Nem quero pensar no que faria. Talvez me resignasse a deixar-me sacrificar aos preconceitos dos outros. Sabe de quem. Resignava de certo, se o sacrificio fosse sómente meu. Mas, se amasse devéras e fosse amado, e a mulher, a quem dedicasse este amor, não tivesse igual coragem para o mesmo sacrificio… não me julgaria com o direito de fazel-a soffrer por uma ideia, que nem para ella nem para os seus tivera o prestigio de uma crença. Mas fallemos em outra coisa, porque este pensamento incommoda-me até.
—Dir-se-ia que não é sómente como pura abstracção, que elle te apparece, Jorge. Fallemos porém d'outra coisa, fallemos.
E a baroneza mudou effectivamente de conversa.
Mas, ao entrar em casa, julgava ella ter obtido as informações que desejára possuir.
Clemente, o filho da Anna do Védor, que nos tem andado longe da vista desde a primeira vez que o encontramos, estava destinado a influir na sorte dos principaes personagens d'esta historia; convem portanto que outra vez o chamemos mais para a luz.
Sabemos já que a vida publica d'este bem intencionado rapaz não era isenta de espinhos. As resistencias e estorvos que se oppunham á carreira direita, que o seu vivo sentimento de justiça lhe traçára, deixavam-lhe intimos desgostos e turbavam-lhe a bucolica serenidade dos seus dias.
Embora ás iniquidades que observava fosse estranha a sua vontade e a sua cooperação; embora a consciencia lhe não exprobrasse uma unica infracção voluntaria das leis, que religiosamente acatava, ainda assim, como todas as almas bem formadas, Clemente tinha motivos de sobra para lhe amargurarem o coração generoso e leal, vendo de perto a parcialidade e as paixões más, que presidiam á distribuição da justiça pelas mãos dos seus superiores e os privilegios que faziam desviar a balança da horisontalidade com que elle sonhára.
Todos os caracteres nobres não adquirem, sem doloroso aprendisado, a desconsoladora sciencia, que se chama scepticismo. Cada illusão que se desvanece é um golpe fundo no mais sensivel da alma, e os conflictos da vida social deixam feridas que só lentamente cicatrizam.
Clemente estava n'este caso. Modestas como eram, as suas funcções civis tinham-lhe aberto os olhos para muitas coisas obscuras e desenvolvido no espirito um fermento de descrença.
Assustado com o que sentia, temendo saber mais e ser obrigado a operar como instrumento passivo em iniquidades que lhe repugnavam, Clemente sentiu o desejo de se acolher á vida privada, onde não lhe chegasse aos ouvidos o rumor das injustiças humanas.
Um novo incidente, em que tomaram parte os fidalgos do Cruzeiro, principaes fautores de todos os attentados no concelho, acabou de decidil-o.
Vimos em um dos capitulos precedentes, que elles protegiam muito ás escancaras a fuga de um refractario ao serviço militar, facto que sobremaneira irritára Clemente, o qual chegou a tentar pôr em prática as medidas extremas, que a lei lhe permittia. Encontrou, porém, na authoridade administrativa, que afagou a influencia eleitoral dos fidalgos, froixo apoio, e o refractario conseguiu escapúla.
Logo depois de realisada a fuga, Clemente, que a attribuia sobre tudo á falta de energia do seu chefe, recebeu d'este um officio censurando-o asperamente pela debil vigilancia que tivera no caso e admoestando-o para ser de futuro mais activo e diligente.
Esta duplicidade indignou o ingenuo rapaz, que resistiu a custo á tentação de ir dizer ao administrador algumas amargas verdades.
Dias depois houve um serão em casa de um lavrador da freguezia, e Clemente recebeu aviso de que os manos do Cruzeiro premeditavam para essa noite umas vinganças contra uns serandeiros com quem mantinham uma rixa antiga.
O regedor, não só por dever do cargo, como pelo desculpavel desejo de dar uma severa lição a esses incorrigiveis, causa principal dos seus desgostos, tomou providencias, reuniu os cabos e rondou as proximidades da casa do serão.
A precaução policial foi util, porque evitou alguma desgraça séria. Pela meia noite os dois irmãos do Cruzeiro sahiram ao caminho a um camponez, que recolhia do serão, e atacaram-n'o com impeto, que não denunciava um proposito innocente.
O regedor cahiu porém sobre elles, e a muito custo conseguiu captural-os, jurando que sómente os soltaria á ordem expressa da authoridade superior.
A ordem veio e redigida em termos severos para o honesto rapaz, a quem se recommendava mais tino e cordura no desempenho das suas obrigações.
Os apaniguados dos fidalgos, parasitas que ainda se nutriam da seiva quasi exhausta d'aquella carcomida arvore genealogica, clamaram contra o attentado do regedor e chegaram a ameaçar-lhe a existencia, fazendo-lhe esperas nocturnas. Mas, o que mais é ainda, o povo, os pobres, os opprimidos, os esmagados de hontem, esses mesmos, quasi levaram a mal ao regedor a falta de attenção que tivera para com os fidalgos. Transtornar uma regra social estabelecida, embora seja para bem, escandalisa sempre os fanaticos da ordem; e ha-os tão fervorosos, que a adoram, ainda quando ella revista a feição moscovita.
A taça trasbordou para Clemente. Pediu terminantemente a sua demissão e foi-lhe concedida, com muita facilidade por as eleições estarem proximas, e serem em regra incommodos impecilhos estes caracteres amigos do justo para o andamento da machina administrativa, quando empregada na grande tarefa de cunhar deputados com a effigie governamental.
Com grande jubilo celebrou Anna do Védor a resolução do filho. Havia muito tempo que ella lhe aconselhava aquelle passo.
—Que precisão tens tu, Clemente, de te metteres n'estas barafundas? Se não precisas d'isso para comer, para que has de perder o socego com coisas que te não dão interesse?—pregava ella, inoculando no filho a sua philosophia um tanto egoista.—Olha, rapaz, a tua casa já dá bem que fazer a um homem. E quem quizer que prenda os ladrões e ande adiante dos cabos em serviço do rei, que tu, graças a Deus, não ficas mais honrado com isso. Inda se essa gente do governo fizesse caso de quem os serve bem, mas tu estás vendo como elles são. Por isso deixa-os; elles que se avenham, que lá se entendem.
Assim que o filho efectivamente declinou o encargo da regedoria, disse-lhe a ajuizada matrona:
—Agora para a dares em cheio, sabes tu o que deves fazer? É casar-te. Isso é que era ouro sobre azul. Porque emfim, rapaz, só assim é que se ganham raizes em casa e que um homem é devéras homem de familia. Emquanto solteiros, ora adeus, por melhores que vossês sejam, lá vem um serão, lá vem uma caçada, lá vem uma doida de uma rapariga que vos faz andar a cabeça á roda. Não ha como é isto de ouvir gemer as crianças em casa e cantar a mulher a arrolal-as. Tu riste? É o que te digo. Quando eu me casei com teu pae, que Deus haja, todos me diziam: «Ó filha, não levas homem que te gaste muito os trastes da casa.» Porque, emquanto solteiro, elle tinha sido d'aquelles de se lhes tirar o chapéo, dos taes que Deus mandou fazer. Pois era vêl-o depois. Logo que podia, elle ahi estava ao pé de mim a brincar com as crianças. Até muitas vezes eu lhe cheguei a dizer: «Ó homem, sahe-me d'aqui para fóra; eu não gósto de vêr homens tão caseiros.» Por isso, rapaz, faze o que te digo, casa-te, que estás em boa idade.
—Não vou longe d'isso, minha mãe, mas bem vê que não é coisa que se faça assim do pé para a mão.
—Não, olha, tu tambem para andares muito tempo a arrastar a aza á rapariga é que não és, que isso sei eu. Pois então é tractar da coisa como de negocio serio e casar.
—Mas… e a noiva? Ahi está já a primeira dificuldade.
Anna do Védor olhou muito direita para o filho, e depois de um instante de silencio interpellou-o:
—E então tu, na tua verdade, ainda não lançaste as tuas vistas?
Clemente encolheu os hombros como quem não podia dizer que não, nem queria dizer que sim.
—Ora para mim é que tu vens com isso. Lançaste, sim, e nem podia deixar de ser, que não tinhas muito onde escolher. Queres que te diga quem é? Olha que tambem eu nunca tive outra na ideia.
—Mas eu não pensei ainda a serio….
—Adeus; e que tens tu que pensar? Porque é que te não havia de convir a pequena do Thomé?
Clemente respondeu um pouco sobresaltado:
—A mim de certo convinha; agora eu é que talvez lhe não convenha. A
Bertha está educada tanto á cidade…
—E com quem queres tu que ella case, não me dirás? Com algum dos pequenos do fidalgo, hein? Que elles estão mesmo alli á espera d'ella. Deixa-te de tolices. A rapariga deve erguer as mãos ao céo se agarrar um marido, que não é nenhum labrego, que é homem de bem e capaz de estimal-a.
—Mas o pae, que a educou assim e que em tanta conta tem as prendas da filha, ha de aspirar a mais.
—O quê? O Thomé é um homem de juizo. E então digo-te mais, eu já lhe toquei n'esse negocio, e o homem não se deitou de fóra d'isso, antes mostrou que lhe agradava bem o projecto.
—Devéras fallaram n'isso?
—Então não t'o estou a dizer? E o Thomé da Povoa lembra-me bem que me disse: «A minha Bertha o que deve esperar é um marido honrado, trabalhador e que a saiba estimar, e o seu Clemente é a nata dos rapazes.» Depois, aqui para nós, o Thomé sabe as circumstancias em que tu estás, e, vamos lá, isso tambem influe. E faz elle muito bem, lá isso ninguém lhe póde levar a mal.
—Porém Bertha…
—Deixa-te de acanhamentos, rapaz. Sabes o que mais? O que eu estou vendo é que tu com'assim não dás conta do recado. Por isso vae ter com o Jorge. Elle é alli tudo em casa do Thomé, é quem dá lá os dias sanctos. O que elle diz é o que se faz, nem se mexe um pé em casa sem consultar o pequeno. E juizo tem elle para aconselhar bem, que aquillo foi mesmo um milagre do céo, o nascer aquelle rapaz na família. Pois vae tu ter com elle, vae e dize-lhe as tuas tenções, e elle gue se encarregue do mais. Vae por ahi, que vaes bem. Digo-t'o eu. O Thomé tens tu de teu lado, e Luiza diz sempre com o marido; emquanto á rapariga, ella ha de reconhecer que tu não és noivo que se engeite.
Horas depois, Clemente, a quem a mãe acabára de convencer, procurava
Jorge no seu gabinete de trabalho na propriedade dos Bacellos.
Clemente encontrou Jorge sentado á banca, tendo diante de si massos de papeis e de livros, que consultava com attenção.
A entrada do filho de Anna do Védor não obrigou Jorge a interromper a sua tarefa; saudou-o com a affectuosa familiaridade que de pequeno usava para o seu irmão de leite, e continuou trabalhando.
—Bons dias, snr. Jorge. Pelo que vejo trabalha-se?
—Que remedio, meu bom Clemente, que remedio? Estes negocios de minha casa estão de tal maneira enredados, que não fazes ideia.
—N'esse caso fiz mal em entrar; vim distrahil-o.
—Não, não, Clemente, não. Deixa-te ficar, que me não estorvas. O que estou fazendo não é de tal transcendencia, que não me deixe fallar com os amigos. Estou aqui a ver se descubro n'esta papelada um documento de que preciso. Aquelle frei Januario sempre tinha isto em uma desordem! Eu bem sei o que elle merecia. E que me dás tu de novo, Clemente? Disseram-me que te demittiste do logar de regedor?
—E ha mais tempo que o devia ter feito, que nunca recebi senão desgostos no officio.
—Sim, cá por este mundo, quem andar por caminho direito póde contar com encontrões, que magoam—observou Jorge, sem erguer os olhos dos papeis.
—E não foram poucos os que me deram. Perdoe dizer-lh'o, snr. Jorge, mas aquelles seus primos do Cruzeiro…
Jorge encolheu os hombros, fazendo um gesto de desprezo.
—Que queres tu, homem? Se elles nem para si mesmos são bons! Aquillo nos Cruzeiros é uma cama de tres javalis, qual d'elles mais selvagem. Que se póde esperar d'aquella gente?
—Mas teem quem os attenda, que é o que me faz zangar. Uma authoridade descer áquellas baixezas e andar ahi a receber o beija-mão d'aquelles senhores! Isto, isto, a fallar a verdade, parece-me… nem eu sei o que me parece.
Jorge esteve algum tempo sem retorquir, absorvido pelo exame de um papel que encontrára no masso. Depois, tomando á margem uma nota a lapis, e pondo o papel de lado, ponderou vagamente:
—Coisas d'este mundo, Clemente; que remedio senão aceital-o assim?
—Isso é que é verdade.
—E lá por casa como vão? Tua mãe?
—Bem; foi ella quem me aconselhou esta visita.
—Sim? Então já não t'a agradeço.
—Eu, a fallar a verdade, como sei que tem o tempo muito occupado, receio…
—Ora deixa-te de tolices. Se por acaso estivesse tão occupado que me não fosse possivel receber-te, com a maior franqueza t'o diria. Bem sabes que entre nós não ha etiquetas.
—Pois eu vinha para pedir-lhe um favor.
—Terei muito prazer em te servir—respondeu Jorge, levantando-se para procurar novos papeis na secretaria e voltando a sentar-se á banca, sempre entretido no seu trabalho.
—Como sabe, pedi a minha demissão e estou agora resolvido a viver em minha casa, e a occupar-me sómente dos meus negocios.
—É justo. E quem bem trabalha no que é seu, tambem trabalha no que é de todos—ponderou Jorge emquanto executava uns calculos arithmeticos.
—Ora, para fazer a vontade a minha mãe e tambem por me sentir com inclinação para isso, estou meio decidido a…
—A casar-te, hein?—concluiu Jorge, sem manifestar surpreza, e notavelmente embebido na execução dos seus calculos.
—Justamente.
—É uma boa resolução. Os homens como tu dão excellentes chefes de familia. Podes fazer a tua felicidade e a da mulher com quem casares.
—Isso são favores seus, snr. Jorge.
—Ora! Mas a final o que queres tu? Vens ouvir-me de conselho n'esse negocio? A mim, um rapaz solteiro?…
—Não, senhor, a coisa é outra.
—Então?
—Eu já lancei as minhas vistas…
—Sim, é natural.
—Mas não sei ainda se serei bem acolhido e, para lhe fallar a verdade, não me sinto com animo de… de tractar disso em pessoa.
—Não? Ora essa! E então?
—E então lembrei-me do snr. Jorge para lhe pedir este favor.
—De mim?! Tem graça. Queres obrigar-me a representar o papel de casamenteiro. Com todo o gosto. Mas sempre tenho curiosidade de saber a razão por que te lembraste de mim—disse Jorge que, havendo concluido o calculo, poisára a penna e esfregava vivamente as mãos para aquecêl-as. Olhando d'esta vez directamente para o seu interlocutor, perguntou-lhe:
—E quem é a noiva?
—É a filha do Thomé da Povoa.
Estas palavras dissiparam instantaneamente toda a meia indifferença com que Jorge escutára até alli as communicações de Clemente. O estremecimento que não pôde reprimir ao ouvil-as, a subita transformação que se lhe operou na physionomia, bastariam para revelar a verdade a Clemente, se este bom rapaz não tivesse uma d'aquellas almas, onde nunca entram de subito as suspeitas, mas sómente depois de muitos e porfiados embates.
—A filha do Thomé da Povoa!—repetiu Jorge estupefacto.
—Sim—tornou Clemente, interpretando erradamente aquelle espanto—a filha do Thorné da Povoa, do Thomé da Herdade… Bertha, a que foi educada em Lisboa e que voltou ha tempos…
—Bem sei—atalhou Jorge com impaciencia—mas… Bertha…
E acrescentou quasi sem consciencia do que dizia:
—Bertha da Povoa… mas… mas como te lembraste agora de Bertha sem mais nem menos? É singular!
—Como me lembrei agora? Mas não foi agora que me lembrei. Eu já tinha penâado n'isso. É a noiva que eu proprio…
—Pois sim, mas… Como te deu logo para pensar em Bertha da Povoa? É o que pergunto.
—Ora essa! Em alguma havia eu de pensar. Se não fosse n'ella, seria em outra. Succedeu ser em Bertha. Coisas do coração…
—Ahi vens tu já com o coração—acudiu Jorge com mal reprimido despeito.—Vossês fallam no coração a proposito de tudo. E até agora então, que andavas todo influido com a tua regedoria, não te importaste com o coração, nem elle te dizia nada… Ora adeus! O coração!…
E erguendo-se da banca com certa agitação, que estava espantando Clemente, pôz-se a passeiar no quarto, e tão convulso que não conseguia preparar um cigarro, que mal sustinha nas mãos.
Clemente allegou:
—Eu não digo que isto seja uma paixão muito forte, uma paixão por ahi além; mas, resolvido a tomar estado, pensei na noiva que me conviria e lembrei-me de Bertha. É uma boa rapariga, bem educada e de alguns haveres…
Jorge cortou-lhe a palavra:
—Ah! então dize-me d'isso. Agora já entendo por que te lembraste de Bertha. Devias principiar logo por ahi. De alguns haveres! Ahi é que está a questão. Vossês são todos os mesmos a final. O interesse, o maldito interesse! Pois fazia melhor conceito de ti, Clemente; digo-te francamente que fazia de ti melhor conceito. Lá porque uma rapariga tem meia duzia de centos de mil reis, já a perseguem com proposito de casamento, já…
—Ó snr. Jorge—interrompeu Clemente, tão surprendido como vexado com o que ouvia—por quem é faça melhor opinião de mim. Não só me não lembrei de Bertha apenas pelo dinheiro, mas nem a quero perseguir. Olha quem? Eu! Se a rapariga disser que não, ou o pae, paciencia. Mas parece-me que a minha proposta não a deshonra.
Jorge principiava já a conhecer a sem-razão com que fallava, mas não podia ainda ceder totalmente ao bom senso que despertava em si. Não tinha previsto o caso, que se lhe offerecia, e sentia-se por isso irritado contra a hypothese que tão imprevistamente lhe surgira no caminho.
—Pois sim… mas…—murmurava elle, sem saber o que dissesse—mas… Bertha… Olha, se queres que te falle a verdade… Bertha não te convem.
—E porque acha?
—Porque… Ora, porquê?… Eu não posso bem dizer porquê… porque… porque não.
—Parece-lhe talvez que tem uma educação muita fina para mim?
—Não, não digo bem isso… mas…
—Eu tambem concordo. Mas attenda o snr. Jorge que aqui na terra as pessoas melhor educadas do que eu não a querem para mulher. Eu sei de fidalgos que não se lhes daria de inquietal-a, e já o teem mostrado. Mas creia que menos a honram os olhares d'esses taes, do que a minha proposta. Eu não apreciarei, como conviria, os talentos de Bertha, mas talvez os respeite melhor. E em todo o caso julgo que se poderá fazer de mim um bom marido.
—Ninguem te diz menos d'isso… mas… bem vês que… Eu não sei quaes são as tenções de Thomé, porém parece-me que…
—De Thomé sei eu que approvaria o casamento, porque já o disse a minha mãe.
A estas palavras cresceu outra vez a irritação de Jorge.
—Então já é negocio tractado? Os paes fallaram-se. Está dito tudo. É o absurdo costume cá da terra. Provavelmente vão exercer pressão sobre a pobre rapariga, que se sacrifica para fazer a vontade á familia. Olha, sabes que mais, Clemente, isso não é bonito. Para que hei de estar a dizer o contrario? Não é bonito. Nem eu te quero dizer tudo o que penso d'isso.
—Mas, valha-me Deus, eu estou devéras admirado de vêr o juizo que o snr. Jorge faz de mim! Pois imagina que eu consentiria em casar com alguma mulher contra vontade d'ella?
—Tu é que disseste que tua mãe e Thomé já se entenderam—observou
Jorge, continuando a passeiar no quarto.
—Disse que fallaram n'isso e que elle não desapprovára. Mas o snr. Jorge conhece o Thomé e por isso sabe que elle não é homem capaz de obrigar a filha. Deus me livre de imaginar tal! Mas emfim vejo que o snr. Jorge não approva a minha escolha; eu respeito-o muito e não quero ir contra o seu parecer. Direi a minha mãe…
Jorge acudiu com vivacidade:
—Não, não. Eu não desapprovo. Essa é boa! Que tenho eu com isso? Segue lá o teu destino. E se fores feliz… tanto melhor. Eu sou teu amigo, desejo a tua felicidade. Anda… tenta… nada perdes em tentar. Emfim… eu não tenho objecções a pôr… só me parecia que… Mas emfim, anda para diante.
—Pois sim, mas… eu desejava que o snr. Jorge fosse quem fallasse.
Cresceu a impaciencia a Jorge.
—Não, não, isso é que não. Perde isso da ideia. Que lembrança! Eu fallar! E porque hei de ser eu? Que tenho eu com isso? Conheço o Thomé, não conheço a filha. Que me importa a mim saber se a Bertha te quer para marido, ou se não quer? Era até ridiculo. Mas como te lembraste de mim para esse emprego?
—Foi minha mãe quem me aconselhou.
—E porque não vae ella? Assim como tractou com o pae, que tracte com a filha. Quem quer negociar casamentos para os filhos não incumbe a estranhos parte da missão.
—É porque minha mãe julgava que o snr. Jorge não era para nós de todo em todo um estranho—murmurou tristemente o collaço de Jorge, a quem a imprevista maneira por que fôra acolhido por este tinha deixado em profundo desconsôlo.
Estas palavras de timida censura e a maneira branda e resignada com que foram ditas, commoveram Jorge e abateram a tempestade que lhe perturbára a habitual serenidade do seu espirito. Fazendo um esforço para dominar os despeitos que ainda sentia revoltos no coração, disse com maior placidez, apertando a mão de Clemente:
—E julgava bem tua mãe. Eu não posso ser para vós um estranho, nem vós para mim o sois. Farei o que desejas. Não faças caso das minhas palavras. Tenho andado um pouco impertinente estes dias por causa de certos negocios, e por isso fallei ha pouco mais vivamente. Desculpa. O teu projecto é razoavel, eu fallarei n'elle a Thomé. Que duvida? O que não prometto é servir-me de qualquer influencia que tenha sobre elle, porque… porque emfim… tenho escrupulos.
—Nem eu quereria que o fizesse. Basta que lhe exponha o caso; que lhe diga que estou resolvido a casar, e sentindo amor…
—Será melhor não fallarmos em amor—atalhou Jorge com renascente impaciencia—porque afinal, Clemente, vendo as coisas como ellas são, tu não amas Bertha.
Ao olhar espantado com que foram acolhidas estas palavras, Jorge respondeu já com mais força:
—Não amas, homem, não amas. Talvez estejas persuadido de que a amas, mas não ha tal amor. Desengana-te. Isso em ti é um projecto frio, pensado, no qual só achaste vantagens e portanto resolveste adoptal-o. Tens considerações por Bertha, entendes que podes estimal-a; mas amor é outra coisa. Deixemos porém isto. Fica decidido, eu fallarei a Thomé e dar-te-hei a resposta.
—Agradeço-lhe, snr. Jorge. Mas veja lá, se lhe custa…
—Porque ha de custar? Ora essa! Se fallo quasi todos os dias com o Thomé. Em logar de conversarmos no tempo que faz, ou no estado das terras, conversaremos n'isso. Sim, porque para mim é um assumpto como outro qualquer, O casamento de Bertha é um assumpto em que eu posso conversar com Thomé, naturalmente. Pois que tinha eu com o casamento de Bertha? Eu não sou irmão d'ella. Estimo-a, é verdade, mas… o que é certo é que… é que me não compete importar-me com o casamento de Bertha. Já vês então que não me póde ser custoso fallar n'isto ao pae… Pois porque te parecia que me havia de custar?
E Jorge dizia tudo isto com uma volubilidade e com uma inquietação que admirava Clemente.
—A mim? Por nada—respondeu este.—Eu dizia que no caso de não querer.
—Mas porque não? Fallo. Não tenho a menor duvida. Ámanhã dar-te-hei a resposta. Adeus. Agora peço-te licença para examinar umas contas.
—Eu retiro-me.
—Então adeus. E vae descançado; hoje mesmo tractarei d'isso. É uma coisa tão simples! Pois não te parece que é uma coisa simples? Sim, porque bem vês que eu nisso não tomo parte activa. Por acaso tinhas algum motivo para suppôr…
—Nenhum.
—Mas parecia que julgavas que eu tinha algum motivo… talvez…
—Eu não julgava tal—respondia Clemente cada vez mais espantado com a insistencia de Jorge, tão singular pelo menos como a sua primeira irritação.
Jorge conduziu o seu amigo até á porta do gabinete, onde se despediu d'elle, apertando-lhe affectuosamente a mão.
Depois de Clemente sahir, Jorge voltou a sentar-se á banca, e, como quem se dispunha a proseguir no trabalho interrompido, pôz-se com affectada tranquillidade a aparar um lapis, e trauteando a meia voz; mas tal era o estado nervoso em que ficáa e a sua distracção tão completa, que o lapis desfazia-se-lhe nas mãos, em vez de se apromptar para serviço. De repente arremessou de si o lapis, o canivete e varios livros e papeis que encontrou diante, e erguendo-se exclamou com accentuada amargura:
—Está pois decidido que eu vá pedir a Thomé da Povoa, e para Clemente, a mão de sua filha! Tem graça! Sempre se me preparam casos n'esta vida!
Principiou a passeiar na sala, com os braços cruzados, a cabeça pendida e o pensamento disputado por as mais contrarias paixões.
—Ahi está uma solução que eu não previa—continuou elle.—Sim, senhor; é a maneira mais simples e mais natural de cortar as dificuldades de que tanto me receiava. Assim tudo se resolve. Fixa-se o meu futuro, cessam as minhas hesitações, acalma-se a minha febre; applicarei o pensamento exclusivamente aos meus negocios… E ella… será feliz. Serão felizes… O casamento é natural… O Clemente é bom rapaz e Bertha…
Esta ideia provocou um movimento de reacção.
—Bertha e Clemente! Clemente marido de Bertha! Bertha casada com Clemente! Não me posso conformar com esta ideia. Não posso costumar-me a reunir estes dois nomes. É monstruoso, é impossivel!
E ficou por algum tempo abatido com os olhos fitos no chão, como subjugado por aquelle pensamento. Depois tornava, com nova energia:
—Mas quem tem a culpa? Sou eu, eu, que não tenho coragem para passar por cima de preconceitos ridiculos, que me prendo com teias de aranha e fico perpetuamente aguardando não sei o quê. Pois que podia eu esperar? Ou este sentimento em mim é real e poderoso ou não é. Se não é, com que direito me estou incommodando com o casamento de Bertha? Se é, porque não lhe obedeço? porque não me declaro, porque hesito…
Vinha depois a reflexão acalmar este momentaneo paroxismo.
—Sim, e havia de descarregar mais esse golpe sobre aquelle velho, que não tem culpa em acatar esses preconceitos no valor de um credo religioso! O primeiro golpe, por doloroso que elle o sentisse, foi-lhe salutar e evitou-lh'os mais crueis. Este porém só teria compensação para mim, e elle não lhe sentiria o beneficio. Vamos, deixemo-nos de loucuras. Resolvi ter coragem. Hei-de têl-a. Fallarei a Thomé.
Vinha-lhe em seguida um pensamento diverso.
—E qual será a resposta de Bertha? Ella não póde aceitar Clemente. A educação que recebeu… E porque não ha de aceitar? Clemente é um rapaz honrado, trabalhador, capaz de estimar e proteger a sua mulher. Que mais póde ella desejar? Este é o marido que lhe convem. Talvez lhe preferisse Mauricio, que se ri d'ella, que não pensará n'ella ámanhã, mas que é um rapaz da moda, elegante e que lhe sabe dizer bonitas palavras. A phantasia d'estas collegiaes…
Tornou a razão a fazer-se ouvir.
—Mas ahi estou eu com a minha loucura, accusando aquella pobre rapariga de defeitos, que nunca lhe pude descobrir. Mas se esta ideia faz-me perder o juizo! Pelo contrario, a Bertha tem muito bom senso, ha de comprehender o caracter do Clemente, apreciar as qualidades d'aquella excellente alma e aceitar a proposta… e até sem a menor hesitação. É um marido a final. As mulheres o que querem é um marido. Talvez até o Clemente agrade a Bertha… Hão de ser felizes. Porque não?… Bertha não tem aspirações mais solidas… Não póde ter… Aquillo com Mauricio é um capricho. Todos se hão de dar bem, e Bertha com a Anna do Védor… Que paz domestica! Tudo isto a final é naturalissimo. Eu sou que lhe estou dando mais importancia do que merece… Tracta-se de dizer a uma rapariga: «ahi está um homem que te pretende para mulher.» A rapariga, que não tem maiores aspirações, responde que aceita. E o casamento faz-se, e tudo entra no caminho ordinario, e eu mesmo me hei de habituar…
A explosão foi maior d'esta vez, que mais prolongado havia sido o periodo de repressão.
—Não, não me hei de habituar—exclamou elle agitadissimo—porque… porque eu amo-a! Escuso de mentir a mim mesmo. Amo-a! É uma fatalidade, mas amo-a. Foi o meu primeiro amor e ha de ser o ultimo. Amo-a e hei de padecer horrivelmente, vendo-a casada com outro. Mas, não importa, vencerei as minhas paixões. Se continuar a amal-a, ninguem o saberá; se odiar Clemente, suffocarei esse odio no coração; e se elle se despedaçar n'esse esforço, morrerei sem deixar no mundo o segredo de minha morte. O meu destino está definido; é este, o de vencer-me. Principia hoje a lucta, vou procurar Thomé da Povoa.
Depois de muitos d'estes combates intimos, Jorge tomou effectivamente o caminho da Herdade.
Entrando na Herdade para cumprir a promessa feita a Clemente, Jorge encontrou o fazendeiro, que havia pouco tempo voltára de visitar os campos, sentado á modesta banca do seu escriptorio, examinando com attenção os livros de assento e algumas cartas que recebêra.
Usando da familiaridade, com que era recebido n'aquella casa, Jorge entrára sem se mandar annunciar.
—Olá! viva o snr. Jorge—exclamou o lavrador, voltando-se ao rumor de passos que ouvira—venha cá, venha, que temos novidade.
—Então que ha?—perguntou Jorge, sentando-se defronte d'elle.
—Vamos a saber. Teve cartas do Porto?
—Não.
—Hum! É o que eu digo. Se está á espera de que os advogados lhe escrevam, bem tem que esperar. Aquelles senhores, sahindo do escriptorio, não pensam mais nas demandas nem nos clientes. Olha quem. Eu cá entendo-me com os procuradores e não me dou peior. Ora leia.
E passou para as mãos de Jorge uma carta, na qual de facto o procurador lhe dava lisonjeiras informações relativamente ao pleito que a Casa Mourisca sustentava. A questão tomára uma face nova, depois da juncção ao processo de certos documentos de importancia, e o parecer dos juizes era favoravel, segundo o que podia conjecturar o procurador, forte n'estes prognosticos.
A noticia não podia ser indifferente a Jorge. A boa solução d'esta demanda facilitaria consideravelmente os seus projectos economicos; e poderia depois tentar mais desembaraçado e com mais efficacia os expedientes que a sua meditação e a experiencia de Thomé lhe suggeriam.
—Então que diz a isso?—interrogou o fazendeiro.
—É devéras uma feliz nova.
—Diga-me agora se ha de ou não vir tempo em que aquella casa negra tornará a ser o que foi.
—Espero que Deus me conceda essa ventura.
—Agora é necessário escrever para Lisboa para apressar o negocio, e com relação áquelles titulos, que parece não estarem muito na ordem, recommendo-lhe este procurador, que é homem diligente e seguro.
—Era já minha tenção fallar-lhe n'elle. Deixemos porém agora esta materia, porque outro grave motivo me trouxe aqui e tenho pressa de me desempenhar da missão.
—Olá! Motivo grave! Pelo modo de dizer parece que se tracta de coisa de polpa.
—Não é de pequena gravidade, não—insistiu Jorge—e se quer que lhe falle a verdade, Thomé, não me é agradavel a incumbencia.
—Vá lá. Estou d'aqui a adivinhar o que é. Temos algum recado do pae. O snr. D. Luiz sabe invental-as de bom feitio. Ás vezes tem lembranças! Mas eu já estou prevenido para tudo, venha mais essa. Diga lá.
—Não, Thomé, não se tracta de meu pae. E não cance mais a cabeça, que por certo não adivinha, e eu, em duas palavras, ponho-o ao corrente de tudo. O Clemente, o filho da Anna do Védor, procurou-me ha poucas horas para me pedir que me encarregasse de ser o seu mediador em uma pretenção que elle tem dependente de Thomé.
—De mim?! Deve ser bem exquisita para que o rapaz não venha em pessoa fallar-me. Então não somos nós amigos?
—Ha delicadeza da parte d'elle n'isto, porque a pretenção de que se tracta é de certo melindre. Em uma palavra, estou encarregado de pedir para Clemente a mão de Bertha.
Jorge não pronunciou estas palavras com a mesma forçada placidez com que até alli sustentára o dialogo. Parecia que os labios as repelliam, como se os escaldassem ao passar.
Thomé recebeu sem estranheza a communicação. Mostrou bem que a ideia d'essa alliança não era nova para elle, e que não carecia de tempo para a examinar, porque todas as faces d'elle lhe eram já conhecidas.
—Ah! pois era isso?—disse elle naturalmente—Escusava de tantas ceremonias o rapaz, porque já deve saber por a mãe o que eu penso do caso. Pela minha parte não ponho duvida alguma. O Clemente é um rapaz de bons sentimentos, honrado como poucos, trabalhador, e tendo já de seu alguns haveres, que não são maus principios de vida. É um rapaz de lavoura, como não podia deixar de ser o marido de Bertha, que filha de lavrador nasceu tambem; mas sempre tem mais um bocadinho de educação do que esses machacazes que por ahi conheço, a quem não entregaria a filha, nem que m'a pesassem a oiro. O Clemente não, o Clemente é um homem que sabe dar valor ás coisas, e ha de conhecer que a minha Bertha sempre se creou por a cidade, e que por isso exige outro tractamento que não o d'essa raparigada por ahi, que de qualquer maneira está bem. Pois não acha que tenho razão, snr. Jorge?
—Sim—respondeu Jorge, levantando-se e encaminhando-se para a janella, como para dissipar o despeito, que lhe causava a maneira por que Thomé fallava d'aquella alliança—sim, Clemente tem maneiras mais polidas e, como diz a mãe d'elle, sabe muito bem fazer uso da senhoria e da excellencia pela pratica da correspondencia official.
—Isso lá historias—tornou Thomé, sem perceber a meia ironia das palavras de Jorge—que para nada lhe serve a senhoria e a excellencia para o casamento. Entre marido e mulher não ficam bem essas ceremonias, e não ha como o «tu» entre quem se quer bem.
Estas palavras incommodaram tanto Jorge, que principiou a tocar ruidosamente nos vidros como para não as ouvir. «Tu» entre Clemente e Bertha!
Thomé continuou:
—Mas eu não queria dizer isso. Quando fallava nas maneiras do Clemente queria dizer que elle tem isto, que não sei bem como se chama, isto de um homem saber tractar com uma pessoa delicada sem a offender. Porque, vê o snr. Jorge? eu conheço homens que tiveram grande educação, muitos mestres, e muitos estudos, sim senhores, e que estão sempre a dizer coisas que offendem os outros. Emquanto que muitos, que não foram tão bem olhados em pequenos, teem lá não sei que dom de conhecer as pessoas e sabem viver com ellas sem nunca as escandalisar. Isto é assim como que uma delicadeza que se não aprende, que nasce com as pessoas. Ora o Clemente é dos taes.
—Em vista do que ouço, reputo-me feliz por ter sido o portador de tão fausta nova, e de concorrer, ainda que secundariamente, para obter-lhe um genro tão precioso—disse Jorge, cujo despeito se exacerbava.
—Devagar, devagar, esta é cá a minha opinião, mas não sou eu que me caso e portanto Bertha é que ha de decidir. Eu não duvido dar conselhos a minha filha e dizer-lhe o que penso d'este ou d'aquelle rapaz de quem ella se lembre para noivo; mas constrangêl-a, isso é que eu não faço.
—De certo; mas creio que Bertha não será tão cega, que não veja as excellencias que concorrem na pessoa de Clemente, e que se não lisonjeie da preferencia que lhe mereceu.
—Pois eu tambem quero crêr que o não engeitará. Mas emfim, a gente vê as coisas com uns olhos e ellas com outros. Por muito ajuizadas que sejam, as raparigas a final teem olhos de raparigas e ás vezes lá descobrem em um homem umas coisas, que as captivam ou que as desgostam, e ninguem póde saber o que lhes agradará mais. Em todo o caso eu vou consultal-a.
—Muito bem. Consulte-a e se, como é de esperar do juizo d'ella, Clemente fôr bem acolhido, dê-me parte para o participar ao meu constituinte.
Jorge não podia despojar as suas palavras de todo o tom de ironia, ao referir-se a Clemente.
—Mas…—disse com certa hesitação Thomé—então retira-se já?
—Pois não diz que vae consultar Bertha?
—Mas, se se demorasse, podia já saber…
—A urgencia não é tanta que se torne necessario esperar. Mas emfim esperarei. Vou dar uma volta pelo campo, emquanto lhe falla.
