The Project Gutenberg eBook of Yayá Garcia

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Title: Yayá Garcia

Author: Machado de Assis

Release date: April 5, 2022 [eBook #67780]

Language: Portuguese

Original publication: Brazil: Livraria Garnier

Credits: Laura Natal Rodrigues (Images generously made available by Hathi Trust Digital Library.)

*** START OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK YAYÁ GARCIA ***

COLLECÇÃO DOS AUTORES CELEBRES
DA
LITTERATURA BRASILEIRA


YAYÁ GARCIA


POR

MACHADO DE ASSIS


NOVA EDIÇÃO


LIVRARIA GARNIER

109, RUA DO OUVIDOR, 109—6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6
RIO DE JANEIRO—PARIS
1919




INDICE

CAPITULO I
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
CAPITULO V
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPITULO XI
CAPITULO XII
CAPITULO XIII
CAPITULO XIV
CAPITULO XV
CAPITULO XVI
CAPITULO XVII




YAYÁ GARCIA




I

Luiz Garcia transpunha a soleira da porta, para sair, quando appareceu um creado e lhe entregou esta carta:

«5 de Outubro de 1866.

«Sr. Luiz Garcia—Peço-lhe o favor de vir falar-me hoje, de uma a duas horas da tarde. Preciso de seus conselhos, e talvez de seus obsequios.—VALERIA.»

—Diga que irei. A senhora está cá no morro?

—Não, senhor, está na rua dos Invalidos.

Luiz Garcia era funccionario publico. Desde 1860 elegera no logar menos povoado de Santa Thereza uma habitação modesta, onde se metteu a si e a sua viuvez. Não era frade, mas queria como elles a solidão e o socego. A solidão não era absoluta, nem o socego ininterrompido; mas eram sempre maiores e mais certos que cá embaixo. Os frades que, na puericia da cidade, se tinham alojado nas outras collinas, desciam muita vez,—ou quando o exigia o sacro ministerio, ou quando o governo precisava da espada canonica,—e as occasiões não eram raras; mas geralmente em derredor de suas casas não ia soar a voz da labutação civil. Luiz Garcia podia dizer a mesma cousa; e, porque nenhuma vocação apostolica o incitava a abrir a outros a porta de seu refugio, podia dizer-se que fundara um convento em que elle era quasi toda a communidade, desde prior até noviço.

No momento em que começa esta narrativa, tinha Luiz Garcia quarenta e um annos. Era alto e magro, um começo de calva, barba rapada, ar circumspecto. Suas maneiras eram frias, modestas e cortezes; a physionomia um pouco triste. Um observador attento podia adivinhar por traz daquella impassibilidade apparente ou contrahida as minas de um coração desenganado. Assim era; a experiencia, que foi precoce, produzira em Luiz Garcia um estado de apathia e scepticismo, com seus laivos de desdem. O desdem não se revelava por nenhuma expressão exterior; era a ruga sardonica do coração. Por fora, havia só a mascara immovel, o gesto lento e as attitudes tranquillas. Alguns poderiam temel-o, outros detestal-o, sem que merecesse execração nem temor. Era inoffensivo por temperamento e por calculo. Como um celebre ecclesiastico, tinha para si que uma onça de paz vale mais que uma libra de victoria. Poucos lhe queriam deveras, e esses empregavam mal a affeição, que elle não retribuia com affeição egual, salvo duas excepções. Nem por isso era menos amigo de obsequiar. Luiz Garcia amava a especie e aborrecia o individuo. Quem recorria a seu prestimo, era raro que hão obtivesse favor. Obsequiava sem zelo, mas com efficacia, e tinha a particularidade de esquecer o beneficio, antes que o beneficiado o esquecesse.

A vida de Luiz Garcia era como a pessoa delle,—taciturna e retrahida. Não fazia nem recebia visitas. A casa era de poucos amigos; havia lá dentro a melancolia da solidão. Um só logar podia chamar-se alegre; eram as poucas braças de quintal que Luiz Garcia percorria e regava todas as manhãs. Erguia-se com o sol, tomava do regador, dava de beber ás flores e á hortaliça; depois recolhia-se e ia trabalhar antes do almoço, que era ás oito horas. Almoçado, descia a passo lento até á repartição, onde, se tinha algum tempo, folheava rapidamente as gazetas do dia. Trabalhava silenciosamente, com a fria serenidade do methodo. Fechado o expediente, voltava logo para casa, detendo-se raras vezes em caminho. Ao chegar a casa, já o preto Raymundo lhe havia preparado a mesa,—uma mesa de quatro a cinco palmos,—sobre a qual punha o jantar, parco em numero, mediocre na especie, mas farto e saboroso para um estomago sem aspirações nem saudades. Ia d'alli ver as plantas e reler algum tomo truncado, até que a noite caía. Então, sentava-se a trabalhar até ás nove horas, que era a hora do chá.

Não sómente o teor da vida tinha essa uniformidade, mas tambem a casa participava della. Cada movel, cada objecto,—ainda os infimos,—parecia haver-se petrificado. A cortina, que usualmente era corrida a certa hora, como que se enfadava se lhe não deixavam passar o ar e a luz, á hora costumada; abriam se as mesmas janellas e nunca outras. A regularidade era o estatuto commum. E se o homem amoldara as cousas a seu geito, não admira que amoldasse tambem o homem. Raymundo parecia feito expressamente para servir Luiz Garcia. Era um preto de cincoenta annos, estatura mediana, forte, apezar de seus largos dias, um typo de africano, submisso e dedicado. Era escravo e livre. Quando Luiz Garcia o herdou de seu pae,—não avultou mais o espolio,—deu-lhe logo carta de liberdade. Raymundo, nove annos mais velho que o senhor, carregara-o ao collo, e amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre, pareceu-lhe que era um modo de o expellir de casa, e sentiu um impulso atrevido e generoso. Fez um gesto para rasgar a carta de alforria, mas arrependeu-se a tempo. Luiz Garcia viu só a generosidade, não o atrevimento; palpou o affecto do escravo, sentiu-lhe o coração todo. Entre um e outro houve um pacto que para sempre os uniu.

—És livre, disse Luiz Garcia; viverás commigo até quando quizeres.

Raymundo foi dalli em diante um como espirito externo de seu senhor; pensava por este e reflectia-lhe o pensamento interior, em todas as suas acções, não menos silenciosas que pontuaes. Luiz Garcia não dava ordem nenhuma; tinha tudo á hora e no logar competente. Raymundo, posto fosse o unico servidor da casa, sobrava-lhe tempo, á tarde, para conversar com o antigo senhor, no jardinete, emquanto a noite vinha caindo. Alli falavam de seu pequeno mundo, das raras occurrencias domesticas, do tempo que devia fazer no dia seguinte, de uma ou outra circumstancia exterior. Quando a noite caía de todo, e a cidade abria os seus olhos de gaz, recolhiam-se elles a casa, a passo lento, á ilharga um do outro.

—Raymundo hoje vae tocar, não é? dizia ás vezes o preto.

—Quando quizeres, meu velho.

Raymundo accendia as velas, ia buscar a marimba, caminhava para o jardim, onde se sentava a tocar e a cantarolar baixinho umas vozes de Africa, memorias desmaiadas da tribu em que nascera. O canto do preto não era de saudade; nenhuma de suas cantilenas vinha afinada na clave pezarosa. Alegres eram, guerreiras, enthusiastas; por fim calava-se. O pensamento, em vez de volver ao berço africano, galgava a janella da sala em que Luiz Garcia trabalhava e pousava sobre elle como um feitiço protector. Quaesquer que fossem as differenças civis e naturaes entre os dous, as relações domesticas os tinham feito amigos.

Entretanto, das duas affeições de Luiz Garcia, Raymundo era apenas a segunda; a primeira era uma filha.

Se o jardim era a parte mais alegre da casa, o domingo era o dia mais festivo da semana. No sabbado, á tarde, acabado o jantar, descia Raymundo até á rua dos Arcos, a buscar a sinhá-moça, que estava sendo educada em um collegio. Luiz Garcia esperava por elles, sentado á porta ou encostado á janella, quando não era escondido em algum recanto da casa para fazer rir a pequena. Se a menina o não via á janella ou á porta, percebia que se escondera e corria a casa, onde não era difficil dar com elle, porque os recantos eram poucos. Então caíam nos braços um do outro. Luiz Garcia pegava della e sentava-a nos joelhos. Depois, beijava-a, tirava-lhe o chapellinho, que cobria os cabellos acastanhados e lhe tapava parte da testa rosada e fina; beijava-a outra vez, mas então nos cabellos e nos olhos,—os olhos, que eram claros e filtravam uma luz insinuante e curiosa.

Contava onze annos e chamava-se Lina. O nome domestico era Yayá. No collegio, como as outras meninas lhe chamassem assim, e houvesse mais de uma com egual nome, accrescentavam-lhe o appellido de familia. Esta era Yayá Garcia. Era alta, delgada, travessa; possuia os movimentos subitos e incoherentes da andorinha. A boca desabrochava facilmente em riso,—um riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam as ironias de outra edade. Longos e muitos eram os beijos trocados com o pae. Luiz Garcia punha-a no chão, tornava a subil-a aos joelhos, até que consentia finalmente em separar-se della por alguns instantes. Yayá ia ter com o preto.

—Raymundo, o que é que você me guardou?

—Guardei uma cousa, respondia elle sorrindo. Yayá não é capaz de adivinhar o que é.

—É uma fructa.

—Não é.

—Um passarinho?

—Não adivinhou.

—Um doce?

—Que doce é?

—Não sei; dá cá o doce.

Raymundo negaceava ainda um pouco; mas afinal entregava a lembrança guardada. Era ás vezes um confeito, outras uma fructa, um insecto exquisito, um molho de flores. Yayá festejava a lembrança do escravo, dando saltos de alegria e de agradecimento. Raymundo olhava para ella, bebendo a felicidade que se lhe entornava dos olhos, como um jôrro de agua pura. Quando o presente era uma fructa ou um doce, a menina trincava-o logo, a olhar e a rir para o preto, a gesticular, e a interromper-se de quando em quando:

—Muito bom! Raymundo é amigo de Yayá... Viva Raymundo!

E seguia d'alli a mudar de roupa, e a visitar o resto da casa e o jardim. No jardim achava o pae já sentado no banco do costume, com uma das pernas sobre a outra, e as mãos cruzadas sobre o joelho. Ia ter com elle, sentava-se, erguia-se, colhia uma flor, corria atraz dos insectos. De noite, não havia trabalho para Luiz Garcia; a noite, como o dia seguinte, era toda consagrada á creança. Yayá referia ao pae as anedoctas do collegio, as puerilidades que não valem mais nem menos que outras da edade madura, as intriguinhas de nada, as pirraças de cousa nenhuma. Luiz Garcia escutava-a com egual attenção á que prestaria a uma grande narrativa historica. Seu magro rosto austero perdia a frieza e a indifferença; inclinado sobre a mesa, com os braços estendidos, as mãos da filha nas suas, considerava-se o mais venturoso dos homens. A narrativa da pequena era como costumam ser as da edade infantil: desegual e truncada, mas cheia de um colorido seu. Elle ouvia-a sem interromper; corrigia, sim, algum erro de prosodia ou alguma reflexão menos justa; fóra disso, ouvia sómente.

Pouco depois da madrugada todos tres estavam de pé. O sol de Santa Thereza era o mesmo da rua dos Arcos; Yayá, porém, achava-lhe alguma cousa mais ou melhor, quando o via entrar pela alcova dentro, atravez das persianas. Ia á janella que dava para uma parte do jardim. Via o pae bebendo a chicara de café, que aos domingos precedia o almoço. Ás vezes ia ter com elle; outras vezes elle caminhava para a janella, e, com o peitoril de permeio, trocavam os osculos da saudação. Durante o dia, Yayá derramava pela casa todas as sobras de vida, que tinha em si. O rosto de Luiz Garcia accendia-se de um reflexo de juventude, que lhe dissipava as sombras accumuladas pelo tempo. Raymundo vivia da alegria dos dous. Era domingo para todos tres, e tanto o senhor como o antigo escravo não ficavam menos collegiaes que a menina.

—Raymundo, dizia esta, você gosta de santo de comer?

Raymundo empertigava o corpo, abria um riso, e dando aos quadris e ao tronco o movimento de suas danças africanas, respondia cantarolando:

—Bonito santo! santo gostoso!

—E santo de trabalhar?

Raymundo, que já esperava o reverso, estacava subitamente, punha a cabeça entre as mãos, e affastava-se murmurando com terror:

—Eh... eh... não fala nesse santo, Yayá! não fala nesse santo!

—E santo de comer?

—Bonito santo! santo gostoso!

E o preto repetia o primeiro jogo, depois o segundo, até que Yayá, aborrecida, passava a outra cousa.

Não havia só recreio. Uma parte minima do dia,—pouco mais de uma hora,—era consagrada ao exame do que Yayá aprendera no collegio, durante os dias anteriores. Luiz Garcia interrogava-a, fazia-a ler, contar e desenhar alguma cousa. A docilidade da menina encantava a alma do pae. Nenhum receio, nenhuma hesitação; respondia, lia ou desenhava, conforme lhe era mandado ou pedido.

—Papae quer ouvir tocar piano? disse ella um dia; olhe, é assim.

E com os dedos na borda da mesa, executava um trecho musical, sobre teclas ausentes. Luiz Garcia sorriu, mas um veu lhe empanou os olhos. Yayá não tinha piano! Era preciso dar-lhe um, ainda com sacrificio. Se ella aprendia no collegio, não era para tocar mais tarde em casa? Este pensamento enraizou-se-lhe no cerebro e turbou o resto do dia. No dia seguinte, Luiz Garcia encheu-se de valor, pegou da caderneta da Caixa Economica e foi retirar o dinheiro preciso para comprar um piano. Eram da filha as poucas economias que ajuntava; o piano era para ella egualmente; não lhe diminuia a herança.

Quando no seguinte sabbado, Yayá viu o piano, que o pae lhe foi mostrar, sua alegria foi intensa, mas curta. O pae abrira-o, ella accordou as notas adormecidas no vasto movel, com suas mãosinhas ainda incertas e debeis. A um dos lados do instrumento, com os olhos nella, Luiz Garcia pagava-se do sacrificio, contemplando a satisfação da filha. Curta foi ella. Entre duas notas, Yayá parou, olhou para o pae, para o piano, para os outros moveis; depois descaiu-lhe o rosto, disse que tinha uma vertigem. Luiz Garcia ficou assustado, pegou della, chamou Raymundo; a creança affirmou que estava melhor, e finalmente que a vertigem passara de todo. Luiz Garcia respirou; os olhos de Yayá não ficaram mais alegres, nem ella foi tão travessa como costumava ser.

A causa da mudança, desconhecida para Luiz Garcia, era a penetração que madrugava no espirito da menina. Lembrara-se ella, repentinamente, das palavras que proferira e do gesto que fizera, no domingo anterior; por ellas explicou a existencia do piano; comparou-o, tão novo e lustroso, com os outros moveis da casa, modestos, usados, encardida a palhinha das cadeiras, roido do tempo e dos pés um velho tapete, contemporaneo do sophá. Dessa comparação extrahiu a ideia do sacrificio que o pae devia ter feito para condescender com ella; ideia que a poz triste, ainda que não por muito tempo, como succede ás tristezas pueris. A penetração madrugava, mas a dor moral fazia tambem irrupção naquella alma até agora isenta da jurisdicção da fortuna.