—E tinha duvida em ficar?
—Ficar onde?
—Aqui.
—A fazer o quê?
—A ouvir a resposta de Bertha.
—Eu?!—exclamou Jorge, com uma vivacidade que para Thomé não tinha explicação.
—Então que tem? Não se tracta de segredo algum. É uma proposta que vou fazer a minha filha e á qual ella responderá sim ou não, e está acabado. A presença do snr. Jorge nada estorva. Antes poderia dar á pequena informações a respeito do Clemente, que ella conhece mal…
—O quê?! Thomé!—acudiu Jorge irritado—pois cuida que eu me encarrego de similhante papel? Eu? Que interesse tenho eu em que Bertha aceite a proposta de Clemente? Que certeza posso dar-lhe de que fará bem aceitando-a? Eu sei lá? Clemente é um rapaz de quem sou amigo, mas não sei nem quero saber se d'elle se fará um bom marido. A respeito de casamentos não dou conselhos. Não quero que me lancem depois as culpas. N'esse assumpto cada um escolha por si, porque para si escolhe. Informações a respeito do Clemente! Eu?! Mas que informações quer que eu dê?
—Pois não diz que é seu amigo?—tornou Thomé, um pouco admirado com as maneiras impertinentes que notava em Jorge—Não é essa já pequena garantia para a minha Bertha, que sabe o valor que teem os homens, a quem o snr. Jorge dá esse nome.
—Ah! não sabia que eu era a pedra de toque no conceito de Bertha para julgar dos caracteres dos homens. Mais um motivo para ser reservado.
—Diga-me uma coisa, snr. Jorge—insistiu Thomé, e em tom mais decidido—se soubesse que o Clemente era um miseravel, um vicioso, um extravagante, de más qualidades, e estivesse persuadido de que seria um mau marido, ter-se-ia encarregado de pedir-me, em nome d'elle, a mão de minha filha?
—Por certo que não—respondeu Jorge promptamente e com toda a lealdade.
—Muito bem; pois é isso mesmo que eu desejava que minha filha soubesse. O snr. Jorge não lhe daria conselhos, dir-lhe-ia sómente: encarreguei-me de dar este passo, porque este homem é um homem honrado. Agora o mais é com ella. Mas isso poria as coisas no seu logar. Porém uma vez que não quer…
Passava-se n'aquelle momento na alma de Jorge uma lucta de resoluções antagonistas. Se por um lado lhe repugnava a proposta de Thomé, tentava-o por outro a curiosidade dolorosa de saber como Bertha acolheria o pedido de Clemente e a resposta que lhe daria. Receiava que a intima commoção, que procurava suffocar, se trahisse na presença de Bertha em tão solemne momento, e ao mesmo tempo custava-lhe renunciar a observal-a quando ouvisse a proposta do pae. A curiosidade venceu. Esforçando-se por desvanecer todos os vestigios da sua perturbação, Jorge respondeu a Thomé no tom da maior indiferença, que, visto que elle julgava conveniente a sua presença durante a entrevista que ia ter com a filha, pela sua parte não oppunba objecção.
E sentando-se outra vez á banca, abriu ao acaso um livro, que fingiu examinar attento, mal podendo reprimir o tremor da mão com que o segurava.
Thomé da Povoa chamou a filha ao escriptorio.
Jorge ouviu os passos de Bertha, descendo as escadas; sentiu-a abrir a porta e entrar na sala; levantou timidamente os olhos para responder ao comprimento que ella lhe dirigiu e baixou-os novamente sobre o livro que abrira.
Bertha olhou interrogadoramente para o pae, que permanecia silencioso, como quem estudava a maneira de principiar.
A final entrou assim no assumpto:
—Mandei chamar-te, Bertha, porque se tracta d'um negocio serio, que te diz respeito.
—A mim?—perguntou Bertha admirada, alternando os olhares entre o pae e
Jorge, que não erguia os seus.
—Sim, filha, a ti. O caso não é de espantar. Ha um rapaz n'esta terra, um moço honrado e trabalhador, a quem tu agradaste e que te pede para mulher.
Jorge aventurou um olhar furtivo para o rosto de Bertha. Viu-o mudar rapidamente de côr; córou primeiro, empallideceu depois.
—Este rapaz—proseguiu Thomé—é já teu conhecido. É o Clemente, o filho da ti'Anna do Védor, de quem és amiga. Agora decide lá.
Bertha permanecia silenciosa, como se a inesperada noticia lhe tivesse tirado o uso das faculdades, a ponto de não comprehender o que ouvira.
Notando o silencio da filha, Thomé acrescentou:
—O snr. Jorge foi quem teve a bondade de se encarregar do pedido de
Clemente, porque o rapaz não teve coragem para o fazer em pessoa.
Jorge franziu ligeiramente o sobrolho, a estas palavras, que não quizera ouvir.
Bertha estremeceu e desviou para Jorge um olhar expressivo de profunda amargura, que elle não observou. Voltando-se depois para o pae, perguntou-lhe com a voz tremula e prêsa pela commoção:
—E que respondeu o pae ao pedido que lhe fez, em nome de Clemente, o snr. Jorge?
—Eu, filha?—respondeu Thomé—Pela minha parte disse e digo que não ponho estorvos. Conheço o rapaz, sei as qualidades que elle tem e para genro agrada-me. Mas isso não tira. Tu é que deves dizer se elle te agrada para marido.
Bertha baixou, durante alguns momentos, os olhos e não respondeu. Depois ergueu-os e fitou-os em Jorge, como a procurar-lhe penetrar no pensamento; a final com voz já mais firme, mas commovida ainda, disse:
—Visto que foi o snr. Jorge quem se encarregou d'essa proposta, parece-me ter direito a pedir tambem a sua opinião a respeito d'ella.
Jorge estremeceu e olhou para Bertha de uma maneira que denunciava um intimo sobresalto.
—A minha opinião?—repetiu elle, sem saber o que dizia.
—Sim, o snr. Jorge é amigo de meu pae, e julgo que meu amigo tambem. Não ha de querer vêr-me infeliz. Encarregando-se de dar o passo que deu, é de certo porque julga que eu poderei encontrar a felicidade, seguindo o caminho que me facilita assim. A sua lealdade obriga-o a dizel-o francamente, se assim o pensa. E eu atrevo-me a exigil-o da sua lealdade.
—Eu apenas cumpri a missão de que me encarregaram, mas não aconselho—balbuciou Jorge.
—O snr. Jorge é demasiado sincero na sua amizade a meu pae para aceitar essa missão de um homem de quem receiasse que me podia vir a infelicidade. Quero acredital-o.
Jorge irritou-se; irritou-se contra si por a turbação que sentia, e contra Bertha, por suspeitar que era o amor a Mauricio que lhe estava dictando aquellas palavras; por isso respondeu com o tom ironico do costume:
—Não duvido affirmar que o Clemente é um excellente rapaz, que póde fazer feliz qualquer mulher que não aspira a mais do que á estima leal e sincera de um homem de bem. Vejo em Clemente garantias de que dará a uma esposa de ideias razoaveis aquella felicidade que consiste na paz domestica e no amor da familia. Mas eu não sei se isto satisfará a toda a gente. Ahi está que as educações modernas fazem ás vezes o espirito das mulheres mais exigente e habituam-nas a sonhar com umas certas poesias na vida, que um homem como o Clemente sem duvida não póde realisar. A essas agrada ás vezes mais qualquer estouvado, com a cabeça cheia de loucuras e o coração vazio, mas que tenha a brilhante qualidade de saber dizer falsidades em bonitas palavras.
Depois, reprimindo esta excepcional vivacidade, que estava espantando
Thomé, acrescentou:
—Se, como creio, Bertha não está n'este caso, parece-me que encontrará em Clemente um marido leal.
Estas palavras pronunciou-as Jorge em tom sumido e baixando de novo o olhar para o livro que não lia.
Thomé voltou á falla:
—Sabes que mais, Bertha, estas coisas querem-se pensadas. Tu darás a resposta quando quizeres, que a pressa não é muita.
Bertha atalhou:
—Não é necessário, meu pae. A minha resolução está formada. Póde mandar dizer a Clemente que aceito.
Jorge sentiu ennevoarem-se as letras do livro, como se lhe passasse por diante uma nuvem escura.
Thomé insistiu:
—Não, filha; para que has de ser tão apressada? Valha-te Deus. Pensa e depois resolverás.
—Já resolvi, meu pae—repetiu Bertha com firmeza.—Clemente é um homem honrado, eu não posso aspirar a mais. Dizem que é uma alma generosa, ha de estimar-me, eu não procuro outras delicadezas além d'aquellas que sabem poupar-nos uma offensa immerecida. E é tão facil evitar offender uma rapariga como eu!
E dizendo isto desviava na direcção de Jorge um olhar intencional.
—Póde mandar dizer a Clemente que aceito, meu pae—repetiu ella, concluindo.
—Vê lá! Olha que eu não quero que te constranjas! E agora deixa-me tambem fallar a tua mãe, que sem a ouvir não é bom decidir nada. Espera-me aqui um pouco, que eu vou chamal-a.
E sem aguardar reflexões, Thomé, intimamente satisfeito com a prompta condescendencia da filha, sahiu da sala em procura de Luiza.
Jorge não desejaria conservar-se mais tempo alli, só, na presença de Bertha, mas faltou-lhe o animo para levantar-se. Ambos se conservaram calados por algum tempo.
Jorge nem levantára os olhos do livro.
Bertha foi quem primeiro rompeu aquelle glacial silencio.
—Devo-lhe agradecer, snr. Jorge, o muito cuidado que lhe merece a minha felicidade.
Jorge ergueu a cabeça e fitou os olhos no semblante de Bertha.
A violencia que ella fazia para reprimir a sua profunda commoção era bem manifesta.
—Espero que Bertha se não decidisse pelo partido que adoptou, senão por sua livre vontade—disse Jorge com mais brandura do que até alli—e que a minha ingerencia em tudo isto não influisse de maneira alguma para obrigal-a a sacrificar a sua felicidade…
—Oh! por certo que não—atalhou Bertha, cada vez mais agitada—eu sou. .. hei de ser muito feliz…
E não podendo reter mais tempo as lagrimas que lhe subiam impetuosas aos olhos, occultou o rosto entre as mãos e poz-se a chorar.
Jorge aproximou-se d'ella com compassiva solicitude.
—Porque chora, Bertha?—perguntou elle com affabilidade.—Se por acaso foi contra sua vontade que deu aquella resposta, ainda está em tempo. Ninguem lhe pede um sacrificio, repare. Porque chora assim, Bertha?
Em vez de responder, Bertha elevando para Jorge os olhos banhados de lagrimas, perguntou com a voz tremula ainda:
—Ficará pelo menos extincta de uma vez com este sacrificio a aversão que me tem, snr. Jorge?
Jorge estremeceu.
—A aversão que lhe tenho?! Que diz, Bertha?! Pois imagina?…
—E quer ainda negal-a? Não sei em que lh'a tenho merecido, mas existe e bem clara se manifestou agora.
—Bertha!…
—Não lh'o disse eu já no outro dia? E agora o que o moveu a encarregar-se d'essa proposta? e porque o fez com aquellas palavras crueis? Eu bem as percebi. Meu Deus, em que foi que o offendi, snr. Jorge, para ser tão severo commigo, quando para com todos é tão indulgente? A minha educação… Deus sabe se me deixei fascinar por ella, Deus sabe se não luctei sempre contra a imaginação, quando ella me fazia conceber loucuras, como a todas as raparigas da minha idade. Quem póde condemnar-me por ellas, se eu sou a primeira que as condemno? Em que tenho mostrado esses defeitos de educação, que tão severamente me censura? Se soubesse, snr. Jorge, como, percebendo o seu desdem, tenho sido escrupulosa em procurar em todos os meus actos o motivo d'elle… Deus é testemunha de que nada descobri. Falle, já agora que está consummado o sacrificio, já agora que deve julgar satisfeita a expiação que me impoz, tenho direito a exigir de si o cumprimento da promessa, que ha poucos dias não ousou recusar-me. Bem vê, se descobriu em mim culpas, para remir as quaes me marcou esta penitencia, bem vê com que resignação eu a aceito e a cumpro. Valha-me pelo menos este pouco merito para obter da sua parte uma declaração franca, já que não póde valer-me… a sua amizade. Falle, snr. Jorge, diga-me porque me quer mal, o que fiz eu, que más qualidades descobriu em mim para me tractar como tracta? Falle.
E a commoção cortava-lhe em meio as palavras ao dizer isto. Jorge não estava menos commovido.
Bertha deixára-se cahir soluçando em uma cadeira, e escondia o rosto entre as mãos; Jorge, cujo semblante já não conservava vestigios da sua fria e habitual reserva, veio sentar-se junto d'ella, tornou-lhe afectuosamente as mãos, e dirigindo-se-lhe com brandura, disse-lhe:
—Vou satisfazêl-a, Bertha; vou ser sincero e leal comsigo, já que assim o quer. Escute-me e saberá a causa occulta de todo o meu estranho procedimento. Olhe bem para mim, Bertha, para lêr no meu semblante a sinceridade da minha confissão.
Bertha ergueu para elle os olhos humidos de pranto.
Jorge proseguiu, apertando-lhe com mais fervor as mãos que conservava nas suas.
—A causa intima, a causa occulta das minhas acções para comsigo, Bertha, essa causa mysteriosa que eu procurava esconder da vista de todos e suffocar no meu coração… quer sabêl-a, Bertha? Essa causa é o muito amor que lhe tenho.
Bertha estremeceu e, retirando as mãos das de Jorge, levou-as ao rosto como para reprimir um grito.
Jorge proseguiu:
—Agora ha de escutar-me, Bertha. Os corações reservados, como o meu, quando chegam a soltar a primeira confidencia precisam de se revelar inteiros; escute-me. Amo-a; amava-a antes mesmo de a ver depois do seu regresso á aldeia. Insinuou-se-me na alma este amor no meio das minhas preoccupações e dos meus cuidados, sem eu bem saber como. Ouvia fallar de si a seu pae, lia as suas cartas, pensava em si e… e amei-a. Foi o meu primeiro amor. Nunca tinha sentido outro, nunca sentira até a necessidade de amar. Nenhuma mulher me havia escutado uma só palavra de galanteio. Persuadira-me eu proprio de que o meu coração era superior á violencia dos affectos, a que os outros cediam. Quando, pelo que senti, me vi forçado a abandonar esta crença, quando comecei a duvidar da minha immunidade, assustei-me e irritei-me contra mim mesmo por me achar fraco. Quiz luctar e vencer essa paixão que, a despeito da minha vontade, sentia occupar cada vez mais espaço no meu coração. Ai, Bertha, começou para mim uma lucta extenuadora; quanto mais resistia, tanto mais me sentia subjugado. Revoltei-me contra a fatalidade d'este affecto, revoltei-me contra si, Bertha, a quem desejava querer mal por o muito que a amava já. D'ahi a rudeza das minhas palavras, a quasi hostilidade do meu proceder para comsigo. Para apagar o prestigio que o seu nome, que a sua imagem tinham adquirido no meu coração, suppunha-lhe defeitos imaginarios, inventava-lhe vicios de educação, procurava assim alienar de si os meus affectos, antes que chegasse o temido momento de vêl-a; em vão, cada vez a amava mais, e no dia em que finalmente a tornei a ver, conheci que era irremediavel aquella fatalidade; amava-a e muito e tanto, que até ciumes sentia já.
Bertha, a estas palavras, levantou os olhos para elle.
Jorge proseguiu respondendo áquelle gesto:
—Ciumes, sim, Bertha; ciumes que ralavam, ciumes que me enchiam de remorsos, e que envenenavam quasi o afecto que me ligava a meu irmão. Porque era d'elle que os sentia. Veja que má loucura a minha! É a Mauricio que Bertha ama, pensava eu, seduzem-n'a as qualidades brilhantes de meu irmão, e comtudo elle não a ama como eu. Então indignava-me contra si, Bertha, e contra mim proprio, porque a amava tanto.
A uma pequena pausa que Jorge fez na sua apaixonada exposição, Bertha ergueu outra vez os olhos para elle, e n'esse olhar ia a condemnação d'aquelles ciumes.
Jorge continuou:
—E porque me assustava tanto este amor? Porque tentava resistir-lhe assim? Ao principio foi pela estranheza que me causou este sentimento novo e desconhecido. Depois, o receio de que fosse descoberto este amor em um homem que todos suppunham incapaz de amar; um quasi pudor de coração. Finalmente veio a reflexão augmentar estes receios. Se este affecto crescesse e me dominasse como paixão violenta e exclusiva, que obstaculos não teria a vencer! que preconceitos não teria de calcar! Desprezando arreigados prejuizos de meu pae, incorrêra eu já nas suas iras, mas d'essa vez desattendi-os, menos pela minha felicidade, do que pela d'elle; para salvar o nome e a honra da nossa familia, a cuja aviltação meu pae não sobreviveria. Tive por isso coragem para luctar e tenho-a para proseguir. Mas agora tractava-se sómente da minha felicidade; era só a elle que eu teria de sacrificar os preconceitos, o orgulho, as radicadas opiniões d'aquelle honrado velho. Faltava-me o alento para tental-o. Preferia dar-lhe em holocausto o meu coração. E o sacrificio devia ser definitivo, porque a memoria de meu pae o exigiria de mim, impôr-m'o-ia tão fortemente como elle proprio. Mas, se este amor fosse correspondido, faltar-me-ia o animo e até o direito de o sacrificar assim. Por isso fugi de me revelar, Bertha, por isso tentei antes fazer-me aborrecido do que estimado de si, de quem eu apreciaria o amor como um dom do céo. Creia. Por isso aceitei com o coração a despedaçar-se-me, mas com certo doloroso prazer, a missão de que me encarregou Clemente. Deus sabe o que eu soffria ha pouco. A sua condescendencia torturava-me, nas suas hesitações julgava descobrir vestigios de uma affeição… por Mauricio. D'ahi vieram todas as loucuras que eu disse. Eis o segredo do meu coração, Bertha, eis o mysterio das minhas acções. Agora julgue-me e perdoe-me. Bem vê que tambem soffro.
E, terminando estas palavras, Jorge inclinou a fronte sobre a mão, como se o esforço que fizera o tivesse extenuado.
Bertha foi d'esta vez a que primeiro interrompeu aquelle silencio eloquente de paixão; com a voz ainda sobresaltada, mas com o olhar seguro, ella respondeu apertando a mão de Jorge:
—A sua confidencia leal e a sua generosidade deu-me coragem de ser tambem sincera. Jorge, repare; sem o menor receio nem hesitação, com o olhar erguido diante do seu, vencida por a confiança que se sente em uma alma tão nobremente generosa, tambem lhe faço a minha confidencia. Jorge… eu também o amava…
Jorge ergueu a cabeça ao ouvir a inesperada declaração, e por momentos brilhou-lhe no rosto um clarão de alegria.
Bertha, baixando timidamente os olhos, continuou:
—Sim, tambem o amava; mas tambem tinha comprehendido a necessidade do sacrificio de que falla, e não serei de certo eu quem lhe tire o animo de realisal-o. É antes para lhe dar coragem que lhe fallo assim; para que a certeza de que alguem soffre comsigo lhe dê allivio no soffrimento. Venero e estimo seu pae, como se fosse o meu, Jorge, e para lhe evitar uma dôr, não acho grande o sacrificio do meu coração e dos meus affectos. E agora muito menos; deu-me a certeza de que me não despreza. Era essa suspeita que me torturava. Agora sou feliz, e sinto-me corajosa. Encaro sem desalento o meu dever e o meu futuro. Não serão obstaculo os sentimentos da minha alma; porque n'elles sinto eu antes auxilio. É d'esta natureza o amor que lhe tenho, Jorge. Amando-o, aceitarei sem remorsos a proposta de Clemente. Vê? É porque este affecto ennobrece, e emquanto o sentir não receio de me tornar indigna d'elle. Apenas fallarei com lealdade a meu noivo, para dizer-lhe que não posso prometter-lhe amor, porque o não sinto por elle.
—Não, Bertha, não; não aceite a proposta de Clemente. Se é verdade que me ama, não aceite…
—Porque não, Jorge? Creia-me. É a mais segura maneira de vencermos este sentimento, que a nosso pezar nos dominou. Ambos nós respeitamos muito o dever. Elle nos dará coragem.
—Bertha; diga outra vez que me ama; diga-me que me illudi sempre em relação aos seus sentimentos, e eu vencerei as resistencias que se oppozerem a este amor, como tenho vencido as que luctavam contra os projectos que formei de salvar a minha casa de ruina.
—Que diz, Jorge? Nunca me poderá vir a felicidade da discordia da sua familia e bem vê que era inevitavel. Eu sou a filha de Thomé da Povoa, lembro-me d'isso, Jorge; de Thomé da Povoa, o antigo criado da Casa Mourisca; o homem de quem o snr. D. Luiz recebe os serviços como humilhações e insultos. Seu pae estima-me; ainda ha bem pouco me abençoou, como se eu fosse sua filha. Não queira obrigar-me a perder essa estima, que tanto prézo. Não seria feliz depois; não podia sêl-o. Assim conservarei a amizade de todos… porque o snr. Jorge ha de estimar-me sempre, não é verdade?
—Hei de adoral-a, Bertha—murmurou Jorge, submettido.
—Vamos; procedamos agora como se nada se passasse entre nós. Ganhemos coragem para cada um cumprir o seu dever e separemo-nos como bons amigos.
E commovida ainda, estendeu a mão a Jorge, que a levou apaixonadamente aos labios, cobrindo-a de beijos.
—Bertha, Bertha, não será quasi um crime o que fazemos? Despedirmo-nos assim quando pela primeira vez nos revelamos?
—Não, Jorge, não é. É um dever… doloroso, mas é um dever.
Ouviram-se as vozes de Thomé e de Luiza, que voltavam.
Jorge ergueu-se sobresaltado:
—Não posso simular a placidez necessaria para fallar-lhes e ouvil-os fallar n'este casamento, Bertha; como hei de ter animo para o presenciar? Adeus e… se lhe faltar a coragem… tudo se remediará ainda.
—Adeus, Jorge. Havemos de ser dignos um do outro. Não fraquearemos.
E Jorge sahiu da sala para não se encontrar com Thomé.
Bertha recebeu os paes já com os olhos enxutos, ainda que agitada pela violencia da ultima scena.
Luiza parecia mediocremente encantada com a perspectiva do casamento que tanto satisfazia Thomé.
—Então é verdade, Bertha? E tu querel-o?—perguntou ella em tom de quem duvidava.
—Sim, minha mãe, julgo que devo aceitar.
—E… e o snr. Jorge… tambem te aconselhou?
—Sim—respondeu Bertha mais enleiada—o snr. Jorge é de parecer que sim.
—Já se retirou?—perguntou Thomé da Povoa, procurando-o com a vista.
—Já. Disse que não podia demorar-se. E eu peço licença para me retirar tambem.
E Bertha apressou-se a sahir da sala para se esconder no seu quarto e chorar.
—Emfim!—concluiu Luiza, suspirando e depois de seguir a filha com a vista—Vossês lá o lêem, lá o entendem. Mas não era isto o que eu esperava.
—Então que esperavas tu?—perguntou Thomé, levemente despeitado.—Julgavas talvez que viria por ahi algum principe pedir-te a filha para casar?
—Eu cá me entendo.
—E eu tambem te entendo. Que ainda ninguem te pôde tirar da cabeça umas teias de aranha que lá se metteram. Agora pelo menos deves estar desenganada.
Luiza suspirou e não deu resposta. Mas pensava comsigo:
—Bertha já eu vi, e a cara não é de noiva contente. Tenho pena de não vêr a d'elle. Mas emfim, seja o que Deus quizer!
Tinham decorrido alguns dias desde que a baroneza principiára a receber de Mauricio signaes inequivocos de um galanteio, que ella com as mais louvaveis intenções favorecia.
Durante todo este tempo o leviano rapaz consagrára à sua nova paixão todos os instantes, sujeitava-lhe todos os pensamentos. Não perdia a menor occasião de se encontrar com a prima e de renovar as scenas, que a agudeza de genio e a vivacidade de espirito de Gabriella sabiam rodear de attractivos inteiramente novos para a inexperiencia do apaixonado moço.
Em época alguma tinham os criados conhecido Mauricio tão caseiro como então; cessaram as suas correrias pelos arredores, e os cavallos só eram por elle tirados da ociosidade quando Gabriella se lembrava de passeiar pelos campos. Mauricio era então certo a acompanhal-a.
Este estado de coisas inquietava porém a baroneza.
Caracteres, como o de Mauricio, por muito os vêr na roda da sociedade em que vivia, já para ella não tinham segredos não estudados. Não confiava tanto no prestigio que actualmente exercia no animo de seu joven e voluvel primo, que não temesse a influencia que poderia exercer sobre elle a monotonia das impressões da vida que elle passava nos Bacellos.
A baroneza tinha, é verdade, immensos recursos para varial-as. Estava ainda longe de os dar por esgotados. Quando Mauricio julgava ter conhecido a verdadeira feição moral de Gabriella, ella desilludia-o, impressionando-o sob uma feição nova.
Umas vezes fallava-lhe com uma seriedade maternal; outras parecia abrir-se-lhe na mais fraternal expansão; mostrava-se-lhe mais tarde reservada e discreta; depois satyrica e espirituosa, e sempre cheia de encantos, que com perfeitissimo conhecimento e uso da arte sabia fazer realçar.
Apesar d'isso, porém, a baroneza antevia perigos na prolongação d'aquella vida monotona, e sentia a necessidade de dar um golpe decisivo.
Era preciso partir para Lisboa e obrigar Mauricio a seguil-a.
A demora d'este projecto poderia mallogral-o. Resolveu portanto apressar a sua partida.
Uma circumstancia, porém, a tornára difficil.
Os successivos desgostos que tinham ferido o coração de D. Luiz, a resignação que elle fizera dos seus antigos habitos, a homisiação a que condemnou successivamente ambos os filhos, as saudades avivadas de Beatriz, o desconforto do seu viver actual, sem esperanças de melhor futuro, e por ventura com remorsos do passado, todas estas influencias acabaram por prostrar de desalento o velho fidalgo, e por acabrunhal-o e envelhecêl-o em poucos dias, como se estes se contassem por annos.
Nada o distrahia. As gazetas, em cuja leitura alimentava outr'ora a chamma legitimista, que lhe abrazava o coração, enfastiavam-n'o, e tinham sido intencionalmente desviadas pela baroneza; a companhia e a conversação de frei Januario não as podia já aturar sem impaciencia; perdeu o gosto para tudo, e principiou a adquirir habitos progressivamente sedentarios.
Interrompeu os seus passeios, deixou de apparecer á mesa, jantava e almoçava no quarto, e acabou por passar quasi todo o dia na cama, debilitando-se n'esta inacção a olhos vistos.
Gabriella via com cuidado os symptomas d'este crescente abatimento physico e moral, e procurava combatel-o por todos os meios.
Ia para o quarto do tio, e variando a conversa e temperando-a com todas as graças que o espirito e o estudo lhe suggeriam, conseguia distrahil-o e chegava até a fazêl-o sorrir.
Outras vezes entretinha-o, lendo-lhe em voz alta, e escolhia livros que, no dizer della podassem adoçar as cruezas do genio do fidalgo e amaciar-lhe as aspereza das suas escamas aristocraticas. Quantas occasiões D. Luiz escutava attento e commovido os episodios de certos livros, mansamente revolucionarios, e abria desprevenido o coração a doutrinas subversivas dos seus velhos preconceitos, tão occultas ellas se lhe ensinuavam entre os artificios da concepção e da linguagem!
A baroneza tinha muita fé n'esta vaccina litteraria.
O resultado porém de tudo isto foi que assim que ella tentou partir para
Lisboa, encontrou no tio uma reluctancia com que não havia contado.
O pobre velho, fraco, triste e doente, havia-se costumado á companhia d'aquella mulher cheia de vida, de intelligencia e de alegria, e queria-lhe com o apêgo que, n'essas idades, a alma contrahe a todas as imagens que lhe recordam o tempo em que se conheceu joven e vigorosa.
D. Luiz experimentava quasi um secreto terror ao lembrar-se de que a baroneza o havia de deixar. Quem viria sentar-se ao lado do seu melancolico leito, assim que ella partisse? Os filhos afastára-os para longe de si, em castigo dos delictos com que tanto o haviam offendido. Frei Januario era-lhe insupportavel.
Mas ficar só, viver só, pensar só, alli n'aquella casa que nem era sua, só nas suas longas e melancolicas vigilias, com as escuras memorias do seu passado, com as sombrias apprehensões pelo futuro… esta ideia aterrava-o. Quando Gabriella alludia á sua próxima partida, elle desviava o sentido da conversa e claramente lhe pedia que não fallasse n'isso.
A baroneza via-se pois obrigada a transferir indefinidamente o seu projecto de deixar a aldeia.
Comtudo cada dia que se demorava nos Bacellos contava-o ella como uma probabilidade menos a favor dos seus planos!
Esta difficil situação em que se via, obrigou-a a pensar seriamente no partido que devia adoptar.
Era preciso descobrir um meio de abandonar a aldeia e voltar a Lisboa, sem causar a D. Luiz o desgosto e a pena que, no estado de saude e de espirito em que o via, ella receiava que lhe podésse ser fatal.
Uma manhã foi ella procurar o seu primo Jorge, muito convencida de que tinha emfim descoberto o expediente que procurava.
Jorge trabalhava com uma actividade febril, depois que se ajustára o casamento de Bertha. Parecia querer procurar no trabalho uma embriaguez que lhe amortecesse as dôres do coração, que aquelle facto lhe produzira. Mas a violencia do esforço cançava-o, e bem claro o revelava na pallidez e depressão da physionomia.
Gabriella não pôde deixar de fazer uma observação mal o viu aquella manhã:
—É preciso cautela, primo Jorge. Nada de trabalho immoderado! Lembra-te de que a tua constituição não é para taes fadigas.
—Porque me diz isso?
—Porque te estou lendo no rosto a necessidade de ar livre, de sol, de exercicio e de distracção do pensamento.
—Effeitos de uma noite mal passada. Eu não me sinto cançado.
—Embora. Sê prudente. Olha que o bom exito dos teus planos depende da tua perseverança, e a perseverança está mais na continuação dos esforços do que na violencia d'elles.
—Creia que me sei poupar.
—Muito bem. Agora farás o favor de fechar esses livros e de me escutar, porque tenho que te dizer.
—Ás suas ordens—respondeu Jorge obedecendo-lhe.
—Entrarei sem demora no assumpto. Sabes que formei o plano de partir ámanhã pela madrugada para Lisboa?
—Então que urgencias são essas?
—É que se não tomo uma resolução assim, não acabo de partir. Vou de adiamento em adiamento até ao fim do anno. E é indispensavel que parta.
—Indispensavel!—repetiu Jorge com ar de duvida.
—Com certeza que é. Além do que é necessario arranjarmos Mauricio. Has de concordar commigo, que esta vida perde-o. Cada dia que se passa para elle n'esta ociosidade campestre, exerce uma funesta influencia sobre aquelle caracter, aliás de muito aproveitaveis qualidades.
—Isso é assim. Porém Maurício que parta só.
—Não partirá.
—Porquê?
Gabriella hesitou em dar a razão que Jorge lhe pedia, e respondeu evasivamente.
—Sei que não partirá. Demais é conveniente que eu lhe prepare o caminho em Lisboa e por isso preciso de lá ir.
—Porém meu pae?
—Pois ahi é que está a dificuldade, e por causa d'isso é que eu reclamei esta conferencia.
—Então?
—O tio Luiz está bastante doente. Do corpo e do espirito. Chega a dar-me cuidados. N'aquelle estado não póde prescindir de certos carinhos e desvelos, proprios só de uma mulher. São-lhe já tão indispensaveis, que elle, coitado, aterra-se sómente com a ideia de ter de viver sem elles. Por isso não quer ouvir fallar na minha partida. A mim mesma me custa deixal-o, porque sei que lhe hei de fazer falta.
—E contudo diz que parte ámanhã!
—É verdade, porque julgo ter descoberto uma combinação que remediará tudo.
—Qual é?
—É preciso substituir-me. É preciso sentar uma mulher á cabeceira do tio Luiz, mas uma mulher que o estime, que olhe por elle, que o distraia e a quem elle consagre uma affeição que o faça esquecer de mim, e que lhe torne essa enfermeira ainda mais necessaria do que eu hoje lhe sou, e ninguem mais está n'este caso do que a afilhada d'elle, essa rapariga por quem o tio parece haver já manifestado uma particular sympathia, e que melhor do que ninguem póde vir a exercer sobre elle uma influencia salutar; n'uma palavra, Bertha da Povoa, a filha do Thomé.
Jorge não pôde reprimir um movimento de contrariedade ao escutar o projecto da baroneza.
Ergueu-se da mesa, junto da qual estivera sentado, e disse com certo modo sacudido, como exprimindo uma opinião irrevogavel:
—Não póde ser.
—Porquê?—perguntou Gabriella.
—Porque… porque não.
—Quererás dar-te ao incommodo de procurar outra razão mais logica, primo Jorge?
—Meu pae não aceitaria os cuidados da filha do Thomé da Povoa.
—Primeiro que tudo é preciso que consideres que o doente que eu deixo lá dentro não é já aquelle D. Luiz que nós ambos conhecemos na Casa Mourisca; depois Bertha para elle é raras vezes a filha do Thomé, é a amiga de Beatriz, é a imagem viva d'aquelle anjo, que elle ainda hoje chora. Teu pae não terá coragem para afugentar Bertha de junto do seu leito, e difficil será tiral-a de lá.
—Thomé não consentiria…
—O Thomé é um homem generoso e que, apesar de tudo, tem uma sincera affeição ao tio Luiz. O Jorge bem o sabe.
—Mas…
—Mas, a final de contas, a principal objecção está em que o primo Jorge não quer. E porque não quer?
—Não é isso, mas… Demais a mais Bertha não viria de certo n'esta occasião, em que lhe não falta que fazer em casa.
—Pois que ha por lá?
—Os preparativos do casamento d'ella.
—Do casamento de… quem?!
—De Bertha.
A baroneza ficou d'esta vez verdadeiramente surprendida.
—De Bertha?! Pois Bertha casa-se?!
—E em pouco tempo.
—Com quem?
—Com o Clemente, o filho da minha ama, da Anna do Védor.
Gabriella permaneceu algum tempo calada, sem poder desviar os olhos de Jorge, como se quizesse devassar o que se passava no espirito do primo, ao dar-lhe em tom de indifferença aquella noticia.
—Bertha casa-se!—repetiu ella—E por sua vontade?
—Por certo. Quem a obrigaria?
—Parece-me incrivel. E que pensa o primo Jorge d'esse casamento?
—Acho-o tão natural, que fui eu proprio que fiz a proposta.
—A proposta do casamento?!
—Sim, a proposta do casamento.
—A Bertha?!
—Ao pae e a ella.
—E como te lembraste d'isso?
—Porque o Clemente me pediu.
—Ah! E condescendeste sem dificuldades?
—Porque não?
—E Bertha tambem aceitou sem objecções?
—Sim, sem grande hesitação.
Jorge respondia a esta serie de perguntas d'uma maneira constrangida, como quem anciava por libertar-se depressa do inquerito. Nunca olhára directamente para a baroneza, que pelo contrario não tirava d'elle os olhos, nem perdia os signaes de turbação com que elle lhe respondia.
A final Gabriella dirigiu-se ao primo no tom de resolução de quem se decide por um partido manifesto.
—Jorge, olha bem para mim.
Jorge fitou na prima os olhos admirado.
—E' com indifferença que vês realisar-se o casamento de Bertha e que me estás fallando n'elle?
Jorge córou intensamente á inesperada interpellação, e tentou responder ladeando:
—Com indifferença não, de certo. Sou amigo do Thomé e Bertha é…
—A filha d'elle, bem sei. Deixemos esses parentescos. E já que desejas que falle mais claro, pergunto-te: É ou não é verdade que amas Bertha?
—Eu?!
—Sim, tu. E repara no que me vão responder os labios, porque o rosto já me respondeu.
Jorge conheceu que não lhe era possivel dissimular, abraçou portanto o partido da franqueza, que lhe era mais congenial.
—N'esse caso era desnecessaria outra resposta. Porém não duvidarei em dar-lh'a. É verdade que a amo.
—N'esse caso que quer dizer toda esta comedia?
—Quer dizer que eu e Bertha estamos decididos a cumprir corajosamente o nosso dever. Ella fazendo a felicidade de um homem honrado que a estima, e realisando o papel de providencia de uma familia, que é a mais gloriosa missão da mulher; eu votando-me todo á obra que emprehendi, e procurando tornar tranquillos os ultimos dias de meu pae n'este mundo, sem lhe ir exacerbar as paixões do seu coração irritado, para satisfazer as minhas.
—A poesia dos meus sentimentos está muito atrazada, ao que vejo. D'antes os amantes sinceros e generosos punham acima de tudo os direitos dos seus puros affectos. Eu sou dos que lêem por a cartilha d'esses tempos.
—Os affectos generosos estendem a sua generosidade aos sentimentos dos outros corações, ainda quando lhes são oppostos. Respeitam-nos.
—É muito sublime; não entendo bem. Vamos a saber, primo Jorge, dar-se-ha que ainda haja por ahi uns fumosinhos de vaidade aristocratica?