Passou! Bem depressa os sons do piano vieram casar-se ao gorgeio de Yayá e ao riso do escravo e do senhor. Era mais uma festa aos domingos. Yayá confiou um dia ao pae a ideia que tinha de ser mestra de piano. Luiz Garcia sorria a esses planos da meninice, tão frageis e fugidios como suas impressões. Tambem elle os tivera aos dez annos. Que lhe ficara dessas primeiras ambições? Um residuo e nada mais. Mas assim como as aspirações daquelle tempo o fizeram feliz, era justo não dissuadir a filha de uma ambição, aliás innocente e modesta. Oxalá não viesse a ter outras de mais alto vôo! Demais, que lhe poderia elle desejar, senão aquillo que a tornasse independente e lhe désse os meios de viver sem favor? Yayá tinha por si a belleza e a instrucção; podia não ser bastante para lhe dar casamento e familia. Uma profissão honesta aparava os golpes possiveis da adversidade. Não se podia dizer que Yayá tivesse talento musical: que importa? Para ensinar a grammatica da arte, era sufficiente conhecel-a.

Resta dizer que havia ainda uma terceira affeição de Yayá; era Maria das Dores, a ama que a havia creado, uma pobre catharinense, para quem só havia duas devoções capazes de levar uma alma ao ceu: Nossa Senhora e a filha de Luiz Garcia. Ia ella de quando em quando á casa deste, nos dias em que era certo encontrar lá a menina, e ia de S. Christovão, onde morava. Não descançou em quanto não alugou um casebre em Santa Thereza, para ficar mais perto da filha de creação. Um irmão, antigo forriel, que fizera a campanha contra Rosas, era seu companheiro de trabalho.

Tal era a vida uniforme e placida de Luiz Garcia. Nenhuma ambição, cobiça ou peleja vinha toldar-lhe a serenidade da alma. A ultima dor séria que tivera foi a morte da esposa, occorrida em 1859, mezes antes de ir-se elle esconder em Santa Thereza. O tempo, esse chimico invisivel, que dissolve, compõe, extrahe e transforma todas as substancias moraes, acabou por matar no coração do viuvo, não a lembrança da mulher, mas a dor de a haver perdido. Importa dizer que as lagrimas derramadas nessa occasião honraram a esposa morta, por serem conquista sua. Luiz Garcia não casára por amor nem interesse; casara porque era amado. Foi um movimento generoso. A mulher não era de sua mesma indole; seus espiritos vinham de pontos differentes do horizonte. Mas a dedicação e o amor da esposa abriram nelle a fonte da estima. Quando ella morreu, viu Luiz Garcia que perdera um coração desinteressado e puro; consolou-o a esperança de que a filha havia herdado uma parcella delle.

Assim vivia esse homem sceptico, austero e bom, alheio ás cousas extranhas, quando a carta de 5 de Outubro de 1866 veiu chamal-o ao drama que este livro pretende narrar.




II

A hora aprazada era incommoda para Luiz Garcia, cujos habitos de trabalho mal soffriam interrupção. Não obstante, foi á rua dos Invalidos.

Valeria Gomes era viuva de um desembargador honorario, fallecido cêrca de dous annos antes, a quem o pae de Luiz Garcia devera alguns obsequios e a quem este prestara outros. Não havia entre ella e Luiz Garcia relações assiduas ou estreitas; mas a viuva e seu finado marido sempre o tiveram em boa conta e o tratavam com muito carinho. Defunto o desembargador, Valeria recorrera duas ou tres vezes aos serviços de Luiz Garcia; com tudo, era a primeira vez que o fazia com tamanha solemnidade.

Valeria recebeu-o affectuosamente, estendendo-lhe a mão, ainda fresca, apezar dos annos, que subiam de quarenta e oito. Era alta e robusta. A cabeça, forte e levantada, parecia protestar pela altivez da attitude contra a molleza e tristura dos olhos. Estes eram negros, a sobrancelha basta, o cabello abundante, listrado de alguns fios de prata. Posto não andasse alegre nos ultimos tempos, estava naquelle dia singularmente preoccupada. Logo que entraram na sala, deixou-se cair n'uma poltrona; caiu e ficou silenciosa alguns instantes. Luiz Garcia sentou-se tranquillamente na cadeira que ella lhe designou.

—Sr. Luiz Garcia, disse a viuva; esta guerra do Paraguay é longa, e ninguem sabe quando acabará. Vieram noticias hoje?

—Não me consta.

—As de hontem não me animaram nada, continuou a viuva depois de um instante. Não creio na paz que o Lopez veiu propor. Tenho medo que isto acabe mal.

—Póde ser, mas não dependendo de nós...

—Porque não? Eu creio que é chegado o momento de fazerem todas as mães um grande esforço e darem exemplos de valor, que não serão perdidos. Pela minha parte trabalho com o meu Jorge para que vá alistar-se como voluntario; podemos arranjar-lhe um posto de alferes ou tenente; voltará major ou coronel. Elle, entretanto, resiste até hoje; não é falta de coragem nem de patriotismo; sei que tem sentimentos generosos. Comtudo, resiste...

—Que razão dá elle?

—Diz que não quer separar-se de mim.

—A razão é boa.

—Sim, porque tambem a mim custaria a separação. Mas não se trata do que eu ou elle podemos sentir: trata-se de cousa mais grave,—da patria, que está acima de nós.

Valeria proferiu estas palavras com certa animação, que a Luiz Garcia pareceu mais simulada que sincera. Não acreditou no motivo publico. O interesse que a viuva mostrava agora em relação á sorte da campanha era totalmente novo para elle. Excluido o motivo publico, algum haveria que ella não quizera ou não podia revellar. Justificaria elle semelhante resolução? Não se atreveu a formular a suspeita e a duvida; limitou-se a dissuadil-a, dizendo que um homem de mais ou de menos não pesaria nada na balança do destino, e desde que ao filho repugnava a separação era mais prudente não insistir. Valeria redarguia a todas essas reflexões com algumas ideias geraes acerca da necessidade de dar fortes exemplos ás mães. Quando foi preciso variar de resposta, declarou que entrava no projecto um pouco de interesse pessoal.

—Jorge está formado, disse ella; mas não tem quéda para a profissão de advogado nem para a de juiz. Goza por em quanto a vida; mas os dias passam, e a ociosidade faz-se natureza com o tempo. Eu quizera dar-lhe um nome illustre. Se fôr para a guerra, poderá voltar coronel, tomar gôsto ás armas, seguil-as e honrar assim o nome de seu pae.

—Bem; mas vejamos outra consideração. Se elle morrer?

Valeria empallideceu e esteve alguns minutos calada, emquanto Luiz Garcia olhava para ella, a ver se lhe adivinhava o trabalho interior da reflexão, esquecendo que a ideia de um desastre possivel devia ter-lhe accudido, desde muito, e se não recuara deante della, é porque a resolução era inabalavel.

—Pensei na morte, disse Valeria dahi a pouco; e, na verdade, antes a obscuridade de meu filho que um desastre... mas repelli essa ideia. A consideração superior de que lhe falei deve vencer qualquer outra.

Em seguida, como para impedir que elle insistisse nas reflexões apresentadas antes, disse-lhe claramente que, deante da recusa de Jorge, contava com o influxo de seus conselhos.

—O senhor é nosso amigo, explicou ella; seu pae tambem foi nosso amigo. Sabe que um e outro sempre nos mereceram muita consideração. Em todo caso, não quizera recorrer a outra pessoa.

Luiz Garcia não respondeu logo; não tinha animo de acceitar a incumbencia e não queria abertamente recusar; procurava um meio de esquivar-se á resposta. Valeria insistiu por modo que era impossivel calar mais tempo.

—O que me pede é muito grave, disse elle; se o Dr. Jorge der algum peso a meus conselhos e seguir para a guerra, assumo uma porção de responsabilidade, que não só me ha-de gravar a consciencia, como influirá para alterar nossas relações e diminuir talvez a amizade benevola que sempre achei nesta casa. O obsequio que hoje exige de mim, quem sabe se m'o não lançará em rosto um dia como acto de leviandade?

—Nunca.

—Nesse dia, observou Luiz Garcia sorrindo levemente, ha-de ser tão sincera como hoje.

—Oh! o senhor está com ideias negras! Eu não creio na morte; creio só na vida e na gloria. A guerra começou ha pouco e ha já tanto heroe! Meu filho será um delles.

—Não creio em presentimentos.

—Recusa?

—Não me atrevo a acceitar.

Valeria ficou abatida com a resposta. Após alguns minutos de silencio, ergueu-se e foi buscar o lenço que deixara sobre um movel, ao entrar na sala. Enxugou o rosto, e ficou a olhar para o chão, com um dos braços cahidos, em attitude meditativa. Luiz Garcia começou a reflectir no modo de a dissuadir efficazmente. Seu scepticismo não o fazia duro aos males alheios, e Valeria parecia padecer naquelle instante, qualquer que fosse a sinceridade de suas declarações. Elle quizera achar um meio de conciliar os desejos da viuva com a sua propria neutralidade,—o que era puramente difficil.

—Seu filho não é creança, disse elle; está com vinte e quatro annos; pode decidir por si, e naturalmente não me dirá outra cousa... Demais, é duvidoso que se deixe levar por minhas suggestões, depois de resistir aos desejos de sua mãe.

—Elle respeita-o muito.

Respeitar não era o verbo pertinente; attender fora mais cabido, porque exprimia a verdadeira natureza das relações entre um e outro. Mas a viuva lançava mão de todos os recursos para obter de Luiz Garcia que a ajudasse em persuadir o filho. Como elle lhe dissesse ainda uma vez que não podia acceitar a incumbencia, viu-a morder o labio e fazer um gesto de despeito. Luiz Garcia adoptou então um meio termo:

—Prometto-lhe uma cousa, disse elle; irei sondal-o, discutir com elle os prós e os contras do seu projecto, e se o achar mais inclinado...

Valeria abanou a cabeça.

—Não faça isso; desde já lhe digo que será tempo perdido. Jorge ha-de repetir-lhe as mesmas razões que me deu, e o senhor as acceitará naturalmente. Se alguma cousa lhe mereço, se não morreu em seu coração a amizade que o ligou a nossa familia, peço-lhe que me ajude francamente neste empenho, com a autoridade de sua pessoa. Entre nisto, como eu mesma, disposto a vencel-o e convencel-o. Faz-me este obsequio?

Luiz Garcia reflectiu um instante.

—Faço, disse elle frouxamente.

Valeria mostrou-se reanimada com a resposta; disse-lhe que fosse lá jantar naquelle mesmo dia ou no outro. Elle recusou duas vezes; mas não pode resistir ás instancias da viuva, e prometteu ir no dia seguinte. A promessa era um meio, não só de pôr termo á insistencia da viuva, mas tambem de encaminhar-se a saber qual era a mola secreta da acção daquella senhora. A honra nacional era certamente o colorido nobre e augusto de algum pensamento reservado e menos collectivo. Luiz Garcia abriu velas á reflexão e conjecturou muito. Afinal não duvidava do empenho patriotico de Valeria, mas perguntava a si mesmo se ella quereria colher da acção que ia praticar alguma vantagem especialmente sua.

—O coração humano é a região do inesperado, dizia comsigo o sceptico subindo as escadas da repartição.

Na repartição soube da chegada de tristes noticias do Paraguay. Os alliados tinham atacado Curupaity e recuado com grandes perdas: o inimigo parecia mais forte do que nunca. Suppunha-se até que as propostas de paz não tinham sido mais do que um engodo para fortalecer a defesa. Assim, a sorte das armas vinha reforçar os argumentos de Valeria. Luiz Garcia adivinhou tudo o que ella lhe diria no dia seguinte.

No dia seguinte foi elle jantar á rua dos Invalidos. Achou a viuva menos consternada do que deveria estar, á vista das noticias da vespera, se por ventura os successos da guerra a preoccupassem tanto como dizia. Pareceu-lhe até mais serena. Ella ia e vinha com um ar satisfeito e resoluto. Tinha um sorriso para cada cousa que ouvia, um carinho, uma familiaridade, uma intenção de agradar e seduzir, que Luiz Garcia estudava com os olhos agudos da suspeita.

Jorge, pelo contrario, mostrava-se retrahido e mudo. Luiz Garcia, á mesa do jantar, examinava-lhe a furto a expressão dos olhos tristes e a ruga desenhada entre as sobrancelhas, gesto que indicava nelle o despeito e a irritação. Na verdade, era duro enviar para a guerra um dos mais bellos ornamentos da paz. Naquelles olhos não morava habitualmente a tristeza; elles eram, de costume, brandos e pacificos. Um bigode negro e basto, obra commum da natureza e do cabelleireiro, cobria-lhe o labio e dava ao rosto a expressão viril que este não tinha. A estatura esbelta e nobre era a unica feição que absolutamente podia ser militar. Elegante, occupava Jorge um dos primeiros logares entre os dandies da rua do Ouvidor; alli podia ter nascido, alli poderia talvez morrer.

Valeria acertava quando dizia não achar no filho nenhum amor á profissão de advogado. Jorge sabia muita cousa do que aprendera; tinha intelligencia prompta, rapida comprehensão e memoria vivissima. Não era profundo; abrangia mais do que penetrava. Sobretudo, era uma intelligencia theorica; para elle, o praxista representava o barbaro. Possuindo muitos bens, que lhe davam para viver á farta, empregava uma particula do tempo em advogar o menos que podia—apenas o bastante para ter o nome no portal do escriptorio e no almanack de Laemmert. Nenhuma experiencia contrastava nelle os impetos da juventude e os arroubos da imaginação. A imaginação era o seu lado fraco, por que não a tinha creadora e limpida, mas vaga, tumultuosa e esteril. Era generoso e bom, mas padecia um pouco de fatuidade, que lhe diminuia a bondade nativa. Havia alli a massa de um homem futuro, á espera que os annos, cuja acção é lenta, opportuna e inevitavel, lhe dessem fixidez ao caracter e virilidade á razão.

Não foi alegre nem animado o jantar. Falaram a principio de cousas indifferentes; depois Valeria fez recahir a conversação nas ultimas noticias do Paraguay. Luiz Garcia declarou que lhe não pareciam tão más, como diziam as gazetas, sem comtudo negar que se tratava de um serio revez.

—É guerra para seis mezes, concluiu elle.

—Só?

Esta pergunta foi a primeira palavra de Jorge, que até então não fizera mais do que ouvir e comer. Valeria tomou a outra ponta do dialogo, e confirmou a opinião de Luiz Garcia. Mas o filho continuou a não intervir. Acabado o jantar, Valeria ergueu-se; Luiz Garcia fez o mesmo; a viuva, pousando-lhe a mão no hombro, disse em tom familiar e intencional:

—Sem ceremonia; eu volto já.

Uma vez sós os dous homens, Luiz Garcia achou de bom aviso ir de ponto em branco ao assumpto que alli os reuníra.

—Não tem vontade de ir tambem ao Paraguay? perguntou elle logo que Valeria desappareceu no corredor.

—Nenhuma. Comtudo, acabarei por ahi.

—Sim?

—Mamãe não deseja outra cousa, e o senhor mesmo sei que é dessa opinião.

Uma resposta negativa roçou os labios de Luiz Garcia; a tempo a reprimiu, confirmando com o silencio a pia fraude de Valeria. Tinha nas mãos o meio de inutilisar o effeito do equivoco: era mostrar-se indifferente. Jorge distraía-se em equilibrar um palito na borda de um calix; o interlocutor, depois de olhar para elle, rompeu emfim a larga pausa:

—Mas porque motivo cede hoje, depois de recusar tanto tempo?

Jorge ergueu os olhos, fez-lhe um signal e foram para o terraço.

—O senhor é amigo velho de nossa casa, disse elle; posso confiar-lhe tudo. Mamãe quer mandar-me para a guerra, porque não póde impedir os movimentos do meu coração.

—Algum namoro, concluiu friamente Luiz Garcia.

—Uma paixão.

—Está certo do que diz?

—Estou.