—Em mim não a conheço; mas respeito-a n'aquelle velho, em quem descarregaria o ultimo golpe se a não respeitasse.
—É esse o obstaculo? Não vejo ahi senão a necessidade de uma contemporisação.
—Não digo isso, prima. As contemplações que tenho com meu pae, têl-as-hei com a sua memoria.
—Mas não é muito de christão suppôr que o sacrificio feito á vaidade do vivo póde ser agradável á alma, que deixou no sepulchro todos os prejuizos do barro em que se envolvia. Os preconceitos aristocraticos não sobem ao céo; quero crêl-o; ficam nos sarcophagos da familia, de mistura com as cinzas mortuarias.
—Embora; mas seriam criminosos todos os projectos de felicidade, que se baseassem em um facto tão funesto como esse a que allude. Em taes fundamentos não serei eu quem os edifique.
—Mas, se bem me recordo, o primo Jorge disse-me ha dias que não se julgava com direito de sacrificar outra felicidade que não fosse a sua.
—É verdade. Mas não sou eu só que tenho coragem.
—Ah! Ella tambem?! Visto isso concertaram ambos esse plano? É generoso, não ha duvida. Eu cada vez adoro mais a provincia, onde se dão umas raras plantas, em cuja existencia quasi não acreditava. Agora já comprehendo a opposição que encontra em ti o meu projecto. Depois da vossa heroica resolução, é claro que devia contrariar-te a presença de Bertha n'esta casa.
—Confesso que sim.
—Concebe-se. Pois é pena, porque me agrada o projecto, e assim tem de ficar só o tio Luiz.
—Mas não parta.
—Alto lá. Por muito estranhos que me pareçam os teus planos, viste que não lhes oppuz obstaculos. Reclamo a mesma condescendencia para com os meus.
—Porém meu pae?…
—Não sei o que lhe faça, primo. Pensa n'isso a vêr se até á hora da partida me lembras alguma solução. Eu não acho.
A baroneza retirou-se poucos momentos depois apparentemente dissuadida da sua primeira ideia.
Chegando porém ao seu quarto, sentou-se á secretária, e preparando uma folha de papel escreveu com a sua miuda calligraphia o seguinte:
«Meu caro snr. Thomé da Povoa.
Sou obrigada a partir hoje para Lisboa. Deixo meu tio muito doente e muito sentido pela minha falta. Na idade em que elle está e nas suas tristes disposições de espirito dá-se muito apreço aos cuidados de uma mulher. A minha ausencia deixa-o tão só e tão sem conforto, que receio dos effeitos d'ella. Sei quaes os ardentes desejos de vingança que o snr. Thomé tem contra meu tio e a indole dos actos com que os satisfaz, e por isso julguei dever dar-lhe estas informações, para que se vingue a seu modo.
Sua muito respeitadora
Gabriella.»
E depois de lêr o que escrevêra, principiou a dobrar cuidadosamente a carta, murmurando:
—A bom entendedor meia palavra basta.
E ao lacrar e ao escrever o sobrescripto, dizia sorrindo:
—O primo Jorge que tenha paciencia e tome contra si proprio as precauções que quizer.
Depois tocou a campainha e mandou expedir quanto antes a carta a Thomé da Povoa. E na sequencia dos seus pensamentos murmurava:
—E se o acaso lhe der para fazer das suas, lá se avenham. Eu lavo d'ahi as mãos.
E foi proceder aos preparativos da sua jornada nas mais joviaes disposições de espirito.
A baroneza a ninguem participou, além de Jorge a sua partida para Lisboa. Havia muito tempo que os principaes preparativos estavam feitos, e por isso o movimento dos criados, que lhe executaram as ultimas ordens, não se tornou notado.
Na vespera, á noite, Gabriella demorou-se mais tempo no quarto do tio e deu-lhe a entender que brevemente teria de deixal-o por alguns dias, porque a sua presença era necessaria em Lisboa, mas que voltaria e que seria então para demorar-se mais tempo.
D. Luiz mostrou a mesma opposição a este projecto que já por vezes manifestara; mas a baroneza d'esta vez insistiu mais e obrigou-o a conformar-se com a ideia de uma proxima separação.
Na manhã seguinte, ás horas a que o velho fidalgo costumava receber a primeira visita matinal da sobrinha estava elle já impaciente, porque ella lhe tardava.
Já mais do que uma vez erguêra os olhos para o mostrador do relogio fronteiro, e espreitára atravez das cortinas para a altura do sol, e de cada vez que fizera esta observação, acabára-a suspirando.
O pobre doente tinha tanta necessidade de fallar com Gabriella! Havia nada menos do que um longo e complicado sonho a contar-lhe. E ella sem apparecer!
Depois de muito esperar, D. Luiz ouviu emfim mexer na chave da porta e voltou-se com ar de satisfação.
Mas a este vislumbre de esperança succedeu um movimento de impaciencia.
Era frei Januario quem entrára.
O padre vinha com uns modos de embasbacado, virando e revirando urna carta que trazia na mão.
—Que é? O que quer, frei Januario?—perguntou D. Luiz com impaciencia não disfarçada—Onde está Gabriella? Tenha a bondade de ir pedir-lhe o favor de vir fallar-me.
—A snr.ª baroneza?… Ahi tem v. exc.ª as noticias que posso dar-lhe a respeito d'ella.
E estendeu para o fidalgo a carta que trouxera.
—O quê?! Que quer dizer?! Noticias d'ella? Então Gabriella?…
—Partiu esta madrugada quasi sem dizer «Deus te salve» a ninguem. Esta gente de hoje sempre tem umas maneiras exquisitas…
—Partiu! Gabriella partiu! Sem se despedir de mim?
—Então que quer v. exc.ª? Costumes d'agora. Tudo está mudado.
Maçonarias. Mas ahi tem v. exc.ª uma carta, que ella lhe deixou.
D. Luiz pegou na carta meio tremulo e abriu-a.
Era concebida n'estes termos:
«Perdoe-me, meu querido tio, a maneira subita por que o deixo. Julguei preferivel isto, porque me faltava o animo para despedidas que talvez o affligissem mais. Espero não prolongar por muito tempo a minha ausencia. Seria conveniente que Mauricio viesse emquanto estou em Lisboa. Escrevo-lhe n'este sentido e confio em que v. exc.ª lhe dará permissão para elle vir ter commigo. Peco-lhe que me espere nos Bacellos, onde em breve conto vêl-o mais feliz e contente. Até lá tenho um presentimento de que Deus ha de providenciar para que não sinta muito a falta que eu lhe possa fazer. Conceda-me sempre a sua amizade e creia-me
Sua affectuosa e reconhecida sobrinha
Gabriella.»
O fidalgo leu e releu a carta em silencio, suspirou, e voltando-se para o padre, disse-lhe simplesmente:
—Tem a bondade de me deixar só por um pouco, snr. frei Januario?
O padre sahiu do quarto, encolhendo os hombros.
D. Luiz tornou a lêr a carta, carregando-se-lhe de mais sombria tristeza o semblante, e deixou-se cahir desalentado nos travesseiros.
E ninguem lhe ouvia aquella manhã tocar a campainha a chamar um criado para que lhe prestasse qualquer serviço que o seu estado de saude exigia, e se um ou outro, mais cuidadoso, espontaneamente se apresentava a receber-lhe as ordens, era despedido com rudeza, recahindo elle na especie de somnolencia em que depois da leitura da carta havia ficado.
Ao meio dia, porém, hora em que a baroneza costumava por suas proprias mãos servir-lhe algumas colhéres de gelêa e um calix de vinho do Porto, sentiu que lhe abriam mansamente a porta do quarto, com a mesma cautela, com o mesmo cuidado com que o fazia Gabriella.
Deu-lhe rebate o coração, e no meio dos tristes pensamentos que o acabrunhavam, fez-se um clarão de esperanças. Voltado com as costas para a porta, D. Luiz não pôde conhecer logo a pessoa que entrava, por isso perguntou com uma voz, era que se denunciava o intimo sobresalto que estava sentindo:
—Quem vem ahi?
Ninguem lhe respondeu; mas percebeu claramente o som de uns passos leves, que não podiam deixar de ser de mulher.
—Quem está ahi?—repetiu D. Luiz, fazendo um esforço para voltar-se.
Mas n'este momento parava defronte d'elle Bertha, com um sorriso nos labios, e segurando nas mãos a bandeja com o calix de vinho e a gelêa, que a baroneza costumava servir-lhe.
D. Luiz olhou para a afilhada com a expressão da maior surpreza e espanto.
—Bertha!—exclamou elle, solevantando o corpo—Bertha aqui?!
—E ha mais tempo seria este o meu logar, se não soubesse que até hoje lhe não faltavam os cuidados de que a sua doença precisa.
—E vens… vens para ficar?—perguntou o doente com uma inflexão de alegria quasi infantil.
—Se me der licença que fique…
—Se te der licença, filha!…
De subito reprimiu a sua expansão de alegria, e emendou em tom mais grave:
—Não, Bertha; não é aqui o teu logar. Eu não sou teu pae.
—Mas é meu padrinho e está doente. E á cabeceira de um doente uma mulher está sempre no seu logar. É o nosso posto de honra—respondeu Bertha, com aquella entonação carinhosa com que as raparigas sabem enfeitiçar o coração e enleiar a vontade dos seus velhos paes e avós.
O fidalgo sorriu com brandura e, passando a mão tremula pelos fartos cabellos de Bertha, disse-lhe, olhando-a com sympathia:
—Mas que dirá teu pae?
A estas palavras Bertha dirigiu para a porta do quarto um olhar indiscreto, olhar que despertou suspeitas no espirito de D. Luiz e o obrigou a seguir com a vista a mesma direcção.
Atravez da porta meio aberta descobriu a figura de Thomé, que ficára no corredor. Uma rapida contracção atravessou como o effeito de um choque electrico a fronte de D. Luiz; em breve porém dissipou-se este signal de desgosto, e com voz serena e sem aspereza interrogou:
—Estava ahi, Thomé da Povoa?
O fazendeiro deu alguns passos no quarto, ainda timidamente, e respondeu volteando o chapéo entre as mãos:
—Estava, sim, fidalgo; fui eu mesmo que acompanhei a rapariga, e se v. exc.ª me quizer fazer o favor de aceitar a companhia d'ella, com muito gosto lh'a deixo ficar. Porque emfim, snr. D. Luiz, isto de mulheres sempre é outra coisa para lidar comnosco. Teem lá umas maneiras de enfeitiçar um homem, que quem uma vez foi tractado por ellas em doença, já se não entende com outros enfermeiros. Lá sabem temperar os remedios, arrefecer os caldos, ageitar a roupa da cama e os travesseiros, que parece que uma pessoa come, bebe e dorme ainda que não tenha vontade, desde que ellas queiram. Por isso, como a rapariga é afilhada de v. exc.ª e a snr.ª baroneza foi para Lisboa e v. exc.ª ficou só, e ella não nos faz falta, porque, graças a Deus, a minha Luiza ainda basta só para o trafego da casa, lembrou-me trazêl-a, por me parecer que podia prestar alguns serviços a v. exc.ª.
—Então sabe agora, meu padrinho, o que dirá meu pae?—perguntou Bertha, occupada já a accommodar a cama que o doente tinha desordenada.
—Mas… Thomé—dizia D. Luiz descontente por ter de aceitar um favor do fazendeiro, porém sem coragem de recusal-o. Eu não quero prival-o da companhia de Bertha… Sei quanto se quer a uma filha e não posso aceitar o sacrificio.
—Ora adeus, fidalgo! Eu quero bem á rapariga, isso lá é verdade; mas não me faltam por casa filhos com que me entretenha. E depois isto de filhas, mais tarde ou mais cedo é contar que batem as azas para fugirem do ninho. É bom costumarmo-nos a passar sem ellas. Por isso, se v. exc.ª não tem duvida em aceitar a companhia da pequena… é fazer de conta que ella nada tem commigo…
D. Luiz sentiu que ia ser vencido pela generosidade de Thomé. Resistir por mais tempo era revelar inutilmente repugnancia em aceitar o beneficio, e tornar evidente a sua fraqueza quando finalmente o aceitasse.
Cedeu pois a tempo, e emquanto o podia fazer, salvando a dignidade aristocratica, que sobre tudo prezava.
—Dividas d'essa natureza não hesito em contrahil-as, apesar de saber que as deixarei em aberto. Aceito, Thomé, aceito a companhia d'esta menina, que me fallará de minha filha e m'a recordará. Não é verdade, Bertha?
—De certo que havemos de fallar muito de Beatriz.
—Muito bem—exclamou Thomé da Povoa—pois então ahi lh'a deixo, fidalgo, e vou á minha vida.
Gomprehendeu D. Luiz que não devia ficar inferior em generosidade ao seu antigo criado.
Assim que Thomé, fazendo-lhe uma cortezia, se dispunha a transpôr a porta para sahir, o fidalgo reteve-o estendendo-lhe-a mão, e disse-lhe n'aquelle tom solemne que lhe era habitual:
—Thomé da Povoa, não se retire sem que eu lhe aperte a mão. Bem vê que é a maneira que tenho de remir dividas d'estas.
—Com todo o gosto, fidalgo.
E o honrado lavrador aproximou-se do leito e apertou nas suas mãos robustas a mão magra e aristocratica do senhor da Casa Mourisca, dizendo, com a expansão de enthusiastica sympathia que tinha em excesso na alma:
—Póde acreditar, fidalgo, que aperta a mão de um amigo.
D. Luiz fez um gesto silencioso de acquiescencia.
Thomé da Povoa, quando sahiu da sala, levava nos olhos um brilho denunciador de commoção.
Todas as scenas e acções generosas exerciam n'elle este effeito.
Bertha ficou só com o padrinho. Com aquelle instincto de actividade e de ordem natural á indole feminina entrou immediatamente no exercicio de suas funcções, dispondo os preparativos para a leve refeição do doente, da qual ella se encarregára ao encontrar no corredor um criado com a bandeja na mão.
Trabalhando e conversando, Bertha tinha já aquelles ares de familiaridade, que naturalmente assumem as mulheres no tracto da casa que dirigem.
Tomára posse d'aquelle terreno como de dominio seu, e dentro em pouco a influencia dos seus cuidados fazia-se já sentir na apparencia de ordem e de methodo que alli dentro vestira tudo.
D. Luiz seguia-a com olhos de satisfação. Parecia-lhe que ella só povoava o quarto.
Com que indizivel prazer a via tirar dos hombros o chale que trouxera, dobral-o e poisal-o, junto com o chapéo, no sofá proximo do leito, como se estivesse em sua casa!
A presença d'aquella joven e gentil rapariga, occupada na lida domestica, fallando-lhe com meiguice e alegria, adivinhando-lhe e prevenindo-lhe os menores desejos, satisfazia uma tão ardente e tão antiga necessidade do coração d'aquelle homem, que esquecido quasi de seus infortunios, reputava-se feliz.
Animado por Bertha, comeu com mais appetite e fallou com uma animação que lhe não era habitual.
—Mas, agora me lembra, Bertha—disse D. Luiz, como se de repente lhe occorresse uma ideia—preciso de dar ordens para a tua accommodação. Talvez o quarto de Gabriella…
—Não se incommode—atalhou Bertha.—A snr.ª baroneza parece que tinha tudo prevenido, porque me receberam como quem me esperava já.
—Mas como sabia Gabriella?…
—Pois se foi ella quem me mandou dizer que partia e que me fez sentir a necessidade de vir occupar o seu logar.
—Ah! agora entendo a carta d'ella. É uma boa rapariga a final.
E D. Luiz tinha nos labios, ao dizer isto, um sorriso de sympathia, que lhe suavisava a dureza habitual das feições.
A agradavel doçura que o fidalgo da Casa Mourisca estava saboreando com a presença e o conversar de Bertha foi interrompida por umas pancadas timidas na porta do quarto, que elle escutou de má vontade.
—Quem está ahi?—perguntou quasi irritado.
—Licet?—murmurou a voz do padre fóra da porta.
—Entre quem é—respondeu D. Luiz, ainda mais irritado depois de conhecer a voz.
O padre entrou subitamente, cortejou Bertha com olhos desconfiados e avançou com passos vagarosos.
—Que é o que quer, frei Januario?—perguntou D. Luiz desabridamente.
O padre continuou a aproximar-se do leito e respondeu melifluamente:
—Os filhos de v. exc.ª, os snrs. D. Jorge e D. Mauricio, pedem licença para lhe fallarem.
D. Luiz fez um movimento de impaciencia.
—Que me querem elles?
O padre encolheu os hombros.
—Não posso dizer a v. exc.ª, porque eu mesmo não o sei.
—Que lhes não fallo agora—respondeu em tom sacudido o fidalgo. Mas ao voltar-se deu com os olhos no rosto de Bertha, que insensivelmente revelou n'elle o desprazer com que ouvira aquella resposta.
O padre ia a retirar-se com o recado, quando ouviu D. Luiz dizer:
—Mas não poderei saber o que é que me querem os senhores meus filhos?
O padre parou, esperando uma ordem definitiva.
Bertha, que estava alizando uma das travesseiras em que o padrinho se encostava, murmurou, como a gracejar:
—A melhor maneira de ficar sabendo é ouvil-os.
D. Luiz encolheu os hombros, como a exprimir o pouco valor que suppunha á conferencia pedida, mas disse ao padre:
—Diga-lhes que entrem.
Estava finalmente revogada a sentença que votára ao ostracismo os dois filhos do fidalgo. O coração do velho sentia-se muito brando n'aquelle momento para conservar rancores. A influencia de Bertha principiava a actuar.
A negrura dos delictos de que até alli accusára os filhos, dir-se-ia que a dissipára um sorriso da afilhada.
Jorge e Mauricio entraram pouco tempo depois no quarto, descobertos ambos, e com aquelle ar de respeito que sempre lhes impunha a presença do pae.
Bertha sentiu que se lhe sobresaltava o coração, ao tornar a vêr Jorge depois da scena que tivera logar na Herdade.
Não pôde porém deixar de fital-o com interesse. Achou-o pallido e abatido.
Dominando as suas violentas impressões saudou os dois irmãos com um sorriso afectuoso e sereno.
Jorge e Mauricio corresponderam-lhe com um gesto de deferencia e sympathia.
Ambos estavam prevenidos da presença d'ella.
Jorge comprehendeu que a baroneza insistira em realisar os seus projectos, apesar das objecções com que elle os combatêra. E não desestimou que ella o tivesse feito. Incommodava-o a ideia de isolamento em que ia ficar seu pae. Os carinhos de Bertha deviam ser-lhe preciosos. Depois a vinda d'ella para os Bacellos não retardaria o fatal casamento, com que não podéra ainda conformar o espirito? De pouco serviria a demora, vista a irrevogavel resolução que ambos haviam adoptado; mas fazer recuar a consummação de um facto funesto é sempre um allivio.
Aceitou pois de boa vontade a vinda de Bertha para junto de seu pae, mas resolveu precaver o coração dos perigos que correria, se permanecesse junto d'ella.
Mauricio, que dias antes não receberia tambem com sangue frio a noticia da presença de Bertha, estava n'aquella manha muito preoccupado, para se alterar ao recebêl-a.
A subita partida de Gabriella surprendêra-o e exacerbara a paixão nascente que por ella sentia.
A baroneza calculára bem o alcance da medida e assegurára-lhe ainda mais o effeito, deixando a Mauricio um bilhete concebido n'estes termos:
«Meu caro primo.
Parto para Lisboa. Não preveni pessoa alguma. Levo muitas saudades commigo. Não sei se as deixo tambem. Se acreditasse na constancia de certos sentimentos, consolar-me-ia a ideia de te vêr dentro de poucos dias em Lisboa. Mas infelizmente duvido tanto! Por isso limita-se a deixar-te ficar um longo e desconsolado adeus a
Tua prima e muito affeiçoada
Gabriella.»
Esta carta veio a tempo para atalhar os primeiros symptomas manifestados já em Mauricio de uma nova crise, que podia ser fatal aos planos da baroneza.
Como dissemos, Mauricio, imaginando que á sua nova paixão pela baroneza não seria indifferente o coração de Bertha, recebia d'essa ideia, que aliás o mortificava, um estimulo que atiçava aquella paixão. Subita e inesperadamente porém veio uma noticia desvanecer-lhe estas illusões. Foi a do proximo casamento de Bertha, que a Anna do Védor lhe deu, respondendo assim com ar triumphante ás duvidas que elle em tempo antepozera contra tal união. Anna assegurou-lhe que Bertha e toda a familia haviam acolhido com favor a ideia, e que o mesmo Jorge a apoiára.
Esta revelação impressionou Mauricio. Seria possivel que Bertha não sentisse por elle affecto algum? Ter-se-ia elle illudido, imaginando havel-a impressionado? Haveria antes em tudo isso um plano de Jorge?
Estas suspeitas despertaram-lhe uma leve irritação de vaidade e avivaram as quasi apagadas impressões, que lhe restavam no coração da imagem de Bertha. N'esse dia passou duas vezes pela Herdade.
Estava pois em imminente risco a paixão por Gabriella, quando a repentina partida d'esta e a sua carta de despedida lhe fizeram outra vez pender o coração para aquelle lado.
Todos os despeitos gerados com a noticia de Anna do Védor dissiparam-se perante os despeites novos.
Acabando de lêr o bilhete de Gabriella, Mauricio pensou em montar logo a cavallo e seguir no encalço da baroneza, até attingil-a. Custou a persuadil-o da conveniencia de moderar a precipitação dos seus projectos. Decidiu porém apressar quanto podésse os preparativos da jornada e partir n'aquelle mesmo dia para Lisboa. A permanencia no campo era-lhe já insupportavel.
Foi sob estas impressões que, em companhia de Jorge, elle entrou no quarto de D. Luiz.
O pae revestiu-se outra vez do seu aspecto de severidade ao dirigir aos filhos um olhar interrogador.
Mauricio fallou primeiro:
—Ha muito que está projectada a minha partida para Lisboa. A prima Gabriella sahiu esta manhã para lá, e escrevendo-me, deixou-me dito que me ficava esperando. Venho pedir a v. exc.ª authorisação para partir hoje mesmo.
D. Luiz respondeu sêcamente:
—Póde ir. Falle a frei Januario para lhe dar o dinheiro de que precisa.
Em seguida voltou o olhar para Jorge, como convidando-o a expôr o motivo da sua visita.
Jorge aproximou-se e, abrindo uma pasta, apresentou ao pae um masso de papeis.
—Desejava que v. exc.ª examinasse esses documentos e titulos, que dizem respeito a propriedades nossas e a contractos antigos, e que eu puz em ordem com o fim de facilitar o exame.
—Mas para quê? Eu não quero estar com isso. Que necessidade ha de incommodar-me com essa papelada?
—É porque depois desejava expôr a v. exc.ª os planos que concebi, e no caso de merecerem a sua approvação, pedir-lhe licença para proceder em harmonia com elles.
—Eu não tenho cabeça para entrar n'essas investigações. Tive sempre por costume deixar os negocios confiados a procuradores.
—Se v. exc.ª me authorisa ainda como tal eu não o incommodarei.
D. Luiz sentia que depois das ordens terminantes que dera ao padre Januario, em um momento de despeito contra o filho, tinha motivo para irritar-se ao vêr Jorge em flagrante desobediencia, occupando-se ainda da administração da casa. Mas a violencia do despeito abrandára, e interiormente o fidalgo estimava ter sido desobedecido.
—Façam o que quizerem—respondeu elle—o futuro que prepararem não será para mim que o preparam.
—Então se v. exc. não duvida assignar estes papeis….
E Jorge apresentou ao pae uma serie de documentos, que requisitavam a assignatura do chefe e representante actual da familia.
D. Luiz fez um gesto de enfado, mas correu com a vista o quarto a procurar alguma coisa.
Bertha, comprehendendo-o, trouxe-lhe ao leito os preparativos para escrever.
E o fidalgo, com a mais aristocratica indifferença, assignou sem lêr os papeis que Jorge successivamente lhe apresentava, authorisando assim as medidas que por ventura deviam regenerar a sua casa com a mesma facilidade e imprevidencia com que tantas vezes authorisára as que a haviam perdido.
—Agora precisava tambem da authorisação de v. exc.ª—proseguiu Jorge.—para ausentar-me por alguns dias, porque necessito de visitar as nossas propriedades mais distantes.
D. Luiz repetiu com o mesrno tom de voz a phrase que já dissera a
Mauricio:
—Póde ir.
Os dois rapazes curvaram-se respeitosamente diante do velho e aproximaram-se para receber-lhe as bênçãos.
D. Luiz estendeu a mão, que um apoz outro beijou, e saudando-o outra vez iam a sahir do quarto.
O coração do pae sentiu porém a necessidade de urna despedida mais affectuosa n'aquelle instante em que ambos os filhos o iam deixar.
—Mauricio—disse elle quando os viu já proximos da porta—repare que vae entrar em uma sociedade nova para si, cheia de seducções e perigos. Seja homem e digno do nome que tem, e… dê-me o gosto de o vêr feliz e honrado.
—Terei sempre em vista o seu nobre exemplo, meu pae, e espero que assim nunca me desviarei do caminho da honra.
—Talvez o não conduza pelo da felicidade—murmurou o velho; e depois, dirigindo-se a Jorge:
—Jorge, espero do seu juizo que seja prudente no uso d'essas authorisações que lhe dou. Repare que nos esforços que faz para restaurar a sua casa não sacrifique o nome que a torna illustre. Seja sempre tão brioso como é activo.
—Espero que nunca os meus actos deslustrarão o nome com que me honro.
E os dois irmãos retiraram-se emfim.
Vendo-os sahir, D. Luiz voltou-se para Bertha, suspirando, e disse com desconforto:
—E ficamos sós, Bertha!
—Elles voltarão cedo, e com elles mais alegria para esta casa.
D. Luiz fez um signal de quem não tinha fé no futuro.
—Tem paciencia, Bertha—disse d'ahi a pouco—mas se podésses ir vêr que lhes não falte nada…. O padre é capaz de se descuidar das malas, e Mauricio não repara.
Bertha apressou-se a satisfazer o desejo do velho.
Encontrou Jorge e Mauricio na casa do jantar, fazendo os preparativos para a jornada.
Bertha coadjuvou-os com vantagem.
—Bertha—disse Mauricio—n'este reconhecimento de despedida, será bastante generosa para perdoar-me algumas loucuras que talvez não fossem de todo innocentes?
—Antes de perdoar é preciso condemnar, e eu nem sequer accusei!
Mauricio apertou-lhe a mão com verdadeira e d'esta vez insuspeita sympathia.
—Sabe, Bertha, que vendo-a aqui, a ajudar-nos assim n'esta tarefa caseira, custa-me a acreditar que não seja nossa irmã!?
—E como é que se desengana? Interrogando o coração?
—Não, que esse persuade-me do mesmo.
—Então deixe-se persuadir, snr. Mauricio, que vae n'isso tão pouco mal!
Mauricio trocou algumas palavras com ella, mas sem alludir ao casamento.
Jorge fallava menos do que o irmão. Em um momento em que este sahiu da sala, Bertha perguntou:
—Parte para muito longe, snr. Jorge?
—Não, Bertha. Vou viver para a Casa Mourisca; mas bem vê que não podia dizêl-o a meu pae; era ainda cedo talvez para elle o consentir.
—E parte… por eu chegar?…
—Parto, sim, Berlha, e não acha que deva fazêl-o?
—Talvez tenha razão…. Tem por certo. Mas perdoa-me obrigal-o a isso?
—Agradeço-lh'o. A sua vinda ha de salvar meu pae.
—Então separamo-nos amigos?
—Como sempre, Bertha.
Bertha estendeu-lhe a mão commovida, e Jorge levou-a aos labios com mais ardor do que convinha a quem formára o proposito de suffocar no peito o amor que n'elle crescia.
E n'essa tarde deixaram a quinta dos Bacellos os filhos de D. Luiz.
Este ficou só com Bertha e com o padre, que via um plano maçonico em todas estas mudanças.
Augmentava de dia para dia a influencia de Bertha sobre o animo de D. Luiz. Todas as manhãs desafiava as primeiras alegrias do enfermo o sorriso com que Bertha lhe entrava no quarto, sorriso que parecia illuminal-o mais do que os matutinos raios do sol.
Sob a benefica acção d'aquelles desvelos femininos, sentia o desconfortado doente um renascer de vida; voltava-lhe o appetite perdido, revigoravam-se-lhe os membros extenuados, corria-lhe nas veias mais vivificado o sangue que o desalento empobrecêra, e aquella mesma negrura de pensamentos, que o assombrava, parecia clarear-se progressivamente.
Bertha fizera-lhe já esquecer Gabriella. Era mais assidua á cabeceira do seu leito, mais exclusivamente devotada áquella obra de consolação, mais perspicaz em adivinhar-lhe os desejos, mais carinhosa na maneira de satisfazêl-os, e a ingenuidade quasi infantil das suas conversas tinha mais seducções para o fidalgo do que todas as galas de espirito com que a baroneza sabia temperar as suas.
As horas, que tão longas e fastidiosas se succedem na vida do doente, passavam para elle rapidas e desapercebidas, preenchidas pela companhia de Bertha.
A vêl-a trabalhar a seu lado, a ouvil-a fallar de Beatriz ou a conversar no mais trivial assumpto, a seguir-lhe com a vista os movimentos faceis que lhe recordavam a filha, a escutar pela voz d'ella a leitura dos livros de imaginação a que a baroneza o habituára, D. Luiz esquecia o tempo e os ponderosos motivos da sua usual melancolia. Um dia manifestou desejos de ouvir Bertha tocar.
Na manhã seguinte a harpa de Beatriz era transportada para junto do leito do doente, e sob os dedos de Bertha o magico instrumento, que serenava as furiosas allucinações de Saul, provou mais uma vez a sua efficaz influencia moral.
D. Luiz escutava-a commovido, e quasi sempre corriam-lhe as lagrimas ao expirarem as vibrações das ultimas notas.
Bertha fez-lhe ouvir, uma por uma, todas as musicas que Beatriz tocava. Resuscitou-lhe o passado. Sob tão profundas impressões quasi se confundiam no espirito do ancião a imagem da filha que perdêra com a da affectuosa rapariga, que tanto lhe amenisava a existencia.
Foi cedendo á affavel violencia de Bertha e apoiado no braço d'ella, que trocou o leito pela poltrona ao lado da janella do quarto; que sahiu depois do quarto para a varanda do terraço, e que finalmente desceu as escadas que do terraço conduziam á quinta, á sombra de cujas arvores se costumára a passar as melhores horas do dia.
Era ahi que tinham logar as leituras quotidianas, que já tão necessarias lhe eram. Bertha interrompia-as apenas, para lhe fazer escutar o cantico dos passaros na espessura das arvores, ou para lhe ir colher uma ou outra flôr, com que bizarramente enfeitava a lapela do casaco do fidalgo. A influencia de Bertha sobre elle era já por todos conhecida, o que valia á gentil rapariga os mais expressivos signaes de deferencia de todos quantos a tractavam.
Frei Januario era o mais desconfiado, mas ainda assim não se mostrava de todo insensivel ás attenções que Bertha lhe dispensava e que muito o lisongeavam.
Bertha era feliz n'aquelles dias.
Para a sua alma generosa era motivo de jubilo a ideia de que alguem lhe devia a felicidade.
Ao sentir voltar a vida ao rosto de D. Luiz e a serenidade ao seu espirito atribulado, quasi esquecia, no enlevo em que esta observação a arrebatava, a grandeza do sacrifício, que pouco tempo antes realisára e a dolorosa violencia com que esmagava ainda no coração o affecto mais vivaz que lá nascêra.
Era grata a D. Luiz pelo bem que ella propria lhe fazia.
Um dia Bertha erguêra-se, como costumava, muito cedo para correr a quinta a fim de colher o ramo com que adornava a mesa do almoço de D. Luiz.
Todos os dias se renovava este ramo e todos os dias o fidalgo consagrava alguns momentos ao exame e á analyse das diversas flôres que o compunham.
Bertha esmerava-se muito n'esta tarefa para obter sempre effeitos novos, que merecessem as attenções e applausos do padrinho.
N'esta exploração attingia ella sempre os terminos da quinta. Chegára aquella manhã ao portão de ferro da entrada opposta á casa e trazia já na mão uma variada cópia de flores, quando lhe pareceu que alguem parava de fóra das grades a observal-a.
Voltou-se e reconheceu Clemente.
Bertha estremeceu e sentiu sobresaltar-se-lhe pouco agradavelmente o coração, á vista do seu noivo. Tão longe tinha n'aquelle instante o pensamento do futuro que a vista de Clemente lhe recordava, que a surpreza da transição foi cruel.
Demais era a primeira vez que se achava na presença de Clemente, depois do ajuste do casamento, o que sobremaneira augmentára a sua confusão.
Concentrando porém toda a sua coragem, saudou-o affectuosamente.
Mais confuso ainda do que ella, retribuiu-lhe Clemente a saudação.
—Quer entrar?—perguntou Bertha, caminhando para a portaria.
—Não, menina; passei aqui por acaso… É verdade, que desejava fallar-lhe… mas outra vez será.
—E porque não ha de ser já?—tornou Bertha, abrindo a porta.—Depois do que se passou é indispensavel que conversemos, não é verdade? Eu tambem tenho precisão de fallar-lhe, snr. Clemente.
—N'esse caso aqui estou para ouvil-a, Bertha.
—Olhe, sentemo-nos mesmo aqui. Não acha?—disse Bertha, preparando logar em um monticulo de relva que as folhas cahidas tapetavam.—Está-se aqui tão bem como dentro de uma sala.
Clemente tomou timidamente logar ao lado d'ella.
Bertha soltou no regaço as flores que colhêra, e fallando occupava-se a dispôl-as em ramo, como se facilitasse d'aquella maneira o desempenho da missão que se propunha.
Clemente escutava-a.
—Está já informado, snr. Clemente, do que respondi á proposta que, em seu nome, me fez… o filho do snr. D. Luiz?
—Sim, Bertha, deram-me essa resposta, que muito me alegrou; mas desejava saber da sua bôca se foi de livre vontade e por que lh'o dictava o coração que a deu assim.
—Por minha vontade foi. Ninguem me obrigou a responder como respondi. Agora se foi do coração… Era sobre isso mesmo que desejava fallar-lhe, snr. Clemente.
Clemente respondeu um pouco inquieto:
—Falle, Bertha, que eu escuto-a com attenção.
—Snr. Clemente, devo ser franca e leal comsigo, e fazer-lhe uma confissão completa dos meus sentimentos, para que pense bem antes de se resolver a dispôr assim do seu futuro. Não posso dizer que fosse o coração que me dictasse a resposta que dei. Se o dissesse, nem o snr. Clemente me acreditaria; não é verdade? Bem vê, eu mal o conhecia, quasi que nem tinhamos fallado ainda, eu vivi até agora longe de si e nenhum de nós costumava pensar no outro. Pois não é assim? Quando ouvi a sua proposta, surprendeu-me por inesperada; respondi como sabe; mas é claro que não podia ser do coração a resposta.
Clemente fez um gesto de assentimento, mas tornou-se melancolico.
—Mas, perguntará o senhor, porque respondi eu então assim, tão prompta, sem hesitar? Vou dizer-lh'o, snr. Clemente, vou dizer-lhe toda a verdade, e resolva depois o que deve fazer. Eu não podia esperar que o coração respondesse, porque sabia que elle já não podia dizer que sim a uma proposta d'aquellas.
Clemente, que julgava comprehender o enleio crescente e as palavras hesitantes de Bertha, iníerrompeu-a dizendo:
—Já? disse que já não podia? Já? Bertha teria acaso alguma inclinação a que o meu pedido viesse causar mal?
Bertha, córando, replicou firmemente:
—Havia no meu coração um outro affecto, havia, o primeiro e unico d'essa natureza que n'elle tinha de nascer; mas não lhe causou mal o seu pedido, Clemente. Esse affecto, de que me não envergonho, nasceu, mas não podia viver. Era preciso suffocal-o. Oppunham-se-lhe tantos obstaculos, que não podia haver futuro para elle. Era como uma arvore de grandes raizes que nascesse em um vaso apertado. Nunca eu mesma me illudi com elle. Esta era a confissão que devia e queria fazer-lhe, Clemente. Julguei que poderia, sem indignidade, aceitar a sua proposta, dado que lhe fallasse lealmente, como lhe estou fallando; desde que lhe dissesse: não ha amor no meu coração para lhe offerecer, não o podia haver; estimo-o como um homem honrado e aceito para mim o destino de lhe servir de companheira na vida. É a missão de uma mulher, e eu tenho coragem de cumprir no mundo a minha missão. Amizade leal, respeito, dedicação, posso prometter-lhe, mais não, que não tenho para dar.
—Mas….—balbuciou Clemente, que não podia disfarçar a sua perturbação—mas esse homem existe?
Bertha córou instantaneamente ao ouvir a pergunta.
—Existe—respondeu, porém sem hesitar—e ama-me. Mas elle tambem sente, como eu, a necessidade de vencer este affecto. E ha de vencêl-o ou pelo menos occultal-o no coração, porque é forte. A consciencia do dever ajudar-nos-ha a ambos a vencer esta loucura. Bem vê que lhe chamo loucura. Mas deixe-me dizer-lhe, Clemente, se, depois da confissão que lhe fiz, se abriu no seu espirito uma entrada para a desconfiança, peço-lhe por piedade que desista da sua proposta, emquanto é tempo.
—Não me entendeu, Bertha. Creia que eu sei ter na devida conta a lealdade com que me está fallando, e que mais do que nunca sinto por si a maior consideração e estima. Se a escolhesse para esposa, juro-lhe que, apesar da sua confissão—não digo bem—por causa até da sua confissão, teria em si tanta confiança, Bertha, como em mim mesmo. O que me faz pensar é outra coisa. Se esse homem existe, porque é que a menina perdeu já as esperanças e quer assim tornar impossivel o que ainda o não é?
—É impossivel, é, Clemente.
—Ora é! Quem sabe? Eu não queria ser um dia o obstaculo da sua felicidade. Nem de tal me quero lembrar!
—Clemente, supponha que em vez da confissão que lhe fiz, eu lhe tinha dito apenas: Sonhei um dia com um noivo, que não se parecia comsigo, Clemente. E tão louca sou, que me ficou ainda d'aquelle sonho uma vaga saudade no coração. Por isso não m'o occupa inteiro o affecto que tenho para lhe consagrar. É assim que posso offerecer-lh'o. E agora resolva como se assim lhe tivesse fallado. Bem vê que nunca se arriscará a ser estorvo a uma felicidade… que se sonhou.
—Mas, valha-me Deus, Bertha, os sonhos que nunca sahem certos são os que se sonham a dormir… e até esses ás vezes…
—Ha-os que se sonham em vigilia menos realisaveis ainda.
—Mas em todo o caso… Não me leva a mal se eu pedir tempo para reflectir?
—De certo que não. Para isso mesmo foi que lhe fallei assim.
—É um anjo, Bertha, e creia que se tenho duvidas, é porque não queria ser nunca estorvo á sua felicidade. A tempo lhe darei a resposta.
E Clemente sahiu d'alli pensativo e indeciso sobre a resolução que deveria adoptar.
Pensava o pobre rapaz:
—A final de contas ella gosta do outro. É o que isto tudo quer dizer. Então que faço eu em metter-me de permeio n'estes amores? Mas… são amores impossiveis, diz ella, até lhes chamou loucuras; e espera que os cuidados da familia lhe ajudem a esquecêl-os. Mas se não esquecer?… Não receio d'ella, isso não. Aquillo é alma que se não perde nem atraiçoa. Mas, se por acaso os taes obstaculos desappareciam e ficasse eu só no logar d'elles? Ah! Sancta Virgem! Era para um homem pôr fim á vida! Porém ao mesmo tempo a rapariga falla com uma segurança, como se este caso fosse impossivel. Impossivel! E porquê? Quem será elle, o tal? Amores que ella trouxe da cidade…. Alguem que já a esqueceu e que talvez nunca lhe quizesse devéras. Se eu adivinhasse que era isso, aceitava. Porque emfim aquillo esquecia, e… e eu creio que haviamos de dar-nos bem. Veremos o que pensa minha mãe. Mas que póde ella pensar? Que sabe ella mais do que eu? Aqui o que era preciso era quem me informasse dos taes amores. Se eu procurasse o snr. Jorge? Elle é tanto de casa do Thomé, que talvez… Elle está agora na Casa Mourisca. Pois vou lá.
E, em harmonia com esta resolução, tomou o caminho do antigo solar do fidalgo.
Jorge encerrara-se nos ermos aposentos d'aquelle sombrio palacio, não só para trabalhar, como para procurar allivio aos dolorosos golpes de coração, que lhe sangravam ainda.
Fizera-lhe companhia o jardineiro, que não quiz ficar nos Bacellos quando soube que Jorge partia. Era a unica pessoa que tinha ao seu serviço.
Jorge entregara-se ao trabalho com mais assiduidade e ardor do que nunca. Erguia-se cedo, prolongava por noite alta as suas vigilias; mas se conseguia com estes esforços adiantar o serviço, não obtinha d'elles a realisação do seu principal empenho: acalmar as torturas moraes com que viera para aquella solidão.
As poucas horas de somno eram-lhe agitadas por sonhos fatigadores, e sempre uma ideia fixa e amarga lhe occupava o pensamento, ainda quando mais absorvido pelo estudo.
Atravéz das mais fortes distracções sentia como que a sombria projecção de uma nuvem negra.
Quando um poderoso motivo de desgosto nos amargura o coração, não é de todo impossivel afastal-o do pensamento por um esforço de distracção, mas a impressão dolorosa que elle produziu não se desvanece completamente; persiste um vago sentimento de mágoa, um indefinido mal-estar, que ainda n'esses raros instantes nos afflige, sem que o expliquemos.
Estava-se dando com Jorge este phenomeno.
Conseguia fixar a attenção no estudo, vencer as difficuldades de um problema, profundar as questões mais obscuras, mas o espirito mantinha-se doente; estas victorias da intelligencia não lhe provocavam aquelle prazer, que de ordinario as acompanha. Parecia que o coração perdêra a elasticidade necessaria para vibrar d'essa maneira.
Quando se trabalha em taes disposições de animo, o esforço extenua a actividade do espirito, toma o caracter de uma febre consumptiva, de uma chamma que se alimenta gastando as forças e a vida.
Depois havia momentos em que os instinctos se revoltavam contra a tyrannia da razão, em que os gelos do temperamento de Jorge como que se fundiam no calor do seu sangue de adolescente; e então com um frenesi de desespero concebia os mais arrojados projectos. Resolvia romper com todos os preconceitos, com todas as considerações sociaes, e obedecer sómente aos impulsos do coração, que elle julgava n'esses momentos os unicos authorisados motores das acções do homem. A estes paroxismos succedia um desalento mais profundo e uma sombria tristeza.
E o resultado d'esta lucta moral, d'este isolamento, d'este excesso de trabalho, revelava-se-lhe no semblante alterado e na pallidez, que augmentava de dia para dia.
A amargura d'aquelles dias passados nas salas desertas e nas devezas melancolicas da Casa Mourisca, havia-o abatido a um ponto, que ao chegar á presença d'elle, Clemente encarou-o com gesto de espanto.
Jorge interrogou-o, sorrindo:
—O que me achas tu, para me fitares com esses olhos?
—O snr. Jorge tem estado doente?!
—Não; vou passando bem. Parece-te que tenho cara de doente?
—Sim; acho-o descórado e abatido—disse Clemente, procurando disfarçar as apprehensões que sentia ao vêl-o.—Não trabalhe tanto, snr. Jorge.
—Isto não é de trabalhar. Uma noite de bom somno far-me-ha voltar ao que fui. Então o que te traz por aqui?…
—Venho consultal-o.
—Ha tempos a esta parte obrigas-me a funccionar como conselheiro, sem que eu saiba bem em que mereci a honra da nomeação. Ora dize lá o que me queres.
—Tracta-se ainda do mesmo negocio do outro dia.
Jorge fez um gesto de impaciencia e desagrado.
—Pois não está já tudo decidido? Que mais queres? A respeito de enxoval não dou conselhos.
—Nem tudo está decidido, não senhor.
—Então?
—Eu lhe digo o que se passa.
E Clemente narrou a Jorge a substancia da entrevista que tivera com a sua noiva.
Custou a Jorge occultar a perturbação que lhe causava a narrativa. No fim conseguiu perguntar com apparente frieza:
—E que queres tu que eu te diga?
—Queria que me dissesse se por acaso sabia alguma coisa d'estes amores.
Jorge saltou na cadeira e olhou para Clemente, fazendo-se excessivamente córado.
—Eu?! E porque é que hei de saber d'esses amores?
Clemente, admirado do effeito das suas palavras, disse com hesitação:
—Lembrava-me… como é amigo do Thomé da Povoa… talvez soubesse…
—As relações que possa ter com o pae não me habilitam a devassar o coração da filha; mas que desejavas tu saber d'esses amores? Não te disse ella que era como se não existissem? que nasceram sem faculdades para viver? O que te resta é julgar por ti se nas condições em que Bertha aceita a tua proposta, ainda podes insistir em fazêl-a.
—Pois é isso mesmo. E depois de a ouvir hesito.
—Duvídas de Bertha, não é verdade? Receias que esses amores não lhe morram no coração e que um dia revivam como a lavareda quando se desfaz o monte de cinzas que a suffocava? Se assim é, se não tens no caracter de Bertha a precisa confiança que devemos ter na mulher que escolhemos para companheira na vida, se não repousas cegamente n'ella, na sua lealdade, nas suas virtudes, então desiste, porque irias envenenar a tua vida com ciumes e a d'ella com suspeitas injuriosas.
—Não desconfio de Bertha; mas queria saber porque julga ella impossivel esse amor que sente, para vêr se a mim me pareceria tambem que o era. Quem sabe lá se o é? E se deixar de sêl-o por o motivo de hoje e o fôr por Bertha ser minha mulher? Quem me podia curar d'este desgosto?
—Socega, Clemente, os motivos que hoje se dão, dar-se-hão sempre—disse imprudentemente Jorge.
—Pois sabe quaes são?!—perguntou Clemente admirado.
Jorge conheceu a indiscrição em que tinha cahido, e procurou emendal-a, dizendo:
—Não; mas se Bertha t'o assegurou… Ella não costuma ser irreflectida… E motivos ha na vida tão poderosos e permanentes, que póde bem predizer-se na presença d'elles a impossibilidade de um facto.
—Eu sempre os queria conhecer, para julgar por mim.
Jorge replicou com impaciencia:
—Julgar por ti! E quem te diz que saberias aprecial-os? Talvez os julgasses faceis de vencer, não obstante elles serem insuperaveis. Acredita o que te digo, Clemente. Um homem só póde ser perfeito juiz das acções de um outro, quando entre ambos se dão absolutamente as mesmas condições de existencia. Desde que estas variam, varía com ellas a maneira de vêr as coisas. O que para ti é um acto natural e facil, é para mim um impossivel, porque se lhe oppõe opiniões, sentimentos, crenças que me são proprias, que fazem parte de mim mesmo, de minha entidade moral, e que tu não possues e de que por ventura te ris. Por isso escusado seria talvez saber do segredo de Bertha mais do que o que ella te revelou. Crê sob a garantia da sua palavra que esses amores foram apenas uma phantasia da mocidade, que os rudes deveres da vida extinguirão, e resolve.
Clemente permaneceu ainda por muito tempo silencioso.
Jorge pôz-se a passeiar no quarto.
A final o noivo de Bertha ergueu-se e disse suspirando:
—Bem; veremos o que pensa minha mãe.
—E que direito tens tu de ires fallar a tua mãe nas confidencias de
Bertha?—interpellou-o Jorge, com uma vehemencia que sobresaltou
Clemente.
—Devo confiar em minha mãe, pelo menos tanto quanto confiei no snr.
Jorge. Bertha não m'o levará a mal.
Jorge reprimiu-se ao responder:
—De certo que não acho mais justificado o escolheres-me para confidente. Emfim, faze o que quizeres, mas… segue principalmente o que te dictar a consciencia.
Clemente sahiu mais pensativo do que viera.
O desconsolado noivo estranhára Jorge. A maneira por que elle lhe fallou fôra tão fria e desabrida e de tão difficil explicação, que não podia Clemente atinar com o motivo d'aquillo. A ultima reflexão, sobre tudo, deixou-o muito sentido. Jorge pozera em duvida o direito que elle tinha de consultar sua mãe n'este negocio! Pois não era ella a mais natural conselheira que elle tinha no mundo? E não pedia o caso o conselho de pessoa experiente?! Poderia Bertha levar-lhe a mal a precaução que tomava principalmente em vista da felicidade d'ella?
Mas emfim Jorge dissera-o e Clemente, a seu pesar, começou a sentir escrupulos.
De feito aquelle segredo não era seu, e Bertha não o tinha authorisado a revelal-o. Já em communical-o a Jorge exorbitára.
E no meio d'estas alternativas de resoluções entrou cabisbaixo e assombrado em casa, e não fallou em coisa alguma a sua mãe.
Esta ao vêl-o assim, attribuiu o facto a impaciencias do amor. A ida de Bertha para a companhia do fidalgo prorogára o prazo para a fixação do casamento, e Anna do Védor conjecturou que era isso que contrariava o filho.
Resolveu pois fallar a Thomé para apressar quanto podésse a festa, porque ella sabia que D. Luiz estava melhor, e que até já andava a pé, e portanto era justo que prescindisse de Bertha, que não se destinava a fazer-lhe eternamente companhia.
Chegaram cartas da baroneza e de Mauricio, datadas de Lisboa. As noticias que davam eram satisfactorias. Mauricio fôra hospedado em casa de um primo remoto de D. Luiz e por elle introduzido nos primeiros circulos da cidade, onde recebeu um lisongeiro acolhimento.
Mauricio achava-se n'aquelle mundo, novo para si, como se n'elle tivesse sido educado. Sentia-se bem alli, agradavam-lhe aquelles habitos de elegancia e de distincção, que não conhecêra no canto de sua provincia, mas cuja necessidade vagamente experimentava havia muito tempo. Era para aquelle viver que os seus instinctos o inclinavam.
Quando se viu alli respirou com o desafogo de quem sahe de um ambiente que o asphyxiava. Não necessitou de longo tirocinio para conhecer os usos d'aquella sociedade e adoptar-lhe os costumes. Em poucos dias não restavam n'elle vestigios sequer do seu provincianismo. Uma forte vocação substitue um lento noviciado. Os homens acharam-n'o espirituoso; as mulheres, amavel; e para com todos soube ser tão insinuante, que os influentes politicos, a quem a baroneza o recommendára, tomaram por elle o mais vivo e promettedor interesse.
Escusado é dizer que Mauricio não foi muito escrupuloso na observancia dos artigos de fé politicos com que D. Luiz doutrinára os filhos. Para genios como o de Mauricio, um dos maiores achaques que póde ter uma ideia é o estar fóra da moda.
Jorge sentia que não lhe era possivel abraçar a crença do pae, porque a razão a condemnava; e estas convicções para toda a parte o acompanhariam, porque procediam de um juizo claro e de uma aturada reflexão.
Mauricio, apesar de nunca ter adherido manifestamente ao credo paterno, só agora parecia havêl-o devéras renegado, porque o desgostavam os ares de sédiço e desusado, com que elle lhe apparecia á esplendida claridade dos salões da moda.
Tudo quanto havia de eminente no jornalismo politico, na litteratura, no parlamento, no fôro, constituia agora o circulo habitual das relações de Mauricio, e nas conversas animadas, cheias de vivacidade, brilhantes de eloquencia e de espirito, em que elle tambem tomava parte, jogavam, como principios assentes, certas proposições que elle fôra educado a considerar como abominaveis heresias.
Isto era o bastante para que elle abjurasse o credo velho com que o haviam catechizado na provincia e professasse a doutrina nova.
A baroneza, que revelava tudo isto muito extensamente a Jorge, colorira e occultára parte da verdade a D. Luiz, para não o assustar.
Ella porém via com prazer o exito do seu protegido, que excedia a sua espectativa.
«Em pouco tempo—escrevia ella a Jorge—teu irmão tornou-se um homem da moda, e é para ver o bem que elle sabe sustentar a posição que tomou de assalto. Nas frisas de S. Carlos, nos primeiros salões de Lisboa, Mauricio está como em terreno conhecido, e muitos nados e creados n'estes ares invejam-lhe o seu aplomb e o seu savoir faire inimitaveis. O ministro dos negocios estrangeiros, a quem muito especialmente o recommendei, dá-me as melhores esperanças de elle ser despachado como addido para o corpo diplomatico, carreira que sobre todas me parece a mais talhada para as predilecções e talentos do nosso protegido.»
Estas noticias foram recebidas com prazer por Jorge e por D. Luiz. Este recordou-se, ao lêl-as, do tempo da sua juventude, em que tambem trilhára a carreira da diplomacia. Jorge conhecia a fundo o caracter do irmão e sentia que elle tinha de facto entrado no caminho para onde o chamavam os seus talentos e as suas disposições moraes.
A imaginação de Mauricio era muito poderosa e exigente, as tarefas proveitosas, mas modestas, o trabalho na obscuridade da provincia, a consagração de uma vida inteira ao cumprimento de um dever, não lhe bastavam.
Uma impaciencia insuperavel desviava-o d'esse caminho.
As brilhantes apparencias, a vida agitada, a variedade de impressões, as luctas incessantes, alimento da febril anciedade que devora certos espiritos, eram-lhe indispensaveis. Sob a influencia de taes estimulos, as suas faculdades entravam em acção. Não se contentava com os applausos da consciencia propria, precisava dos applausos do mundo. Para os conquistar tentaria esforços sobrehumanos.
Jorge era uma alma formada para o dever; Mauricio uma alma formada para a gloria.
D. Luiz não pôde deixar de sentir-se lisongeado com o bom exito do filho, não obstante as vagas apprehensões que sentia de que a intima convivencia com a corrupta mocidade da côrte o contaminasse. Felizmente o velho realista não tinha já a seu lado o padre procurador, com a sua incessante prégação contra os costumes do seculo, que era d'antes o thema obrigado das conversações diarias. E desde então as prevenções do fidalgo haviam perdido muito das côres carregadas que as tingiam.
Ás primeiras cartas seguiram-se outras, confirmando as noticias dadas n'aquellas.
As auras continuavam a soprar favoraveis a Mauricio nos mares insidiosos da côrte. A baroneza dava quasi como certo o proximo despacho d'elle para addido a uma embaixada de Vienna ou de Berlim.
Mauricio relacionara-se intimamente com os primeiros personagens da situação politica dominante, que se interessavam por elle. As sympathias femininas, poderoso elemento de prosperidade n'aqueilas altas regiões, como em geral em todas, conspiravam tambem a seu favor.
«Com mais um pequeno esforço talvez fosse possivel fazêl-o ministro, (escrevia a baroneza a Jorge) que não é em Portugal dos postos de mais difficil accesso. Ministro da marinha pelo menos, que é a pasta dos principiantes e a mais adequada para os homens de imaginação como elle, onde teem muito com que a alimentar, porque é a pasta symbolica das nossas glorias passadas e pouco mais.»
N'esta mesma carta de Gabriella havia alguns periodos em que, usando de uma linguagem mais grave, ella fallava da probabilidade do seu casamento com Mauricio.
«Não attribuas este projecto a um mero capricho de mulher. Não é. Resolvi-me a dar este passo depois de ter reflectido o mais friamente possivel nas vantagens e consequencias d'elle. Mais tarde ou mais cedo eu tinha de contrahir segundas nupcias; a posição em que me acho e as impertinencias dos innumeros aspirantes á minha mão, ou antes aos bens que herdei de meu marido, assim o exigiam. Era difficil deixar de ceder. A minha sympathia por Mauricio é um motivo de preferencia muito justificado. Nenhum candidato me agradava mais, o que não quer dizer que me sinta apaixonada. Mas muito teria que esperar se aguardasse por uma paixão para me decidir. Já não estou em tempo d'isso. Mauricio é um rapaz amavel e delicado bastante para não me dar motivos de arrepender-me. É quanto exijo. Sou tolerante por indole e por habito, não terão portanto effeito sobre mim os costumados motivos de desolação de todas as esposas extremosas, motivos que muito provavelmente Mauricio não deixará de dar á sua. Isto pelo que me diz respeito. Quanto a elle, entendo que lhe convém este casamento. Primeiro, porque realisará uma operação financeira um tanto vantajosa; depois porque, graças á minha longanimidade, não peiará demasiadamente os seus movimentos de rapaz com os laços matrimoniaes, sem que por isso corra os precalços dos maridos pouco fieis aos lares domesticos. O Jorge faz-me a justiça de assim o acreditar, não é verdade? E finalmente porque d'esta maneira precavê-se contra alguma tentação, a que são sujeitas as cabeças como a d'elle, que em um momento de enthusiasmo transtornam todo o seu futuro. Casando commigo, fica livre de desposar a primeira dançarina de S. Carlos, que o fascinar. Em conclusão, creio que poucas mulheres poderiam como eu aceitar Mauricio para marido, com tanta probabilidade de não o fazerem infeliz nem de o serem. O que é preciso é aproveitar o ensejo em que Mauricio me faça a honra de uma preferencia. Por isso talvez qualquer dia surprendamos o tio Luiz pedindo-lhe a authorisação necessaria. Espero que o Jorge advogará a nossa causa. Perdoa-me se alguma leviandade descobrires ainda n'esta minha resolução. Acredita porém que nunca pude ser mais séria do que o estou sendo, ao escrever-te esta carta.»
Havia ainda um post-scriptum, em que ella acrescentava:
«Bertha ainda está nos Bacellos? Será bom que se demore. Nunca é tarde de mais para o tal casamento, com o qual por emquanto me não pude conformar.»
A communicação que lhe fazia Gabriella surprendeu em extremo Jorge, que muito longe estava de prevêl-a. Reflectindo porém, acabou por achar que a prima tinha razão e por convencer-se de que, não obstante o tom ligeiro da carta que lêra, expunham-se n'ella razões de pêso para justificar o facto annunciado.
Casando com a baroneza, Mauricio precavia-se contra si proprio e ligava-se a uma mulher, que por as especiaes disposições de sua indole, saberia respeitar o nome do marido, sem que a fizessem desgraçada os provaveis desvarios d'elle.
Effectivamente, conforme o que a baroneza predissera, semanas depois era D. Luiz surprendido por uma carta d'ella e outra de Mauricio, pedindo-lhe o beneplacito para o referido casamento.
O fidalgo recebeu com prazer a inesperada nova.
Gabriella era por muitos motivos uma esposa que para qualquer dos seus filhos elle ambicionava. Joven, rica, de sangue igual ao seu, e de sentimentos elevados sob a frivola apparencia de que os revestia, a baroneza augurava um auspicioso futuro ao homem a quem désse o titulo de marido. Para Mauricio seria demais uma prudente conselheira e um obstaculo a muitas loucuras que, entregue a si ou a peior vigilancia, o rapaz não deixaria de commetter.
Por isso D. Luiz, com animo folgado e um sorriso expansivo a alizar-lhe na fronte e nos labios a contracção habitual, apressou-se a responder ao pedido nas mais benevolas e lisongeiras phrases que lhe inspirava o seu bom humor.
Bertha veio dar com elle sentado á secretária a escrever. A filha de
Thomé da Povoa quiz retirar-se para não o interromper.
D. Luiz, conhecendo-lhe os passos, disse sem desviar os olhos do papel em que escrevia:
—Entra, Bertha, entra, que não me incommodas.
E, sentindo-a mais perto, acrescentou:
—Sabes o que estou fazendo?
—A escrever; bem vejo.
—Sim; mas a quem?
—A seu filho Mauricio talvez.
—A Mauricio e a Gabriella tambem. E sabes a respeito de quê?
—Eu, não.
O fidalgo terminava n'aquelle momento a assignatura no extremo inferior da pagina, e só depois de concluil-a foi que, voltando-se para Bertha, continuou:
—Authoriso um casamento.
—Um casamento?!
—É verdade. Havia alguem de suppôr que o Mauricio se casava?!
—Casa-se! Com quem?
—A vêr se adivinhas.
Bertha reflectiu alguns instantes.
—E eu conheço a noiva?
—Conheces perfeitamente.
—Então não póde deixar de ser a snr.ª baroneza.
—Justamente. É Gabriella.
—É uma felicidade para elle.
—Assim tambem o julgo. Se alguem se aventura n'este casamento é a noiva.
—O snr. Mauricio tem uma boa alma, não dará motivos de arrependimento a quem depositar confiança n'elle.
—Hum! É muito rapaz—murmurou o fidalgo, fingindo sentir contra o filho maiores prevenções do que effectivamente sentia.
Bertha julgou que era occasião opportuna de pôr em pratica um projecto, que desde madrugada meditava.
Thomé da Povoa tinha-a na vespera procurado para lhe fallar na visita que recebêra da mãe de Clemente, e no que ella lhe dissera sobre o desgosto em que andava o filho com a demora do projectado casamento. Thomé não queria apressar a sahida de Bertha dos Bacellos, mas, lembrando-se de que o fidalgo ia melhor e de que, por certo, não seria elle o primeiro a dizer a Bertha que prescindia dos seus cuidados, pensava que seria bom que ella lhe insinuasse a necessidade de separação e para isso bastava pedir-lhe, como a padrinho que era, licença para o casamento que se ajustára.
Bertha perguntou ao pae se tinha já a certeza de que Clemente estivesse ainda resolvido a insistir na sua proposta. Thomé admirou-se da pergunta, porque nada sabia da conferencia da filha com o noivo, e assegurou-a de que a resolução de Clemente era ainda a mesma, visto que a mãe n'aquelle mesmo dia lhe viera recordar o ajuste.
Em vista d'esta declaração, Bertha prometteu fallar n'aquelle objecto a D. Luiz no dia seguinte, e era esse o ensejo que ella desde pela manhã procurava.
O assumpto a que a coincidencia das cartas de Mauricio e da baroneza chamava a conversa, preparára excellentemente o caminho para o pedido de Bertha.
Aproximando-se da cadeira em que estava sentado o padrinho, disse-lhe com o tom de affabilidade com que aprendêra a dominal-o:
—Já que está em maré de condescender com os pedidos que lhe fazem, não quero perder a occasião de lhe fazer um tambem.
—Ah! tens um pedido a fazer-me?
—Tenho. E tão parecido com esse!
—Com esse… qual?
—Com o que lhe fez seu filho.
—Com o pedido de Mauricio? mas… então tracta-se de casamento?
—Sim, meu padrinho. É de um casamento que se tracta.
—De quem?—interrogou o fidalgo, fitando os olhos em Bertha.
—De quem ha de ser, se sou eu a que peço?—respondeu esta, baixando os seus, e não podendo disfarçar a melancolia que ainda lhe causava aquella ideia.
—Tu?!—exclamou D. Luiz sobresaltado, e voltando-se rapidamente—Tu queres… tu vaes casar-te?!
—Sim, snr. D. Luiz, está decidido que isso se faça e eu peço-lhe licença para o fazer.
—Tu casares-te, Bertha!—repetia o velho como se lhe fosse difficil conformar-se com essa ideia—mas… com quem?
—Com o filho da Anna do Védor, com Clemente.
D. Luiz deu um salto na cadeira, ao ouvir a resposta, e bateu com a mão na banca que tinha diante de si.
—O quê?!… Ora adeus! Tu estás a brincar commigo.
—Não, meu padrinho, fallo-lhe sériamente.
—Com o Clemente?! Tu casares com o Clemente? Tu, uma rapariga delicada, de educação, de gosto, de sentimentos elevados, casares-te com um rustico, com um rapaz que quando muito saberá escrever o seu nome! com o filho da Anna, com o snr. regedor! Isso não tem geito nenhum. Isso é um disparate de tal ordem!… Quem foi que se lembrou de tal?!
—Clemente pediu-me a meu pae…
—E teu pae concedeu? Coisas do Thomé a final. Mas tu? tu, Bertha, tu consentiste!?
—Clemente é um bom rapaz, honrado, amigo do trabalho…
—Ora adeus, amigo do trabalho, honrado, e é isso bastante para que uma rapariga como tu vá sacrificar o seu futuro e ligar a sua existencia á de um homem que não póde servir-lhe de boa companhia?!
—E porque não póde, meu padrinho? Elle é bom e delicado, dizem.
—Oh! que grandes delicadezas as de Clemente! Nem tu sabes o que vaes fazer, Bertha. Pois devéras o coração approva essa escolha?
—Não, snr. D. Luiz, não é que o coração m'a peça, porém…
—Então quem te obriga? Por acaso teu pae violenta-te?
—Tambem não; mas o padrinho sabe que nem sempre o coração é bom conselheiro. Mais vale ás vezes não esperar que elle escolha. Oh! se mais vale! Podendo-se decidir a sangue frio e antes que o coração decida, mais vale.
—O Clemente não póde ser teu marido. Tu, Bertha, tu a quem Deus concedeu qualidades tão distinctas, que melhor estarias n'essas casas nobres que por ahi ha do que algumas raparigas atoleimadas que por lá tenho encontrado, tu, que me recordas a minha pobre Beatriz, que pareces ter herdado os modos, os gostos, os sentimentos d'ella, tu has de ir casar com o Clemente! Nem quero ouvir fallar mais n'isso.
—A sua muita bondade para commigo, padrinho, é que o cega. Pois diga a que posso eu a final aspirar?
—A que podes aspirar?!—exclamou o fidalgo, a quem a exaltação de espirito, que o pedido de Bertha produzira, quasi fazia esquecer os seus principios mais radicados—aqui, n'esta terra de selvagens, não podes aspirar a mais, porque não ha quem te mereça até. Aqui nem sequer por sonhos se sabe o que é delicadeza de sentimentos, nem sequer de longe se aprecia essas nobres qualidades de coração e de espirito de que Deus te dotou, e que tu queres perder na convivencia com um homem grosseiro, e que nem póde conhecer o thesouro que deseja possuir.
—Mas, snr. D. Luiz, que outra póde ser a minha sorte? Ora diga.
D. Luiz, fazendo um gesto de despeito, respondeu com vehemencia:
—Pois bem, queres ser mulher de Clemente, não é assim? queres ir sacrificar os teus merecimentos a esse homem? queres dedicar-lhe todo o teu futuro, consagrar todos os teus pensamentos, todas as tuas aptidões aos arranjos da casa da Anna do Védor? Pois bem, faze a tua vontade. Mas escusas de vir pedir o meu consentimento. Eu não quero ficar com remorsos de ter sanccionado um disparate d'essa marca. Tu mulher de Clemente! Vossês, as raparigas, a final são todas assim, as mais ajuizadas, ou tarde ou cedo, cahem em uma loucura, como para mostrarem que são mulheres. Para que vens pedir-me conselho, se formaste o proposito de não o escutares? Anda lá, faze a tua vontade, e Deus queira que te não arrependas, quando já não fôr tempo. Tu não necessitas do meu consentimento, faze lá o que quizeres.
E D. Luiz encostou-se á mesa com gesto e movimentos de amuado.
—Porém, meu padrinho—insistiu Bertha, poisando-lhe as mãos no hombro com a doce familiaridade de filha—não era esse consentimento de má vontade que eu lhe pedia; esse não me trará felicidade, bem vê.
—Queres talvez forçar-me a dizer que approvo um casamento, contra o qual se revolta a consciencia? É boa!
—Mas pense bem e talvez que a sua consciencia não ache motivos para revoltar-se.
—Sabes que mais? Dize que amas esse homem, que sentes por elle uma inclinação irresistivel, e então eu entenderei a tua insistencia.
—Não digo, porque não diria a verdade.
—Mas então onde está essa necessidade de casamento?
Bertha sentiu que devia fallar com toda a gravidade ao padrinho para convencêl-o.
—Olhe, snr. D. Luiz—disse ella—eu vou informal-o de todo o meu pensamento, e dirá depois se tenho razão. A educação que meu pae me deu não me cegou a ponto de illudir-me a respeito do meu futuro e do destino que me está reservado. O exemplo de minha mãe, que tem sabido em toda a sua vida ser a companheira fiel de um homem de trabalho e tem comprehendido que a sua missão era aquella, a de fazer-lhe esquecer em casa os desgostos de fóra e dar-lhe forças para continuar a sua tarefa, este exemplo nunca o perdi de vista; entendi sempre que terá de ser esse o meu papel n'este mundo, e nem me envergonhei nem me temi nunca d'elle. Sentia em mim forças para aceital-o e para cumpril-o.
—Mas nem só os homens do trabalho material e grosseiro são os que precisam d'esse conforto da casa e da familia. As lidas de intelligencia tambem cansam, Bertha, e á cabeça desfallecida á força de estudo tambem é grato encontrar um seio amigo aonde se encoste a descançar—redarguiu o fidalgo com uma animação excepcional.
Bertha tornou-lhe, sorrindo:
—E qual seria a cabeça cansada de muito pensar que viria procurar a esta aldeia o seio em que repoisasse? De longe é de crêr que não viessem, e as d'aqui… ha tão poucas que se sintam cansadas d'isso! Creia, snr. D. Luiz, só um lavrador como Clemente procuraria a filha do lavrador Thomé da Povoa, e Clemente é um homem digno de ser estimado.
—Só um lavrador! Que estás tu ahi a dizer?! E porquê? Tomaram-te para esposa esses doutores que por ahi estão ociosos, comendo e bebendo á custa dos paes, e esquecendo o pouco que aproveitaram em Coimbra na vida inutil que levam; olha que não te haviam de engeitar esses morgados vadios e perdularios, que passam a vida em caçadas e que arrastam o nome que herdaram pelas tavernas e por todos os logares de devassidão.
—Esses engeital-os-ia eu. Pois julga que lhes não devo preferir
Clemente?
—Pois não digo esses, mas… emfim… ainda por ahi ha gente… bem educada…
—Se não fosse a sua muita bondade para commigo, o meu padrinho mesmo acharia natural este casamento, e pelo contrario estranharia se algum dos filhos d'essas familias que diz fosse procurar noiva á casa de meu pae.
O sentido epigrammatico d'esta resposta, dictado a Bertha por a nobre e justa indignação do coração, que depois de se haver sacrificado aos preconceitos de um homem, via o proprio por quem fizera o sacrificio negar a necessidade d'elle, feriu certeiro o fidalgo, que se sentiu vencido.
Mudou pois de tactica, e com a eloquencia que lhe inspirava o receio de perder a companhia de Bertha, tornou:
—Muito bem, dizes que não amas esse homem, que não cedes a inclinação alguma do coração, aceitando-o por marido; que se o fazes é por julgares que é essa a tua missão de mulher, a de suavizar a vida de um homem, e de tornar-lhe mais facil o seu caminho no mundo. E para cumprires essa missão vaes deixar-me só, velho, doente, abandonado dos filhos, sem conforto algum na vida; só com as lembranças pungentes do meu passado, e isto depois de me habituares á tua companhia, depois de me haveres recordado as doçuras d'este viver ao lado de uma filha, doçura que o amargor das saudades me tirava dos labios havia muito tempo. Para que vieste então? Quem te chamou? Se eu tivesse ficado só, estaria morto talvez e seria feliz. Vieste para me obrigares a sentir agora esta separação; para me fazeres morrer de paixão no dia em que celebrares esse casamento. Que queres? Estava habituado a considerar-te quasi como uma segunda Beatriz que Deus me concedêra, e podes julgar se eu daria a Clemente uma filha minha.
—Meu padrinho!—exclamou Bertha, inquietando-se com a exaltação do fidalgo.
D. Luiz proseguiu sem a escutar:
—Mas que te importas commigo? Eu estou velho; as cabeças na minha idade vergam muito para a terra, pesam demasiado, não se póde exigir de umas mãos jovens a tarefa de as sustentarem. Ainda se fossem as de uma filha! Mas para que vieste? Julgas que me deixas forte? Estás enganada. Esta vida em mim é ficticia. É da tua presença que a recebo. Ámanhã que me deixes vêr-me-has mais prostrado do que me encontraste. Emquanto viveu a minha Beatriz, ninguem me viu fraquear. Dois mezes consecutivos, dois mezes, passei junto do leito onde ella agonisava, quasi sem dormir, quasi sem comer, e nunca me faltaram as forças, e desde o momento em que m'a tiraram dos braços para m'a encerrarem no tumulo, abandonou-me toda a minha energia, e cahi no leito quasi exhausto de vida. Mas vae, não quero sacrificar o teu futuro. A companhia de um velho cansa. Os corações na tua idade precisam de ar e de alegrias. Eu bem conheço isso; mas não me digas que é sómente a consciencia da missão que te compete na vida a que te impelle; essa bem a desempenharias tu aqui, e generosa e abençoada como nenhuma, porque nenhum coração receberá de ti consolação igual áquella que me dás; podes crêl-o, porque tambem poucos ha mais apertados de angustias e que ha tanto tempo abafassem como este meu. Mas queres deixar-me… Vae… vae, que eu não devo, nem quero impedir-te.
Havia tão sensivel commoção na voz com que D. Luiz pronunciára estas palavras, que Bertha sentiu o contagio d'ella, e pegando nas mãos do padrinho para as levar aos labios, disse-lhe sensibilisada:
—Ó meu padrinho, se é verdade o que diz, se a minha companhia lhe faz tão bem, ordene-me que fique, e ninguem me tirará de junto de si, e nenhuma sorte me será mais querida do que esta. Concorrendo para alliviar-lhe os seus soffrimentos, parece-me que estou cumprindo um encargo que Beatriz me deixou, e que ella do céo me sorri e agradece. Quer que não saia de ao pé de si? quer que lhe consagre todos os meus cuidados? fal-o-hei e fal-o-hei com prazer.
O velho cingiu a formosa cabeça d'aquella rapariga, que se lhe ajoelhava aos pés, e aproximando-lhe dos labios a fronte e as faces beijou-as a chorar.
—Obrigado, Bertha, obrigado por essas palavras que me entram pelo coração como um balsamo salutar. A minha vida não póde ser muito longa, filha, o teu sacrificio não duraria muito tempo… mas nem eu quero que faças promessas de cumpril-o. Só te peço que me dês algum tempo para responder á tua petição, e que até lá me não falles mais n'esse casamento. Eu pensarei e talvez… talvez me conforme com essa ideia, contra a qual ainda me revolto. Póde ser isto? Podes esperar na minha companhia alguns dias mais?
—Esperarei o tempo que quizer. E não pense por ora em tal casamento, se esse pensamento o afflige. Se soubesse nem lhe tinha fallado n'isto.
—Melhor foi que fallasses; é preciso pensar com vagar n'isso.
—Mas agora não, agora vamos até á quinta, que a manhã está bonita.
Em resultado d'esta conferencia nada ficou determinado emquanto á época do casamento. Thomé teve de dizer a Anna do Védor que o fidalgo ainda não podia prescindir da companhia de Bertha.