—Não creio, tornou Luiz Garcia depois de um instante.

—Porque não? Ella conta com a distancia e o tempo, para matar um amor que suppõe não haver creado raizes profundas.

Luiz Garcia dera alguns passos, acompanhado pelo filho de Valeria; parou um instante, depois continuaram ambos a passear de um para outro lado. O primeiro reflectia na explicação, que lhe pareceu verosimil, se o amor do rapaz era indigno de seu nome. Essa pergunta não se animou a fazel-a; mas procurou uma vereda tortuosa para ir dar com ella.

—Uma viagem á Europa, observou Luiz Garcia depois de curto silencio, produziria o mesmo resultado, sem outro risco mais que...

—Recusei a viagem; foi então que ella pensou na guerra.

—Mas se ella quizesse ir á Europa, o senhor recusaria acompanhal-a?

—Não; mas mamãe detesta o mar; não viajaria nunca. É possivel que, se eu resistisse até á ultima, em relação á guerra, ella vencesse a repugnancia ao mar e iriamos os dous...

—E porque não resistiu?

—Primeiramente, porque estava cançado de recusar. Ha mez e meio que dura esta luta entre nós. Hoje, á vista das noticias do sul, falou-me com tal instancia que cedi de uma vez. A segunda razão foi um sentimento mau—mas justificavel. Escolho a guerra, afim de que se alguma cousa me acontecer, ella sinta o remorso de me haver perdido.

Luiz Garcia parou e encarou silenciosamente o mancebo.

—Sei o que quer dizer esse olhar, continuou este; acha-me feroz, e eu sou apenas natural. O sentimento mau teve só um minuto de duração. Passou. Ficou-me uma sombra de remorso. Não accuso mamãe; sei as lagrimas que lhe vae custar a separação...

—Ainda é tempo de recuar.

—O que está feito, está feito, disse Jorge erguendo os hombros.

—Sabe que mais? Acho mau gosto dar a este negocio um desenlace epico. Que tem que fazer nisto a guerra do Paraguay? Vou suggerir-lhe um meio de arranjaras cousas. Ceda metade sómente; vá á Europa sósinho, volte no fim de dous ou tres annos...

Jorge sorriu desdenhosamente.

—Seu conselho mostra a differença de nossas edades, disse elle. Se eu fosse para a Europa, que sacrificio faria á pessoa a quem amo? Pelo contrario, a sacrificada era ella. Eu ia divertir-me, passear, ver cousas novas, talvez achar novos amores. Indo á guerra, é differente; sacrifico o repouso e arrisco a vida; é alguma cousa. Separados, embora, não me negará sua estima...

—Sua estima? disse Luiz Garcia admirado.

Não continuou; mas Jorge comprehendeu, por aquella só palavra, a que classe de mulheres elle suppunha pertencer a eleita de seu coração. Fez um gesto; não se animou a dizer nada. Arrependeu-se talvez de haver dito tanto. Sem ousar recommendar-lhe silencio, começou a insinual-o delicadamente; tactica escusada, porque Luiz Garcia não era homem de revelar o que se lhe confiava; e perigosa, porque fazia crescer as proporções do mysterio. Luiz Garcia sorriu interiormente ao sentir a arte cautelosa de Jorge; e quando ella lhe pareceu enfadonha:

—Descance, disse elle; não receie que eu vá publicar seus amores. Repito-lhe o conselho: não se atire de cabeça para baixo n'uma aventura sem fundo. Ir para a guerra é muito nobre, mas hade ser levado de outros sentimentos. Um desaccordo por motivo de namoro, não é o Porto Alegre nem o Polydoro, é um padre que lhe deve pôr termo.

Jorge sorriu com ar affavel, e despediu-se de Luiz Garcia; foi dalli vestir-se para ir ao theatro. Luiz Garcia estava mais do que nunca resoluto a deixar que os acontecimentos tivessem livre curso, sem nenhuma intervenção sua. Logo que Jorge saiu, dispoz-se a fazer o mesmo, despedindo-se de Valeria. Esta acompanhou-o ate á porta da sala.

—Não me diz nada? perguntou ella quando o viu prestes a transpor a porta.

—Que lhe hei-de dizer?

—Falou a meu filho?

—Falei.

—Achou-o disposto?

—Não digo que não.

—Mas de má vontade?

—Não digo que sim.

Valeria sorriu com uma ponta de despeito.

—Vejo que este assumpto o aborrece.

Luiz Garcia disse que não. Valeria encostou-se ao portal.

—Ninguem! exclamou ella. Não tenho ninguem a meu lado. Só; ficarei só.

—Sejamos francos, disse Luiz Garcia; seu filho cede, mas cede violentado, e não vejo que se possa fazer delle um heroe. Que motivo tão forte a obriga a exigir desse moço um sacrificio superior a suas posses?

Valeria não respondeu.

—Sei o motivo, disse elle d'ahi a um instante.

—Sabe?

—Suspeito; e se me permitte ser franco, direi que o acho singular, pelo menos não ha proporções entre a causa e o effeito. Seu filho ama. Trata-se de uma mulher de certa especie? São correrias da mocidade, e as delle não são taes que façam escandalo, creio eu. Trata-se de alguma moça, cuja alliança lhe não pareça acceitavel? Nada lhe direi a tal respeito; mas reflicta primeiro antes de o mandar ao Paraguay.

Valeria prendeu a mão direita de Luiz Garcia entre as suas; reflectiu longo tempo; depois disse com voz sumida:

Supponha... que se trata... de uma senhora casada?

Luiz Garcia curvou a cabeça com um gesto de assentimento. Como seus olhos baixassem ao chão não pode ver no rosto da viuva uma ligeira cor que avermelhou e desappareceu. Se lh'a visse, se a fitasse imperiosamente, talvez a viuva baixasse os olhos envergonhada de haver mentido. Luiz Garcia não viu nada. Calou-se, approvou a viuva, e prometteu auxilial-a.

Era noite quando Luiz Garcia saiu da casa de Valeria. Ia aborrecido de tudo, da mãe e do filho,—de suas relações naquella casa, das circumstancias em que se via posto. Galgando a ladeira a pé, detendo-se de quando em quando a olhar para baixo, ia como apprehensivo do futuro, supersticioso, tomado de temores intermittentes e inexplicaveis. Não tardou a apparecer-lhe a luz da casa, e, dahi a pouco, a ouvir a cantilena solitaria do escravo e as notas rudimentaes da marimba. Eram as vozes da paz; elle apertou o passo e refugiou-se na solidão.




III

Luiz Garcia pouco trabalho teve no animo de Jorge. A resolução deste, uma vez declarada, não recuou mais. Não desconhecia o moço que a empreza a que mettia hombros era crespa de difficuldades. A guerra, sobretudo depois do desastre de Curupaity, promettia durar muito; não havia desanimo, e o governo era auxiliado efficazmente pela população. Jorge obteve uma patente de capitão de voluntarios.

Vinte dias depois da conversa no terraço da rua dos Invalidos, apresentou-se Jorge em Santa Theresa, fardado e prompto, de tal modo porém que era ainda difficil separar o casquilho do militar. A mesma tesoura que lhe cortava os fraques, talhara a farda de capitão. Trazia á cintura uma banda vermelha, cujas pontas caíam graciosamente ao lado. Calçava um botim reluzente, sobre o qual assentava a calça de fino panno. Inclinado levemente á direita, o boné não lhe desconcertava o cabello, penteado ao estylo de todos os dias; o bigode tinha as mesmas guias longas, agudas e lustrosas.

Luiz Garcia não pode furtar-se a um sentimento de pena, ao vel-o entrar fardado e prestes a seguir para o sul. Pareceu-lhe descobrir por traz delle o perfil da morte, com o eterno sorriso sem labios. Mas esse sentimento de commiseração passou; lembrou-lhe logo a ultima palavra da viuva, e não pode deixar de condemnal-o. Viu até, com certa repulsa, esse coração de vinte e quatro annos, que ia arriscar a vida propria, e talvez a de sua mãe, para não rejeitar um sentimento mau.

—Estou a seu gosto? perguntou Jorge com um ar de benevola ironia.

—Ha de estar melhor no fim da guerra, Sr. general, respondeu o outro.

—General? Pode ser.

Dizendo isto, Jorge entrou a falar de suas esperanças e futuros. A imaginação começava a dissipar a melancolia. Elle via já naquillo uma aventura romanesca e mysteriosa; sentia-se uma resurreição de cavalleiro medievo, saindo a combater por amor de sua dama, castellã opulenta e formosa que o esperaria na varanda gothica, com a alma nos olhos e os olhos na ponte levadiça. A ideia da morte ou da mutilação não vinha agitar-lhe ao rosto suas azas pallidas e sangrentas. O que elle tinha deante de si eram os campos infinitos da esperança. Comtudo, o momento era grave, e difficilmente podia o espirito esquivar-se á reflexão intermittente. Além disso, Jorge subira a Santa Theresa com a resolução de contar tudo a Luiz Garcia, afim de deixar um confidente austero e unico de seus amores; mas a palavra não se atrevia a sair do coração. Ou a edade do outro ou a indole de suas relações tolhia essa confidencia intima; ainda mais do que uma e outra razão, havia naquelle momento o gesto singularmente preoccupado e duro de Luiz Garcia. Jorge deu de mão ao projecto.

—Dê-me o abraço de despedida, disse elle; embarco amanhã.

—Já amanhã!

—Vim despedir-me do senhor.

Luiz Garcia considerou-o silenciosamente durante dous ou tres minutos; depois apertou-lhe as mãos.

—Vá, disse; trabalhe pela terra; não se poupe a trabalhos, nem se exponha sem utilidade; em todo o caso, obedeça á disciplina, e não se esqueça um só dia de sua mãe.

Jorge saiu e desceu a passo largo e trémulo na direcção da rua de D. Luiza. A meio caminho parou, como se quizesse tomar outra direcção; ergueu os hombros e proseguiu. Ia mergulhado em si mesmo, e só deu accordo ao parar deante de uma casa daquella rua.

Antes de lá entrar, vejamos quem eram os moradores.

O defunto marido de Valeria, no tempo em que advogava, tinha um escrevente, que, mais ainda do que escrevente, era seu homem de confiança; Chamava-se o Sr. Antunes. Foram serviços de certa ordem que os ligaram mais intimamente. A fortuna troca ás vezes os calculos da natureza; uma e outra iam de accordo na pessoa daquelle homem, nado e creado para as funcções subalternas. Familiar com todas as formas da adulação, o Sr. Antunes ia do elogio hyperbolico até o silencio opportuno. Tornou-se dentro de pouco, não só um escrevente laborioso e pontual, mas tambem, e sobretudo, um fac-totum do desembargador, seu braço direito, desde os recados eleitoraes até ás compras domesticas, vasta escala em que entrava o papel de confidente das entreprezas amorosas. Assim que, nunca lhe fez mingua a protecção do desembargador. Viu crescer-lhe o ordenado, multiplicarem-se-lhe as gratificações; foi admittido a comer algumas vezes em casa, nos dias communs, quando não havia visitas de ceremonia. Nas occasiões mais solemnes era elle o primeiro que se esquivava. Ao cabo de tres annos de convivencia tinha consolidado a situação.

Justamente nesse tempo succedeu morrer-lhe a mulher, de quem lhe ficou uma filha de dez annos, menina interessante, que algumas vezes visitara a casa do desembargador. Este fez o enterro da mãe e pagou o luto da filha e do pae. O Sr. Antunes, que não era de extremas philosophias, tinha a convicção de que debaixo do sol, nem tudo são vaidades, como quer o Ecclesiastes, nem tudo perfeições, como opina o doutor Pangloss; entendia que ha larga ponderação de males e bens, e que a arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal. Morta a mulher, alcançou do desembargador um enxoval completo para fazer entrar a filha n'um collegio, visto que até então nada aprendera, e já agora não podia deixal-a sósinha em casa. O desembargador dera o enxoval; algumas vezes pagou o ensino; as visitas amiudaram-se; a creança, que era bonita e boa, entrou manso e manso no coração de Valeria que a recebeu em casa, no dia em que a pequena concluiu os estudos.

Estella—era o seu nome,—tinha então dezeseis annos. Pouco antes fallecera o desembargador. O Sr. Antunes recebeu dous golpes em vez de um: o de o ver morrer, e o de o não ver testar. As aneurismas têm dessas perfidias inopinaveis. Afim de emendar a mão á fortuna, o pae de Estella concentrou na viuva a attenção que até então repartira entre ella e o marido; facto que aliás decorria da propria obrigação moral em que se achava para com a familia do desembargador. Estella devia a essa familia educação e carinho; podia talvez vir a dever-lhe um dote, um marido e consideração. Quem sabe? Talvez o coração de Jorge vinculasse as duas familias. Esta ambição affagava-a o Sr. Antunes no mais profundo de sua alma.

Jorge estava prestes a concluir os estudos em S. Paulo; ia na metade do quarto anno. Vindo á Capital durante as férias, achou-se deante de uma situação inesperada; a mãe esboçara um projecto de casamento para elle. A noiva escolhida era ainda parenta remota de Jorge. Chamava-se Eulalia. Tinha dezenove annos na certidão de baptismo e trinta no cerebro. Era uma moça sem illusões nem vaidades, talvez sem paixões, dotada de juizo recto e coração simples, e sobre tudo isso uma belleza sem macula e uma elegancia sem espavento.—Uma perola! dizia Valeria quando insinuou ao filho a conveniencia de casar com Eulalia. A perola, entretanto, não parecia anciosa de ornar a fronte de ninguem. Quando Valeria fez as primeiras sondagens no coração da joven parenta, achou alli uma agua tranquilla, sem curso nem recurso de marés. Tratou de saber se alguma brisa lhe roçara a aza, e descobriu que não; então chamou em seu auxilio o sirocco e o pampeiro. Não foi difficil a Eulalia perceber os desejos da viuva, nem resistiu quando chegou a entendel-a. A razão disse-lhe que o casamento era acceitavel; esperou. Valeria ficou satisfeita com o resultado, e deu-se pressa em sondar as disposições de Jorge, quando elle voltou no fim do anno.

Graças á sua arte de assediar as vontades alheias, Valeria alcançou do filho uma resposta condicional. Era já alguma cousa. O motivo da insistencia da viuva era complexo; eram as qualidades da parenta, a affeição grande que lhe votava, o receio de morrer subitamente e a confiança que tinha em si mesma para conhecer e eleger caracteres. Durante o ultimo anno da Faculdade, Jorge pensou algumas vezes no casamento como se pensa n'um projecto remoto; mas, á proporção que o tempo corria, o coração ia-se-lhe tornando retrahido e medroso. Uma vez formado, deu de mão á ideia; não teve a franqueza de o declarar á mãe, e Valeria esperou confiadamente que o coração do filho dissesse n'outra lingua aquillo que ella já lhe havia dito na sua.

Para conhecer exactamente o motivo da repulsa de Jorge em relação a uma moça, cujas qualidades deviam tentar qualquer outro, convem não esquecer que essas qualidades eram justamente as mais avêssas á indole do filho de Valeria. Não bastava ser elegante e bonita, discreta e mansa; era preciso alguma cousa mais, que exactamente correspondesse á imaginação delle; faltava-lhe um grão de romanesco.

A isto accrescia um sentimento novo, que se apossou delle, ao cabo de tres semanas depois da chegada ao Rio de Janeiro. A vista quotidiana de Estella produziu em Jorge uma impressão forte. Posto vivessem na mesma casa, era difficil acharem-se nunca a sós, porque a filha do escrevente passava todo o tempo ao pé da viuva; circumstancia que não teve a virtude de mudar o curso aos acontecimentos. Não podendo passar de palavras geraes e extranhas ao que lhe quizera confiar, Jorge falava-lhe com os olhos,—linguagem que a moça não entendia, ou fingia não entender. A imperturbavel seriedade de Estella foi um aguilhão mais, não menos cruel que a gentileza de suas formas, e certo ar de resolução que lhe transparecia do rosto quieto e pallido.

Pallida era, mas sem nenhum tom de melancolia ascetica. Tinha os olhos grandes escuros, com uma expressão de virilidade moral, que dava á belleza de Estella o principal caracteristico. Uma por uma, as feições da moça eram graciosas e delicadas, mas a impressão que deixava o todo estava longe da meiguice natural do sexo. Usualmente, trazia roupas pretas, côr que preferia a todas as outras. Nu de enfeites, o vestido punha-lhe em relevo o talhe esbelto, elevado e flexivel. Nem usava nunca trazel-o de outro modo, sem embargo de algum dixe ou renda com que a viuva a presenteava de quando em quando; rejeitava de si toda a sorte de ornatos; nem folhos, nem brincos, nem aneis. Ao primeiro aspecto dissera-se um Diogenes feminino, cuja capa, atravez das roturas, deixava entrever a vaidade da belleza que quer affirmar-se tal qual é, sem nenhum outro artificio. Mas, conhecido o caracter da moça, eram dous os motivos—um sentimento natural de simplicidade, e, mais ainda, a consideração de que os meios do pae não davam para custosos atavios, e assim não lhe convinha affeiçoar-se ao luxo.

—Porque não põe os brincos que mamãe lhe deu a semana passada? perguntou Jorge a Estella, um dia, em que havia gente de fóra a jantar.

—Os presentes mais queridos guardam-se, respondeu ella olhando para a viuva.

Valeria apertou-lhe a ponta do queixo entre o pollegar e o indicador:—Poeta! exclamou sorpudo. Você não precisa de brincos para ser bonita, mas vá pol-os, que lhe ficam bem.

Foi a primeira e ultima vez que Estella os poz. A intenção era patente de mais para não ser notada, e Jorge não esqueceu nem a resposta da moça nem o constrangimento com que obedeceu. Não podia suppôr-lhe ingratidão, porque via a affeição com que Estella tratava a mãe. Em relação a elle não parecia haver affeição egual, mas havia certamente respeito e consideração, rara vez familiaridade, e ainda assim, uma familiaridade enluvada, um ar de visita de pouco tempo.

Jorge começou a achar mais agradavel a casa do que a rua; e as noites, quando não havia pessoas de fora, passava-as á volta de uma mesa, lendo ou jogando com as duas, ou vendo-as trabalhar, em quanto contava anedoctas da academia, lia as correspondencias do Paraguay e de Buenos-Ayres, ou simplesmente alguma pagina de romance. Nessa vida, meio patriarchal, as horas corriam depressa, tão depressa, que elle não as sentia. Ao cabo de cinco a seis semanas, fez-se elle seu proprio confessor, examinou a consciencia, descobriu lá dentro alguma cousa que não era a phantasia sensual do primeiro instante, e, longe da absolver-se, condemnou-se á crua penitencia de abstenção. Voltou aos antigos habitos e deixou os serões domesticos. Mas a applicação do remedio, por mais sincera que fosse, já não podia muito contra a acção do mal. Estella frequentava-lhe tenazmente a memoria; e na rua, no theatro, nas assembléas a que ía, o perfil severo da moça vinha metter-se entre elle e a realidade. Se pudesse deixar de a ver, a convalescença não era ainda difficil; mas como fugir á lembrança de uma mulher, cuja figura lhe apparecia durante algumas horas de cada dia? Demais, a somnambula que elle tinha no cerebro vinha auxiliar a fatalidade das circumstancias. No fim de um mez, a indole do sentimento havia mudado: era mais pura; mas o sentimento não parecia disposto a esvair-se: era mais violento.

Como o Sr. Antunes levasse a filha, uma noite, a visitar pessoa de sua amizade, Jorge aproveitou a circumstancia para insinuar a Valeria a conveniencia de restituir Estella a seu pae.

—Porque? perguntou a viuva.

—Sempre é um tropeço, uma pessoa extranha mettida entre nós,—replicou Jorge. Não lhe nego que tem boas qualidades; mas... é uma pessoa extranha.

—Que importa, se me dou bem com ella? Conheço-a desde pequena; é uma companhia melhor que qualquer outra. Mas porque te lembras disso agora?

—Estive pensando na responsabilidade que pesa sobre nós. Se fosse nossa parenta, vá, não se podia dispensar a obrigação; mas não sendo, creio que era melhor libertarmo-nos.

—Descança; quando fôr tempo, caso-a. O que não admitto é algum marido de pouco mais ou menos. Ha-de ser pessoa que a mereça. Não sabes o que vale aquella menina. Não é só boa, tem certa elevação de sentimentos; nunca me desattendeu e nunca me adulou.

Jorge confirmou com a cabeça e não disse mais nada. O que acabava de fazer não passava de uma tentativa sincera, mas frouxa, para arredar Estella da casa; era o imposto pago á consciencia; Quite com ella, entregou-se aos acontecimentos, confessando a si mesmo que o perigo não era tão grave, nem o remedio tão urgente; finalmente, que elle era homem.

No meio de semelhante situação, que sentia ou que pensava Estella? Estella amava-o. No instante em que descobriu esse sentimento em si mesma, pareceu-lhe que o futuro se lhe rasgava largo e luminoso; mas foi só nesse instante. Tão depressa descobriu o sentimento, como tratou de o estrangular ou dissimular,—trancal-o ao menos no mais escuso do coração, como se fora uma vergonha ou um peccado.

—Nunca? jurou ella a si mesma.

Estella era o vivo contraste do pae, tinha a alma acima do destino. Era orgulhosa, tão orgulhosa que chegava a fazer da inferioridade uma aureola; mas o orgulho não lhe derivava de inveja impotente ou de esteril ambição; era uma força, não um vicio,—era o seu broquel de diamante,—o que a preservava do mal, como o do anjo de Tasso defendia as cidades castas e santas. Foi esse sentimento que lhe fechou os ouvidos ás suggestões do outro. Simples aggregada ou protegida, não se julgava com direito a sonhar outra posição superior e independente; e dado que fosse possivel obtel-a, é licito affirmar que recusara, porque, a seus olhos seria um favor, e a sua taça de gratidão estava cheia. Valeria, que tambem era orgulhosa, descobrira-lhe essa qualidade, e não lhe ficou querendo mal; ao contrario, veiu a aprecial-a melhor.

Pois o orgulho de Estella não lhe fez sómente calar o coração, infundiu-lhe a confiança moral necessaria para viver tranquilla no centro mesmo do perigo. Jorge não percebera nunca os sentimentos que inspirara; e, por outro lado, nunca viu a possibilidade de os inspirar um dia. Estella só lhe manifestava o frio respeito e a fria dignidade.

Um dia, vagando uma casa de Valeria no caminho da Tijuca, determinou-se a viuva a ir examinal-a, antes de a alugar outra vez. Foi acompanhada do filho e de Estella. Sairam cedo, e a viagem foi alegre para a moça, que pela primeira vez ia áquelle arrabalde. Quando a carruagem parou, suppunha Estella que mal tivera tempo de sair da rua dos Invalidos.

A casa precisava de alguns reparos; um mestre de obras, que já alli estava, acompanhou a familia de sala em sala e de alcova em alcova. Só elle e Valeria falavam; Estella não tinha voto consultivo, e Jorge parecia indifferente. Que lhe importava a elle o rebôco de uma parede ou o concerto de um soalho? Elle gracejava, ria ou sussurrava ao ouvido de Estella um epigramma a respeito do mestre de obras, cuja prosodia era execravel. Estella, que sorria com elle, cerrava entretanto o gesto aos epigrammas.

De sala em sala, chegaram a uma pequena varanda, onde uma circumstancia nova os deteve algum tempo. N'uma das extremidades da varanda havia um pombal velho, onde elles foram achar, esquecido ou abandonado, um casal de pombos. As duas aves, após vinte e quatro horas de solidão, pareciam saudar as pessoas que alli appareciam repentinamente.

—Coitadinhos! disse Estella logo que entrou na varanda.

Valeria prestou um minuto de attenção, talvez meio, e seguiu a ver a casa. Estella ficara a olhar para os dous pombos, e não a viu sair.

—Quer leval-os? disse a voz de Jorge.

A moça voltou-se e respondeu que não:—Comtudo, continuou ella, era bom dal-os a alguem para não morrerem á fome. São tão bonitos!

—Mas porque não os ha de levar a senhora mesma?

—Vou pedir ao mestre que os tire dalli, disse ella dando um passo para dentro.

—Não é preciso: eu vou tiral-os.

Estella recusou, mas o bacharel resolvera e ia satisfazer elle proprio o desejo da moça. O pombal não ficava ao alcance da mão; era preciso trepar ao parapeito da varanda, crescer na ponta dos pés e estender o braço. Ainda assim, precisaria contar com a boa vontade dos pombos. Jorge trepou ao parapeito. Se perdesse o equilibrio poderia cair ao chão da chacara; para evital-o, Jorge lançou a mão esquerda a um ferro que havia na columna do canto, e que o amparou; depois esticou o corpo e alcançou com a mão o pombal. Um dos pombos ficou logo seguro; o outro, a principio arisco, foi colhido depois de algum esforço. Estella recebeu-os; Jorge saltou ao chão.

—A Sra. D. Valeria, se visse isto, havia de ralhar, disse Estella.

—Grande façanha! respondeu Jorge sacudindo com o lenço as mãos e a aba do fraque.

—Podia cair.

—Mas não caí; foi um risco que passou. São bonitinhos, não são? continuou elle apontando para os pombos que Estella tinha entre as mãos.

A moça respondeu com um gesto e deu alguns passos, afim de ir ter com a viuva. Jorge deteve-a, mettendo-se entre ella e a porta.

—Não se vá embora, disse elle.

—Que é? perguntou Estella erguendo tranquillamente os grandes olhos limpidos.

—Disfarçada!

Estella baixou silenciosamente a cabeça e buscou dar outra volta para entrar na sala ao pé; Jorge, porém, interceptou-lhe de novo o caminho.

—Deixe-me passar, disse ella sem colera nem supplica.

Jorge recuara até a porta, unica das tres que estava aberta. Era arriscado o que fazia; mas, além de que Valeria e o mestre estavam no pavimento superior,—elle ouvia-lhes os passos,—perdera naquella occasião toda a lucidez de espirito. Era deserto o logar, e naturalmente seria longo o tempo de que poderia dispôr para lhe dizer tudo. Mas os labios ficaram cerrados alguns instantes, em quanto os olhos diziam a eloquencia da paixão mal contida e prestes a irromper.

Não insistiu Estella, mas ficou diante delle, quieta e sem arrogancia, como esperando ser obedecida. Jorge quizera-a supplicante ou desvairada; a tranquillidade feria-lhe o amor proprio, fazendo-lhe ver que o perigo era nenhum, e revellando, em todo caso, a mais dura indifferença. Quem era ella para o affrontar assim? Era a segunda vez que formulava essa pergunta; tinha-a feito nas primeiras auroras da paixão. Desta vez a resposta foi deploravel. Cravando os olhos em Estella, disse com voz tremula, mas imperiosa:

—Não ha de sair daqui, sem me dizer se gosta de mim. Vamos; responda! Não sabe o que lhe pode custar esse silencio?

Não obtendo resposta, continuou depois de alguma pausa:

—É animosa! Saiba que posso vir a odial-a e que talvez já a odeio; saiba tambem que posso tirar vingança de seus despresos, e chegarei a ser cruel, se fôr necessario.

Estella suspirou apenas, e foi encostar-se ao parapeito, a olhar para a chacara. Era sua intenção não irrital-o, com a resposta secca e má que lhe dictava o coração, e esperar que Valeria descesse. Entretanto, na posição em que ficara tinha as costas voltadas para Jorge, circumstancia que não era intencional, mas que pareceu a este um simples meio de lhe significar o seu desdem. A irritação de Jorge foi grande. Após uns dous ou tres minutos de silencio, Jorge caminhou na direcção do parapeito, onde estava Estella, com a cabeça inclinada, a beijar a cabeça dos pombos, que tinha encostados ao seio. Deteve-se, sem que a moça mudasse de posição. Contemplou-a ainda um instante, e se Estella olhasse para elle veria que a expressão dos olhos era de respeitosa ternura e nada mais.

Esse instante, porém, voou depressa, e com elle a consideração. Inclinando-se para a moça, Jorge falou de um modo que nem a educação nem a indole, mas só o despeito explicava.

—Porque hade gastar com esses animaes, uns beijos que podem ter melhor emprego?

Estella estremeceu toda e ergueu para o moço uns olhos que fuzilavam de indignação. Já não estava pallida, mas livida. Estupefacta, não sabia que dissesse ou fizesse, e infelizmente não sabia tambem que a pergunta de Jorge, por mais offensiva que lhe parecesse, não era ainda a maxima injuria. Não era; Jorge tinha uma nuvem deante de si, atravez da qual não podia ver nem o seu decoro pessoal nem a dignidade da mulher amada; via só a mulher indifferente. Lançou-lhe as mãos treabeça, puxou-a até si e antes que ella pudesse fugir ou gritar, encheu-lhe a boca de beijos.

Soltos com o movimento, os pombos esvoaçaram sobre a cabeça de ambos, e foram pousar outra vez na casinha de pau, onde nenhuma fatalidade moral os condemnava áquelle amor sem esperança, áquella colera sem dignidade.

Estella suffocara um gemido e cobrira o rosto com as mãos. Ouviam-se as vozes de Valeria e do mestre, que se approximavam; Jorge teve um instante de incerteza e hesitação; mas a reacção operara-se, e, além disso, urgia apagar os vestigios daquella scena, de maneira que os não visse a viuva.

—Ahi vem mamãe,—disse elle baixinho a Estella; não tive culpa no que fiz, por que gosto muito da senhora.

Estella voltou-se para fora e enxugou o rosto; dahi a pouco entraram Valeria e o mestre. Este saiu logo depois, tendo ajustado as obras que era indispensavel fazer na casa. Valeria irritada com a vista dos estragos que encontrou, criticava o desleixo dos inquilinos. Só depois dos primeiros instantes reparou que nenhum dos dous lhe respondia nada, Jorge parecia acanhado, e Estella triste. Posto houvesse enxugado as lagrimas, Estella tinha o rosto desfeito e murchos os bellos olhos. Jorge não ousava olhar para a mãe nem para Estella; olhava para a ponta dos botins, onde ficara um pouco da caliça do parapeito; tinha as mãos nas costas e estava arrimado a um portal. Valeria reparou na attitude dos dous; mas como possuia a qualidade de dissimular as impressões, não alterou nem o gesto nem a voz. Os olhos é que nunca mais os deixaram.

Dahi a nada metteram-se no carro. Era tarde. A viagem foi quasi inteiramente silenciosa; pelo menos, só Valeria disse algumas palavras. Chegando á rua dos Invalidos, a viuva suspeitava que alguma cousa havia entre os dous e grave. Todo aquelle dia meditou nos meios de conhecer a natureza e os pormenores da situação, e nada achou melhor do que interrogar directamente um delles. Jorge saíra de casa logo depois e não voltou para jantar; Estella não sorriu em todo esse dia e quasi não falou.