Anna não ouviu a noticia sem fazer-lhe commentarios, nos quaes havia algumas azedas allusões ao egoismo do fidalgo, que depois de offender o pae, assim se sabia apropriar dos serviços que lhe prestava a filha.
Cumpre porém notar que a boa Anna seria a primeira a aconselhar a Bertha que ficasse, porque sentia verdadeira pena do estado a que chegára D. Luiz.
Não podia passar da ideia a Clemente a maneira insolita e quasi desabrida com que Jorge por duas vezes recebêra as suas consultas relativamente ao assumpto do casamento de Bertha.
Clemente conhecêra sempre em Jorge uma tal placidez de espirito, uma tal impassibilidade em presença dos casos mais estranhos, que não sabia como explicar aquella subita transformação.
Esta mudança em Jorge e a revelação que ouvira da bôca de Bertha tão preoccupado traziam o pobre rapaz, que não podia dispôr da attenção para outro objecto. Distrahiam-n'o estas ideias das suas tarefas diarias e agitavam-lhe o somno das suas noites.
Jogava-lhe alternadamente o pensamento com estes dois assumptos, como se joga com duas espheras em uma só mão; emquanto se arroja uma ao espaço, cahe a outra a occupar o logar que fica vazio. Ora succede que muitas vezes as espheras encontram-se e batem uma na outra; e que muito será para admirar se d'este choque resultar uma faisca? Pois com o jogo do pensamento póde succeder o mesmo. De duas ideias que se encontram, á força de se cruzarem muitas vezes no cerebro, póde sahir um clarão. Este phenomeno succedeu com Clemente.
Pensava elle uma noite no seu leito:
—Mas quem poderá ser o tal rapaz que Bertha diz que amou e que ainda ama? Porque será impossivel o casamento com elle? E Jorge tambem diz que o é. Elle parece que sabe a este respeito alguma coisa mais do que disse. Até quando lhe fallam n'isso se enraivece. Quando me lembro! Nunca o vi assim! Nem elle era d'aquellas coisas. Como está impertinente! Mas o tal rapaz, o tal rapaz? É claro que é conhecimento da cidade. Sim, porque da terra não póde ser… a rapariga já ha muito que d'aqui sahiu… e sahiu criança… Desde que chegou com ninguem tem convivido… a não ser com os fidalgos da Casa Mourisca, mas esses… É verdade que pelos modos Mauricio lhe arrastou a aza, como faz a todas, mas ella não lhe deu confiança; emquanto a Jorge… Jorge… Jorge…
De repente o filho da Anna do Védor sentou-se de um salto na cama e murmurára já audivelmente:
—Jorge! Querem vêr que…
E sem bem saber o que fazia, accendeu luz. Este movimento de instincto, pelo qual parece que queremos desfazer com a luz de fóra as meias sombras que dentro de nós escurecem ainda uma ideia, é frequente n'estas circumstancias. Clemente permaneceu sentado no leito com a vista fixa e o queixo apoiado na mão.
E continuava murmurando:
—E porque não? E a mim que não me tinha occorrido! É até o mais provavel. E assim explica-se tudo… A maneira por que elle fallou a primeira vez e hontem… Aquillo de sahir da casa dos Bacellos, quando ella foi para lá… E a tristeza em que anda… Mas então… E porque é impossivel? Ai, sim, o velho. Isso lá é verdade, quem fallasse ao velho em tal, o que ahi não iria!… Porém… morrendo o pae… já não havia tropeço… E ahi ficava eu… É o que eu digo… É verdade que o rapaz tem lá uns modos de pensar!
Aqui bateu Clemente uma palmada no travesseiro, exclamando quasi:
—E não é outra coisa! Agora é que eu explico tudo o que elle me disse… e ella tambem. É certo. Coitados! Se assim fôr… Mas é com certeza. Vou jural-o. Pois se não fosse… Ora se não é, é sem a menor duvida. Elles gostam um do outro. Bertha gosta de Jorge e o rapaz tambem gosta d'ella.
E formulando esta conclusão, Clemente, com abstracção igual á do philosopho que, excitado pela alegria de uma descoberta, sahiu como estava do banho a proclamal-a por toda a cidade, saltou da cama e começou a vestir-se com presteza sem reflectir no que fazia.
Já meio vestido foi que reparou que eram duas horas da noite e que portanto era aquelle acto extemporaneo. Com instinctiva repugnancia deitou-se outra vez.
Quando no decurso de uma noite nos luz assim de subito uma ideia, em busca da qual andavamos havia muito, quando nos occorre a solução de um problema em que meditavamos, impacienta-nos o imperturbavel silencio e quietação que nos rodeia, formando tão completo contraste com o tumulto que nos vae no pensamento. Anciamos pelo dia para ter a quem communicar a descoberta, e para a examinar á luz bem clara, e desenganamo-nos de que não fomos victimas de uma illusão nocturna.
Emquanto o dia não rompe, o cerebro é irritado por aquella sua creação, como o seio materno pelo ser desenvolvido; acabado o periodo da gestação mental é necessario que a ideia venha á luz, e qualquer demora é afflictiva.
Este phenomeno psychologico passava-se em Clemente. Custou-lhe a respeitar o somno da mãe, esperando a luz do dia para lhe transmittir a descoberta que fizera.
O resto da noite passou-o volvendo-se e revolvendo-se na cama sem poder dormir. Era quasi um estado febril o seu.
Incommodára-o a ideia de que a sua pretenção á alliança com Bertha era o motivo da tristeza de Jorge, e que, sem o saber, fôra elle o importuno despertador d'aquelle sonho em que se embalavam ambos, deixando-se amar, sem pensarem no futuro do amor a que cediam. Sonho irrealisavel embora, porém Clemente não quereria ter sido quem os acordou.
Antemanhã, quando ainda a estrella d'alva despedia proxima do horizonte as suas ultimas scintillações, Clemente deixou finalmente o leito, onde não encontrára repouso, e foi passeiar para o campo contiguo á casa, aguardando o despertar da mãe.
Anna do Védor era matinal e por isso Clemente não esperou muito.
Effectivamente a vidraça do quarto em que dormia a robusta matrona abriu-se e ella bradou da janella para o filho:
—Que força de serviço foi essa que te estremunhou, rapaz?! Sume-te! Mal luzia o buraco e tu já a sarilhares por essa casa!
—Levantei-me um bocadito mais cedo e vim espairecer até aqui.
—Qual historia! Então cuidas tu que te não senti toda a sancta noite? Ó rapaz, olha que isto não me vae agradando. Aquelle maldito empate do casamento…
—Ora adeus, bem se tracta agora d'isso.
—Pois que outra coisa ha de ser?
—Quer que lh'o diga? Faça vossemecê favor de chegar aqui abaixo e conversaremos.
—Olá! A coisa é séria! Temos historia. É o que eu digo.
E sahindo da janella e descendo as escadas para ir ter com o filho ao quintal, a boa Anna ia a dizer para si:
—O rapaz anda exquisito! Que me quererá elle? É coisa que lhe dá freima. Na cara se vê. Queira Deus que não tenhamos por ahi alguma alhada. O diacho do casamento!
E chegando ao quintal, onde a aguardava o filho, exclamou:
—Ora aqui me tens. Vamos lá a ouvir isso que tens para me contar.
Desabafa lá, que isto de guardar cada um as coisas comsigo não é bom.
Vá.
—Ora venha para aqui, minha mãe—disse Clemente chamando-a para um banco de madeira, por baixo de um parreiral.
—Mas avia-te, filho, que eu tenho que fazer lá dentro. Já sei que me vaes fallar no casamento.
—É verdade, vou fallar-lhe no casamento que se não faz.
—Que se não faz?!—repetiu Anna, dando um salto e fitando no filho os olhos espantados.—Tu que dizes?
—Isso mesmo que entendeu. Que se não faz.
—E então porque é que se não ha de fazer?
—Porque pensei melhor.
—Ora vae pensar para os quintos. Olha agora! Viu-se já um disparate assim? Pensaste melhor em quê e porquê?
—Olhe, minha mãe, vossemecê bem sabe que eu não sou nenhuma criança capaz de fazer as coisas no ar. E por isso eu que lhe digo que o tal casamento não deve fazer-se é porque…
—E então criança sou eu, para tu nem sequer me dares a importancia de me dizer o porquê? Olha que teu pae até bem velho se aconselhou commigo, apesar de ser homem ajuizado, e não tenho lembrança de o haver feito nunca arrepender por isso. Olha agora!
—Pois tambem eu lhe direi tudo, mas é se vir a mãe mais bem disposta a ouvir-me com socego.
—E parece-te que eu estou desassocegada? Ora valha-te não sei que diga. Em peiores talas me tenho visto na minha vida, sem perder a cabeça. Boa mulher estava eu se me estonteava assim á primeira! Olha agora! Anda, dize lá.
—Pois, minha mãe, este casamento não tem logar, porque Bertha… emfim…
Anna do Védor franziu o sobrolho.
—Bertha o quê? Que disse ella? Disse que não? Olha a presumida! Então quem acha ella que é? Sempre se vêem coisas no mundo! Olha agora! Então ella disse que… Ó senhores, não estar eu lá! sempre queria perguntar-lhe…
—Valha-me Deus, minha mãe, é essa a paciencia que me prometteu? Nem me deixa concluir, nem espera por saber o que vou dizer.
—É porque eu cuidei que ella… sim, porque isso então…
—Ouça, Bertha aceita, mas não tem verdadeira inclinação para mim.
—E porque não?
Clemente sorriu ao ouvir a pergunta.
—Ora essa!—tornou elle brandamente—então n'estas coisas precisa-se de se dar razões? Gosta-se, porque se gosta; não se gosta, porque se não gosta, e acabou-se.
—Mas emfim uma pessoa sempre diz: Não gosto d'aquelle, porque é feio, d'aquelle, porque é torto, ou porque é aleijado, ou porque tem mau genio, por isto ou por aquillo, eu sei lá! Mas tu…
—Sim, eu não tenho defeito que me faça engeitar, hein? Se todos me vissem com os seus olhos, minha mãe!
—Ora, mas vem cá, mas então dize-me…
—Perdão, ouça-me vossemecê primeiro. Bertha não sente inclinação por mim, porque a sentia já por outro. Está satisfeita?
—Olha a pateta da rapariga! Então já a sonsinha… tinha tambem o seu namorado! Que mundo este!
—Ó minha mãe, então se ella se agradasse de mim não era pateta, e lá porque se inclina para outro, já vossemecê faz um espanto d'esses! Que sou eu mais do que elles?
—Não é isso—disse a mãe um pouco embaraçada com o argumento—eu o que queria dizer era… emfim… se fosse um homem capaz… mas qual!… algum menino bonito, algum peralvilhito de Lisboa. Então disse-te assim mesmo na cara que não gostava de ti. E tu…
—Bertha disse-me que tinha tido uma paixão, mas que fazia por vencêl-a, porque não podia casar com o homem de quem gostava; e que se eu, sabendo isso, ainda a quizesse para mulher, ella não duvidava em dizer que sim, e que jurava que me seria fiel companheira na vida.
—Muito obrigada aos seus favores, mas não são cá precisos. Olha agora! Nem que tu morresses sem os seus bonitos olhos. Se deu o coração a outro, que lhe preste, e que passe por lá muito bem sem elle. Olha agora! Como quem diz: emfim eu não gosto de ti, mas vejo-te tão embeiçado, que me mettes pena. Graças a Deus, não faltam por ahi mulheres com quem cases, e se faltassem, tambem vivias bem sem ellas, que, Deus louvado, não te falta que comer, que é o essencial. Olha agora! Não que eu nunca vi umas delambidas como agora ha! Aquelle Thomé é quem tem a culpa.
—Ó minha mãe, já estou arrependido de lhe ter fallado n'isto. Olhem o escarceu que ahi está levantando!
—Ó filho, isto é um modo de fallar. A gente faz cá os seus votos de razão. Mas vamos ao caso. Tu disseste-lhe logo que passavas regaladamente sem os seus obsequios? está entendido. Fizeste muito bem, e está acabado.
—Não disse, não senhora, não lhe disse isso logo.
—Não? Pois isso é que eu não esperava de ti.
—Pedi-lhe tempo para pensar. Eu o que queria era saber quem era o tal, para vêr se de facto o casamento seria impossivel, porque se visse que o era, casava eu, isso casava. O que não queria era vir a ser tropeço algum dia.
—E d'ahi?
—E d'ahi tanto pensei, tanto parafusei, que esta noite dei com a historia.
—Então? Algum janotinha da cidade?
—Sabe o que lhe digo, minha mãe, é que o caso é bastante serio; e agora o que me dá cuidado não é o meu casamento, que esse já eu sei que se não faz; o que me dá cuidado são elles.
—Elles quem?
—A Bertha e o rapaz de quem ella gosta e que é… Sabe quem? O filho mais velho do fidalgo, Jorge.
A Anna do Védor empurrou o hombro do filho, e fez um gesto que, combinado áquelle movimento, exprimia a mais radicada duvida.
—Vae-te d'ahi! Olha agora o disparate! Ora, ora…
—Creia que é verdade.
—Pois a tola da rapariga… metter-se-lhe-ia em cabeça?…
—Não se lhe metteu em cabeça coisa nenhuma. Gosta d'elle, mas sem esperança, e tanto que não hesita em casar com outro. Mas o peior é que Jorge ainda gosta mais d'ella talvez. E Deus queira que isto não venha a dar cabo d'elle!
—O quê? A dar cabo d'elle!
—Pois se vossemecê o visse! É olhar-lhe para a cara e diz-se logo: este rapaz tem coisa que o roe lá por dentro. Eu não suspeitava o que fosse, mas agora que pensei…
—Mas como é que tu vieste a saber isso?
Clemente contou á mãe as entrevistas que tivera com Jorge, e a maneira estranha por que elle o recebêra, a irritação com que o ouvira fallar em Bertha, a singularidade das reflexões que lhe fez e dos conselhos que lhe deu, e a Anna do Védor acabou por convencer-se de que o filho acertára.
Tinha um compassivo coração a boa mulher e, como dissemos, era perdida por Jorge, a quem amava quasi tanto como ao filho. Por isso tomou logo o partido d'elle, e exclamou:
—Mas então porque não ha de esse rapaz casar com a pequena, se gosta assim d'ella?
—E o pae?
—O velho? Isso lá é verdade. O fidalgo é pêrro, mas adeus, primeiro está o gosto de cada um, e quando o amor é de raiz, tolice é querer arrancal-o.
E depois de curta meditação, acrescentava:
—Mas vejam como o demonio as arma! aquelle rapaz, que parecia nem sequer pensar em que havia raparigas n'este mundo, deixar-se logo embeiçar por aquella! por a filha do Thomé da Herdade, que se o fidalgo o via por sogro de um filho seu, era para estoirar de paixão! Sempre é uma! Ó Clemente, pois devéras isso será assim?
—Quasi que ia jural-o, minha mãe.
—Quem me déra encontrar o rapaz, que logo lh'o pergunto.
—Não diga isso, minha mãe. Ia fazel-a boa! Não conhece ainda o Jorge?
—Ora vem tu ensinar-me a conhecêl-o, a mim, que o trouxe a estes peitos, que o ensinei a fallar e a andar; vem cá dizer-me o que elle é. Então que achas tu? que elle se zanga commigo? E a mim que me ha de importar muito que elle se zangue. Mais me zango eu e veremos quem vence. Olha agora!
—Mas para que ha de ir fallar-lhe nisso?
—Para quê? Pois então tu dizes-me que o rapaz anda a consumir-se e a moer lá comsigo essa paixão, e queres que eu o deixe assim rebentar? Ha lá nada peior do que uma pessoa calar comsigo estas coisas que roem lá por dentro? Nada, a bôca fez-se para fallar e para a gente desabafar as suas melancolias.
—Mas se a mãe lhe podésse dar remedio…
—E que cuidas tu? Pois parece-te que se eu visse que o rapaz se me definhava por causa disto, que não tinha alma para ir ter com o fidalgo e dizer-lhe as coisas como ellas são? Então já vejo que tu estás muito enganado com tua mãe. Nada, não, era melhor deixar morrer aquelle rapaz, que é a perola dos rapazes, aquelle rapaz que eu criei e que ha de ser, e já é, a honra da familia. Pois sim, não que eu sou mesmo mulher para o deixar morrer assim.
—Havia de valer-lhe bem. O fidalgo está mesmo agora á espera dos seus conselhos.
—Não estará, mas olha que, duro como é, já não era a primeira vez que eu me avinha com elle e sem elle levar a melhor. No tempo da senhora, que era um anjo, Deus a chame lá, ainda mais força de genio tinha elle e fazia-a chorar sangue e agua pelo muito que lhe perseguia o irmão. A pobre creatura doente e elle sem querer que ella recebesse as cartas que o irmão lhe escrevia, nem lhe deixar saber noticias d'elle. Eu, um dia, dei com o fidalgo no corredor e disse-lhe: «Ó snr. D. Luiz, olhe que v. exc.ª anda a fazer com que se rale de remorsos toda a sua vida, por deixar morrer a senhora assim a estalar de saudades e afflicções. Veja bem v. exc.ª que estas coisas pagam-se.» Foi mesmo assim. E cuidas lá que elle se enfureceu? Qual! Calou-se muito caladinho, e d'ahi por diante a senhora teve noticias amiudadas, e até o jardineiro mais tarde foi para casa e ainda lá está. Então já vês…
—Pois sim, mas o caso agora é mais difficil.
—Deixa-o ser; mas tambem o homem está mais quebrado.
—Tenha cuidado, minha mãe. Olhe lá não vá fazer alguma das suas.
—Alguma das minhas! Eu lá vejo quem é que te dá melhores conselhos do que eu. Alguma das minhas! Olha agora! Sabes tu que mais? Vou já d'aqui fallar com o Thomé.
—Não lhe diga nada d'isto.
—Ora não querem vêr a bonita cabeça que tem este rapaz? Está o casamento tractado, resolve agora não casar e nada de fallar n'isto ao pae da rapariga. Sim, que o Thomé é mesmo homem com quem se brinque e que se contente com meias razões.
—O que eu quero dizer é que não ponha a bôca em Jorge.
—Deixa-me cá. Sabes o que te digo? É que eu não sou mulher de planos. Ao sahir de casa para procurar alguem não penso no que lhe hei de dizer e no que hei de calar. Quando as palavras me veem á bôca, deixo-as sahir e não quero saber de contos. Mas vamos ao almoço, que são horas. Ora o Jorge! o Jorge! para o que lhe havia de dar! E o diacho da rapariga se apanha aquillo! Olha, eu não duvido, porque já ha muito tenho para mim que o Thomé nasceu n'um folle. Ora o diacho! Boa pequena é ella, coitadita, ainda que não andou muito bem comtigo, não, mas…
A mãe e o filho almoçaram, conversando sempre sobre o assumpto, e Clemente tentando combater a resolução que percebia na mãe de cumprir o que annunciára.
Anna do Védor, depois do almoço, deu as suas ordens e sahiu.
Ella fallára verdade, ao sahir não formára plano de conducta, mas instinctivamente dirigiu-se para a Herdade.
O caso de Jorge não lhe sahia da ideia.
A meio caminho da Herdade, a Anna do Védor, ao abrir uma cancella, para tomar por o atalho de um campo, deu de rosto inesperadamente com a pessoa que tanto lhe estava occupando o pensamento.
Jorge vinha em direcção opposta e preparava-se tambem para transpôr o portello.
Em um relance de olhos, a boa mulher verificou, na mudança de aspecto em Jorge, a exactidão das informações que lhe dera o filho, e com isso cresceram ainda mais as suas apprehensões, obrigando-a a exclamar consternada:
—Ó Virgem Mãe dos homens! que maus olhados te deitaram, meu filho, que parece mesmo que sahiste agora do cemiterio? Bem m'o tinham dito, mas tanto não esperava eu vêr!
—Então que lhe tinham dito, ama? Que me haviam desenterrado?
—O que me tinham dito? Queres sabêl-o? Pois olha que não ponho nenhuma duvida em t'o dizer. Tinham-me dito que tu não eras o rapaz de juizo que eu suppunha, que a final eras tão bom como os outros, e que por doidices de rapaz andavas mais morto que vivo, amarello e chupado, como quem tem já um pé na cova.
—E parece-lhe então que a informaram bem?
—De menos que não de mais. Que cara é essa com que tu me appareces? Tu queres ir atraz de tua irmã? Olha se queres. A coisa é facil se continuares n'esse andar.
—E então que lhe hei de eu fazer, ama? Uma pessoa não tem na sua mão o engordar e emmagrecer.
—É teres juizo, é não pensares em tolices, ou então, quando já não ha remedio, é andares para diante com a cara e não soffreres até rebentares.
—Agora é que não a entendo, ama.
—Entendes, entendes; mas, se queres que eu falle mais claro, sempre te perguntarei se era coisa que se fizesse dar por noiva ao meu Clemente, que se criou aos mesmos peitos que tu, a menina que o senhor fidalguinho da Casa Mourisca engeitou?
A impetuosidade do movimento com que Jorge respondeu a estas palavras da ama, a subita e intensa vermelhidão que lhe cobriu o rosto pallido, e o olhar indignado que fitou na boa velha, assustaram profundamente esta, que quasi se arrependeu do que dissera.
—Ama—disse-lhe Jorge commovido e com voz severa—quero acreditar que não pensou nas palavras que disse, nem sabe bem o que ellas significam. Vejo porém que conhece a meu respeito um segredo que eu desejaria que fosse ignorado. Não quero saber como lhe chegou ao conhecimento. Não negarei a verdade. Deixe-me porém dizer-lhe que mal sabe Clemente, mal imagina sequer a grandeza do sacrificio que eu fiz, facilitando-lhe o casamento em que elle me fallou.
Anna recuperou a sua presença de espirito.
—E quem foi que lhe pediu que fizesse esse sacrificio? O meu Clemente sabia lá o que vossemecê tinha no coração? Julgas tu que elle era homem que aceitasse de ti favores d'esses? Olha o outro, que assim que soube tudo, immediatamente deu o dito por não dito.
—O quê? Soube tudo… o quê? O que sabe Clemente?
—Sabe que o snr. Jorge da Casa Mourisca gosta da menina do Thomé da Herdade, e que a menina do Thomé da Herdade gosta do snr. Jorge, e o senhor meu filho, que é um rapaz de brio, não está resolvido a ser o trambolho que separe esses dois corações que morrem um pelo outro.
—Não sabe Clemente que essa affeição, que por infelicidade é verdadeira, está condemnada á morte e que não será a recusa d'elle que a salvará? Não estava seu filho resolvido a aceitar a amizade leal, que lhe offerecia Bertha, sentimento que mais tarde as affeições communs de familia por certo transformariam em verdadeiro amor conjugal? não me disse elle a mim que estava decidido a aceitar, se se convencesse de que a illusão de Bertha não podia ser nunca realidade? Pois essa certeza póde têl-a agora, se sabe tudo. E então porque hesita? Se não tem confiança em Bertha…
—Hesita e deve hesitar, sim senhor. Pois que vem cá a ser esses impossiveis? Olha agora a coisa do outro mundo que o snr. Jorge case com a Bertha da Povoa!
Jorge encolheu os hombros, sorrindo melancolicamente.
A Anna do Védor, interpretando mal aquelle sorriso, insistiu com mais acrimonia:
—É como eu digo. Ai, os escrupulos então são só para quando muito bem lhes parece? Os impossiveis vem só ao atar das feridas? Não que elle não ha mais. Tem um pobre homem uma filha, para quem deseja encontrar um marido trabalhador e honesto, que lhe sirva de arrimo; e vae senão quando apparece um fidalguinho que principia a olhar para a rapariga e a fazer-lhe gaifonas e a metter-lhe teias de aranha na cabeça, e ella, coitadinha, deixa-se ir e prende as azas na rede; e é então que o menino bonito se lembra dos impossiveis e a deixa, e por muito favor cede-a a um rapaz honrado que a estima com lizura e com as melhores intenções de fazer d'ella sua mulher, mas a quem ella já não póde dar o coração, porque o outro lh'o roubou. E diga-me uma coisa, ficava bem a este rapaz aceitar para mulher a rapariga que lhe diz que deu a outro o coração? Para que quer um homem em casa uma mulher sem coração, não me dirá vossemecê?
Jorge ouvia cada vez mais triste e pensativo as recriminações da ama. Dir-se-ia que algumas d'aquellas palavras lhe feriam o coração de remorsos, como se n'ellas sentisse o que quer que fosse verdadeiro; ao mesmo tempo protestava-lhe tambem contra a accusação a consciencia que não o havia accusado tão severamente.
Olhando com gesto melancolico para a mãe de Clemente, que levada pelo impulso da sua eloquencia, ia augmentando de severidade, Jorge disse-lhe com placidez:
—Tem razão em parte no que diz, ama, porém creia que trabalhei devéras para vencer isto em mim. Nem eu sei como me adivinharam; como ella o adivinhou. Ah! sim… lembro-me já… Disse-lh'o eu; mas não foi, como julga, no intento de illudil-a; disse-lh'o em um momento de desespero, quando ella com lagrimas me perguntava porque eu lhe queria mal. Eu querer-lhe mal! Disse-lhe então tudo. Ella soube de mim pela primeira vez este segredo e eu d'ella um segredo igual. Pedi-lhe então que me indicasse o que devia fazer. Da sua propria vontade nasceu a minha resolução, a nossa… Bem vê, ama, que não sou tão criminoso como suppôz. Acredita que eu fosse capaz da vileza que disse? O que fiz por Clemente não podia deshonral-o. Bertha sabel-o-ia fazer feliz, porque comprehende bem os seus deveres. Eu conheço a tempera d'aquella alma. Mas emfim, se me illudi, se nos meus actos ia offensa para Clemente, elle que me perdoe, que não houve n'isso intenção.
Anna do Védor sentiu que lhe vibrava a corda da sensibilidade no coração, ao escutar aquellas palavras sérias e tristes que lhe dizia Jorge.
—Vae-te d'ahi!—exclamou ella, disfarçando a sua commoção.—Quem falla aqui de offensas? Então acreditas que tudo isto que eu disse foi a sério? Era o que me faltava! Sim, que eu não te conheço, sim, que eu não te trouxe n'estes braços e te fiz saltar no meu collo e te vi brincar com os mais rapazes e sempre com mais juizo do que elles todos? Pateta de rapaz que me não entendeu! O que me faz enraivar é o vêr-te assim consumido por uma coisa d'estas. Logo te deu o diacho tambem para gostares da filha do Thomé, quando não faltavam raparigas que boa conta te fizessem. Que ella é boa pequena e poucas d'essa fidalgaria que por ahi ha merecem servir-lhe de criada, mas emfim… é filha do Thomé e teu pae era capaz de estoirar se… Mas adeus, minha vida, o tempo d'elle já passou e tu é que não has de definhar-te e entisicar só para fazer-lhe a vontade. Vê lá, se achas que isso em ti é do coração…
—Não, ama, não. A resolução está tomada. Hei de acabar com isto em mim, succeda o que succeder. Jurei.
A ama tornou com maior vehemencia:
—E a mim é que se me importa com os teus juramentos! Ora veja eu o caso mal parado, e veremos o que por ahi vae. Vou-me ter com o fidalgo… Na, na, na, na, escusas lá de bulir com a cabeça, que isso para mim não vale nada. Eu bem sei o que me pediu tua mãe á hora da morte. Deus a chame lá. Coitadinha! levou-vos atravessados no coração para a sepultura. Sabia o genio do pae e via-vos tão criancinhas!… «Ó ama—disse-me ella, e parece-me que ainda a estou a ouvir—o que me não deixa morrer em socego são estes tres meninos.» Vossês brincavam na outra sala: «Olhe-me por elles, ama, lembre-se de que ficam sem mãe.» Ai! E eu que tanto gostava d'aquella senhora, havia agora de te vêr assim consumido e ficar-me de braços cruzados? Pois sim, espera que logo.
—Ama, peço-lhe que não dê passo algum junto de meu pae sem me consultar.
—Ai, estava bem aviada se esperava pelo teu conselho. Olha agora!
—Veja que póde causar-me um grande mal, ama!
—Olha, eu só te digo uma coisa. Queres que eu me deixe ficar socegada? tracta de me apparecer com outra cara. Senão, não te queixes.
Jorge, que conhecia por experiencia os repentes da ama, ainda insistiu por muito tempo. Ella porém, respondendo-lhe com evasivas, conseguiu separar-se sem haver promettido coisa alguma.
A Anna do Védor seguiu por muito tempo com olhos tristes Jorge que se afastava lentamente. Depois que o perdeu de vista na volta de um caminho, suspirou e foi murmurando:
—Nada, isto assim não vae bem. O rapaz está que faz pena vêl-o. Ainda se fosse com o irmão, era coisa que passava, mas com este!… Lembra-me que, já em pequenino, se a mãe ou o pae lhe ralhavam, ficava aquella criança entalada e sem chorar, mas era sabido que o tinham doente por uma semana. Foi sempre assim. Brioso como uma pessoa de juizo. Agora é capaz de estalar de paixão e deixar-se morrer por ahi sem se queixar. Pois, ao poder que eu possa, tal não ha de succeder. Isso lhe prometto eu.
N'este soliloquio foi vencendo a boa mulher a distancia que a separava da Herdade, onde chegou na occasião em que Thomé e a sua companheira examinavam e discutiam juntos na sala de jantar as vantagens da acquisição de um campo, que o lavrador trazia em vista.
A Anna do Védor foi recebida como quasi parenta que era da familia.
—Viva a ti'Anna!—exclamou folgadamente Thomé—a mais guapa das raparigas do meu tempo, sem querer fazer desfeita á Luiza.
—Lá se viu qual das duas elle escolheu—acudiu com igual humor a mãe de
Clemente.
—Então que quer? Tudo n'este mundo é sorte. Além de que a ti'Anna já estava tentada com aquella alma lavada do João Védor, e não se lhe dava volta.
—Foi o que te valeu, Luiza, senão bem perdias esta boa joia.
Luiza sorriu bonacheironamente como sempre fazia quando o marido gracejava.
—Mas que sancta a trouxe a esta sua casa?—perguntou Thomé—Olá, vamos cá a saber, quer tomar alguma coisa?
—Qual historia! De almoçar venho eu, e isso mesmo sabe Deus o que me custou.
—Então andas doente, Anna?—informou-se Luiza com bondosa solicitude.
—Eu doente? Ora essa! Eu sou lá creatura que adoeça?!
—E como vae o Clemente? o nosso Clemente?—perguntou Thomé—porque eu e
Luiza tambem já o podemos chamar nosso.
—Devagar, devagar, o melhor é não se costumarem a isso, para não lhes custar depois a perder o costume.
—A perder o costume? E porque o havemos nós de perder?
—Porque já lá vae o afilhado de quem eramos padrinhos.
—Não a entendo, ti'Anna.
—Ora a coisa é simples. E vossês o que devem é erguer os olhos mais para o alto.
—Ó ti'Anna, se quer que a entenda, falle-me claro, e cá á nossa moda; pão pão, queijo queijo.
—Prompto. Para ahi vou eu. Pois ahi tem: o casamento da sua rapariga com o meu rapaz foi caso fallado e acabou-se.
—Acabou-se? Como acabou-se? Porquê?
—Porque Bertha não tem para ahi o sentido.
—Ora essa! Então ella não disse…
—Disse, sim senhor, disse que casava, e tambem o disse a meu filho, mas acrescentou que não lhe levaria o coração comsigo.
—Bertha disse isso? Quando? A quem? A Clemente? Não póde ser!… Mas não leva o coração… Porquê?
—Porque já não o tem.
—Como já não o tem?
—Porque já fez presente d'elle.
—Que está a dizer, ti'Anna? Já fez presente do coração! Bertha? A quem?
—Ora diga a verdade, Thomé, não suspeita mesmo, mesmo de ninguem?
—Na minha salvação, que não.
—Pois olhe que é verdade.
—Mas a quem?
—A uma pessoa que vinha por aqui.
—A uma pessoa que vinha…
—Ai, Thomé, que bem o suspeitava eu—exclamou Luiza, juntando as mãos.
—Cala-te, mulher; ahi voltas tu com as tuas tolices; mas diga, ti'Anna…
—Que suspeitavas tu, Luiza?—perguntou Anna do Védor.
—Que elles tinham alguma inclinação um para o outro.
—Elles quem?
—Ninguem, ninguem. Esta minha mulher de vez em quando tem visões.
—Elles quem?—insistia a Anna do Védor.
—A nossa rapariga e…
—Cala-te, Luiza, tu não tens vergonha?—atalhou o marido.
—E quem mais? acaba—repetiu Anna.
—E o fidalgo—completou timidamente Luiza.
—Jorge? Pois adivinhaste.
—Ah!—exclamou Luiza, com natural satisfação.
—O quê?—bradou Thomé, erguendo-se com impeto e córando—adivinhaste? adivinhou? Quem?… Luiza? Então… Bertha… a ti'Anna diz que Bertha… Não disse que Bertha…?
—Ó Thomé, escusa de fazer tanto espanto. Eu disse que Bertha gosta do fidalgo e que elle gosta da rapariga.
—Tão doida está a ti'Anna, como está a minha mulher.
—O seu juizo, Thomé, é que não me parece muito seguro. Olhem o grande milagre que a sua filha goste do rapaz, que não tem por ahi outro que se lhe ponha ao pé, e que o rapaz, emfim, que o rapaz tambem tenha a sua inclinação por a pequena, que não é para engeitar. Olhem a grande admiração!
—Eu bem prégava a este homem, mas coisa que lhe diga, é o mesmo que nada—observou Luiza.
—Mas quem lhe metteu essas patranhas na cabeça?—perguntou o lavrador com um riso contrafeito, já interiormente inquieto, e tentando resistir á convicção que se lhe estava formando no espirito.
—Ora quem havia de ser? Uma pessoa que me parece que tem obrigação de estar bem informada. Foi o mesmo Jorge.
—Jorge?! Jorge disse-lhe…
—Agora mesmo o deixei na Corredoura, onde lhe estive fallando bem bem um quarto de hora talvez.
—Ti'Anna, eu não quero offendêl-a, mas ha coisas tão incriveis! Ora diga-me, não sabe quem me fallou na pretenção do seu filho?
—Sei, sei muito bem que foi Jorge, e vae d'ahi? E sei que Bertha tambem disse que sim. Então que mais quer? Mas sei tambem que o rapaz, quando Clemente lhe fallou n'isso, ia rompendo com elle; sei que depois do casamento ajustado, emmagreceu e anda como desenterrado; sei que a sua pequena disse aquillo, que eu já contei, ao meu Clemente, e que o rapaz teve as suas suspeitas, e que eu fallei claro ao Jorge, que não teve cara para negar. Ora aqui tem.
Thomé da Povoa ficou assombrado com a revelação. Nunca o lavrador dera importancia ás suspeitas da mulher, cujos instinctos tinham visto melhor do que a razão clara do marido.
—Pois se isso é verdade—disse Thomé, medindo a sala a passos largos—é uma grande desgraça!
—Oh! Ahi vem o outro!—respondeu-lhe a Anna do Védor com o seu animo intemerato—Credo! Parece-me um sino a tocar a defuncto. Então que grande desgraça vem a ser essa?
—Nem vossê pensa o que d'ahi póde resultar, ti'Anna. Mas sempre se lembre de que n'essa historia entro eu, o fidalgo velho, o rapaz e a minha pequena. Se nos conhece bem a todos, supponha o que d'ahi póde sahir de bom.
—Quer vossê dizer na sua: «Nós os velhos somos dois caturras e os novos são capazes de morrer de paixão.» Mas se os novos tiverem juizo, não se lhes importa com as caturrices dos velhos, e estes o mais que podem fazer é irem um anno mais cedo para a sepultura, o que é bem feito para não serem teimosos. Olha agora!
—Eu bem o suspeitava—repetia de quando em quando a boa Luiza.
—Nem eu quero pensar n'isso para não me arrepender pelo pouco que tenho feito por aquella familia—tornava Thomé.—Se o fidalgo soubesse que o filho mais velho se agradára da minha pequena, o que havia de pensar? O que eu no seu logar pensaria. Que isto em mim fôra tudo um calculo, que procurei trazer o rapaz a minha casa, depois de mandar buscar a filha á cidade, que lh'a metti á cara, que levei a rapariga para o pé do velho com o fim de o dispôr para a approvação dos meus planos… Ó que vergonha! que vergonha! Então é que elle teria razão de me olhar com desconfiança, e quem lh'a não daria? Mas que cegueira a minha! Cegueira! Mas se elles mal se fallavam, se Jorge parecia tão occupado nos seus negocios, que a nada mais dava attenção!
—Ai, eu cá bem o suspeitava—repetiu Luiza.
—Isso não póde ser! Cada vez mais me convenço de que isso é impossivel.
—Pois digo-lhe eu que é verdade, como dois e dois serem quatro. Ora agora elles dizem que decidiram acabar a todo o custo com aquillo por causa do velho, e d'ahi veio a historia toda do casamento; mas no andar em que vão as coisas, parece-me que elles acabam mas é comsigo.
—É uma desgraça! mas que remedio? Ainda que eu cuidasse de vêr morrer-me a filha, havia de oppôr-me a esses amores. E mais depressa a recolheria em um convento…
—O que ahi vae! o que ahi vae! Ó homem de Deus, ia-lhe talvez muito mal se a filha lhe casasse com o rapaz.