Não foi preciso interrogal-a. Logo na seguinte manhã, acabando de levantar-se, entrou-lhe Estella na alcova, e pediu alguns minutos de attenção. Expoz-lhe a necessidade de voltar para casa; estava moça, devia ir prestar ao pae os serviços que elle precisaria de alguem e tinha o direito de exigir da filha. Não era ingratidão, accrescentava; levaria dalli saudades eternas; voltaria muitas vezes; seria sempre obediente e grata. Cedia sómente á necessidade de acompanhar o pae. Este pedido confirmava a suspeita de Valeria, mas só esclarecia metade da situação. A retirada de Estella era um meio de fugir a Jorge ou de lhe falar mais livremente? Valeria tratou de prescrutar o coração da moça, dizendo-lhe que a razão dada era insufficiente e que alguma causa occulta a movia; depois, recordou-lhe a amizade que lhe tinha e a confiança a que Estella não devia faltar.

—Vamos lá, disse ella; confessa tudo.

Estella affirmou que nada mais havia; mas, insistindo a viuva, respondeu curvando a cabeça,—o que importava meia confissão. Valeria lutou ainda muito tempo; empregou a brandura e a intimação, mas a moça não cedeu mais nada.

—Bem, disse a viuva; faça-se a tua vontade.

Foi assim que Estella, ao cabo de algum tempo de residencia na casa de Valeria, regressou á casa do pae, na rua de D. Luiza. O Sr. Antunes ficou desorientado com a noticia; disse que vivia perfeitamente só; achou pouco decoroso e menos justo o procedimento de Estella, em relação á viuva do desembargador; gastou largos conceitos, que lhe não aproveitaram, porque Estella não recuou da resolução, nem a viuva tentou dissuadil-a.

A separação não valia nada ou valia cousa peor; fez recrudescer o amor de Jorge, por isso mesmo que entre um e outro rasgava espaço á imaginação. Duas forças reagiram no coração do rapaz; o obstaculo, que tornava mais intenso o amor, e o remorso que o fazia mais respeitoso. Nenhum resentimento lhe ficara da resolução de Estella; sentia-se culpado, e mais ainda, sentia-se victima da fuga da moça. Nem tudo isso seria effeito sómente da paixão; cabia uma parte de influencia á severidade do caracter de Estella, que acabou por incutir no espirito de Jorge ideia differente da que elle a seu respeito fazia. Valeria descobriu a pouco e pouco a inefficacia do remedio que acceitara; estava certa da paixão do filho, e via que, longe de expirar, entrava pela vida adeante, menos estouvada talvez, mas não menos sincera e profunda; soube que Jorge frequentava a casa da rua de D. Luiza; estremeceu pelo futuro e cogitou no modo de estrangular as esperanças em flôr.

—Ou ella já o ama ou pode vir a amal-o, dizia comsigo.

Valeria encarava os dous desenlaces possiveis da situação, se a moça lhe amasse o filho: ou seria a quéda de Estella, que a viuva estimava muito, ou o consorcio dos dous, solução que lhe repugnava aos sentimentos, ideias e projectos. Jamais consentiria em semelhante alliança. Urgia prompto remedio.

Voltou energicamente ao projecto de casar o filho com Eulalia, e o intimou a obedecer-lhe. Jorge começou resistindo e acabou dissimulando; mas o artificio não illudiu a mãe. Valeria chamou logo em seu auxilio a joven parenta. Eulalia, que tivera tempo de reflectir, francamente lhe disse que não estava disposta a ser sua nora, porque Jorge não a amaria nunca; e comquanto, não visse no casamento uma pagina de romance, entendia que a antipathia ou total indifferença era o mais frouxo dos vinculos conjugaes.

Desamparada desse lado, a viuva cogitou então a viagem á Europa; e, quando elle lh'a recusou, recorreu á guerra do Paraguay. Não sem custo lançou mão desse meio, violento para ambos; mas, uma vez adoptado, luziu-lhe mais a vantagem do que lhe negrejou o perigo. Assim foi que de um incidente, comparativamente minimo, resultara aquelle desfecho grave, e de um caso domestico saía uma acção patriotica.




IV

Era noite fechada, quando Jorge chegou á casa de Estella. O Sr. Antunes estava á porta e talvez contava com a visita; recebeu-o com alvoroço e tristeza.

Quatro mezes haviam decorrido depois da scena da Tijuca, e durante esse tempo Jorge fora muitas vezes á casa da rua de D. Luiza. Não lhe fugira Estella nem o maltratara; usou a mesma serenidade e frieza de outro tempo, falando-lhe pouco, é certo, mas com tamanha isenção, que parecia não ter havido entre elles o menor dissentimento.

Pela sua parte, Jorge forcejava por apagar a lembrança daquelle episodio, havendo-se com o respeito e consideração que lhe pareciam bastantes para resgatar a estima perdida. Ás vezes ficavam a sós na sala, porque o Sr. Antunes inventava algum motivo que o obrigasse a eclipses parciaes, com o fim unico, dizia elle comsigo,—de ajudar a natureza. Mas sobretudo nessas occasiões, aliás propicias, não transpunha Jorge a linha que a si mesmo traçara, não lhe sussurrava uma unica palavra amorosa, não lhe deitava um só olhar que a pudesse fazer corar ou reagir. Qualquer allusão á scena da Tijuca, ainda de submissão, seria prejudicial á causa de Jorge; elle evitava esse erro trivial, nada dizendo que proxima ou remotamente pudesse lembral-a á moça. Falavam pouco e de cousas indifferentes, como pessoas de nenhuma intimidade.

Foi só quando perdeu de todo a esperança de a vencer pelos meios ordinarios, que elle acceitou a proposta de se alistar no exercito. No dia em que lhes deu a noticia, a impressão no pae e na filha foi profunda, mas diversa, porque o pae ficou totalmente consternado e morto, ao passo que a filha sentiu a alma respirar livremente, e se uma voz secreta e medrosa lhe disse: não o deixes ir; outra mais dominadora e forte lhe bradou que a partida era a liberdade e a paz. A viagem, a distancia, o tempo, a natureza das occupações militares deviam arrancar ao moço um sentimento que Estella temia fosse origem de dissenções domesticas, e que em todo o caso a abatia a seus proprios olhos.

—É então amanhã? perguntou o Sr. Antunes fazendo entrar o joven capitão.

—Amanhã.

Estella recebeu-o como das outras vezes, sem embargo do pae, que parecia apostado em lhe tornar amargos esses ultimos instantes. A tristeza do Sr. Antunes era mortal. Elle pertencia á phalange daquelles espiritos que, atravez dos annos e ainda nos regelos do inverno, conservam as calcinhas da primeira edade, e para quem a vida tem sempre o aspecto dos castellos de cartas que construiram na infancia. Uma vez penetrado da ideia de casar a filha com o bacharel, viveu della, como se a vira praticada. O incidente da guerra não lhe desvendou a realidade da situação, mas pareceu-lhe que adiava o seu desejo, e bastava a consternal-o. Agora que via fardado o filho de Valeria, prestes a embarcar no dia seguinte, creu devéras na separação. Após meia hora de conversa, o Sr. Antunes retirou-se alguns minutos da sala; ia ver charutos.

—Tome um dos meus, disse Jorge.

—Nada; os seus são muito fortes.

Nunca os charutos de Jorge padeceram semelhante accusação da parte do Sr. Antunes, que fumava regularmente os do filho como havia fumado os do pae. Estella ficou humilhada com a resposta e a acção. Jorge que estava de pé, junto a uma mesa, viu sair o pae de Estella, e ficou a olhar para o chão. A moça cravou os olhos no trabalho, que estava fazendo.

Jorge ergueu emfim os olhos e pousou-os na moça, cuja belleza lhe pareceu naquella noite ainda mais limpida e espiritual, justamente porque elle começava a vel-a atravez do nimbo da saudade. Ella attendia ao trabalho com uma quietação laboriosa. As mãos, que podiam emparelhar com as mais puras, moviam as agulhas sem apparente commoção nem tremor. Ao mancebo já não humilhava esse aspecto indifferente e digno; podia medir, em si mesmo, a differença das situações, o caminho vencido, desde as primeiras ideias a respeito de Estella. Mas os minutos corriam e o silencio acanhava-o cada vez mais; emfim, resolveu rompel-o, e rompel-o de modo que tirasse daquelle minuto ou a salvação ou o naufragio da vida que ia emprehender. Deu dous passos para Estella.

—Talvez não nos vejamos mais, disse elle.

—Porque? disse Estella sem levantar os olhos.

—Posso ficar enterrado no Paraguay.

—Sua mãe não gostaria de ouvir isso...

Seguiram-se ainda dous minutos. Jorge poz toda a alma nestas palavras, ditas em voz baixa e triste:

—Embarco amanhã para o sul. Não é o patriotismo que me leva, é o amor que lhe tenho, amor grande e sincero, que ninguem poderá arrancar-me do coração. Se morrer, a senhora será o meu ultimo pensamento; se viver, não quero outra gloria que não seja a de me sentir amado. Uma e outra cousa dependem só da senhora. Diga-me; devo morrer ou viver?

Estella tinha erguido a cabeça; quando elle acabou achava-se de pé. Fitou-o alguns instantes com uma expressão muda e fria. A vaidade da mulher podia contentar-se daquella solemne reparação, e perdoar; mas o orgulho de Estella venceu, e não deu logar a nenhum outro sentimento de justiça ou de humanidade. Um geito ironico torceu-lhe o labio, donde saiu esta palavra má e desdenhosa:

—O senhor é um tonto.

Quando o pae voltou á sala, instantes depois, Jorge estava com uma das mãos no encosto de uma cadeira, pallido como um defunto. Estella fora até á porta da alcova da sala, resolvida a fechar-se por dentro.

O Sr. Antunes não tinha observação; mas, ao ver o rosto dos dous, não era muito difficil adivinhar que alguma cousa se passara entre elles. Adivinhou-o; comtudo, não atinara bem o que seria, se uma scena de dolorosa despedida, se outra cousa menos propicia a seus calculos. Foi ao joven capitão e pediu-lhe que se sentasse; mas Jorge declarou que ia sair e despediu-se. Sem encarar Estella, estendeu-lhe a mão, que ella apertou com o ar mais tranquillo do mundo. O pae espreitava uma lagrima furtiva, um gesto disfarçado, qualquer cousa que falasse em favor de suas esperanças. Nada; Estella não baixou o rosto nem escondeu os olhos. Jorge, sim; não obstante o esforço que fazia, tremia-lhe a mão ao apertar a do escrevente.

O Sr. Antunes acompanhou-o até a porta. Alli, antes de a abrir, quiz abraçar o moço official.

—Dê-me essa triste honra, disse elle; creia que estes braços são de amigo.

Jorge deixou-se ir, sem enthusiasmo; mas quando sentiu o corpo do pae de Estella, pareceu-lhe que abraçava uma parte da moça, e apertou-o fortemente ao peito. Esta manifestação lisonjeou extremamente o outro; chegou a commovel-o.

—Conte commigo, murmurou elle; fico para ajudal-o.

Jorge ouviu-o, apertou-lhe machinalmente as mãos, recebeu um abraço ultimo e atirou-se á rua.

Intoleravel é a dor que não deixa sequer e direito de arguir a fortuna. O mais duro dos sacrificios é o que não tem as consolações da consciencia. Essa dor padecia-a Jorge; esse sacrificio ia consumal-o.

Não foi dalli para casa; não ousaria encarar sua mãe. Durante a primeira hora que se seguiu á saída da casa de Estella, não pode reger os pensamentos; elles cruzavam-lhe o cerebro sem ordem nem deducção. O coração batia-lhe rijo na arca do peito; de quando em quando o corpo era tomado de calefrios. Ia despeitado, humilhado, com um dente de remorso no coração. Quizera de um só gesto eliminar a scena daquella noite, quando menos apagal-a da lembrança. As palavras de Estella retiniam-lhe ao ouvido como um silvo de vento colerico; elle trazia no espirito a figura desdenhosa da moça, o gesto sem ternura, os olhos sem misericordia. Ao mesmo tempo, lembrava-lhe a scena da Tijuca, e alguma cousa lhe dizia que essa noite era a desforra daquella manhã. Ora sentia-se odioso, ora ridiculo.

—Tua mãe é quem tem razão, bradava uma voz interior; ias descer a uma alliança indigna de ti; e se não soubeste respeitar nem a tua pessoa nem o nome de teus paes, justo é que pagues o erro indo correr a sorte da guerra. A vida não é uma egloga virgiliana, é uma convenção natural, que se não acceita com restricções, nem se infringe sem penalidade. Ha duas naturezas, e a natureza social é tão legitima e tão imperiosa como a outra. Não se contrariam, completam-se; são as duas metades do homem, e tu ias ceder á primeira, desrespeitando as leis necessarias da segunda.

—Quem tem razão és tu, dizia-lhe outra voz contrária, porque essa mulher vale mais que seu destino, e a lei do coração é anterior e superior ás outras leis. Não ias descer; ias fazel-a subir; ias emendar o equivoco da fortuna; escuta a voz de Deus e deixa aos homens o que vem dos homens.

Jorge caminhava assim, levado de sensações contrarias, até que ouviu bater meia-noite e caminhou para casa, cançado e oppresso. Valeria esperava-o sem haver dormido. Essa dedicação silenciosa, occulta, vulgar nas mães, natural naquella vespera de uma separação acerba e longa, foi como um balsamo ao coração dolorido do rapaz. Foi tambem um remorso. Pungiu-lhe a consciencia ao ver que esperdiçara algumas horas longe da creatura, a quem verdadeiramente ia deixar saudades, unica pessoa que pediria a Deus por elle. Valeria adivinhara onde estaria o filho, e tremia de medo á proporção que as horas passavam, receiosa de que, amando-o Estella, um e outro houvessem subtrahido a sua ventura ao jugo das leis sociaes, indo refugiar-se em algum ignorado recanto. Pensou isso, e fraqueou, e arrependeu-se, duvidando de si e da rectidão de seus actos. Não duvidava da natureza do mal; mas não excedia a elle o remedio escolhido? Suppondo que esse pensamento era a sua primeira punição, reagiu fortemente, colligindo as energias abatidas e dispersas e voltou a ser a mulher que era, com todas as suas fortes qualidades naturaes ou contrahidas. De mais, a que viria o arrependimento, se era tarde?

O filho entrou com as feições recompostas, mas tristes. Valeria recebeu-o sem nenhuma expressão de censura ou magua. Nada lhe disse; elle pouco falou e despediram-se sem expansão, aquella ultima noite que ia o moço dormir sob o tecto de seus paes.

A noite foi para elle afflicta e melancholica. Quasi inteira gastou-a em inventariar a vida que ia acabar, em dar busca aos papeis, queimar as cartas dos amigos, repartir algumas prendas, e finalmente em escrever disposições testamentarias e cartas a pessoas intimas. Perto das quatro horas deitou-se; ás sete estava de pé. Valeria havia-se-lhe antecipado. Algumas pessoas foram despedir-se delle e acompanhar a mãe no solemne momento da despedida. Entre essas figurava o pae de Estella, cuja tristeza, que era sincera, trazia uma mascara ainda mais triste.

Veiu emfim o momento da despedida. Valeria dominara-se até onde pode; mas o ultimo instante concentrava tantas dores, que era impossivel resistir-lhe. A organização moral da viuva era forte, mas a resistencia fora prolongada, e a vontade gastou-se nesse esforço de todos os dias. Quando soou o instante definitivo da separação rebentaram dos olhos as lagrimas, não tumultuosas, cortadas de vozes e gemidos, mas dessas outras que retalham silenciosamente as faces, resto de uma dignidade que cede a custo á lei da natureza. Ella estendeu os braços, ainda formosos, sobre os hombros do filho; nessa postura contemplou-o algum tempo; depois beijou-o e apertou-o estreitamente ao coração.

—Vae, meu filho, disse com voz firme. Eu fico rogando a Deus por ti; Deus é bom e te restituirá a meus braços. Serve a tua patria, e lembra-te de tua mãe!

Foram as ultimas palavras. Jorge não as ouviu; tinha o espirito prostrado e surdo. Chorou tambem, menos silenciosamente que Valeria, mas as mesmas lagrimas afflictas.

—Adeus, querida mamãe! disse elle arracando-se emfim de seus braços.

Saiu; Valeria não o viu sair; dera costas a todos e foi lastimar na alcova seu voluntario infortunio.

Pouco tempo depois, perdendo de vista a cidade natal, sentiu Jorge que dobrara a primeira lauda de seu destino, e ia encetar outra, escripta com sangue. O espectaculo do mar abateu-o ainda mais: alargava-se-lhe a solidão até o infinito. Os poucos dias da viagem desfiou-os nessa atonia moral que succede ás catastrophes. Emfim, aportou a Montevidéu,—seguindo dalli ao Paraguay.

A segunda viagem, as gentes extranhas, as novas cousas, o movimento do theatro da guerra, produziram nelle saudavel transformação. O espirito elastico e mobil sacudiu as sombras de pezar que o ennoiteciam, e, uma vez voltado o rosto para o lado do perigo, começou de enxergar, não a morte obscura ou ainda gloriosa, mas o triumpho e o laureado regresso. Bebido o primeiro hausto da campanha, Jorge sentiu-se homem. A hora das frivolidades acabara; a que começava era a do sacrificio austero e diuturno. Ia encarar trabalhos não sabidos, expôr-se a perigos inopinaveis; mas ia resoluto e firme, com a fronte serena e clara e o lume da confiança acceso no coração.




V

As primeiras cartas de Jorge foram todas á mãe. Eram longas e derramadas, enthusiasticas, descuidosas e até pueris. Descontada a escassa porção de realidade que podia haver nellas, ficava um calculo, que o coração de Valeria comprehendeu; era adoçar-lhe a ausencia e dissipar-lhe as apprehensões.

Cedo se familiarisou Jorge com a vida militar. O exercito, acampado em Tuyuty, não iniciava operações novas; tratava-se de reunir os elementos necessarios para proseguir a campanha de modo seguro e decisivo. Não havendo nenhuma acção grande, em que pudesse provar as forças e amestrar-se, Jorge buscava as occasiões de algum perigo, as commissões arriscadas, cujo exito dependesse de espirito atrevido, sagacidade e paciencia. Esse desejo captou-lhe a sympathia dos chefes immediatos.

O coronel que o commandava attentou nelle; sentiu-lhe a alma juvenil atravez do olhar brando e repousado. Ao mesmo tempo observou que, no meio dos gozos faceis e multiplos do acampamento, convertido pela inacção em povoado de recreio, Jorge conservava um retrahimento monachal, um casto horror de tudo o que pudesse divertil-o de curar das armas, ou sómente de pensar nellas. O coronel era homem de seu officio; amava a guerra pela guerra; morreu talvez de nostalgia no regaço da paz. Era bravo e rispido. O que lhe destoou a principio na pessoa de Jorge, foi o alinho e um resto de seus ademanes de sala. Jorge, entretanto, sem perder desde logo o geito da vida civil, foi creando com o tempo a crosta de campanha. O desejo de trabalhar, de arriscar-se, de temperar a alma ao fogo do perigo, trocou os sentimentos do coronel, que entreviu nelle um bom companheiro de armas, e ao fim de pouco tempo procurou distinguil-o.

Posto que Jorge falasse do coronel nas cartas que escrevia á mãe, não o dava como amigo seu, nem tinha amigos no acampamento, ou se os tinha não os considerava taes. Ouvia confidencias de muitos, animava as esperanças de uns, consolava as penas de outros, nunca abria porém a porta do coração á curiosidade transeunte. Devia ser entretanto interessante uma pagina sómente da vida daquelle militar, joven, bonito, abastado, que não ia ao theatro nem aos saraus do acampamento, que ria poucas vezes e mal, que só falava da guerra, quando falava de alguma cousa.

Um dia, um major do Ceará foi achal-o sentado em um resto de carreta inutil, lançado em sitio escuso, ora a olhar para o horizonte, ora a traçar com a ponta da espada uma estrella no chão.

—Capitão, disse o major, parece que você está vendo estrellas ao meio dia?

Jorge sorriu do gracejo, mas não deixou de continuar, nos demais dias, a traçar estrellas no chão ou a procural-as nas campinas do ceu. Os officiaes, arrastados pela sympathia, não lhe ficavam presos pela convivencia; Jorge era, não só taciturno, mas desegual, ora docil, ora rispido, muitas vezes distrahido e absorto. Era distrahido, sobretudo, quando recebia cartas do Rio de Janeiro, entre as quaes rara vez acontecia que não viesse alguma do Sr. Antunes. O pae de Estella regava com a agua salobra de seu estylo a esperança que não perdera. As suas cartas eram epithalamios disfarçados. Falava muito de si, e muito mais da filha, cuja alma, dizia elle, andava singularmente triste e acabrunhada. Jorge resistia ao desejo de falar tambem de Estella; mais de uma vez o nome da moça lhe caía dos bicos da penna; elle o riscava logo, assim como riscava qualquer phrase que pudesse parecer allusiva aos seus sentimentos; as que escrevia ao pae da moça eram seccas, sem especial interesse, polidas e frias.

Um dia, porém, antes de meado o anno de 1867, não pode resistir á necessidade de segredar o amor a alguem ou proclamal-o aos quatro ventos do ceu. Ninguem havia ao pé delle que merecesse a confidencia; Jorge alargou os olhos e lembrou-se de Luiz Garcia, unica pessoa extranha a quem confiara metade do segredo que havia levado para a guerra. Os corações discretos são raros; a maioria não é de gaviões brancos que, ainda feridos, voam calados, como diz a trova; a maioria é das pêgas, que contam tudo ou quasi tudo.

Já nesse tempo o coração de Jorge padecera grande transformação. O amor, sem minguar de intensidade, mudara de natureza, convertendo-se em uma especie de adoração mystica, sentimento profundo e forte, que parecia respirar atmosphera mais alta que a do resto da creação. Elle mesmo o disse na carta a Luiz Garcia, sem lhe denunciar o nome da pessoa, nem nenhuma circumstancia que podesse pol-o na pista da realidade; exigiu-lhe absoluto silencio e contou-lhe o que sentia:

«Não importa saber quem é, disse elle;—o essencial é saber que amo a mais nobre creatura do mundo, e o triste é que não sómente não sou amado, mas até estou certo de que sou aborrecido.

«Minha mãe illudiu-se quando suppoz que meu amor achara echo em outro coração. Talvez desistisse de me mandar ao Paraguay, se soubesse que esta paixão solitaria era o meu proprio castigo. Era; já o não é. A paixão veiu commigo, apezar do que lhe ouvi na vespera de embarcar; e se não cresceu, é por que não podia crescer. Mas transformou-se. De creança tonta, que era, fez-se homem de juizo. Uma crise, algumas legoas de permeio, poucos mezes de intervallo, foram bastantes a operar o milagre.

«Não sei se a verei mais, porque uma bala pode pôr termo a meus dias, quando eu menos o esperar. Se a vir, ignoro os sentimentos com que ella me receberá. Mas de um ou de outro modo, este amor morrerá commigo, e o seu nome será a ultima palavra que ha de sair de meus labios.

«Meu amor não sabe já o que seja impaciencia ou ciume ou exclusivismo: é uma fé religiosa, que pode viver inteira em muitos corações. Talvez o senhor me não comprehenda. Os homens graves ficam surdos a estas subtilezas do coração. Os frivolos não as entendem. Eu mesmo não sei explicar o que sinto, mas sinto alguma cousa nova, uma saudade sem esperança, mas tambem sem desespero: é o que me basta.»

Jorge releu o escripto, e ora o achava claro de mais, ora obscuro. Hesitou ainda algum tempo; emfim, dobrou a carta, fechou-a e remetteu-a para o Rio de Janeiro.

Quando a resposta lhe chegou ás mãos, preparava-se o exercito para deixar Tuyuty. Jorge estava todo entregue aos cuidados da guerra, a sonhar batalhas, a acutilar mentalmente os soldados de Lopez. A resposta de Luiz Garcia dizia pouco ou nada do objecto da carta de Jorge; compunha-se quasi toda de conselhos e reflexões, dadas em linguagem sobria e medida, reflexões e conselhos relativos quasi exclusivamente aos deveres de homem e de soldado.

Jorge esperava aquillo mesmo; conhecia, ainda que pouco, o genio sêcco e gelido de Luiz Garcia. Comtudo, ficou momentaneamente desapontado e triste. Seria certo que nenhum coração sympathisava com seus secretos infortunios ou suas venturas solitarias? Ao cabo de largos mezes de separação, nem Estella pensaria nelle, nem elle achava pessoa com quem partisse o pão das saudades, ultimo alimento de um amor sem conjuge. A consciencia da solidão moral abateu-o um instante; esvaiu-se-lhe toda a força accumulada durante aquelles mezes, e a alma caiu de bruços.

Poucos dias depois operou-se a marcha de Tuyuty a Tuyu-Cué, a que se seguiu uma serie de acções e movimentos, em que houve muita pagina de Plutarcho. Só então pode Jorge encarar o verdadeiro rosto á guerra, a cujo principio não assistira; figurou em mais de uma jornada heroica, correu perigos, mostrou-se valoroso e paciente. O coronel adorava-o; sentia-se tomado de admiração deante daquelle mancebo, que combatia durante a batalha e calava depois da victoria, que communicava o ardor aos soldados, não recuava de nenhuma empreza, ainda a mais arriscada, e a quem uma estrella parecia proteger com suas azas de luz.

Notou elle uma vez, em um dos combates mortiferos de Dezembro de 1868, anno e meio depois da carta de Luiz Garcia, que a temeridade do mancebo parecia ir além dos limites do costume, e que em vez de um homem que combatia, era elle um homem que queria morrer. A fortuna salvou-o. Findo o combate, recolhidos os feridos, repousados os corpos, o coronel foi ter com elle na barraca, e achou-o tristemente quieto, com os olhos inchados e parados. O coronel não reparou nisso; entrou a felicital-o pelo comportamento que tivera, ainda que um pouco excessivo. Jorge tinha-se respeitosamente erguido e olhava para o coronel sem dizer palavra. Este encarou-o e viu-lhe signaes de abatimento.

—Que diabo tem você, capitão?

—Nada, respondeu o moço.

—Recebeu hontem cartas do Rio de Janeiro?

—Uma: de minha mãe.

—Está boa?

—De perfeita saude.

—Nesse caso...

O coronel parou e reflectiu; depois continuou:

—Já sei o que é.

—O que é! exclamou Jorge procurando sorrir.

—Ha-de fazer-se, continuou o coronel; a cousa está a caminho, ha-de fazer-se, não lhe digo mais nada.

E bateu-lhe no hombro, com um gesto que tanto podia dizer: «socegue, capitão», como: «parabens, senhor major.» Jorge entendeu esse trocadilho gesticular, e apertou as mãos do coronel, agradecendo-lhe, não o posto que lhe annunciava, mas a affeição que lhe tinha. O coronel encarou-o paternalmente alguns minutos.

—Subir! Não sonham com outra cousa, rosnava elle comsigo.

E saiu.

Jorge ficou só, accendeu um cigarro, que não pode fumar até o fim. Depois sentou-se desabotoou a farda, tirou uma carta, abriu-a e releu algumas linhas do fim. A carta era de Luiz Garcia. Dava-lhe noticias de sua mãe, que, por motivos de doença, fora tomar aguas a Minas, e rematava com estas palavras assombrosas:

«... Resta-me dizer-lhe, se em alguma cousa lhe pode interessar minha vida, que sabbado passado contrahí segundas nupcias. Minha mulher é a filha do Sr. Antunes. Sua mãe serviu-nos de madrinha.»

Com os olhos fitos nessas poucas linhas, Jorge parecia alheio a tudo mais. O papel, recebido na vespera, estava amarrotado, como se lhe passara pelas mãos durante um anno. Olhava, relia e não podia entender; quando chegava a entender, não podia acreditar. O casamento de Estella era a seu ver um absurdo; mas após os intervallos de duvida, a realidade apossava-se delle. A razão mostrava-lhe que semelhante noticia devia ser certa. No fim de dous dias, tinha elle comprehendido alguma cousa do silencio de sua mãe: o motivo era, sem duvida, o mesmo que a impellira a mandal-o ao Paraguay. Nunca lhe falara de Estella, nem do casamento de Luiz Garcia, silencio calculado para de todo extinguir em seu coração os derradeiros murmurios de um amor sem echo.

Jorge sentiu então um phenomeno proprio de taes crises—um movimento de odio a todo o genero humano, desde sua mãe até o seu inimigo. Tornou-se descortez, violento, deliberadamente mau: effeito transitorio, ao qual succedeu um abatimento profundo. Ferido dahi a dias em Lomas Valentinas, retirou-se por alguns mezes do exercito, cujas operações só continuaram depois de meado o anno seguinte. Jorge teve parte nas jornadas de Pirebebuy e Campo Grande, não já na qualidade de capitão, mas na de major, cuja patente lhe foi concedida depois de Lomas Valentinas. No fim do anno estava tenente-coronel, commandava um batalhão, e recebia os abraços de seu antigo commandante, contente de o ver sagrado heroe.

Um acontecimento inesperado e desastroso veiu ainda golpeal-o cruelmente, logo depois de Março de 1870, quando, acabada a guerra, estava elle em Assumpção. Valeria fallecera. Luiz Garcia lhe deu essa triste noticia, que elle antes adivinhou do que leu, porque as ultimas cartas já lhe faziam presentir o lugubre desenlace. Jorge adorava a mãe.

Se só a contra-gosto viera para a guerra, não é menos certo que esta o cobrira de louros, e que elle os quizera depositar no regaço de Valeria. O destino decidiu por outro modo, como se quizesse contrastar cada um de seus favores fazendo-lhe sangrar o coração.

No fim de Outubro volveu ao Rio de Janeiro, Tinham passado quatro annos justos. Penetrando a barra e descortinando a cidade natal, Jorge comparava os tempos, as angustias e as esperanças da partida com a gloria e o abatimento do regresso. Não se sentia feliz nem infeliz, mas nesse estado medio, que é a condição vulgar da vida humana. Comparava-se ao mar daquella manhã, nem borrascoso nem quieto, mas levemente empolado e crespo, tão prestes a adormecer de todo, como a crescer e arremeçar-se á praia. Que aragem somnolenta ou que tufão destruidor, viria roçar por elle a aza invisivel? Jorge não o prescrutou. Trazia os olhos no passado e no presente; deixou ao tempo os casos do futuro.




VI

Antes de irmos direito ao centro da acção, vejamos por que evolução do destino se operou o casamento de Estella.

Poucos poderiam suppôr, nos fins de 1866, que a campanha se protrahiria ainda cêrca de quatro annos. O calculo do general Mitre, relativo aos tres mezes de Buenos-Ayres a Assumpção, tinha já cahido, é certo, no abysmo das illusões historicas. Proclamações são loterias; a fortuna as faz sublimes ou vans. A do general argentino, que era já uma affirmação errada, exprimiu comtudo, no seu tempo, a convicção dos tres povos. Do primeiro embate com o inimigo, viu-se que a campanha seria rija e longa; a illusão desfez-se; ficou a realidade, que nem por isso encarámos com rosto afflicto. Não obstante, era difficil presumir, em Outubro de 1866, que a guerra chegasse até Março de 1870. Suppunha-se que um esforço ingente bastaria a reparar Curupaity, a derrubar Humaitá, a vencer o dictador, não nos tres mezes do general Mitre, mas em muito menos tempo do que viria a ser na realidade.