—Era uma desgraça, repito. E eu nunca mais poderia olhar de frente para o fidalgo, como o fiz até agora, graças a Deus! porque então teria elle razão de me suspeitar de intriguista.
—Se a sua consciencia o não accusa, não lhe dê canceira o que os outros pensam.
—Eu bem t'o dizia, Thomé, não que tu não querias crêr!—insistia Luiza, entre pezarosa e satisfeita.
—Já me tarda vêr a rapariga para fóra dos Bacellos. Mal sabia eu quando a levei para lá, que um dia podiam vir a julgar que eu o fizesse por calculo!
—Deixe estar a rapariga onde está; Deus que conduziu as coisas assim, lá sabe para que o fez.
—A ti'Anna não sabe o que o fidalgo velho tem sido para commigo? Não sabe que elle mal me póde perdoar o eu ter levantado a casa defronte do seu palacio? e melhorado de anno para anno a minha, ao passo que a d'elle ia cahindo por terra? Não viu o que elle fez só porque soube que o filho tinha vindo ter commigo para o ajudar a livrar-se da usura e das dividas, que lhe deitavam a perder a casa? E agora então julga que eu hei de soffrer que elle suspeite sequer que as minhas tenções eram ou são as de engrandecer á custa dos seus a minha familia? A ti'Anna soffria isto?
—Mas não se está a vêr como o velho gosta da sua pequena, que nem de ao pé de si a deixa sahir? Quem sabe? Ás vezes…
Luiza suspirou, entrevendo a risonha perspectiva que a Anna do Védor assim em confusas tintas lhe pintára.
—Não sou eu que me illudo com essas coisas, ti'Anna—proseguiu Thomé.—O meu plano está feito. Hoje mesmo Bertha ha de dormir na Herdade. Se o seu Clemente a não quizer, paciencia. Nem eu quero obrigal-o, nem á rapariga, a casar contra vontade. Apesar de tudo confio no juizo de Bertha, que ha de vêr as coisas como ellas são, e por isso não me dá cuidado. Que se assim não fosse, eu lhe affirmo que a levaria outra vez para Lisboa. O Jorge é tambem um rapaz honrado. Tudo se ha de remediar ainda, querendo Deus.
—Olhem que homem este! Escusa de tomar essas cautelas todas se o que quer é separal-os. O perigo não está aonde pensa. Elles mesmos resolveram esquecerem-se um do outro e não precisam que vossê os separe. Olha agora! O perigo está em que Jorge já anda doente, e que provavelmente a rapariga não ha de ficar com muita saude se elle lhe morre. Veja lá se isso não é bem peior do que o casamento.
—Deus nosso Senhor nos acuda!—exclamou Luiza assustada.
—Não falle em casamento, ti'Anna, que até me envergonha essa palavra!
—Pois então não se envergonhe e prepare o enterro de sua filha, que o do rapaz não tardará muito. Olha agora! Este homem parece que não tem coração de pae! Eu não sei que diacho de coração é o d'elle! Deixe que quando lhe quizer acudir, já não ha de ser tempo. Ha de vêr a filha morrer-lhe e então é que hão de ser os arrependimentos.
—E que quer que eu faça, mulher?—exclamou Thomé já exasperado.—O meu dever é este. Deus que determine depois o que fôr da sua vontade. E julga que se eu pensasse como pensa a ti'Anna, que isso me serviria de alguma coisa? Parece que não conhece o fidalgo! Pois tantos annos que conviveu com aquella familia ainda lhe não fizeram conhecer o genio d'elle?
—Mas que me importa a mim o genio do velho? Ora essa é que está muito boa! O velho tem um ou dois annos de vida, e lá para o não zangar, não hão de um rapaz e uma rapariga fazer a sua infelicidade. Olha agora!
—Pois sim, pois sim, vossemecê falla bem; mas o que lhe digo é que não tardo nos Bacellos, e que já de lá não venho sem a rapariga.
E sahindo da sala devéras preoccupado, Thomé ia murmurando:
—Foi uma desgraça! uma verdadeira desgraça, meu Deus!…
A Anna do Védor viu-o sahir e meneou a cabeça com certo ar de benevola ameaça.
—Sim? Elle é isso? Pois já que tu és teimoso, eu te prometto que me has de vêr pela frente. Vae, vae aos Bacellos, que quando lá chegares já has de encontrar novidades. Olha agora! Adeus, Luiza, adeus.
Luiza ergueu-se, e abraçando-se na amiga, desatou a chorar.
—Ó mulher, vossê porque chora? Olha agora! Tenha juizo, mulher. Deixe lá que ha de viver para vêr a sua filha bem casada e feliz. E deixe-me que preciso de ir adiante do Thomé para elle não fazer tolices.
—Ai, eu sempre suspeitei isto, elle é que não queria acreditar.
—Pois agora já acredita. E o mais confie em Deus e deixe-me sahir.
E a Anna do Védor sahiu apressada, e murmurando de instante a instante:
—Olha agora!
Desde o dia em que Bertha fallára no seu casamento ao fidalgo da Casa Mourisca nunca mais correram as horas nos Bacellos para o velho e para a rapariga tão alegres como até ahi.
Nem uma palavra se trocou mais entre elles sobre o assumpto, mas facil era de perceber que elle ainda dominava o pensamento de ambos.
Tanto os sorrisos de Bertha como aquelles com que D. Luiz lhes correspondia empanava-os uma nuvem de tristeza.
O fidalgo a cada momento pensava na separação imminente, na necessidade de dar á afilhada o consentimento promettido, e cada vez menos coragem sentia para fazêl-o.
Bertha recebia como que a projecção da tristeza do velho; demais a sua propria crescia á medida que se aproximava o momento em que tinha de realisar-se o sacrificio do seu coração, sacrificio cuja grandeza de dia para dia mais avultava no seu espirito.
Actuou esta influencia no estado do enfermo, que ia perdendo o alento adquirido sob a benefica vigilancia da rapariga.
Por isso no dia em que se passaram as scenas narradas no ultimo capitulo e nas quaes a intrepida Anna do Védor desempenhou tão importante papel, D. Luiz achava-se em um estado de abatimento pouco animador.
Não sahira esse dia do quarto, como era seu costume quando ia sentar-se com Bertha á sombra das arvores. Queixou-se de fraqueza e de frio e ficou na poltrona ao lado da janella a espreitar por dentro das vidraças para as avenidas da quinta.
Bertha havia por instantes deixado o padrinho para temperar-lhe um remedio; e o doente ficando só, cahira em uma profunda meditação, seguindo machinalmente com a vista os movimentos de uma avesita que saltava nos ramos d'uma arvore distante.
De repente chamou-lhe a attenção o rumor dos passos de alguem, que se aproximava no corredor e que parou á porta do quarto, como se hesitasse ao entrar.
—Quem está ahi?—perguntou o fidalgo, não vendo apparecer ninguem.
A esta pergunta a porta entreabriu-se e a figura da Anna do Védor, offegante pela carreira que trouxera de casa do Thomé até alli, desenhou-se no limiar.
—Sou eu; o fidalgo dá licença?—respondeu a Anna.
D. Luiz teve um negro presentimento assim que viu a figura da mãe de
Clemente, o pretendido noivo de Bertha.
Com mal disfarçado azedume disse-lhe:
—É vossê, Anna? Entre.
Anna entrou com o desembaraço com que entrava em toda a parte.
—Então como vae o fidalgo? Fraquinho, hein? Emfim, snr. D. Luiz, tudo se guarda para a velhice.
—É assim, é—disse sêcamente o fidalgo.—Então a que vem aqui, Anna?
Anna do Védor percebeu a debil cordialidade com que estava sendo recebida e por isso respondeu menos affavel:
—Primeiro que tudo, vim vêl-o, como era da minha obrigação, pois não me esqueço de que já comi do pão de sua casa. Ha mais tempo teria vindo, se a minha vida me deixasse; mas sou eu só em casa, como v. exc.ª sabe, a fazer o serviço, e a idade já me vae pesando. E agora por isso vem a pêllo dizer a outra coisa que me trouxe cá. Venho saber de v. exc.ª quando é que póde dispensar a Bertha para se fazer o casamento que está justo entre ella e o meu filho.
O rosto de D. Luiz passou por differentes cambiantes de côr, e mais do que uma paixão lhe desenhou successivamente no semblante em traços fugitivos o aspecto physionomico.
—Então vem para a buscar?—perguntou elle com voz alterada.
—Não, senhor, não venho para a buscar, venho para saber de v. exc.ª quando ella póde ir.
—Ella não é minha filha. Quando quizer, que vá.
—Mau! O fidalgo não quer entender-me.
—Eu o que não quero é occupar-me d'esse casamento—replicou D. Luiz mais agastado.—Quando quizerem fazer esse disparate, façam-n'o. Levem d'ahi a rapariga, sacrifiquem-n'a á sua vontade, mas não me peçam o consentimento, porque eu estou com os pés na cova e não quero levar para a sepultura mais remorsos.
A mãe de Clemente não estranhou esta resposta azeda do fidalgo, que de proposito provocára.
Picada porém no seu orgulho materno por algumas phrases que ouvira, acudiu logo:
—Que está o fidalgo a dizer? Disparate… remorsos… Que disparate acha o fidalgo no casamento de Bertha com o meu Clemente? Remorsos! Ora essa está boa! Nem que se tractasse de enforcar alguem! Ora esta! Olha agora!
—Anna, eu não quero offender o seu filho, que sei que é bom rapaz, mas o que elle não é, é homem para Bertha.
—E onde é que v. exc.ª vae buscar marido para Bertha? O meu Clemente não serve? Pois bem, como a rapariga não está para freira, diga-me v. exc.ª que faz tenção de a casar na sua familia, e eu calo já a bôca e sou a primeira a dizer: «Tem razão o fidalgo, a pequena encontrou marido muito melhor do que o meu filho.» Ah! eu já estou vendo a cara que v. exc.ª faz. Pois então, snr. D. Luiz, se v. exc.ª ainda se tem lá nas suas tamancas, como d'antes, deixe casar a rapariga com um homem honrado e não lhe ande a metter loucuras na cabeça, que isso até é uma consciencia! Olha agora!
D. Luiz sentiu que lhe fugia o terreno n'este campo e tentou uma evasiva.
—Não teria que dizer a esse casamento, se Bertha sentisse inclinação para o seu filho, mas…
—Mas o quê? Pois não foi ella que por sua livre vontade disse que sim?
Quem a obrigou? Ora essa!
—Por comprazer, por condescendencia, mas não porque lh'o pedisse o coração!
—Ora, e v. exc.ª a importar-se com o que pede o coração de uma rapariga, ora, ora…
—E porque não? Desgraçada d'ella se der um passo tal sem que lh'o approve o coração.
—Então acha o fidalgo que n'isto de casamentos o coração tambem tem voto?
—Por certo.
—O coração de uma rapariga e de um rapaz. Olhem que conselheiros!
—Um coração como o de Bertha, é um bom conselheiro; não se engana, nem engana.
—Até que te pilhei!—exclamou a Anna do Védor, batendo as mãos, e esquecendo-se, no impeto da exclamação, de manter o mesmo tom e tractamento, que até alli estivera usando com o fidalgo.—Muito bem, pois saiba o fidalgo, que para mim já não é novidade o não ter Bertha inclinação para o meu filho, nem de tal casamento se falla já, porque o meu Clemente, por emquanto, não aceita mulheres que não entrem para casa d'elle com o coração. Isso já estava decidido. Mas eu o que quiz foi ouvir o que ouvi ao fidalgo, porque quero vêr agora como se ha de sahir das talas em que se metteu. Porque, sabe porque a Berthasinha não gosta do meu Clemente? É porque já gostava de outro… E sabe v. exc.ª quem é esse outro? Olhe que foi o coração de Bertha que o escolheu, o tal coração que não se engana; esse outro é o filho de v. exc.ª, o snr. Jorge. Ora ahi tem; agora então veja se está por o que disse.
D. Luiz ficou por muito tempo a olhar para a Anna do Védor com a vista espantada e sem articular palavra.
—Jorge!—murmurou elle a final e quasi inaudivelmente.
—Sim senhor, Jorge. E que me diz v. exc.ª a isto?
—Jorge, Bertha…—repetia o velho, assombrado com a revelação.—Mulher, quem lhe disse isso?
—Seu filho, entre outros.
—Jorge! Terei por acaso eu sido a victima de uma intriga infame?—exclamou o fidalgo tremulo de raiva.—Isto é de enlouquecer.
—Qual intriga nem meia intriga? Isto tudo foi a coisa mais innocente e natural do mundo inteiro. O rapaz gostou da pequena, a pequena gostou do rapaz, o costume desde o tempo de Adão e Eva, e ninguem soube d'isso senão agora.
—Jorge! Ó meu Deus; porque havias de me dar filhos só para me affligirem e envergonharem!
—Ora ahi está! Até agora nem o meu Clemente lhe servia para a Bertha, em taes alturas a punha. Agora então já o filho o deshonra só por gostar da rapariga. Entendam-n'o lá. Que tal é o amor que o padrinho tem á afilhada?! Eu cá de mim não entendo estas amizades de tarraxa.
D. Luiz não dava attenção ás reflexões da Anna. Luctavam-lhe no coração paixões encontradas e violentas: sob a influencia de umas sentia-se cahir em profundo desalento, outras incitavam-n'o, pelo contrario, a uma reacção desesperada.
Thomé não se enganára nas suas previsões. As suspeitas e preconceitos mal abafados no coração do fidalgo contra o lavrador alvoroçaram-se com a revelação que acabava de ouvir.
A intimidade de Jorge com Thomé, os serviços prestados por este á casa, a vinda de Bertha para os Bacellos por espontanea deliberação do pae, tudo explicava o seu espirito preoccupado por uma trama infernal combinada por o fazendeiro.
—Era a isto que elle queria chegar!—bradava irritado o fidalgo.—Descobriu-se finalmente o hypocrita! A audacia d'esta gente não tem limites! Gabem-me os brios e a nobreza de alma d'estes miseraveis! Rodou em volta de minha casa o lobo, espiou a prêsa, attrahiu-a a si e feriu-a! Que ambição! Ahi está no que deu o desinteresse dos seus actos, a lealdade das suas intenções! Até da filha se servia, o infame, como instrumento dos seus planos e machinações! Ha nada mais vil? Trouxe-m'a para casa, como a vibora que me havia de inocular o veneno. E eu, fraco e tonto pela velhice e pela doença, deixei-me illudir! Oh! mas elles mal sabem com quem se mettem e no que se mettem! Deviam lembrar-se de que, nos homens como eu, ainda quando a vida se lhes está a apagar, a vontade póde reunir em um instante toda a energia de que precisa para esmagal-os, antes de morrer!
E D. Luiz, no auge da indignação, ergueu-se da cadeira em que estava sentado, e com o rosto afogueado pela ira, os punhos cerrados e os braços estendidos, bradou:
—E eu esmago-os! esmago-os a todos, se se atreverem a vir insultar-me n'estes ultimos dias de minha vida!
Anna tentou acalmar a furia do fidalgo, mas elle nem já a ouvia.
Fraqueando-lhe já a voz, tremulo, anciado, banhado em suor frio, continuava em tom cavernoso:
—Eu lhes juro que não me hão de vencer na lucta que provocaram. Quando me tiverem já usurpado a casa, seduzido os filhos e insultado o nome de minha familia, hão de ainda vergar sob o pêso das minhas maldições, porque eu acredito que ha um Deus no céo e que as pragas de um velho ludibriado teem ainda poder para attrahir as desgraças sobre a cabeça dos miseraveis que me insultam.
—Fidalgo, fidalgo, volte a si!—bradava Anna do Védor devéras consternada.
O velho, arredando-a com um movimento impetuoso, exclamou com energia crescente:
—Deixem-me! Deixem-me! Quero viver só, de hoje em diante! Só! Não quero vêr ninguem, nem filhos, nem familia! Ninguem! Cada pessoa que se aproxima de mim vem com o intento de me atormentar; cada affecto a que abro o coração transforma-se cá dentro em um veneno corrosivo! Oh! É de mais! Deixem-me! deixem-me morrer para aqui só, ninguem me appareça, ninguem me falle, deixem-me!
N'este momento a porta abriu-se e Bertha appareceu attrahida pela altercação que lhe parecêra ouvir no quarto do padrinho e perguntou assustada:
—Que é o que tem, snr. D. Luiz, o que lhe succedeu?
O fidalgo, exasperado, voltou-se com vivacidade ao ouvir-lhe a voz, e injectando-se-lhe ainda mais o rosto, bradou:
—És tu? Que queres? Vens continuar a obra que te incumbiram?! Sahe d'ahi! Sahe! Não me appareças! Não me falles! Não me faças descrêr de Deus! Não quero vêr ninguem, já disse! Deixem-me!
Bertha parou, surprendida e intimidada por aquella subita transformação nas maneiras do padrinho para com ella, e ao sahir do quarto, saltavam-lhe de sentida as lagrimas dos olhos.
—Ó fidalgo!—acudiu a Anna do Védor cada vez mais assustada pelo estado em que o via—ó fidalgo! olhe que está fóra de si! Isso que é? A pobre rapariga vae a chorar por a maneira por que a tractou. Que culpa tem ella? Coitada da pobre!
—É o que lucra quem se aproxima de um homem maldito de Deus como eu sou—respondeu o velho, deixando-se cahir na cadeira já desalentado.
—Não diga essas coisas, que até é peccado! Que motivos tem para essas furias? Olha agora! O que eu lhe disse não é para tanto. Além de que, socegue, tanto a rapariga como o seu filho Jorge teem juizo, mais até do que lhes convinha para serem felizes. Digo-lhe eu que mais depressa elles se deixarão morrer, e até parece que estão n'essa resolução, do que lhe darão o desgosto de que tanto se receia, não sei porquê. E olhe que o rapaz já não está longe de fazer a tal viagem. A não lhe agradar mais vêl-o morrer, o que o fidalgo deve fazer é…
D. Luiz mostrava não dar a menor attenção ao que a mulher dizia. O accesso de desespero passára. Com gesto e voz de abatimento interrompeu-a, perguntando:
—A pequena ia devéras a chorar?
—Podéra não. Ao rompante com que v. ex.ª lhe fallou! E sem razão alguma, porque, como eu disse a v. exc.ª, elles…
O fidalgo suspirou:
—É uma fatalidade!—disse elle a meia voz.—Pobre rapariga! De certo que não é ella culpada n'isto. Instrumento innocente nas mãos dos outros, nem ella sabe o que faz! Anna, eu preciso de estar só, peço-lhe que me deixe só.
—Pois fique-se com Deus.
—Olhe, Anna, olhe, se vir ahi fóra a pequena, diga-lhe que venha cá; se ahi não estiver… mande chamal-a, sim? Eu quero fallar-lhe.
—Olhe lá o que vae dizer-lhe, fidalgo! Não afflija a pobre rapariga, que bem lhe basta…
—Faça-me o que lhe peço, Anna, faça, e vá descançada.
—Sempre me deixe dizer-lhe, fidalgo, que se não quer perder o filho, ande com cautela n'este negocio.
A Anna do Védor, que não obteve resposta a esta ultima advertencia, sahiu duvidando de que tivesse tirado alguma utilidade do passo que deu junto do fidalgo, e quasi arrependida por o haver dado.
D. Luiz ficou só por algum tempo, com a cabeça escondida entre as mãos e os cotovêlos apoiados nos braços da poltrona.
—Até que ponto levareis esta provação, meu Deus?!—murmurava elle quasi soluçando.
Passados momentos entrava no quarto e avançava timidamente com hesitação ao encontro do velho, Bertha com os olhos ainda chorosos e o gesto commovido.
Ao rumor dos passos leves de Bertha, o fidalgo elevou a cabeça e fitou a afilhada com expressão de melancolia e affecto.
—Anda cá, Bertha; vem cá, minha filha. Então não vês como eu pago os cuidados que tens tido commigo? Que queres tu? Isto em mim é já loucura!
Ao tom affectuoso e triste d'estas palavras dissipou-se a hesitação de Bertha, que correu a ajoelhar-se junto do velho, pegando-lhe nas mãos enternecida:
—Não diga isso, snr. D. Luiz. Eu bem sei que eram impaciencias de doente.
D. Luiz segurou-lhe a cabeça entre as mãos e, olhando-a fixamente, murmurou:
—Pobre criança! Fiz-te chorar! Nem que te não bastassem os teus soffrimentos. Perdoa-me, minha filha. Tu não tens culpa no que os outros fazem. Não é possivel que tenhas culpa.
E beijava-lhe os olhos, onde de novo queriam apparecer as lagrimas.
—Perdoar-lhe? O que lhe hei de eu perdoar? A affeição que me tem? Só se fôr isso.
—Ahi vem outra vez as lagrimas! Enxuga-as. Não quero fazer-te chorar mais. Não faças caso do que eu digo, Bertha, que sou um tonto. É uma ingratidão de minha parte, uma feia ingratidão.
—O que me faz pena é vêl-o afflicto. Cuidei que estava peior.
—Não; é que essa mulher que d'ahi sahiu disse-me coisas…
E olhando outra vez fixamente para Bertha, acrescentou depois de alguma hesitação:
—Bertha, tu és sinceramente minha amiga?
—Ó meu padrinho. Que pergunta!
—Nem tu eras capaz de fingir um affecto que não sentisses. Creio bem.
—Porém, meu Deus, o que quer dizer com isso?
—Nada. Olha cá, Bertha… Quando tu vieste para os Bacellos… quando vieste para ao pé de mim… foi teu pae que te disse que viesses, não foi?
—Meu pae leu-me a carta da snr.ª baroneza, em que lhe participava que ia partir para Lisboa e que o snr. D. Luiz ficava sem ter quem o tractasse… e eu então lembrei-me do mesmo que meu pae já tinha tambem no pensamento e pedi-lhe para me deixar vir.
—E elle disse logo que sim, já se sabe?
—Se era essa mesma a sua ideia.
—Ah! era essa a sua ideia? E… e Jorge não foi ouvido n'essa occasião?
Porque Jorge ia muito por vossa casa, não ia?
Bertha principiava a sentir-se inquieta com esta inquirição.
—O snr. Jorge—respondeu ella um pouco a medo—ia ás vezes procurar meu pae para fallar de negocios com elle; mas n'isto não foi consultado, que eu saiba.
—Algumas vezes. Parece que ia todos os dias e que usava em vossa casa de toda a familiaridade.
—Era raro que se demorasse a conversar com outra pessoa que não fosse meu pae.
—Pois nem comtigo?
—Commigo?—repetiu Bertha perturbada—Commigo menos do que com os outros.
D. Luiz contrahiu as sobrancelhas como se esta resposta lhe fizesse suspeitar uma dissimulação.
—Pois então Jorge nunca fallaria comtigo?
—Muito de passagem, quando por acaso me encontrava e sempre com umas maneiras taes, que cheguei a acreditar que me queria mal por algum motivo desconhecido para mim.
D. Luiz fez um gesto de desgosto e de novo lhe assomaram ao semblante os vestigios da desvanecida irritação.
—Não esperava isso de ti, Bertha. Tu não és sincera commigo.
—Eu?
—Tu illudes-me como os outros a final, tu conspiras com elles contra a tranquillidade dos meus dias, contra o socego d'este coração atribulado. Deus te perdoe o mal que me fazes, tu, mais do que ninguem, porque te queria devéras.
—Jesus, snr. D. Luiz, meu padrinho, que quer dizer? Em que lhe fiz eu mal? Por amor de Deus, diga, falle-me claro.
—Bertha, é preciso que me digas a verdade, se queres que não suspeite de ti, como suspeito dos outros, como suspeito de todos; é preciso que não dissimules, como elles fazem, para me illudirem.
—Mas que quer que lhe diga, snr. D. Luiz? Prometto dizer-lhe a verdade, nem eu lhe sei mentir.
—Então para que me dizes que Jorge te queria mal?
Bertha sentia-se cada vez mais sobresaltada pelas perguntas do fidalgo, que pareciam dirigir-se ao segredo recatado, que ella conservava no coração.
—Eu disse—respondeu ella—que cheguei a pensar que o snr. Jorge me queria mal, porém…
A confusão que sentia não a deixou continuar.
O fidalgo notou aquella perturbação e abrandou mais a voz, tomou um tom carinhoso e disse pegando-lhe affectuosamente na mão:
—Vamos, Bertha, socega. Acredita que tens em mim um amigo, e abre-me francamente o coração sem receio. Dize-me, é verdade que Jorge te disse alguma vez que te amava? É verdade que entre vós ambos ha alguma affeição, alguma promessa?
A pergunta, ainda que não já de todo inesperada, sobresaltou Bertha, que não atinou com o que respondesse.
—Socega, minha filha—proseguiu o fidalgo, animando-a.—Bem vês que eu não quero reprehender-te. Sómente queria que me dissesses a verdade a este respeito.
—Meu padrinho—disse Bertha perturbada ainda—pois não se lembra do pedido que lhe fiz ainda ha poucos dias?
—Do pedido?… Ah! sim… Fallas do casamento?… Mas se elle já se não faz? Se foi a propria mãe de Clemente que me contou d'esses amores entre ti e meu filho?
—Oh! não póde ser!—exclamou Bertha, consternada.
—Como havia ella de saber?… Como podia ella dizer isso?
—O mesmo Jorge lh'o revelou.
—Jorge!… o snr. Jorge!… É impossivel!
—Mas porque não respondes á minha pergunta? O que ha de verdade em tudo isso?
Bertha conservou-se ainda algum tempo silenciosa e irresoluta. Depois, como se abraçasse um partido decisivo, tornou com maior vivacidade:
—Tem razão, meu padrinho, devo dizer-lhe a verdade. Nem ella tem em que me envergonhar.
—Então é certo?
Bertha com os olhos fitos no chão e a voz mal firme, mas exprimindo resolução, principiou:
—Um dia o snr. Jorge apresentou-se em casa de meu pae, a pedir-lhe, em nome de Clemente, licença para o casamento que sabe….
—Como?! Foi Jorge que pediu esse consentimento? E antes d'isso não tinha elle já dado a conhecer-te….
Bertha não o deixou continuar.
—Escute, snr. D. Luiz, que eu prometto dizer-lhe toda a verdade. Meu pae chamou-me para consultar-me a esse proposito.
—Ah! teu pae consultou-te?! E esperava que tu recusasses, não é verdade?
—Eu nunca pensára em casar-me, nunca pensára até no futuro, por isso aquella proposta sobresaltou-me.
—E respondeste….
—Depois o ter sido feita pelo snr. Jorge mais me perturbava ainda.
—Sim, porque elle havia-te jurado talvez….
—Não havia jurado coisa alguma; quasi nem me fallára detidamente desde que eu voltára á aldeia. Parecia fugir de mim, parecia que a minha presença lhe desagradava, que as minhas palavras o irritavam. Não era possivel illudir-me a esse respeito. Affligia-me vêr a pouca sympathia que eu merecêra, sem saber porquê, a um rapaz que todos diziam tão generoso, tão indulgente e de tanto juizo; e isto era causa para eu muito pensar no que poderia dar motivo áquelle proceder d'elle para commigo. Tinha isto sempre na ideia, observava-o, estudava-o… e foi mau isto, bem sinto que foi mau.
—Porquê?
—Porque quanto mais o observava—continuou Bertha, com ingenua sinceridade—mais de perto lhe conhecia as nobres qualidades, e senti a pouco e pouco em mim uma admiração por elle, uma sympathia, um respeito, um….
—Um amor—concluiu D. Luiz, vendo a hesitação de Bertha.
—Uma loucura—emendou esta—que eu tractei logo de abafar em mim, porque desde o principio a vi tal como ella era.
—És um anjo—disse D. Luiz, afagando-a.
Bertha proseguiu:
—Mas a proposta d'aquelle casamento, feita pelo snr. Jorge, foi para mim mais uma prova da antipathia, que eu julgava merecer-lhe. Pareceu-me quasi uma perseguição; despeitada com ella, disse a meu pae que aceitava a proposta de Clemente.
—E elle… e elles que disseram?
—Ficando momentos depois só com o snr. Jorge e sem que podésse já reter as lagrimas que me afogavam, perguntei-lhe quaes eram as razões que o tinham levado a dar aquelle passo, a encarregar-se d'aquella proposta, porque motivo eu lhe era tão odiosa, o que é que o levára a fazer-me mal, a mim que nunca lh'o fizera nem desejára.
—E elle?
—Foi então—proseguiu Bertha, mas enleiada—que imprevistamente elle me confessou que o unico motivo de todo o seu proceder, da sua apparente má vontade, da dureza das suas palavras era… a affeição que me tinha e que, desde que a sentira, se esforçára por occultar e vencer, como eu tambem fizera; que estava decidido a sacrifical-a aos seus deveres de familia, mas que não queria que o sacrificio ferisse a mais alguem senão a elle, e para isso procurava sempre desviar de si pelo seu proceder as minhas attenções e sympathias. Não o conseguiu; mas que importava? Eu não tinha menos coragem do que elle, e comprehendia tão bem como elle quaes eram os meus deveres, que em mim eram mais fortes ainda.
—Pobre rapariga!—murmurou D. Luiz commovido.
—Assim posso dizer que foi aquelle o primeiro e o ultimo dia d'esses… amores de que lhe vieram fallar não sei para quê. No mesmo dia em que nos declaramos, no mesmo dia promettemos abafar em nós mesmos essa loucura que nascêra sem que o sentissemos. E tanto que dias depois eu vinha pedir-lhe o consentimento para me casar com Clemente.
—E teu pae nada soube de tudo isso?—perguntou o desconfiado fidalgo.
—Se nós mesmos o não sabiamos!—respondeu Bertha com ingenuidade.
Depois de um intervallo de muda reflexão, D. Luiz segurou outra vez nas mãos a graciosa cabeça da afilhada, e poisou-lhe na fronte um beijo, verdadeiramente paternal.
—Era bem digna de ter nascido entre a nobreza—disse elle suspirando—quem tão nobremente pensa e procede. Quantas raparigas creadas em palacios deviam ouvir e aprender de ti, Bertha! Pobre pequena! O teu sacrificio é grande e custoso, porque tu com esse coração que tens, se amas, deves amar devéras; mas bem vês e tu mesma o reconheces, é um sacrificio inevitavel! Nas familias como as nossas ha certas exigencias tradicionaes….
—Snr. D. Luiz—disse Bertha interrompendo-o—repare que ha dias que eu lhe pedi o seu consentimento….
—Bem sei, Bertha; bem vejo que o teu juizo dominou a tua phantasia de rapariga. Por isso te admiro, filha. Mas para que levavas tambem tão longe o sacrificio, indo casar-te com um homem que não amavas?
—Era um homem honrado, que me pedia para companheira da sua vida. O destino de uma mulher como eu é esse. É a nossa missão. Porque não havia de cumpril-a?
—Illudindo, porque não podias amar.
—Disse-o a Clemente. Não lhe prometti o que não podia dar-lhe.
—E elle aceitou?!
—Pediu tempo para pensar. Agora vejo que não….
Calaram-se por algum tempo. Bertha, sem erguer os olhos, dobrava e desdobrava distrahida o pequeno avental de sêda. D. Luiz observava-a com ar pensativo.
Foi elle quem renovou o dialogo.
—Custa-te muito o sacrificio que fazes, não é verdade?
—Para que hei de dizer que não? Custa-me como quando ao acordar de sonhar um sonho agradavel, me convenço de que foi um sonho tudo. Sabe porém o que me anima? É o pensar que mais me custaria se o sonho se realisasse.
—Porquê?
—Porque teria remorsos de pagar d'essa maneira o affecto que encontrei sempre n'esta casa; porque teria vergonha de que pensassem que, da minha parte, esses affectos eram calculados e interesseiros. Nós tambem temos o nosso orgulho, snr. D. Luiz—acrescentou ella, sorrindo.
—E nobre que elle é—acudiu o fidalgo, cada vez mais fascinado.
N'este momento a porta abriu-se, e frei Januario metteu a cabeça pela abertura.
—Que é?—perguntou D. Luiz, irritado.
—É o Thomé da Povoa … é o pae d'essa menina que a procura.
—A mim?—disse Bertha, levantando-se.
—Sim, menina—tornou o padre—e parece-me que procura a v. exc.ª tambem.
—Pois que entre—respondeu D. Luiz asperamente.
Passados momentos Thomé da Povoa entrava para o quarto de D. Luiz, com as maneiras respeitosas mas rasgadas que lhe eram peculiares.
Como homem a quem pesava a commissão que se propunha a desempenhar alli, Thomé da Povoa, depois de comprimentar o fidalgo e de abençoar a filha, foi direito ao fim da sua visita.
—Pois, snr. D. Luiz, eu venho aqui para buscar a rapariga, se v. exc.ª der licença.
Bertha desviou para o fidalgo um olhar inquieto e investigador.
D. Luiz não respondeu, mas correu-lhe pelos labios um rapido sorriso, entre amargo e ironico.
Thomé, em vista do silencio do fidalgo, sentiu que não podia deixar de dizer mais algumas palavras de explicação, e por isso, enleiado a forjar um pretexto que não lhe occorria, acrescentou:
—Ella está sendo lá precisa… porque… sim, a minha Luiza, pelos modos… anda assim adoentada…
—Minha mãe está doente?—perguntou Bertha com inquietação.
—Doente, doente… o que se chama doente, não digo, mas… E depois ha lá uns milhos a arrecadar e os pequenos… E emfim, n'esta época do anno, a casa de um lavrador… Os jornaleiros são muitos…
E a cada pretexto que mal apontava, Thomé erguia a vista para D. Luiz a estudar-lhe na physionomia o effeito da desculpa.
Mas de todas as vezes a achava cerrada na mesma expressão de reserva e de mysterio.
De repente, porém, D. Luiz fez um movimento, como se uma subita resolução lhe acudisse, estendeu a mão para Bertha, que se demorára ainda ao lado d'elle e como que a impelliu de si e na direcção de Thomé, dizendo com affectada placidez:
—Ahi a tem. Póde leval-a.
Á estranheza com que Thomé o encarou, vendo-o fazer aquelle gesto, correspondeu o fidalgo, acrescentando em tom de amargura e sarcasmo:
—Não calculou bem o tempo. Antecipou-se. A occasião não era ainda esta; por ora não estou enfeitiçado, bem vê.
Thomé julgou perceber vagamente o sentido d'estas palavras e córou, dizendo:
—Ou eu entendo mal o fidalgo, ou quer dizer…
—Que póde levar sua filha. A presença d'ella aqui não adianta os seus projectos. Meus filhos não estão nos Bacellos, como vê, e eu… eu já não tenho coração sujeito a feitiços.
—A illusão não era possivel para Thomé. As palavras de D. Luiz confirmavam as previsões que elle tivera antes de lh'as ouvir.
O rosto do lavrador tomou a expressão que os fortes golpes e as paixões violentas lhe costumavam dar.
Ficou-se por algum tempo a olhar para o fidalgo sem soltar uma palavra, mordendo os beiços e abanando significativamente com a cabeça. Depois tomou a filha pela mão, e encaminhando-a para a porta do quarto, disse-lhe:
—Bertha, vae apromptar as tuas coisas, que eu espero por ti… e no entretanto conversarei com o fidalgo.
Bertha sentia que entre aquelles dois homens havia imminente uma lucta de paixões, que não estava já na sua mão dissipar. Mais valia pois deixal-os chegar a uma explicação decisiva, que definisse a posição de cada um.
Obedeceu portanto á indicação do pae, dirigindo-lhe apenas em um olhar uma supplica que não passou desapercebida de Thomé.
Depois que Bertha sahiu, o lavrador voltou para defronte do fidalgo, e cruzando os braços disse-lhe com um modo decidido:
—Agora que estamos sós, snr. D. Luiz, faça v. exc.ª o favor de me accusar abertamente e de uma maneira clara e franca.
D. Luiz respondeu com frieza e sobranceria:
—Se nas minhas palavras viu coisa que lhe parecesse uma accusação é porque de certo a consciencia lh'as interpretou assim.
Thomé da Povoa não pôde reter um movimento de impaciencia.
—Por quem é, fidalgo, não me principie v. exc.ª com esses discursos enredados, com que não me entendo. Jogo franco! Ou se não, começo eu, e será talvez melhor.
D. Luiz encolheu os hombros, exprimindo a mais aristocratica indifferença.
—Não me custou a entender as suas palavras de ha pouco, fidalgo, porque depois do que eu soube esta manhã, esta manhã apenas, repare bem, snr. D. Luiz, depois do que soube esta manhã e conhecendo como conheço o genio de v. exc.ª, já esperava ouvir alguma coisa parecida com o que ouvi. Mas nem por serem esperadas me feriram menos as taes palavras. É preciso que v. exc.ª saiba. Porque um homem que não tem a pesar-lhe na consciencia nenhuma deslealdade, um homem que tem brios, não póde a sangue frio ser suspeitado como eu o estou sendo por v. exc.ª
—Bem; pois se a consciencia lhe não exprobra nada, é o essencial. Vá em paz com ella e deixe-me em socego, homem, deixe-me, que bem preciso eu d'elle.
—Perdão, fidalgo. Isso é que eu não posso fazer. Deus me livre de ser accusado pela minha consciencia, mas Deus me livre tambem de o ser pela dos homens que respeito e estimo. E v. exc.ª, ainda que não o creia, é um d'esses.
—Muito obrigado.