Isto posto, não admira que Valeria receiasse cada instante a terminação da guerra e a prompta volta do filho. Se tal cousa acontecesse, ella teria dado um golpe inutil, e o fogo podia renascer das cinzas mal apagadas. Valeria preferia as soluções radicaes. Uma vez arredado o filho, viu a necessidade de anniquillar as ultimas esperanças, e o mais seguro meio era casar Estella. Assim procedendo, satisfaria tambem a affeição que tinha á moça, affeição que nunca lhe diminuíra. Sabia que entre Estella e o pae havia contrastes moraes de difficil conciliação. Cada um delles falava lingua differente, não podiam entender-se nunca, sobretudo (dizia ella comsigo), na escolha de um consorte.

Dous mezes depois do embarque de Jorge, Valeria mandou chamar o Sr. Antunes a Santa Thereza, onde tinha uma casa de verão. O recado foi escripto, circumstancia que lhe deu certa solemnidade. Nunca até então a viuva lhe escrevera. O Sr. Antunes leu e releu o bilhete, mostrou-o duas ou tres vezes á filha, esteve tentado de mostral-o ao vizinho fronteiro. Em quanto se vestia, pol-o sobre a mesa, lançando-lhe a furto os olhos, pesando-lhe de cór as expressões cortezes, espremendo-as, dissecando-as. Vestido, guardou-o cuidadosamente na algibeira. Na rua, separou-se de um importuno dizendo emphaticamente aonde ia. Quanto ao motivo do recado, não atinava qual fosse, nem teve muito tempo para isso. Cogitou, entretanto, e suppoz que se tratava de algum obsequio que ella lhe ia encommendar.

Era obsequio, e não lh'o pedia a viuva; prestava-o, e não se demorou muito em dizel-o. Ao cabo de dez palavras, pediu-lhe licença para dotar Estella.

—Não quizera fazel-o, sem o seu consentimento, concluiu ella; por isso o mandei chamar.

Do mais infimo a que um homem haja baixado, a natureza pode fazel-o grave, ainda que por um só minuto. Esse minuto teve-o o pae de Estella. Immovel e sem fala a principio; depois, ainda sem fala, mas não já immovel, o Sr. Antunes revellou em seu rosto, aliás vulgar, uma commoção digna. A dignidade, porém, expirou com o silencio. Quando elle abriu a boca para agradecer a prova de affeição que a viuva lhe dava á filha, a alma readquiriu o tregeito habitual. Valeria cortou-lhe o discurso com uma arte tão superior, que o pae de Estella antes sentiu do que comprehendeu. A viuva tinha a verdadeira generosidade, que consiste menos em prestar o obsequio do que em dissimulal-o; disse-lhe que, dotando Estella, cumpria um desejo do desembargador, e sem esperar pelo necrologio que o Sr. Antunes provavelmente ia recitar, fez um longo e affectuoso inventario das qualidades da moça.

—É muito boa filha, concluiu a viuva; tem qualidades dignas de todo o apreço, e, além do mais, sou amiga della.

—Isso, minha senhora, é a maior fortuna que lhe podia caber. Quanto a ser boa filha não é por vaidade que o digo, mas creio que a senhora tem razão. Saiu á mãe, que era uma santa alma.

—Estella não o é menos. É bonita! Emfim pode vir amar alguem, não lhe parece?

—Pode, pode, assentiu o Sr. Antunes. Que eu, verdadeiramente, não sei se ella já não amará. É tão calada! Ultimamente parece andar triste...

—Triste?

—Distrahida... assim, como pessoa que não tem o pensamento socegado. Não sei se aquillo é paixão, ou doença. Doença não creio que seja, por que ella é forte e tem boa apparencia. Coitadinha! Mas sempre alegre... isto é, alegre não... quero dizer, não anda sempre triste... ou por outra...

Valeria sorriu mentalmente daquella confusão que o Sr. Antunes fazia, e que attribuiu ao alvoroço que naturalmente a noticia do dote lhe causára; interrompeu-o dizendo que fosse lá com a filha.

Estella ouviu dahi a meia hora a noticia da generosidade da viuva, que o pae se apressou a ir dar-lhe, e, contra a expectação deste, ouviu-a calada e severa. Não achando a explosão de alegria que esperava, o Sr. Antunes abanou desanimado a cabeça.

—Não te entendo, filha! replicou elle. Has de dizer o que é que queres ser neste mundo. Não és rica, nem menos que rica; não tens a menor esperança no futuro. Eu não te posso deixar nada, por que nada tenho. Ha uma senhora, que te estima, que te faz um beneficio, e tu recebes isto como se fosse uma injuria.

A observação do pae chamou a filha á realidade da situação.

—Papae sabe que não sou de muito riso, disse ella; pode ficar certo de que me alegrou muito a noticia que me deu.

Não alegrou nada. Nunca lhe pesara tanto a fatalidade da posição. Depois do episodio da Tijuca, parecia-lhe aquelle favor uma especie de perdas e damnos que a mãe de Jorge liberalmente lhe pagava, uma agua virtuosa que lhe lavaria os labios dos beijos que ella forcejava por extinguir, como lady Macbeth a sua mancha de sangue Out, damnet spot! Este era o seu conceito; esta era tambem a sua magua. A altivez com que procedera desde aquella manhã de algum modo lhe levantara o orgulho, que o acto inconsiderado de Jorge havia por um instante humilhado. Mas a acção da viuva, por mais espontanea que fosse, tinha aos olhos da moça a consequencia de fazer decorrer o beneficio da mesma origem da affronta. Estella não distinguia entre os bens da mãe e do filho. Era tudo a mesma bolsa; e dalli é que lhe vinha o dote.

Com essa ideia oppressiva entrou ella em casa da viuva, cuja recepção lhe desabafou o espirito do mais espesso de suas preoccupações. Valeria beijou-a, com um gesto mais maternal que protector. Nem lhe deixou concluir a phrase de agradecimento; cortou-a com uma caricia; depois falou-lhe da belleza, das occupações, de cem cousas alheias ao objecto que as reunia, dissimulação generosa, que Estella comprehendeu, porque tambem possuia o segredo dessas delicadezas moraes.

Quinze ou vinte dias depois, Valeria interrogou directamente Estella, e a resposta que obteve foi contraria a suas esperanças.

—Não amo ninguem, disse a moça; e provavelmente não amarei nunca.

—Porque? replicou vivamente a viuva.

Estella sorriu.

—Podia dizer-lhe, respondeu ella, que não tenho coração...

—Seria mentir. Mas vás talvez dizer que um bom marido não é cousa facil de achar.

—Isso.

—Tens razão até certo ponto. De todas as aves raras a mais rara é um bom marido; mas o que é raro não é impossivel. Metteu-se-me em cabeça que heide descobrir uma joia. Se eu a encontrar, que farás-tu?

—Acceito, disse a moça depois de um instante.

—Assim, não; não quero que a acceites sem vontade; has-de acceital-a com amor... porque eu não creio que não tenhas coração; é faceirice de moça bonita. Deixa ver,—continuou a viuva collocando-lhe a mão no peito;—tens, oh! tens um coração que parece querer despedaçar-te o peito. Estella, tu estás doente!

—Que ideia! exclamou a moça rindo. Se eu vendo saude! Não estou doente, estou commovida. Tratemos do noivo. Não me peça que o ame apaixonadamente, porque eu não nasci para isso. Minha natureza é fria. Mas um pouco de estima, certo interesse...

—Justo: a semente do amor. O tempo se encarregará de fazer a arvore.

Durante tres mezes não falaram do assumpto. No fim desse tempo,—tendo Valeria descido de Santa Thereza, Estella foi passar algumas semanas na rua dos Invalidos.—Ainda nada? perguntou a viuva logo que a viu.—Cousa nenhuma, foi a resposta. Dada a situação de uma e outra, não era facil a Valeria encontrar-lhe o noivo desejado a menos de o designar a propria noiva, e essa era a mais improvavel de todas as hypotheses.

Entretanto, a convivencia fez renascer entre ambas alguns dos habitos antigos. Valeria tornou a sentir a necessidade de a ter comsigo, de a conversar, de depositar nella suas ideias e enxaquecas. Estella offerecia todas as vantagens de uma velha amiga, com a circumstancia de ser moça, e ainda mais, a de ser bonita, qualidade sympathica á viuva, que fora uma das bellas mulheres de seu tempo. Nada lhes impedia restaurar inteiramente a situação anterior, a não ser a memoria do passado recente. Era isso que ainda estabelecia entre ambas tal ou qual cautella, tal ou qual separação, que o Sr. Antunes chegava a suspeitar ás vezes, sem poder comprehender nunca. Não falavam de Jorge, nem da guerra, nem de cousa que podesse reviver a lembrança do passado.

Começado o verão de 1867, Valeria transportou-se a Santa Thereza, onde Estella foi algumas vezes. N'uma dessas vezes encontrou alli a filha de Luiz Garcia, que caminhava para os treze annos, e concluia os estudos de collegio. Houve um instante de hesitação entre as duas; Yayá, que era ainda a mesma creatura travessa e lepida, sentiu-se acanhada deante da gravidade de Estella, mas esse instante foi curto e a affeição immediata. Acabado o verão, a viuva resolveu não descer á rua dos Invalidos; e, com o pretexto ou o motivo de que em Santa Thereza ficava mais só, alcançou que Estella fosse lá estar algum tempo. Estella subiu em Março.

Já então Yayá entrara na intimidade da casa, menos ainda pelo que podia haver, e—havia,—sympathico e attrahente em sua pessoa, do que pelo esforço proprio. A sagacidade da menina era a sua qualidade mestra: assim viu depressa o que era menos agradavel, para evital-o, e o que o era mais, para cumpril-o. Essa qualidade ensinava-lhe a syntaxe da vida, quando outras ainda não passam do abecedario, onde morrem muita vez. Obtida a chave do caracter de Valeria, Yayá abriu a porta sem grande esforço.

Ia lá quasi todos os domingos, ás tardes, e algumas vezes de manhã, com tal ou qual repugnancia do pae, para quem os domingos eram os dias de ouro, e só o eram com a condição de exclusivismo. Luiz Garcia cedeu, não por causa da viuva, mas para satisfazer a filha, que parecia ter prazer em frequentar a casa.—É ainda creança pensou elle; convem dar-lhe festas. Quando Yayá jantava em casa de Valeria, Luiz Garcia, ou tambem jantava, ou ia buscal-a á noite, e trazia-a depois de uma hora de conversa. A presença de Estella tornou ainda mais apraziveis á mocinha aquellas visitas, e dentro de pouco tempo, era a affeição de Estella que mais lhe occupava o coração.

A lei dos contrastes tinha ligado essas duas creaturas, porque tão petulante e juvenil era a filha de Luiz Garcia, como reflectida e placida a filha do Sr. Antunes. Uma ia para o futuro, em quanto a outra vinha já do Passado; e se Estella tinha necessidade de temperar a sua atmosphera moral com um raio da adolescência da outra, Yayá sentia instinctivamente que havia em Estella alguma cousa que sarar ou consolar.

Um dia, Yayá foi encontrar Estella ao pé de uma mesa, com um album de retratos aberto deante de si. A moça estava tão embebida, que só deu pela presença de Yayá, quando esta parou do outro lado da mesa, e inclinou os olhos para o album. Estella teve um pequeno sobresalto, mas dominou-se logo.

—Seu pae tem uma physionomia de bom coração, disse ella.

—Não é verdade? retorquiu a menina com enthusiasmo.

Effectivamente, uma das paginas do album continha o retrato de Luiz Garcia; mas na outra pagina estava o retrato de Jorge, um dos tres ou quatro que a viuva possuia na collecção. Yayá, que adorava o pae, achou que a observação de Estella era a mais natural do mundo, e não olhou sequer para a outra photographia. Estella fechou depressa o album com a mão tremula, e mal pode sorrir á insistencia com que Yayá voltou áquelle assumpto. Tinha o seio offegante e o olhar vago, remoto, esvaido nas campanhas do sul. O coração batia-lhe violentamente. Mas essa commoção não durou mais de tres a quatro minutos.

—A senhora podia casar-se com papae, disse a menina depois de olhar algum tempo para a outra.

Estella teve novo sobresalto, mas dessa vez era só espanto. Como Yayá a abraçasse pela cintura, ella inclinou o rosto sobre o rosto da menina, e perguntou sorrindo:

—Tinhas muita vontade de ser minha enteada?

—Tinha.

Estella abanou a cabeça, com um gesto, não de negativa, mas de incredulidade. Já conhecia alguma cousa do caracter de Luiz Garcia; rigorosamente era um esposo acceitavel. Via nelle um homem de affeições placidas, mediocres, mas sinceras. Via-o respeitoso sem abatimento, polido sem affectação, falando pouco, mas com alguma ideia, em todo o caso com muita opportunidade, vivendo emfim para si e para a filha. De tudo o que observara concluia que a sobriedade era a lei moral desse homem, e que á taça da vida não pedia mais do que alguns goles, poucos. Que importa? A vida conjugal é tão sómente uma chronica; basta-lhe fidelidade e algum estylo. Com quanto houvesse algumas semelhanças entre ambos, havia tambem differenças, mas Estella podia fiar do tempo, que ajusta os contrastes. E, não obstante, se o marido era acceitavel, não lhe parecia que fosse possivel. A gravidade exterior como que o rodeava de uma atmosphera impenetravel.

Yayá não insistiu; mas dous ou tres domingos depois, estando todos na chacara, interrompeu a conversa geral para perguntar a Estella se deveras lhe tinha affeição.

—Ja disse que sim, acudiu Estella.

—Mas gosta muito de mim?

—Muito, repetiu Estella prolongando a primeira syllaba.

—Porque não vem morar commigo?

Riram-se os outros; Estella beijou-a na testa. Ficando sós, a viuva e Estella jogaram uma partida de cartas, mas jogaram sem attenção; depois tomaram chá, mas sem appetite; finalmente dormiram, mas sem somno. Talvez a mesma ideia as preoccupava. No dia seguinte, Estella perguntou sorrindo á viuva:

—Se eu lhe disser que já achei um projecto de marido?

—Quem?

—O Luiz Garcia.

Valeria apertou-lhe as mãos.

—Excellente homem, disse ella; marido digno e capaz. Conheço-o ha muitos annos; nunca desmereceu da nossa estima. E... amam-se?

—Isso agora é mais complicado, replicou Estella; não posso dizer que o amo; com tudo, desejaria ser sua mulher. Talvez elle não deseje ser meu marido, mas é por isso mesmo que a consulto e lhe peço que me diga, uma vez que approva a escolha, se posso esperar reciprocidade e se devo...

—Não deves fazer nada; imcumbo-me de tudo.

Valeria não occultou o contentamento. Não lhe tinha occorido nunca a ideia de os casar; Yayá fel-a nascer, Estella abriu-a em flôr; só faltava o fructo, e era justamente a parte difficil, porque a indole de Luiz Garcia affigurava-se-lhe inteiramente avessa ao desejo de contrahir segundas nupcias. Mas Valeria não desanimou. Não se pode dizer que elle seja o ideial de todas as noivas, pensava ella; não tem a expansão nem o verdor da primeira edade; mas deve ser um excellente marido. Luiz Garcia tinha agora melhor posição. Obtivera uma promoção de emprego, e mediante isso, e alguns trabalhos extraordinarios que lhe eram confiados, pode ficar inteiramente acoberto das intempéries da vida. Estabelecera o futuro da filha e restaurara as alfaias da casa, não por si, mas com a intenção de ser mais agradavel a Yayá.

Estella, entretanto, impunha uma condição.

—Não desejo parecer que me offereço, disse ella; seria desairoso para um e para outro, e não seria a realidade.

—Que te offereces, não; mas quem me pode impedir de ter adivinhado que o amas? disse a viuva maliciosamente.

—Ou que o aprecio, emendou Estella. Para um bom casamento não é preciso mais.