—Permitta-me que vá direito ao caso. Minha filha não tarda ahi, e eu não quero fallar diante d'ella. Esta manhã foram a minha casa, (provavelmente quem veio a esta) porque vejo que vieram tambem aqui com a mesma nova… Foram a minha casa e disseram-me…
—Perdão, eu não preciso de saber o que se diz nas casas alheias.
—Pois bem—acudiu Thomé já irritado—eu lhe conto então o que se disse na sua. Vieram aqui, a casa de v. exc.ª, e disseram-lhe: «O seu filho Jorge está namorado da filha do Thomé e a rapariga também gosta d'elle.» Disseram-lhe isto com certeza, e disseram-m'o a mim tambem. Ora agora, eu lhe conto mais, eu lhe conto o que v. exc.ª pensou e o que eu logo previ que v. exc.ª pensava. Pensou v. exc.ª: Aquelle insolente Thomé foi quem machinou tudo isto. Atreveu-se a sonhar em apanhar o meu filho para marido da filha d'elle, em alliar a sua familia á minha, em dar por aposento áquella rapariga as salas do meu palacio. Para isso principiou a amimar-me o filho, para isso prestou-lhe serviços com signaes de desinteresse, para isso o levou por sua casa e lhe metteu á cara a filha, e emfim, para assegurar ainda melhor os seus projectos, sabendo da predilecção que eu mostrava pela rapariga, trouxe-m'a para casa, porque, velho e doente como me via, conjecturou que bem podia ser deixar-me de tal maneira prender por ella, que não oppozesse obstaculos aos seus projectos. Ora aqui está o que v. exc.ª pensou. Negue-o, se é capaz.
D. Luiz não ousou negar.
—Muito bem, fidalgo. O tempo é pouco, como disse, e por isso eu vou já direito ao meu fim. Eu logo vi que deviam ser estes os pensamentos de v. exc.ª, porque ainda quando as apparencias eram menos contra mim do que d'esta vez, v. exc.ª costumava sempre fazer a meu respeito supposições tão boas como esta. Por isso não pude soffrer a ideia de conservar nem mais uma hora minha filha n'esta casa. Vim e vim á carreira para a levar commigo. Procurava dar um pretexto qualquer a esta retirada, mas foi desnecessario, porque logo vi ás primeiras palavras de v. exc.ª que já chegára tarde para remediar o mal que previra. Muito bem, n'esse caso resta-me pouco a fazer para descargo da minha consciencia e depois retiro-me.
Thomé passou a mão pela fronte, que tinha inundada de suor. Na voz como no semblante eram evidentes os signaes da sua excessiva commoção.
D. Luiz, que o ouvira conservando os olhos fitos no tapete do pavimento, sentiu-se involuntariamente obrigado a levantal-os n'aquelle momento para os fitar na physionomia do homem que tinha diante de si e que a seu pezar o impressionava.
—Fidalgo—proseguiu Thomé, depois d'esta breve pausa—juro-lhe que nunca percebi estas affeições entre minha filha e o snr. Jorge, juro-lhe que nunca pensei em que ellas podessem dar-se. Quando o soube estalou-me o coração de dôr e córaram-me as faces de vergonha. Cheguei a arrepender-me, pela primeira vez, de alguns serviços que em boa fé prestei ao snr. Jorge, pequenos mas feitos da melhor vontade. Mas uma vez que o caso se deu, sem culpa minha, só tenho a dizer-lhe isto, fidalgo; ouça-me bem. Quero do coração a seu filho, de pequeno o estimo, e respeito-o agora como um homem de bem que é; quero devéras, se quero! a minha filha, é a primeira que eu tive, é a única rapariga, é a que trago mais chegada ao coração, fraquezas de pae, como sabe; pois bem, quero-lhes a ambos e muito, mas ainda que a affeição que elles tivessem um pelo outro fosse tal que eu os visse morrer, e que a salvação d'elles só dependesse do meu consentimento para se casarem, deixal-os-ia morrer, deixava; morreria com elles, mas não daria esse consentimento. Juro-lh'o, fidalgo, juro-lh'o! que para tanto tenho coragem; porque o meu orgulho não é menos forte do que o de v. exc.ª! Para eu consentir que um filho meu entrasse na sua familia, fidalgo, era necessario… Eu sei lá o que era necessario?… Era necessario que v. exc.ª primeiro me pedisse por favor para assim o consentir. Agora veja lá se isso é possivel.
Ao terminar, Thomé tinha a respiração cortada, offegante, como de quem realisou um esforço enorme. Cahiam-lhe bagadas de suor pela fronte afogueada e as mãos contrahiam-se-lhe em crispações nervosas.
D. Luiz ia a responder-lhe quando Bertha entrou no quarto preparada para a partida.
A sua chegada cortou n'este ponto a scena.
Bertha relanceou um olhar para os dois velhos e adivinhou que a scena que ella previra tivera logar.
—Quer que vamos?—perguntou ella ao pae timidamente.
—Vamos—respondeu este com um modo sacudido, dirigindo-se para a porta.
Bertha aproxiraou-se do fidalgo, olhando-o com timidez.
—Quer dar-me a sua benção de despedida, meu padrinho?—perguntou Bertha a meia voz, como receiosa de uma recusa.
D. Luiz, sem voltar o rosto, estendeu-lhe silenciosamente a mão.
Bertha apoderou-se d'ella e beijou-a, banhando-a de lagrimas de saudade.
D. Luiz estremeceu ao sentir aquelles beijos e aquellas lagrimas, mas fez por se reprimir na presença de Thomé.
Emfim, Bertha separou-se d'elle, e encaminhou-se para a porta, onde o pae a esperava.
Poucos passos andados ouviu que a chamava uma voz suffocada.
Voltou-se. D. Luiz seguia-a com a vista nublada de pranto e estendia-lhe os braços para um ultimo adeus.
Ella correu para o velho e abraçaram-se soluçando.
Thomé sensibilizado escondeu-se discretamente nas dobras do reposteiro.
Por algum tempo durou ainda aquella tocante scena de despedida, que despedaçou o coração do velho fidalgo.
A final afastando brandamente de si a rapariga e beijando-lhe a fronte, enternecido, murmurou:
—Vae, minha filha; é melhor que vás. O teu sacrificio é grande, mas crê que não é maior do que o meu. Dize a teu pae….
Mas percebendo Thomé meio escondido na porta, dirigiu-se a elle:
—Thomé, ha pouco fui injusto comsigo. Desculpe-me; a velhice e a doença fizeram-me assim. Creio na sua boa fé e espero que todos nós saberemos proceder como o dever nos manda. Adeus, entrego-lhe a sua filha. Tem razão em a querer junto de si.
E pela segunda vez na sua vida o fidalgo da Casa Mourisca estendeu a mão ao seu antigo criado.
Thomé aceitou-lh'a com a effusão com que sempre acolhia a mão que lealmente se estendia para a sua.
—Fidalgo, se v. exc.ª… Mas não; é melhor que Bertha venha commigo. É melhor para socego de todos. Custa ao principio, mas…
—Sim; é melhor, é; Bertha que vá—assentiu D. Luiz.
E depois de uma ultima despedida tão terna como a primeira, o pobre doente viu desapparecer para não voltar, a doce figura da sua carinhosa enfermeira.
Assim que deixou de ouvir-lhe os passos no corredor, o desalentado velho escondeu a cabeça entre as mãos já trémulas, e com a voz cortada pelos soluços exclamou com desespero:
—Agora morre! morre! morre para ahi só, velho desgraçado, sem filhos, sem familia, sem amigos; morre só com os teus rancores, com as tuas paixões, com o teu orgulho, já que assim o queres. Quando acabará de se despedaçar este coração, para me deixar descançar?
Frei Januario veio surprendêl-o n'este apaixonado monologo e recuou assustado ante a vehemencia d'aquella dor.
D. Luiz nem deu pela chegada do padre. Cahindo em um profundo abatimento, assim permaneceu sem que as perguntas e supplicas do padre conseguissem arrancar-lhe uma palavra dos labios contrahidos.
Sómente ao fim da tarde, D. Luiz disse que queria deitar-se; ajudaram-n'o a despir-se e a mettêl-o na cama, onde elle ficou como cabido em uma somnolencia morbida.
O padre receioso do resultado d'aquella subita depressão de forças, pensou em avisar Jorge.
O bom do padre, apesar dos seus defeitos, não era um coração insensivel, e por D. Luiz tinha uma affeição sincera. Aquella noite, reagindo contra o seu amor pelas commodidades, velou, ou melhor, permaneceu á cabeceira do doente. Teve porém o desgosto de perceber que este não sentia grande refrigerio em vêl-o alli, porque sempre que no intervallo dos seus somnos agitados dava com os olhos n'elle, desviava-os logo com despeito.
Não obstante, o padre conservou-se fiel ao seu posto.
O estado do doente no dia seguinte não era mais animador. O abatimento, em que tão de subito cahira, mostrava geitos de prolongar-se e por ventura de terminar por uma solução funesta.
O padre mandou á pressa aviso a Jorge para que viesse aos Bacellos.
A carta de frei Januario chegou ás mãos de Jorge juntamente com outras de mais felizes novas. Umas eram do Porto, noticiando-lhe a decisão favoravel da importante demanda que elle sustentava, outras da baroneza e de Mauricio, participando-lhe o seu casamento e promettendo uma proxima visita á aldeia. Todas estas noticias de tão diversa indole impressionaram extraordinariamente Jorge.
Por esse lado illuminava-se-lhe o horizonte do caminho, que seguia com a constancia e a tenacidade de um animo varonil; por outro assombrava-o o estado perigoso de seu velho pae, a quem elle desejaria dar ainda a consolação de vêr como que erguida das ruinas a casa de seus antepassados.
As novas, quasi funebres, que lhe vinham dos Bacellos, enlutavam-lhe as alegrias nupciaes das cartas do irmão e de Gabriella.
Debaixo da influencia d'estas impressões oppostas, Jorge, depois de escrever um pequeno bilhete a Thomé, em resposta a outro que d'elle recebeu, communicando-lhe também o resultado da demanda, montou a cavallo e partiu a toda a pressa para os Bacellos.
O procurador recebeu-o com ar consternado, e abanando sinistramente a cabeça, conduziu-o ao quarto de D. Luiz.
Jorge sentia comprimir-se-lhe dolorosamente o coração ao aproximar-se do leito do pae.
—Elle já nem falla—dissera-lhe a meia voz o padre, que de facto ainda não conseguira obter uma só palavra do fidalgo.
Jorge afastou quasi tremendo as cortinas do leito.
D. Luiz, que jazia com os olhos fechados e n'aquella immobilidade quasi morbida em que desde a partida de Bertha cahira, não deu signal de ter percebido a chegada do filho.
Jorge, assustado com aquella impassibilidade, pegou-lhe na mão que tinha estendida por fóra da roupa, como para procurar n'ella o calor da vida.
Ao contacto da mão do filho, o fidalgo estremeceu e abriu os olhos; vendo Jorge, passou-lhe nos labios um desvanecido sorriso de affecto.
—Ah! és tu, Jorge?—disse elle com a voz ainda fraca—não te tinha visto entrar.
Frei Januario ficou estupefacto, ouvindo fallar o doente, que elle já suppunha em estado de não poder fazêl-o.
—Acha-se melhor?—perguntou Jorge, vergando-se sobre o leito.
O velho só respondeu encolhendo os hombros como exprimindo indifferença pela sua sorte, e depois fitando outra vez os olhos no filho, interrogou-o por sua vez:
—E tu?
Jorge estranhou esta solicitude no pae, tão fóra dos seus habitos, e sentiu-se commovido.
—Eu?… eu estou bom.
—Estás pallido e doente—proseguiu o pae, fitando-o.
E sem desviar os olhos, recahiu no silencio, que manteve por alguns segundos.
Depois, procurando a mão do filho e apertando-a na sua, murmurou com uma commoção a que só ultimamente era sujeito.
—És um homem, Jorge! És digno do nome que tens e da familia que representas.
Estas palavras surprenderam extraordinariamente Jorge e não menos frei
Januario, que as attribuiu ao delirio produzido pela doença.
D. Luiz acrescentou no mesmo tom:
—Saber sacrificar tudo a um dever é a principal e a mais difficil sciencia que nós temos a aprender na vida, e tu… mostras que estás bem senhor d'ella.
Julgando perceber o sentido d'estas palavras, Jorge fitou no pae um olhar perscrutador.
Elle porém fechou novamente os olhos e por muito tempo permaneceu como cahido em um somno profundo.
O filho e o padre conservaram-se ao lado do leito.
—Como vão os negocios de nossa casa?—perguntou d'ahi a pouco elle sem abrir os olhos.
Jorge communicou-lhe a boa nova que recebêra de se haver vencido a mais antiga e a mais importante demanda que sustentavam.
Na pallidez das faces do doente passou um instantaneo rubor. Os labios agitaram-se-lhe, e baixo, muito baixo, que mal o pôde ouvir o filho, murmurou:
—Será chegado o termo d'esta longa provação?!
Depois recahiu no torpor em que passára a noite e não disse mais palavra alguma.
Jorge, vendo-o a dormir, correu-lhe as cortinas do leito, diminuiu a claridade do aposento, e entregando-o á vigilancia do padre, retirou-se ao escriptorio para trabalhar nos negocios da casa.
Todo esse dia e a noite que se lhe seguiu passaram sem novidade.
Pela madrugada do dia immediato despertou a gente nos Bacellos á chegada de um numeroso cortejo de criados e portadores de bagagens, acompanhando a baroneza e Mauricio, noivos de pouco, e que vinham cumprir a promessa da sua visita.
Jorge correu a recebêl-os e cingiu nos braços commovido o irmão e a cunhada.
Passados os primeiros momentos absorvidos pelos transportes de alegria, a baroneza e Mauricio, reparando mais attentamente para o ar abatido e a pallidez de Jorge, fizeram-lh'o notar com apprehensão.
—Pelo que vejo, as tuas imprudencias continuam, Jorge?—disse a baroneza.—Ajuizado como és, não vês que pelo caminho que segues não podes realisar os teus grandes projectos?
Jorge sorriu, encolhendo os hombros.
—Que quer que lhe faça, Gabriella? A vontade do homem não rege os processos intimos da sua vida organica. Não está na minha mão modificar o andamento dos meus actos nutritivos.
—Mas podes desviar muito bem as causas que os perturbam. O excesso de trabalho…
—Não é isso, Gabriella—acudiu Mauricio—eu sempre conheci em Jorge o habito de estudar e de trabalhar sem estes effeitos. O que o mata é a louca presumpção de ser superior ás paixões, e a tentativa que faz para sacrifical-as a não sei que imaginarios deveres.
Jorge sorriu.
—Já vejo que se estabeleceu entre os noivos o communismo de segredos.
Esse soubeste-o só depois de casares.
—Suspeitei-o muito antes, bem o sabes.
—Isso é verdade, suspeitaste-o muito antes de eu proprio me convencer d'elle.
—Mas—tornou a baroneza—é preciso sahir d'isto. O Jorge suppõe-se mais forte do que é.
—Creia, Gabriella, o melhor é deixar ao tempo o cuidado de resolver as crises. Hoje o que me preoccupa é a solução dos meus negocios, que felizmente vão tomando uma face animadora.
—É verdade, disseram-me em Lisboa que se decidiu em bem a demanda que tanto te preoccupava. O que tu não sabes é que ao valimento de Mauricio com um dos desembargadores, em cujas mãos parava o processo, se deve essa prompta solução.
—Devéras?
—Não ouso crêl-o—disse Maurício—ainda que é verdade ter-lhe fallado e haver recebido d'elle a promessa de aviar depressa o processo.
—Hoje quasi posso assegurar-lhe que é certa a nossa regeneração—tornou Jorge.—Esta primeira victoria prepara-me o terreno para outras e solta-me os movimentos que tinha peiados. E os teus projectos, Mauricio?
—Vão em bom caminho. Tenho quasi certo um logar na embaixada de Londres ou de Berlim.
—Eu ainda não desespero de envelhecer embaixatriz—disse a baroneza, sorrindo, e acrescentou:—Mas que é de Bertha? Já cá não está?
—Retirou-se ha dias. Desde então recrudesceu a doença do pae.
—E para que se retirou?
—O Thomé veio buscal-a.
—Com que fim?
—Não sei… Ainda que… por algumas coisas que ouvi… quer-me parecer que fizeram conceber a Thomé certos receios. Emfim eu proprio não quiz profundar os motivos da retirada por temer que não me fosse agradavel ouvil-os.
—E querem vêr que o tio Luiz também soube? É impossivel que tudo isto não lhe tenha feito muito mal! Eu nunca vi! Esta gente toda entregue a si parece que porfia em complicar a situação. Mauricio, vamos vêr teu pae. Eeus queira que ainda seja possivel remediar o mal feito. Vens, Jorge?
Passados momentos entravam todos tres no quarto de D. Luiz, onde penetrava apenas a discreta claridade coada pelas cortinas corridas e pelas janellas meio abertas.
Frei Januario, que dormitava ao lado do leito, com o lenço vermelho em uma mão e o breviario na outra, ergueu-se ao ver a baroneza, e depois de comprimental-a dispunha-se a avisar o fidalgo.
Gabriella susteve-o, e avisinhando-se do leito, correu ella propria os pannos do cortinado e contemplou o rosto do ancião, que dormia profundamente.
Mauricio e Jorge acercaram-se tambem.
A nobre physionomia de D. Luiz, abatida pelo soffrimento physico e moral, e sobre a qual o somno parecia derramar uma serenidade, como de resignação, impressionou-os a todos.
A baroneza ajoelhou ao lado do velho, e pegando-lhe na mão beijou-a com affecto e respeito. Mauricio ajoelhou tambem ao lado de sua esposa.
D. Luiz acordou um tanto sobresaltado. Deu primeiro com a vista em Jorge e depois, desviando-a, reconheceu a sobrinha e o filho mais novo, e raiou-lhe no semblante, ao vêl-os, um clarão de alegria.
—Ó meus filhos!—exclamou elle, solevantando-se no leito e apoiando-se no braço tremulo.
Depois, passando a mão por sobre a cabeça dos noivos, acrescentou:
—Deus vos abençoe, como eu vos abençôo.
E deixou-se cahir extenuado sobre o travesseiro.
Gabriella levantou-se para amparal-o.
—Ai, Gabriella—disse elle, suspirando—finalmente parece que chegou a hora da liberdade.
—Diga que chegou a hora da resurreição. Verá como de hoje em diante tudo vae ser ventura n'esta casa. Ha de trazer-lh'a Jorge e Mauricio e eu, até eu e… e mais alguem. Quem sabe?
D. Luiz voltou os olhos para o filho mais novo.
—Mauricio—disse com a voz cançada e interrompida—és ainda muito rapaz e vaes viver em um mundo perigoso, não desprezes a conselheira que Deus collocou a teu lado.
—Como hei de desprezal-a, se a adoro?—disse Mauricio com o galanteio de um noivo ainda namorado.
A baroneza correspondeu-lhe com um sorriso, e observou:
—Nem receio o desprezo, nem creio na adoração. Deixemos as coisas nos termos ajustados. Estimemo-nos e seremos felizes.
—Nem todos podem ter a frieza do teu animo, filha—disse Mauricio a meia voz.
—Não é tempo agora de discutirmos isso. Sabes? O pae não póde por emquanto ouvir longas conversas. Acordou ha pouco e precisa de poupar a attenção. Se tu fosses com Jorge dar ordem a essas coisas que os criados trouxeram… Eu ficaria no entretanto aqui.
Jorge e Mauricio perceberam que a baroneza tinha desejos de que a deixassem só com D. Luiz, e sahiram por isso da sala.
Frei Januario, meio adormecido, não deu pela sahida dos rapazes e permaneceu entre o leito e a parede, encoberto pelo cortinado e desapercebido de Gabriella.
Esta sentou-se á cabeceira do leito e com feminil carinho começou a ageitar a travesseira do doente e a desviar-lhe da fronte as cãs desordenadas.
—Eu não esperava vir encontral-o sem enfermeira—dizia Gabriella o mais naturalmente possivel.
D. Luiz suspirou.
Ella insistiu:
—É uma coisa tão necessária! Porque ha certo cuidado que só uma mulher póde ter. É a nossa especialidade.
D. Luiz abanou a cabeça.
—Tem razão, Gabriella. É uma desconsoladora solidão a de um doente sem esses cuidados de que falla.
—Mas… porque se retirou Bertha?
D. Luiz não respondeu logo a esta pergunta, que parecia contrarial-o, porque lhe chamou á fronte uma contracção de desgosto.
—Ai, raparigas!—tornou a baroneza—ferve-lhes o sangue a final.
—Não diga isso, Gabriella, que é injusta. Bertha é um anjo de abnegação.
—Mas para que havia o anjo de abandonar o seu posto?
—Vieram buscal-a.
—Quem?
—O pae.
—Pois o Thomé da Povoa seria capaz de leval-a d'aqui contra vontade d'ella e do padrinho?
—O Thomé teve razão para o fazer. Eu mesmo lhe disse que devia leval-a.
—Ah! então não entendo.
—Ha sacrificios tão dolorosos, que não é justo exigil-os, nem permittil-os.
—E o que Bertha fazia, ficando aqui a seu lado, era d'essa natureza?
—Talvez fosse.
—Não posso conceber de que maneira.
D. Luiz cançado do esforço que fazia para fallar ou hesitando no que dissesse, não respondeu logo.
Depois murmurou:
—Aquella pobre rapariga tem uma alma nobre e heroica. Não seria ella que se trahiria por um signal de dôr, ainda quando sentisse despedaçar-se-lhe o coração.
—E corria esses riscos aqui?—perguntou a baroneza com affectada candura.
—Gabriella—continuou D. Luiz—Bertha sahiu victoriosa de uma grande lucta. O coração, porém, ainda lhe devia sangrar, e não era aqui que se lhe consolidariam as cicatrizes.
—São tão vagos esses dizeres! Ora vamos; diga-me o que houve; falle-me claro.
—Que havia de ser? Bertha é um anjo, mas sob a encarnação de mulher, tem um coração… e esse, sujeito a apaixonar-se como os outros.
Gabriella fez um gesto de quem tivera uma ideia subita.
—Ah! Já sei! Percebo agora! Era a isso que alludia? Cuidei que seria outra coisa mais grave.
D. Luiz fixou na sobrinha um olhar admirado.
—A Gabriella por certo não sabe ao que me refiro.
—Sei, sei, pois não sei! Havia muito que eu tinha descoberto esse segredo de Bertha, de Bertha e de Jorge.
—E deu-lhe tão pouca importancia?
—Apenas a que merece. Mas devéras, foi esse o motivo da retirada de
Bertha? Parece-me impossivel!
—Já não pouco imprudente havia sido a demora d'ella n'esta casa. Elles ambos são fortes, mas não devem abusar das suas forças com risco de aggravar o mal e leval-o a extremos irremediaveis.
—O mal… extremos irremediaveis… Que linguagem tão carregada para uma coisa tão simples! Pois diga-me, considera um grande mal o facto de elles gostarem um do outro?
D. Luiz encarou Gabriella devéras admirado da pergunta.
—Está a zombar, Gabriella?
—Não estou. Fallo-lhe com toda a minha seriedade. Sabe quando eu receio mal da inclinação reciproca de duas pessoas? É quando nos caracteres d'ellas ha taes contradicções que o futuro promette ser uma continuada lucta. Agora todas as mais desigualdades, desigualdades de riqueza, de posição social e de jerarchia, são facilmente niveladas por um amor verdadeiro e serio. E esta é de certo a indole do amor d'elles.
—Visto isso, achava a Gabriella muito natural que meu filho casasse com a filha de Thomé da Povoa?
A pergunta era feita com certa acrimonia, que não passou desapercebida da baroneza. Ella porém estava resolvida a atacar de frente os preconceitos do tio e não titubeou ao responder-lhe:
—Se quer que lhe diga, achava até muito conveniente.
D. Luiz moveu com certa impaciencia a cabeça.
Gabriella insistiu:
—Queria antes que eu votasse pela continuação d'este estado de coisas, que o ha de matar, que infallivelmente o mata, porque—diga o tio o que disser—a companhia de Bertha é-lhe já tão necessaria como lhe foi a de Beatriz? Queria antes que eu votasse por esta ordem de coisas, que traz definhado seu filho e que irremediavelmente o sacrificará e com elle as esperanças de regeneração d'esta casa e d'esta familia? Desengane-se, meu tio, o futuro de sua familia está indissoluvelmente ligado a Bertha.
—Póde ser.
—Está, digo-lh'o eu, que bem conheço Jorge. Elle renunciou espontaneamente ao mais violento desejo do seu coração, julgando que seria empreza ao alcance das suas forças. O resultado está-se vendo. De dia para dia cresce n'elle o abatimento e as consequencias não é difficil prevêl-as. E diga-me se vale a pena sacrificar vidas tão preciosas e tão nobres e brilhantes projectos a um capricho aristocratico?
—Capricho?!
—Capricho, sim. Se invocar toda a sua philosophia, o tio Luiz ha de reconhecer que não merece outro nome esse escrupulo.
—Não será dever?
—Em que codigo lhe é imposto?
—No da nobreza.
—O dever de quem é nobre de origem é conservar-se pelas suas acções digno d'ella. Ora hoje, meu tio, que o mundo está quasi todo descoberto e em que já passaram de moda as conquistas dos mouros e as guerras com os castelhanos, que melhor póde cumprir-se esse dever do que o faz Jorge, luctando nobremente para resgatar a sua casa e dando um grande e salutar exemplo, que oxalá que fosse seguido? Elle sim, é quem continua as gloriosas tradições dos seus avós, e olhe que não será menos util á pátria do que elles foram. Mas ha um estimulo necessario para manter n'elle aquella actividade. Elle proprio illude-se, julgando que póde prescindir d'esse estimulo. Não póde. Esse esforço ha de sacrifical-o. Agora veja o tio, em respeito a quem é sómente feito o sacrificio, se não sentirá remorsos um dia por havêl-o consentido.
D. Luiz parecia pouco satisfeito com a discussão, que o collocava entre duas forças que igualmente o opprimiam.
—A minha vida é de sacrificios; é destino. Devo estar preparado para aceital-os com resignação.
—Resignação nada christã; porque Deus não quer que nos resignemos com os males que podemos evitar, e muito menos quando é uma paixão ruim que os prepara.
—Uma paixão ruim!—exclamou o fidalgo mais exaltado—até que ponto a traz cega a corrente das ideias modernas, que já chama paixão ruim ao respeito que devemos ao esplendor das nossas casas?
—E que perderia esse esplendor com a alliança de Bertha? Não é ella uma rapariga de sentimentos nobres, cheia de virtudes e de excellentes qualidades? N'essas familias que manteem o esplendor que diz, conta muitas noivas mais dignas de seus filhos? E depois, meu tio, deixe-me dizer-lhe: nós precisamos de misturar sangue novo ao nosso, senão morremos asphyxiados n'estes ares modernos. É verdade isto, as famílias que escrupulisam em não caldearem o sangue antigo que trazem nas veias, dão de si uns descendentes quasi sempre parvos e pêcos, por isso mesmo que sahem organisados para viverem ern uma sociedade talhada por moldes que já se não usam, e não sabem viver na actual.
D. Luiz não podia ainda habituar-se a ouvir taes doutrinas irreverentemente expostas por uma das representantes d'essas vetustas familias.
Era provavel que as phrases incisivas da baroneza lhe provocassem uma resposta apaixonada, se uma inesperada occorrencia o não viesse distrahir.
Frei Januario, que ficára, como dissemos, occulto pelo cortinado do leito e desapercebido tanto da baroneza como de D. Luiz, ouvira com surpreza crescente o dialogo que temos descripto. Para elle eram ainda novidade os amores de Jorge e Bertha, porque D. Luiz já não fazia do padre o confidente dos seus segredos.
Admirado com a descoberta, mais admirado ficou ainda ao ouvir os commentarios de Gabriella a tal respeito, e as ideias revolucionarias e subversivas que sustentára contra o fidalgo.
Frei Januario, mais respeitador dos foros da fidalguia do que o mais esmerilhado aristocrata, sentiu-se provocado a protestar contra aquellas doutrinas e a vir em auxilio do fidalgo com inesperado soccorro, que por certo o faria de novo entrar nas suas boas graças.
Portanto, n'estas alturas da discussão, levantou-se do canto em que estivera occulto, e acabando de sorver os restos de uma pitada, que conservára entre os dedos, afastou a cortina e surgindo do outro lado do leito, defronte da baroneza, disse escandalizado:
—Perdoe-me v. exc.ª, snr.ª D. Gabrielia, mas eu não posso deixar de manifestar o meu espanto pelo que acabo de ouvir.
—Ah! Pois estava ahi, snr. frei Januario? Confesso que nem de tal me lembrava—disse Gabriella sorrindo.
D. Luiz franziu o sobrolho, como quem não agradecia ao padre a intervenção.
—Aqui tenho estado de noite e de dia, minha senhora—respondeu o padre em tom de censura—e fiquei, porque ninguem me mandou sahir. Além de que eu já estou costumado a ouvir e a guardar os segredos d'esta familia.
—Quem lhe diz menos disso, snr. frei Januario? Eu apenas observei que me não lembrava da sua presença ahi. Mas pelo que vejo as minhas ideias não merecem a sua approvação.
—De certo que não—tornou o padre.—O snr. D. Luiz tem razão. A nobreza è a nobreza; e mal de nós se ella se esquecia dos seus deveres e assim se misturava ás classes infimas.
—Então que mal succedia com isso ao snr. frei Januario?—perguntou a baroneza, rindo.
—A mim?
—Então não disse: «mal de nós?»
—Sim, mal de nós todos, porque a sociedade precisa d'estas distincções; senão, não ha ordem, não ha governo, tudo é anarchia e republica.
—Leu isso no evangelho?
—É o que a experiencia me tem mostrado.
—Ah! a experiencia! Muitos obsequios deve á experiencia o snr. frei
Januario!
—Porém devéras, minha senhora, v. exc.ª podia aconselhar seriamente ao snr. D. Luiz o casamento do snr. Jorge, do morgado, morgado não, que até já com isso acabaram para acabarem com todas as familias illustres, mas emfim do representante, o filho mais velho de s. exc.ª … o casamento d'elle com quem? Com a filha do Thomé da Povoa! Um homem, senhores, que eu conheci criado d'esta casa! v. exc.ª não fallava a serio ha pouco. É impossivel.
—Olhe que fallava, snr. frei Januario, fallava, fallava.
—Ó minha senhora, por quem é! Lembre-se v. exc.ª da familia a que pertence, do nome que tem e verá que se ha de envergonhar da lembrança. Bertha da Povoa! Bertha da Povoa! a filha do Thomé! Era o que me faltava vêr n'este mundo! Bertha, que o pae enfeitou com vestidos de senhora, mas que a final sempre ha de mostrar a origem d'onde sahiu! Eu sempre ouvi dizer que o que o berço dá a tumba leva, e que o pé de tamanca foge sempre para a tamanca. Havia de ter graça ouvir o snr. D. Luiz chamar filha á rapariga! e ella feita senhora na Casa Mourisca! Ora essa! Em tal não podia consentir o snr. D. Luiz ainda mesmo que quizesse. Bem vê v. exc.ª que uma pessoa da nobreza do snr. D. Luiz não tem só a consultar a sua vontade. Lá está a mais familia. Que diriam os snrs. Mellos de Ribeira-formosa? os snrs. Cunhas do Choupello? os snrs. Sotto-maiores da Fonte das Urzes, os snrs. do Cruzeiro, e toda a nobreza por essa provincia adiante? Com que olhos veriam esse casamento monstruoso as damas de todas essas familias, e em uma palavra a fidalguia do reino! V. exc.ª de certo não pensou nisto. Demais…
O padre não pôde proseguir na sua animada refutação.
Interrompeu-o D. Luiz.
Dera-se com o fidalgo um phenomeno não calculado pela experiencia do padre, ainda que natural ao espirito humano.
Sentindo-se apoiado na defeza das suas ideias por um alliado antipathico—porque o era para o fidalgo desde certo tempo, o seu ex-procurador—teve logo um desejo vehemente de recusar o auxilio e quasi o de esposar a causa opposta só para o castigar da impertinencia.
Além d'isso frei Januario levou a defeza mais longe do que devia. A maneira por que fallou de Bertha e da dependencia em que estava o fidalgo da opinião da sua parentela, irritaram o orgulhoso D. Luiz, que por isso tudo com extrema vivacidade o interrompeu dizendo:
—Cale-se, frei Januario, cale-se! Que está para ahi a dizer? Cuida que eu, querendo fazer a minha vontade, me dou ao trabalho de consultar os de Ribeira-formosa, os do Choupello ou os do Cruzeiro, ou de qualquer d'essa parentela que tenho por essa provincia adiante? Era o que me faltava! Do que convem ou não convem á dignidade do meu nome, sou eu o juiz, e não admitto ingerencias alheias. Actos que deslustram e envergonham tem-n'os elles feito que farte, e eu nunca lhes fui pedir satisfações por isso.
—Eu queria dizer…—acudiu o padre, intimidado pela irritação em que via o fidalgo.
Este interrompeu-o outra vez:
—Ora não diga nada, que é melhor. Com que olhos veriam as damas este casamento! É boa! Com os mesmos olhos com que tem visto muita miseria e muita vergonha que vae por casa dos seus. Os olhos deviam ellas empregal-os em Bertha, mas era para aprender d'ella o que é dignidade, nobreza de sentimentos e verdadeira educação. Como está ahi a dizer o frei Januario que Bertha ha de mostrar a final a origem d'onde vem? Bertha ha de mostrar que é filha de um homem honrado e de uma mulher virtuosa. Se é isso que quer dizer, tem razão. E oxalá que todas as nossas damas podessem dizer o mesmo de si. Fique sabendo que não seria ella que occupasse mal o seu logar na Casa Mourisca. Fique sabendo isto. O quarto de minha filha a poucas o franquearia eu com melhor vontade do que a ella, que parece resuscitar-m'a. Para ser nobre não basta ser do Cruzeiro ou de Ribeira-formosa. O Cruzeiro é um ninho de bebedos e a Ribeira-formosa uma gaiola de parvos. A ter de escolher entre essa gente sem dignidade e aquella que de origem obscura lhe dá todos os dias lições de deveres, de certo que não hesitaria, nem iria entre a primeira procurar noiva para meu filho. Como se formaram as familias nobres? São todas da mesma época? É claro que não. Houve tempo em que umas já eram nobres e outras não o eram; mas por um feito illustre e verdadeiramente nobre um homem obscuro d'estas ultimas mereceu que as primeiras o chamassem a seu gremio, partilhando com elle o dom que já possuiam. Pois bem, tambem nós hoje podemos fazer o mesmo que n'esses antigos tempos se fazia, e chamar a nós os espiritos fidalgos, que os ha fóra do nosso gremio; e assim podessemos também expulsar d'elle os espiritos plebeus que por cá temos!
D. Luiz, levado pela força da reacção, ia mais longe do que quizera. Por pouco estava advogando ideias manifestamente democraticas. O padre estava estupefacto, como se assistisse a um cataclismo. A propria Gabriella não esperava ouvir expender taes ideias a seu tio. Ainda que percebesse que a irritação que dominava o doente fosse a principal causa inspiradora n'aquella defeza acalorada, ainda assim lhe dava importancia. As ultimas palavras de D. Luiz, e especie de raciocinio com que pretendêra justificar a possibilidade de allianças desiguaes, realisadas certas circumstandas, davam-lhe a entender que elle já comsigo proprio previra a eventualidade e procurára argumentos que por ventura a justificassem.
Gabriella viu n'esta descoberta um optimo indicio e percebeu a conveniencia de deixar o espirito do tio sob aquella ordem de impressões e entregue ao movimento proprio que a intervenção do padre iniciára.
Por isso, sob o pretexto de que a discussão fatigára em extremo o doente e que os excessos lhe podiam ser funestos, cortou no principio a réplica do padre e obrigou-o a retirar-se da sala para deixar dormir o doente.
Ao sahir dizia ella, tomando o braço do capellão:
—Depois de se lançar o crescente na massa, cobre-se esta e deixa-se em repouso levedar. Quando era criança via fazer isto em minha casa, sempre que se cozia o pão.
O padre não entendeu o alcance da parabola. Sahiu d'alli desnorteado com o que via n'aquella casa, que elle suppunha eivada do veneno da maçonaria, unica maneira por que explicava as irregularidades que via.
Gabriella sahiu no intento de encaminhar a crise em um sentido favoravel.
Mauricio veio ao encontro da baroneza assim que esta sahiu do quarto de
D. Luiz.
—Como deixaste meu pae?—perguntou elle.
—Mal e bem.
—Que queres dizer com isso?
—Mal, porque me inquieta o abatimento em que o vejo. N'aquella idade!… Bem, porque o acho em excellentes disposições de se lhe applicar um remedio heroico.
—Qual?
—Queres principiar hoje a tua carreira diplomatica?
—De que maneira?
—Vaes já d'aqui a casa do Thomé da Povoa.
—Sim, e depois?
—É uma visita que lhe deves, visto que não te lembraste de lhe dar parte do nosso casamento.
—É verdade que não.
—Vae pois visitar Thòmé. Repara que nem sequer me lembro de ter ciumes de Bertha.
—É uma prova de confiança, que te mereço.
—Sim? Mereces? Diz-te isso a consciencia? Bom será. Vamos adiante. Em casa de Thomé contas qual o estado de teu pae. Fazes sentir a necessidade de que Bertha volte para aqui, ou para o reanimar, do que só ella é capaz n'este mundo, ou pelo menos para suavizar-lhe os ultimos momentos e despedir-se d'elle. É provavel que encontres objecções em Thomé, mas insiste; dize que teu pae se mostra magoado com a ausencia de Bertha, e que é um peccado imperdoavel prolongar-lhe essa dôr tão facil de remediar. Finalmente não voltes sem ter resolvido Bertha a vir hoje mesmo para aqui.
—E quaes são os teus projectos?
—Ora quaes hão de ser? São casar Bertha com Jorge. Está claro.
—Has de encontrar dificuldades.
—Já me pareceram maiores. O padre fez nos, sem querer, um grande serviço. Metteu-se a advogar com tanto calor a aristocracia, que por pouco fazia de teu pae um democrata.
—Devéras?
—É verdade. Agora quatro caricias de Bertha devem consummar a victoria.
Vossês os homens levam-se por isso.
—Parece-te?
—Veremos se me engano.
Mauricio encarregou-se da mensagem que lhe incumbia a mulher e partiu para casa de Thomé, onde foi recebido com caloroso affecto.
Expondo o principal fim da sua visita, não encontrou grande opposição em Thomé contra o regresso da filha para os Bacellos. Elle proprio prometteu leval-a.
Efectivamente horas depois, Bertha era de novo conduzida pela baroneza para junto da cabeceira do enfermo, que em todo aquelle tempo continuára a manifestar signaes da mais profunda depressão de forças.
D. Luiz dormitava quando Bertha se lhe aproximou do leito. A rapariga correu cautelosamente o cortinado para contemplar a figura do ancião. Commoveu-a o aspecto de abatimento que crescêra n'elle desde que Bertha o deixára. D. Luiz tinha o somno agitado por sonhos febricitantes, e sonhando, soltava gemidos surdos, palavras mal articuladas, estremecia e suava como sob a influencia de uma afflictiva impressão.
Bertha veio encontral-o em um d'estes estados e curvou-se compadecida para enxugar o suor que lhe orvalhava a fronte.
O doente acordou então e fitou os olhos n'ella.
Immediatamente lhe distendeu as feições contrahidas um sorriso de alegria.
Por algum tempo não fallou, como se estivesse duvidando da realidade do que via e suspeitando-a de ser a continuação de um sonho.
Foi Bertha a primeira que fallou.
—Está melhor?—interrogou ella, sorrindo.
O tom d'aquella voz e a particular inflexão da pergunta, com que já estavam familiarisados os ouvidos do doente, parece que o convenceram de que não dormia.
Estendendo para a afilhada a mão magra e ardente, murmurou profundamente commovido:
—Então sempre voltaste?
—Como me disseram que tinha passado mais inquieto estes ultimos dias…
—Fizeste bem. Havia de custar-me a morrer sem me despedir de ti.
—Quem falla aqui em morrer? Agora que o inverno passou e que este tempo está a dar vida a tudo é que o padrinho se lembra d'isso? Pois veremos. Dentro de poucos dias é preciso continuarmos aquelles nossos passeios na quinta.
D. Luiz sorriu tristemente e fechou os olhos como para reter uma lagrima, que, apesar d'isso, lhe passou por entre as palpebras e lhe rolou vagarosa pelas faces descarnadas.
Bertha murmurou ao ouvido do velho:
—Chore á vontade, que estou eu só aqui. Chore, que lhe faz bem.
Como se a densa tristeza que pesava sobre o coração d'aquelle homem só esperasse aquellas palavras para se fundir em lagrimas, o pranto inundou-lhe o rosto, que elle quasi escondeu no seio de Bertha.
Aquella expansão foi-lhe salutar. O somno seguinte foi mais tranquillo e menos cortado por sonhos fatigadores. Comtudo o estado do doente era ainda muito grave, e na aldeia e immediações corria já voz do proximo fallecimento do fidalgo da Casa Mourisca.
A parentela das visinhanças a cada momento vinha ou mandava aos Bacellos saber novas do fidalgo. Thomé da Povoa passava alli a maior parte do seu tempo; a propria Anna do Védor viera offerecer os seus serviços á familia, e raras vezes se desviava da casa.
Bertha continuava assiduamente junto do leito do enfermo, sem perder a esperança de o vêr sahir victorioso d'aquella tremenda crise.
Ninguem a desviava d'alli. Retinha-a a vontade propria assim como a do doente, a quem a menor contrariedade podia ser fatal.
A baroneza não só não insistia para que Bertha cedesse a outrem o campo, mas nem deixava que alguem insistisse. Dizia ella que a juventude de Bertha podia bem com aquelle sacrificio, e que era provavel que Deus não deixasse sem recompensa a caridade.
Durante tres dias a familia reunida nos Bacellos passava o tempo, por assim dizer, na espectativa do triste acontecimento que se preparava.
Jorge interrompeu os seus trabalhos, Mauricio nunca sahia de casa, e a baroneza passeiava constantemente entre a sala, onde quasi sempre permaneciam os dois irmãos, ás vezes na companhia de Thomé, e o quarto do enfermo, que mal consentia junto de si outra pessoa além de Bertha.
Uma noite, D. Luiz, depois d'aquelles tres dias de febre e quasi de delirio, conseguira adormecer de um somno mais tranquillo e reparador. Não foram os sonhos incoherentes, absurdos e fatigadores que o atormentaram d'esta vez; mas um sonhar grato, sem visões febris, e durante o qual a imagem da filha por vezes lhe appareceu sorrindo-lhe e fallando-lhe com o carinho de que elle ainda se recordava com a mais pungente saudade do seu coração. Esta imagem transformava-se-lhe ás vezes por insensivel transição na imagem de Bertha, e tão similhantes, tão confundidas lhe appareciam, que elle nem sabia ao acordar com qual das duas sonhára. Umas vezes era a filha que lhe fallava com a voz e sob a figura de Bertha; outras Bertha revestindo a imagem de Beatriz.
Despertou d'este somno por alta e calada noite. No aposento era completo o silencio. Interrompia-o sómente o bater cadenciado da pendula do corredor. A tenue claridade de uma pequena lampada alumiava a scena.
D. Luiz depois de acordado tentou avivar as gratas impressões que lhe deixára o sonho.
Pensou na filha e no passado; nas tristezas presentes, nas venturas perdidas e nas desgraças por vir.
Áquella hora da noite, na solidão e repouso da camara de um doente o espirito ergue-se superior á habitual esphera onde ordinariamente pára e contempla com a vista de aguia as suas paixões e preconceitos; vê-os fluctuar como nuvens nas regiões inferiores. É n'esses momentos que a consciencia nos julga; a parte mais etherea do nosso ser parece então erguer-se lucida como nunca e contemplar compadecida os maus instinctos, as prevenções arreigadas, os falsos preconceitos que no tracto commum da vida em tão viciosas direcções nos solicitam.
Emquanto o mundo dorme, dormem com elle no nosso coração as paixões que o mundo alimenta.
N'aquelle momento D. Luiz não era o mesmo homem moral que conhecemos.
Luzia-lhe a verdade resplandecente á sua imaginação fascinada.
No meio da corrente dos seus pensamentos distrahiu-o um quasi imperceptivel respirar que ouviu a seu lado. Voltou-se.
Era Bertha que, cedendo ás fadigas de tão continuadas vigilias, adormecêra junto do leito do doente.
D. Luiz ficou a contemplal-a assim.
A luz do velador dava-lhe no rosto, em que se desenhava a mais doce expressão da serenidade de espirito.
Pendia-lhe a cabeça sobre as travesseiras do leito e uma madeixa de cabello soltando-se-lhe, viera afagar-lhe a fronte, abrindo caminho por entre os dedos que a sustinham.
D. Luiz ergueu-se a pouco e pouco no leito para melhor observar aquella figura angelica de mulher, adormecida ao seu lado.
Traduziam as feições do velho o extasi, em que o arrebatára aquella contemplação. Parecia-lhe uma visão sobrenatural. Com movimentos cautelosos para não a acordar, encostou os braços ás almofadas da cama e apoiando a cabeça entre as mãos, assim permaneceu immovel, abstracto, com os olhos fitos em Bertha e o espirito subindo ás regiões mais limpas dos espessos nevoeiros do mundo.
Era um expressivo grupo o d'aquella rapariga adormecida e o d'aquelle velho pallido, descarnado, meio erguido no leito, contemplando-a em um quasi rapto de adoração. Áquella hora, no meio d'aquelle silencio, alumiado por aquella luz, a scena era mysteriosamente solemne e imponente.
Horas talvez durou aquella contemplação silenciosa.
De repente accentuou-se no rosto do fidalgo uma expressão de energia e firmeza que a doença e a preoccupação de espirito havia muito lhe tinham dissipado.
Curvando-se mais sobre o rosto de Bertha, desviou com extrema delicadeza a madeixa que lhe cahia sobre a fronte e murmurava como para si:
—Por que és tu que vélas a meu lado? Que laços te prendem a mim? Porque dedicas a este velho a tua juventude?… E não se recompensa esta abnegação? Pagam-te sacrificando-te aos seus… preconceitos.
E continuava a contemplal-a em silencio; depois voltava a murmurar:
—Beatriz, se fosse viva, chamar-te-ia irmã; havia de querer-te junto de si, no seu quarto. E eu… porque não hei de chamar-te filha?…
Não disse mais o velho, mas curvando-se ainda mais, poisou na fronte da rapariga um beijo expressivo de paternal affecto.
Pela madrugada o doente mostrou-se algum tanto inquieto a ponto de sobresaltar Bertha, que o espiava com solicitude.
Á interrogação que ella lhe dirigiu para saber a causa da agitação em que o via, D. Luiz não respondeu logo; porém, momentos depois, olhou para a afilhada com uma expressão singular, pegou-lhe nas mãos, apertou-as com affecto, e disse-lhe com manifesta commoção:
—Bertha, vae chamar Jorge. Que me venha fallar. Preciso de conversar com elle quanto antes.
Bertha sahiu do quarto com os olhos arrasados de agua.
Aquellas palavras tinham para ella uma dolorosa significação.
D. Luiz que mandava chamar o filho mais velho, o directo successor do seu nome e da sua casa, era por que um d'aquelles presentimentos, que nos advertem da proximidade da nossa hora final, indicava-lhe ter chegado a occasião de despedir-se do filho e de dar-lhe os derradeiros conselhos de pae.
Todos nos Bacellos formaram a mesma conjectura. Jorge ergueu-se precipitadamente do leito, assim que soube que o pae lhe queria fallar.
A nova espalhou-se em toda a casa e pôz todos em alvoroço. Em breve transpirou fóra que o fidalgo da Casa Mourisca já se despedira dos filhos, e que em poucas horas seria com Deus.
Á casa de Thomé e da Anna do Védor chegou a noticia e trouxe até os Bacellos esses antigos commensaes da familia, cujo representante actual chegava á hora mais solemne da vida. A boa Luiza acompanhou o marido no intento de oferecer os seus serviços n'aquelles momentos de dôr e confusão.
Jorge entrou commovido e pallido no quarto do pae, onde ninguem mais o seguiu.
O pobre rapaz ia preparado para uma scena dilacerante; esperava assistir á agonia do velho.
Tremiam-lhe as pernas ao aproximar-se do leito.
D. Luiz percebendo-o chegar, dirigiu-se-lhe com voz debil mas firme:
—És tu, Jorge?
—Sou eu, meu pae.
—Chega-te mais para aqui. Assim.
E fitando o filho com o olhar ainda cheio de expressão e vida, continuou depois de um demorado silencio:
—Jorge, tu não és feliz.
Jorge olhou para o pae, espantado pela inesperada observação que lhe ouvia.
—Tens uma nobre alma, tomaste sobre os hombros uma pesada tarefa, dedicaste ao cumprimento d'ella a tua vida inteira, e como se isso não fosse bastante, sacrificaste-lhe ainda os teus mais ardentes affectos. Jorge, não será o sacrificio superior ás tuas forças?
Jorge baixou a cabeça sem responder.
A estranheza causada pelas palavras do pae, tão differentes das que esperava, perturbara-o a ponto de não saber o que dissesse.
—Falla, Jorge—proseguiu o velho.—Vá, nunca viste em mim um confidente, porque o meu caracter serio e reservado afugentava as tuas expansões de criança; mas a doença quebrou-me e hoje posso escutar-te. Tu soffres, Jorge, e soffres por minha causa, não é verdade?
—Meu pae—dizia Jorge cada vez mais embaraçado.
—Eu sei tudo. Sei do amor que se te formou no coração e que disputou o teu pensamento aos projectos de rehabilitação que emprehendeste para salvar esta casa da ruina que os nossos e eu lhe preparamos; sei da tenacidade com que combateste esse amor, da coragem com que o sacrificavas aos meus principios aristocraticos, apesar de vêres apenas n'elles meros preconceitos de classe.
—Creia, meu pae, que respeito as suas opiniões e que…
—Ouve-me. Orgulho-me com o teu caracter; vi n'elle a nobre tempera de um verdadeiro fidalgo e desde então creio devéras que a regeneração da nossa casa, emprehendida por um homem como tu, não póde deixar de realisar-se. Vou sem este pêso para a sepultura. Os meus erros ser-me-hão relevados por o facto de te ter por filho. Tu rehabilitarás a minha memoria. Jorge, o meu coração não tem já a dureza de outros tempos, males de toda a especie acabaram de vencêl-o; agora é um coração de homem. Por isso me é intoleravel a ideia do teu sacrificio. Se tu participasses dos meus… preconceitos, era justo que lhes sacrificasses todos os affectos; sentirias na satisfação interior a compensação do sacrificio. Mas sacrificares-te só por meu respeito, sem teres a mesma fé no objecto a que te sacrificas… n'isso não posso eu consentir. Reunirei as minhas forças para subjugar alguns restos de vaidade que se revoltem, e antes de morrer desviarei o unico obstaculo da tua felicidade, dizendo-te: «Podes ser feliz, Jorge.» Além de que, tu és nobre bastante para ennobreceres aquella que cingires ao coração e ficares nobre ainda.
Jorge percebeu o sentido das palavras do pae. Em extremo surprendido pela inesperada condescendencia do homem que elie julgava incapaz de transigir com taes ideias, era vez de deixar-se penetrar da alegria que este successo parecia dever inspirar-lhe, disse com mal sustentada serenidade:
—Por muito doloroso que seja para mim o sacrificio de que falla, meu pae, talvez seja mais ainda para si o que emprehende, querendo dispensar-me d'elle. Creia, senhor, que eu não discuto a legitimidade das suas opiniões, respeito-as; e a satisfação intima que me virá da consciencia de as ter respeitado, será tambem para mim uma poderosa compensação.
—E a ella? Quem a compensará?—perguntou D. Luiz, com inflexão de dor.
—A ella? É de Bertha que falla? Se eu não soubesse que aquella alma nobre e forte está á altura do sacrificio, talvez me fallecesse a coragem para tental-o.
—É uma nobre alma devéras—tornou D. Luiz, como fallando para si.—E quem a apreciará? A que destino a condemnaremos se a expulsarmos das regiões para onde os seus nobres instinctos a chamam? Pobre d'ella! E tu, tu que a amas, tens a certeza de poderes levar ao fim o sacrificio? Não é certo que a tua saude já se tem resentido do esforço que fazes? Vê bem, Jorge! Na tua idade os affectos são mais violentos do que na minha. E comtudo eu proprio quero já tanto a essa rapariga, que sinto que estes restos de vida que ainda possuo devo-os á sua presença. O que não será comtigo?
Jorge nunca previra a situação em que se achava. Havia imaginado a possibilidade de ser levado pela força da sua paixão a uma lucta aberta com os preconceitos paternos, e esforçara-se por evitar essa temerosa crise.
Esta era a menos provavel hypothese que antevira. Mas que fosse o pae quem advogasse a causa do seu coração de rapaz contra as inflexiveis exigencias da orgulhosa classe a que pertencia, nunca o podéra suppôr, pois que não tinha seguido passo a passo as transformações que haviam operado no caracter varonil d'aquelle velho a acção combinada da doença e dos carinhos de Bertha.
Por isso sentia-se agora irresoluto, sem saber se devia ceder ao coração e ás insinuações do pae, se resistir em nome do dever, que elle chegára a convencer-se oppôr-se á satisfação dos seus ardentes votos.
Na hesitação do filho, D. Luiz julgou perceber que o orgulho aristocratico penetrára já n'aquelle coração de vinte annos, e elle que sabia por si as resistencias que esse orgulho gerava, assustou-se com a apprehensão de ficar vencido pela obstinação do filho.
Assustou-se, dizemos, porque o espirito do fidalgo estava completamente subjugado. O egoismo da sua idade não podia já passar sem os carinhos de filha. Não queria revelar-se inteiro e desejava que fosse a paixão do filho que apparentemente explicasse a transigencia.
Era ainda custoso ao seu orgulho ceder, mas já não tinha fortaleza para resistir. Anciava por isso que Jorge lhe fornecesse o pretexto. Vendo-o vacillar, tremeu já de encontrar um obstaculo insuperavel.
Jorge pela sua parte era victima de um quasi estonteamento, que não lhe deixava ainda vêr claro. Tão costumado estava a acreditar que invenciveis resistencias se erguiam contra a mais ardente aspiração de sua alma, que ao vêl-as removidas de subito, olhava em volta de si como aguardando que surgissem outras em seu logar, e sem poder crêr que a felicidade viesse collocar-se-lhe ao alcance da mão.
D. Luiz insistiu:
—Não, Jorge, não aceito o teu sacrificio. Estou para despir as vaidades do mundo. Na outra vida, onde os primeiros são os ultimos, não me perseguirão estas paixões mundanas.
—A ter um de nós de luctar com uma paixão, para condescender com a do outro, compete-me fazêl-o. Na minha idade é mais fácil tentar estas luctas com exito.
D. Luiz a custo reprimiu a sua impaciencia.
—E ella? Jorge, lembra-te de que essa menina ama-te, e talvez não tenha a força de alma que tu tens.
—Seria para Bertha peior tormento magoal-o, meu pae. Sei-o da bôca d'ella. Nunca aceitaria o seu sacrificio.
D. Luiz fechou por momentos os olhos, como para concentrar o espirito; depois disse quasi a medo:
—Sacrificio! Maior sacrificio seria o meu se renunciasse a têl-a junto de mim e a chamar-lhe filha. Não sei mesmo se para tanto me restam ainda forças. Eu já não sou o homem forte que fui, Jorge. Quasi mereço compaixão.
Jorge estremeceu ao ouvir estas palavras. Como que raiou uma subita claridade no seu espirito.
—Que quer dizer, meu pae? Pois não é por meu respeito que insiste…
—Queres obrigar-me a confessar toda a minha fraqueza, Jorge? Pois bem, confessarei. Fazendo a tua felicidade, farás também a minha. O logar de tua irmã só póde ser occupado por Bertha. Outra qualquer profanal-o-ia.
Jorge d'esta vez não o deixou concluir. Cedendo á paixão que emfim se expandia, pegou nas mãos descarnadas do pae e levando-as calorosamente aos labios, exclamou:
—Oh! obrigado, meu pae. É Deus que o inspira; é o espirito de minha irmã que o aconselha. Obrigado. Agora sim, desanuvia-se-me o horizonte e creio, creio deveras na felicidade. Triumpho! Obrigado, obrigado.
E beijando-lhe mais uma vez a mão, correu para a porta chamando Bertha.
Toda a familia e os amigos que tinham vindo para os Bacellos, ao saberem do estado do velho fidalgo, achavam-se na sala immediata, aguardando anciosos o termo da conferencia entre o pae e o filho e por ventura o triste desenlace que havia muito se esperava.
Quando se ouviu a voz de Jorge, todos julgaram que se havia realisado emfim o acontecimento que se receiava, e correram para a porta.
Jorge, quasi desorientado, foi ao encontro de Bertha, e conduzindo-a á cabeceira do leito do doente, disse suffocado de contentamento:
—Bertha, o nosso sacrificio é inutil. Meu pae não o aceita, e prefere vêr-nos felizes. Ajoelha ao lado d'elle e beija a mão de teu pae.
Bertha obedeceu banhada em lagrimas de commoção.
A baroneza não reprimiu uma exclamação de alegria e de triumpho.
Mauricio correu a abraçar Jorge.
A Anna do Védor quasi levantou ao ar a boa Luiza, que temia acreditar no que julgára entender nas palavras de Jorge.
Sómente Thomé da Povoa ficou immovel e calado. Ao ouvir Jorge, ao ver a filha ajoelhada junto do fidalgo e acariciada por elle, um clarão de alegria passou no rosto do honrado lavrador e brilharam-lhe nos olhos as lagrimas. Mas este relampago dissipou-se cedo e carregou-se-lhe o semblante de tristeza.
Assim que Jorge, procurando-o com os olhos, se dirigiu para elle, estendendo-lhe os braços, Thomé afastou-o brandamente de si, dizendo-lhe:
—Custa-me desfazer essa alegria, senhor, essa alegria que me faz quasi chorar, que é sincera da sua parte. Mas quanto mais cedo, melhor será. Isto não póde ser.
Todos fitaram estupefactos o fazendeiro. Ninguem esperára que a resistencia se levantasse d'alli. Anna do Védor resmungou:
—Temol-a travada!
—Valha-nos Deus!—gemeu Luiza.
Bertha fitou no pae os olhos ainda lacrimosos.
A fronte de D. Luiz contrahiu-se de novo.
—Que quer dizer com essas palavras, Thomé?—perguntou Jorge, emquanto que Mauricio e a baroneza secundaram a pergunta com um olhar interrogador.
—Ha brios a que se não póde faltar—insistiu Thomé—ainda quando se nos despedace o coração e o dos filhos. Que se diria de mim? Como explicariam por ahi o meu proceder n'esta casa? Que pensaria alli o snr. D. Luiz, que já uma vez me suspeitou de forjar intrigas infames e de ter ambições indignas de um homem de bem? Creia no que lhe digo, snr. Jorge, mais vale que sacrifiquemos todos um pouco das nossas affeições para não termos desgostos maiores.
—Que desgostos póde receiar, Thomé, quando eu lhe peço que me conceda a mão de Bertha?
—O snr. Jorge falla cego pela affeição que sente e é ella que não o deixa vêr o que eu vejo.
—Não seja obstinado, Thomé—disse a baroneza.—Bem vê que d'onde era mais de esperar a resistencia, já ella cahiu.
—V. exc.ª não fallaria assim se soubesse tudo. Ha dias, snr.ª baroneza, n'esta mesma sala, vendo-me offendido no meu caracter, suspeitado de tenções que nunca tive, e desesperado por não poder justificar-me, porque de facto tudo se levantava contra mim, fiz um protesto que não posso deixar de cumprir. Se lhe faltasse, eu proprio daria razão a quem me chamasse, frente a frente, intriguista, falso, miseravel…
D. Luiz atalhou, dizendo:
—Protestou o Thomé da Povoa que se o casamento de sua filha com Jorge dependesse do seu consentimento, elle o recusaria, ainda mesmo quando da recusa se seguisse a morte para ambos; e que para o não recusar seria necessario que eu, o pae de Jorge, o senhor da Casa Mourisca, o unico, segundo o pensar do mundo, de quem deveria partir opposição a essa alliança, pedisse a elle, Thomé da Povoa, como favor, esse consentimento.
Thomé fez um signal affirmativo, olhando para a baroneza, para Mauricio e para Jorge como perguntando-lhes se a tão solemne protesto era possivel faltar.
—Pois bem—continuou o fidalgo, depois de uma curta pausa, e fechando os olhos á imitação de quem se prepara a vencer um precipicio, cuja vista o faz recuar.—Pois bem, sou eu quem peço a Thomé da Povoa… como favor… que permitta que Bertha seja a esposa de meu filho.
E ao acabar de dizer estas palavras tingiram-se-lhe as faces de uma vermelhidão intensa.
Thomé fixou os olhos no rosto do fidalgo e leu n'aquelles signaes a revelação do esforço gigante que elle fizera para conseguir pronunciar tão nobres e generosas palavras.
Não estava no animo de Thomé resistir mais tempo.
Correu para o leito, ajoelhou ao lado do doente, e pegando-lhe na mão, exclamou, cortada a voz pelos soluços:
—Snr. D. Luiz, v. exc.ª venceu. Digam o que quizerem. O meu orgulho não dá para mais. Bertha, sê feliz…
O pranto não o deixou concluir, a phrase perdeu-a soluçando sobre as mãos do fidalgo.
Não faltaram lagrimas e sorrisos aos que presenciavam a scena.
Passada esta explosão de sentimento, Jorge, tomando a mão de Bertha, disse para Thomé:
—Aceito a felicidade que me offerece, Thomé, e prometto ser digno da esposa que me confia. Mas á minha propria felicidade sou obrigado a impôr condições, para que no futuro nenhuma nuvem a perturbe. A nossa casa não está ainda, como sabe, livre dos encargos que por tanto tempo pesaram sobre ella. As dificuldades principiam a aplanar-se e a administração entrou no verdadeiro caminho. E ao seu auxilio e conselho devo principalmente este resultado. O meu orgulho porém, visto que todos aqui attendem a orgulhos, o meu orgulho exige que eu só por mim realise esta obra que emprehendi, que á força do meu trabalho satisfaça os compromissos contrahidos. Quando receber Bertha, quero recebêl-a em minha casa, e que se não diga que foi ella quem me abriu as portas fechadas pela miseria. Por isso esperarei até então para realisar a minha felicidade.
—Muito bem, Jorge!—exclamou o fidalgo, fulgurando-lhe o olhar de alegria.
—É justo—concordou Thomé.—Comprehendo esse desejo da sua parte, e nada tenho a dizer contra.
—Mais ainda—proseguiu Jorge—posso aceitar a esposa que me oferece, e orgulhar-me d'ella e da alliança com a sua familia, que é honrada e generosa, mas uma coisa ha que não posso aceitar sem humilhação. É a parte que pertencer a Bertna da herança paterna. Não quero que se diga que eu restaurei a minha casa á custa da sua. Até aqui ainda chegam os meus preconceitos aristocraticos, devo confessal-o.
—Bem, Jorge, muito bem!—bradou o fidalgo—quem pensa d'essa maneira e assim procede, póde transmittir a sua nobreza, mas não a perde.
—Eu porém é que não posso desherdar minha filha. Essa condição é impossível—disse Thomé friamente.
—A parte a que tiver direito cedo-a em favor de meus irmãos—disse timidamente Bertha.
—Teus irmãos não precisam da tua desistencia, Bertha.
—Thomé—insistiu Jorge—sabe que o meu constante pensamento é manter ao nome de minha familia o prestigio e o respeito que sempre teve na provincia; não queira annullar os esforços que emprego para o conseguir.
—E quer que eu lhe sacrifique a minha reputação? Que se dirá de mim?
A baroneza, prevendo que as dificuldades cresciam, e que esta lucta de sentimentos generosos poderia fazer surgir novos obstaculos, entreveio dizendo:
—As clausulas do contracto são uma circumstancia secundaria e que só na presença de um tabellião se regulam. Eu por mim não posso aturar taes discussões, sobre tudo se o noivo toma parte n'ellas. Olhem que frieza de namorado! Deixemos isso tudo para depois.
—Diz bem v. exc.ª—apoiou a Anna do Védor—o tudo é que elles casem, e depois os homens que deslindem lá esse negocio do dinheiro como quizerem. Mas sempre lhes digo que oiçam um advogado para não fazerem tolices. Mas o fidalgo! O fidalgo é que sempre a deu em cheio! Sim senhor! Nunca o esperei! Quem d'antes lhe fosse dizer… Mas bom foi e verá como até nosso Senhor lhe ha de dar saude. E vossemecê, Luiza, que diz a isto? Ande lá, que teve um sancto a pedir por si. Eu bem lhe disse, mulher: cara alegre e confiança n'aquelle que está lá em cima. E aqui para nós, talvez que a mim deva alguma coisa. E tu, rapariga? Apesar de me engeitares o Clemente, olha que não te quero mal. Não quero, porque eu se estivesse no teu logar, faria o mesmo. E o Thomé ainda com o nariz torcido! Ó homem de Deus, vossê que mais quer? Sempre a gente! louvado seja Deus!
Mauricio aproximou-se de Anna sorrindo:
—Já que vae correndo a roda, venha lá a minha ração.
—Que queres que eu te diga? Cuidas que por estares casado me mereces mais aquella? Olha agora! O que me admira é que houvesse quem te quizesse. Perdoe-me a senhora, mas não lhe gabo o gosto. A seu tempo conhecerá a joia. Lá aquillo é outro barro.
E apontava para Jorge.
Todos riram das francas observações da desenganada matrona.
E emquanto D. Luiz conversava com Bertha, Jorge com Thomé, e Mauricio e a baroneza com Luiza e Anna do Védor, assomou á porta a cabeça de frei Januario, que ficou espantado de achar tanta gente reunida no quarto do fidalgo.
—Ha alguma novidade?—perguntou elle inquieto.
Foi a Anna do Védor quem lhe respondeu:
—Ha, sim senhor. E póde já preparar-se, porque não lhe faltará que fazer qualquer dia. Case-me bem estes noivos, ouviu?
O padre olhou espantado para os circumstantes.
—Quê? Pois então?…
—Estão vencidos os obstaculos—respondeu a baroneza á incompleta pergunta.
—Ah!—observou apenas o padre.
E pensava comsigo:
—Digam lá que não anda n'isto a maçonaria!
O resto do dia passou-se pacificamente. D. Luiz dormiu com socego e deu mais algumas esperanças aos que o rodeavam.
Não havia alli coração que não encerrasse um fermento de felicidade.
Não se fez esperar muito o casamento ajustado á cabeceira do leito do fidalgo da Casa Mourisca.
Depois de vencida a importante demanda, que havia tanto tempo pesava sobre a sua propriedade, Jorge achou-se mais desembaraçado na empreza a que dedicara a juventude.
Alienando algumas fazendas distantes, que serviam apenas de estorvo á administração das outras, sem compensarem os sacrificios que exigiam, acabando de desonerar de oppressivas hypothecas as que ainda definhavam sob ellas, e entrando em uma via methodica e segura de melhoramentos, habilitou-se em breve tempo a contrahir um emprestimo valioso no credito predial, amortisavel em poucos annos; e com o capital obtido em tão favoraveis condições e prudentemente administrado tinha quasi certa para não longinquo futuro a completa realisação do seu constante e generoso pensamento.
O ennegrecido e triste solar da Casa Mourisca remoçou no dia em que o moço proprietario d'elle pôde remir a sua ultima divida a particulares. Esta foi a de Thomé da Povoa.
O povo da aldeia viu de novo abrirem-se de par em par as janellas da velha Casa Mourisca, limparem-se das hervas parasitas as longas avenidas da quinta, erguerem-se do chão as estatuas derrubadas, jorrarem como em outros tempos as aguas dos encanamentos desobstruidos, coroarem-se de ameias as torres mutiladas, dourarem-se as columnas de talha da capella do palacio, e ao vêr isto, o povo acreditou que iam voltar dias felizes para aquella familia, sobre a qual pesara o jugo do infortunio.
Espalhou-se voz e fama do muito que fizera Jorge para conseguir esta restauração.
Admirava-se e applaudia-se a energia e a sensatez do moço, que emendára o desvario dos seus antecessores, commentavam-se os actos da sua vida de rapaz, exaltavam-se as virtudes do seu caracter varonil, e a pouco e pouco o espirito da lenda tomou posse d'esta individualidade e deu-lhe o prestigioso colorido que assegura a immortalidade na tradição popular.
Restaurada a Casa Mourisca e satisfeita a divida do Thomé, D. Luiz, a quem os assiduos cuidados de Bertha tinham feito vencer a molestia que o prostrára, voltou ao seu solar com solemnidade correspondente áquella com que o deixára. Os instinctos dramaticos do seu caracter de fidalgo assim o exigiam.
Ao regressar á casa, que outra vez podia chamar sua, e encontrando-a sob o aspecto de vida e festa havia tanto tempo perdido, D. Luiz commoveu-se profundamente.
A numerosa cohorte de criados e jornaleiros que vieram recebêl-o á porta e saudal-o com enthusiasmo, fez-lhe recordar tempos passados e as tradições feudaes de épocas volvidas, saudosas sempre para seu coração.
Dias depois celebrava-se na capella da casa o casamento de Jorge e de Bertha, com mais alegria do que pompa, com mais galas de sentimento do que de festa.
A baroneza e Mauricio vieram á aldeia para assistirem á solemnidade e demoraram-se ainda algumas semanas n'ella.
A boa Luiza desfazia-se em lagrimas de jubilo. Thomé da Povoa a custo podia reprimir o contentamento que lhe trasbordava do coração. Os esforços de Gabriella haviam conseguido que o contracto do casamento se redigisse de modo que o pae e o noivo, fazendo cada um de seu lado meias concessões, não ficassem humilhados por elle.
A fidalguia da provincia torceu o nariz á alliança, e absteve-se de tomar conhecimento do facto, que tambem lhe não foi participado.
Com a tacita censura d'essa parentela augmentou a irritação e despeito de D. Luiz, e impellido a reagir, deu mais um passo no terreno dos principios democraticos.
Os proprietarios, collegas de Thomé, fizeram entre si algumas reflexões a respeito da finura d'este, convencidos de que elle desde muito visára a este resultado, e prophetisando-lhe um baronato futuro. Mas nem o retrahimento da nobreza, nem as murmurações dos lavradores perturbaram a alegria das nupcias.
D. Luiz recebia ainda uma impressão desagradavel ao vêr tão perto de si Thomé e a boa Luiza; procurava porém minorar este desgosto contemplando Bertha, que exercia sobre elle uma completa fascinação. Insistia sobre tudo o fidalgo em que Bertha era uma rapariga de excepção, e que se davam n'ella as qualidades que valeram em outros tempos a tantos plebeus a honra de serem agremiados no seio da nobreza.
Frei Januario, vendo bem provida a dispensa e a cozinha da Casa Mourisca, julgou dever transigir com a nova ordem de coisas e installou-se de novo no seu quarto, decidido a respeitar, conforme com os modernos principios de diplomacia, os factos consummados.
E annos de paz preparavam-se para aquella casa.
Mauricio seguiu differente destino, em harmonia com as suas aspirações e instinctos.
Não se sentindo com tendencias para agricultor, vendeu a Jorge a parte dos bens ruraes que lhe pertencia e voltou para Lisboa com a mulher.
Decorrido pouco tempo encetava a sua carreira diplomatica, como addido á embaixada de Vienna, e sob os melhores auspicios do futuro progresso.
Gabriella não teve de arrepender-se do seu casamento. Se Mauricio não era um modelo de maridos fieis, ella tinha a precisa philosophia para desculpar-lhe as leviandades, e Mauricio intelligencia para apreciar a generosidade e delicadeza da sua mulher, e adoral-a por isso e apesar de tudo.
A vida agitada e as successivas commoções das capitaes a ambos agradaram; por isso ambos eram felizes.
O contraste entre este viver e o de Jorge era completo.
Jorge era o verdadeiro proprietario rural, repartindo os seus cuidados entre a cultura e administração dos seus bens, e os affectos e direcção de sua familia. Abandonára pouco e pouco os habitos de fidalguia, em que fôra educado, e contrahiu outros puramente burguezes.
A sua iniciativa, esclarecida pela intelligencia e mantida por uma forte energia de caracter, apontava um exemplo salutar aos proprietarios visinhos, que já se animavam a seguil-o. Graças a este exemplo, terminavam muitos prejuizos, esqueciam praticas rotineiras, que ainda hoje tolhem o progresso á nossa agricultura, aventuravam-se innovações já abonadas pela experiencia de paizes mais cultos, e a que se oppõem entre nós a ignorancia e a timidez que nasce d'ella.
A vida inteira de Jorge era uma eloquente e severa lição para os proprietarios ruraes, que, vivendo longe dos seus bens, consomem nos desperdicios da côrte as magras rendas que elles, longe da solicitude do dono, lhes concedem; deixam assim a pouco e pouco extenuar a terra e definhar-se a propriedade nas mãos de caseiros ávidos, que não tendo o futuro ligado a ella, a sacrificam ao bem do presente, que é o unico com que podem contar.
Assim aprendessem n'essa lição tantos que deveriam seguil-a, e talvez que a riqueza do paiz se desentranhasse do sólo, onde ainda está enclausurada, surgindo á luz para nos apresentar aos olhos de outras nações dignas da nossa época e do tracto de terra que occupamos na Europa.
Pela sua parte, Jorge realisando na propriedade a encorporação do capital, do trabalho e da intelligencia, e mostrando até que ponto essa alliança é fecunda, podia bem dizer que havia cumprido a lenda da Casa Mourisca. Fôra elle quem desenterrára do solo o thesouro escondido.
Thomé era o primeiro a seguir Jorge nos seus melhoramentos e reformas.
Nada mais temos a dizer.
Fechamos aqui o quadro, acrescentando apenas que a energia da Anna do Védor ainda não vergou ao pêso dos annos; que o filho d'esta mulher, o bondoso Clemente, casou com uma válida e laboriosa rapariga do campo, que promette continuar o exemplo da sogra. Emquanto aos senhores do Cruzeiro, continuam a ser cada vez mais viciosos, e a achar-se mais embaraçados em dividas e mais desprezados do povo.
Os fidalgos da Casa Mourisca são, pelo contrario, hoje respeitados, graças á energia e á honestidade do caracter de Jorge.
O nome d'esta familia é dos que fica honrado na tradição pupular.
End of Project Gutenberg's Os fidalgos da Casa Mourisca, by Júlio Dinis