Luiz Garcia não ficou pouco admirado quando Valeria dahi a dias lhe perguntou se não tinha vontade de passar a segundas nupcias. Sorriu e ergueu os hombros; mas, insistindo a viuva, respondeu que a ideia de casar era já serodea para elle.

—Não diga isso, tornou Valeria. Yayá está quasi moça, vai deixar o collegio. O senhor vive só, e tendo de dar companhia a sua filha, é melhor que lhe dê uma madrasta.

Luiz Garcia abanou resolutamente a cabeça.

—Não tenho vocação para o casamento, disse elle depois de uma pausa; minha verdadeira vocação é o celibato.

—Foi por isso que enviuvou?

—Casei-me uma vez, é verdade, mas não foi por amor; além de que, era rapaz.

—Quando teimo em alguma cousa, é difficil que não vença, disse a viuva depois de alguns instantes. Ha duas pessoas de quem gosto muito, ella e o senhor, ambas dignas uma da outra; e eu entendi que as devia casar, e hei-de casal-as. Por que está a sorrir com esse ar incredulo?

Como Luiz Garcia não respondesse e continuasse a sorrir, Valeria ergueu-se e foi até a varanda, donde se olhava para a chacara; depois voltou-se para dentro:

—Ande ver sua noiva, disse ella.

Luiz Garcia foi até á varanda; a viuva apontou-lhe para o grupo de Estella e Yayá.

Na chacara havia um canteiro circular, plantado de gramma, no centro do qual jorrava a agua de um repucho. A bacia deste era orlada de plantas, cujas folhas largas, rajadas umas de escarlate, outras de branco, interrompiam a monotonia da relva. Dessas folhas colhera Estella algumas, entretecera os talos formando uma capella, a pedido de Yayá. Quando Luiz Garcia chegou á janella, a moça concluia o difficil trabalho. Uma vez prompto, Yayá que olhava para ella, infantilmente anciosa, inclinou a cabeça, e Estella cingiu-a com a grinalda rustica; depois recuou alguns passos, approximou-se outra vez, concertou-a melhor. As folhas caiam-lhe sobre os hombros irregularmente, ou erguiam-se sobre a cabeça, e o todo daria ideia de uma nayade casquilha. Estella mirou-a alguns instantes; inclinou-se para ella e beijou-a repetidas vezes. Yayá quiz pagar-lhe o trabalho e a caricia devolvendo-lhe a grinalda, e collocando-lh'a ella mesma na cabeça. Estella recusou, mas como a menina insistisse, batendo impacientemente o pé, cedeu ao desejo infantil. Inclinou-se; Yayá, que trepara a um banco, cingiu-lhe a cabeça, como a outra lhe fizera, e, satisfeito o seu capricho, saltou do banco ao chão.

Nesse momento, como Valeria falava a Luiz Garcia, não viram estes dous que a menina, saltando precipitadamente e mal, caíra na areia; só deram pelo desastre ouvindo um pequeno grito angustioso de Estella. A moça correra á menina para a fazer levantar.

A quéda fora pequena; Yayá procurava sorrir, mas um seixo que havia no chão, e sobre o qual caíra o rosto, fizera-lhe uma leve escoriação na face.

—Não foi nada, dizia ella

—Nada! Você feriu-se... Ora, isto! Papae que ha de dizer... Anda cá.

Estella levou a menina pela mão até o repucho; molhou o lenço na agua; lavou-lhe o sangue da face, inclinada sobre ella, que sorria voluntariamente. Nesse momento, Luiz Garcia, que havia descido logo, chegou ao grupo das duas.

—Não foi nada, papae, disse Yayá lendo no rosto do pae o motivo que o trouxera; fui pular do banco e caí. Foi bem feito; é para eu não ser travessa.

Luiz Garcia estendera a mão direita sobre a cabeça da filha e examinava-lhe a escoriação, que era pouco mais de nada. Tranquillisou-se e reprehendeu-a levemente, Estella, que interrompera a operação, concluiu-a dizendo que o caso era de pouca monta, mas podia ter sido mais grave. Luiz Garcia agradeceu-lhe o cuidado e o obsequio.

—Demais, a culpada fui eu, disse Estella, e sem desculpa, porque não sou creança. Vamos? continuou ella pegando na mão da menina.

—Então? perguntou a viuva a Luiz Garcia logo que este voltou a ter com ella.

—Não falemos nisso, ou faça-me um milagre, disse elle seccamente.

Não obstante a commoção que lhe ficou do procedimento affectuoso de Estella, em relação a Yayá, Luiz Garcia riu no dia seguinte, ao lembrar-lhe a proposta de casamento. Quando lá voltou, não ouviu falar mais em semelhante assumpto, nem Estella lhe deu a entender a menor pretenção. Pareceu-lhe que Valeria consultara apenas o seu desejo particular.

Tratando a moça de perto, Luiz Garcia havia já observado duas cousas: primeiro, o resguardo com que ella procedia, sem ostentar a intimidade de Valeria, nem cair nos ademanes daservilidade; depois um ar de tristeza, que era a sua feição habitual. Concluiu que Estella devia padecer ou ter padecido alguma vez. Apreciou, além disso, algumas de suas qualidades moraes. Suppôl-as verdadeiras, mas suppôl-as tambem caducas, como as graças do rosto ou como a flor do campo; com a differença, dizia elle,—que ha um prazo fatal para que as graças percam o primitivo frescor, e a flôr expire o seu ultimo cheiro,—ao passo que a natureza social tem a decrepitude precoce, e um principio de corrupção, que destroe em breve termo todas as florescencias do primeiro sol.

Estella não desistira da ideia e cogitava um meio de chegar á execução, não obstante a confiança da viuva, que lhe dizia:—Descança; a rede está lançada. Era justamente essa ideia de rede, que repugnava ao espirito directo e simples de Estella. Entretanto, cada dia que passava vinha confirmar a eleição da moça.

O resto foi obra de Yayá, obra dividida em duas partes, uma voluntaria, outra inconsciente. Voluntaria, porque tambem a menina, no silencio laborioso de seu cerebro, construira o projecto de os unir, e o dissera mais de uma vez a um e a outro. Inconsciente, porque o amor que a ligava a Estella, foi a mais poderosa força que modificou o pae. Era uma affeição intensa a dessas duas creaturas; ao passo que Yayá dava a Estella uma porção de ternura de filha, Estella achava no amor da menina uma antecipação dos prazeres da maternidade. Luiz Garcia testemunhou esse movimento reciproco e, por assim dizer, fatal. Se Yayá devesse ter madrasta, onde a acharia mais completa? Discreta, moderada, superior a seus annos, Estella tinha as condições necessarias para esse delicado papel. A primeira insinuação da viuva foi a causa primordial; mas o tempo, a convivencia, a affeição das duas, a necessidade de dar segunda mãe á menina, e antes legitima que mercenaria, finalmente, a certeza de que a Estella não repugnava a solução, taes foram os primeiros elementos da decisão de Luiz Garcia.

Faltava só o milagre, e o milagre veiu. Yayá adoeceu um dia em casa de Valeria, e a doença, posto que não grave nem longa, deu occasião a que Estella manifestasse de modo inequivoco toda a ternura de seu coração. Luiz Garcia foi testemunha da dedicação silenciosa e continua com que Estella tratou da doente. Esse ultimo espectaculo desarmou-o de todo. Entre elles, o casamento não era a mesma cousa que costuma ser para outros; nada tinha das alegrias ineffaveis ou das illusões juvenis. Era um acto simples e grave. E foi o que Estella lhe disse a elle, no dia em que trocaram reciprocamente as primeiras promessas.

—Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casamos é por nos julgarmos friamente dignos um do outro.

—Uma paixão de sua parte, em relação á minha pessoa, seria inverosimil, confessou Luiz Garcia; não lh'a attribuo. Pelo que me toca, era egualmente inverosimil um sentimento dessa natureza, não porque a senhora o não podesse inspirar, mas porque eu já o não poderia ter.

—Tanto melhor, concluiu Estella; estamos na mesma situação e vamos começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranquillo. Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro.

O casamento foi approvado pelo Sr. Antunes, com a mesma alma com que um reu sanccionaria a propria execução. Não sómente se lhe iam embora esperanças muito menos modestas, como lhe repugnava o caracter do genro. Não cedeu sem hesitação e luta; hesitação perante a viuva, luta em relação á filha; mas cedeu, porque elle nascera para não resistir. Habil, no emtamto, em espremer algum lucro dos males inevitaveis, uma vez perdida a confiança na efficacia da recusa, acceitou o accordo, não sómente com apparencia cordial, mas ainda enthusiasta.

—O dote faz-lhe foscas, gemia elle philosophicamente.

A viuva serviu de madrinha a Estella. Sua alegria era sincera, e tanto ou quanto desinteressada. Quasi se não lembrava já do perigo que, dous annos antes, lhe atordoara o espirito. As cartas de Jorge eram tão livres de qualquer oppressão, tão exclusivamente militares! Além disso, a consciencia ficava satisfeita de um desenlace que de certo modo, compensava a perda, se alguma perda havia causado a Estella. Finalmente, a satisfação com que a viu acceitar casamento, aliás suggerido por ella propria, e a felicidade de que foi testemunha durante os primeiros tempos, deram-lhe a convicção de que a moça estava já inteiramente isenta, em relação ao filho. Não obstante a paixão deste, tinha fé que o tempo fizera a sua obra.




VII

Tres mezes depois da chegada ao Rio de Janeiro, tinha Jorge liquidado todos os negocios de familia. Os haveres herdados podiam dispensal-o de advogar ou de seguir qualquer outra profissão, uma vez que não fosse ambicioso e regesse com criterio o uso de suas rendas. Tinha as qualidades precisas para isso, umas naturaes, outras obtidas com o tempo. Os quatro annos de guerra, de mãos dadas com os successos immediatamente anteriores, fizeram-lhe perder certas preoccupações que eram em 1866, as unicas de seu espirito. A vida á redea solta, o desperdicio elegante, todas as seduções juvenis, eram inteiramente passadas.

O espectaculo da guerra, que não raro engendra o orgulho, produziu em Jorge uma acção contraria, porque elle viu, ao lado da justa gloria de seu paiz, o irremediavel conflicto das cousas humanas. Pela primeira vez meditou; admirou-se de achar em si uma fonte de ideias e sensações, que unica lhe deram os receios de outro tempo. Comtudo, não se pode dizer que viera philosopho. Era um homem, apenas, cuja consciencia recta e candida sobrevivera ás preoccupações da primeira quadra, cujo espirito, temperado pela vida intensa de uma longa campanha, começa de penetrar um pouco abaixo da superficie das cousas.

Querendo adoptar um plano de vida nova, renegou a principio todos os habitos anteriores, disposto a dar á sociedade tão sómente a stricta polidez. Teve primeiro ideia de ir estabelecer-se em algum recanto silencioso e escuso no interior; mas desistiu logo, cedendo á necessidade de ficar mais á mão de uma viagem transatlantica, ideia a que aliás nunca deu principio de execução.

O primeiros tres mezes passaram depressa; foram empregados em liquidar o inventario. Poucos legados deixara a viuva. Um delles interessa-nos, porque recaiu em favor de Yayá Garcia. A viuva beneficiava assim, indirectamente, o marido de Estella. Jorge approvou cordialmente o acto de sua mãe. Não approvou menos o dote de Estella, mas o sentimento do vexame que experimentou, logo que delle teve noticia, honrava a delicadeza de seu coração.

Luiz Garcia dera-se pressa em visitar o filho de Valeria. A entrevista desses dous homens, que o curso dos successos collocara em tão delicada situação, foi cordial, mas não expansiva. Jorge não achou Luiz Garcia mais velho; era o mesmo. Não o achou tambem menos reservado que antes. A conversa, em começo não foi além dos factos geraes; falaram da guerra e das victorias. Jorge referiu alguns episodios, que o outro ouviu com interesse; e, como parecesse olvidar seus proprios feitos:

—Vejo que é modesto, observou Luiz Garcia; felizmente lemos as folhas e as partes officiaes.

—Fiz o que pude, respondeu Jorge; era preciso vencer ou ser vencido. Que é feito de tanta gente que ainda não vi? continuou elle para desviar o assumpto.

—Cada qual segue o seu destino. Meu sogro creio que já o visitou...

—Já.

—A proposito, deixe-me agradecer os beneficios que devo a sua mãe...

Jorge quiz interrompel-o com o gesto.

—Perdão; e meu dever, continuou Luiz Garcia gravemente. A Sra. D. Valeria quiz mostrar ainda á ultima hora a sympathia que sempre lhe mereci. Duas vezes o fez, além de outras. Primeiramente, resolveu-me a casar outra vez, cousa que estava longe de meus calculos. Foi ella a primeira autora dessa transformação de minha vida, e em boa hora o foi, porque não me podia fazer maior obsequio. Requintou o obsequio, occultando até a ultima hora a prova de ternura que desde alguns mezes antes dera a minha mulher; tinha-a dotado, como deve saber...

Jorge fez um gesto affirmativo.

—Achou que não era bastante e deixou, a minha filha um legado, que será o seu dote... Gostava muito della. Não podendo agradecel-o á bemfeitora, permitta que o agradeço ao...

—Desta vez hade obedecer-me, interrompeu Jorge com brandura; falemos de outra cousa.

—Sim; falemos de minha mulher. Saiba que rematou dignamente a obra de sua mãe; e mais uma vez me fez comprehender o beneficio do casamento. Logo depois de casado, propoz-me acceitar, em favor de minha filha, a parte com que a Sra. D. Valeria lhe manifestara sua affeição. Gostei de a ouvir, por que era signal de desinteresse, mas recusei, e recusei sem efficacia. Cedi, emfim; e não podia ser de outro modo. Folgo de lhe dizer essas cousas porque são raras...

Jorge fechou o rosto ao ouvir essas palavras de Luiz Garcia. Adivinhara a causa do desinteresse de Estella.—Eterno orgulho! pensou elle. Depois reflectiu no caso e perguntou a si mesmo se a moça teria confiado ao marido alguma cousa do que se passara entre elles. Era difficil percebel-o, mas não era acertado suppôl-o. Nenhuma mulher o faria nunca, Estella menos que nenhuma outra. Interrogou o rosto de Luiz Garcia; achou-a placido e immovel. Após alguns segundos de silencio, estendeu-lhe a mão.

—Permitte-me então que o felicite? disse elle.

—De coração, acudiu Luiz Garcia. E depois de erguer-se:—Se eu tivesse o sestro de dar conselhos, dir-lhe-hia que se casasse.

—Póde ser.

—Não lhe pergunto pela outra paixão; creio que a esqueceu de todo.

—De todo.

Luiz Garcia apertou-lhe cordialmente a mão e saiu, depois de lhe offerecer a casa. Jorge ficou alguns instantes pensativo. A noticia do dote de Estella causara-lhe certo vexame; a noticia da doação feita pela moça em favor da enteada, produzia-lhe agora um sentimento mesclado de admiração e despeito. Ella sentia arder no mais fundo do coração da moça um residuo de odio, e em seu proprio coração não podia deixar de approvar o acto.

Sendo forçosa pagar a visita a Luiz Garcia, Jorge demorou o cumprimento desse dever emquanto lhe foi possivel fazel-o sem reparo. Um dia, emfim, sabendo por intermedio do Sr. Antunes que a familia não estava em casa, foi a Santa Thereza e deixou lá um bilhete de visita.

A vida de Jorge foi então dividida entre o estudo e a sociedade, á qual cabia sómente uma parte minima. Estudava muito e projectava ainda mais. Delineou varias obras durante algumas semanas. A primeira foi uma historia da guerra, que deixou por mão, desde que encarou de frente o monte de documentos que teria de compulsar, e as numerosas datas que seria obrigado a colligir. Veiu depois um opusculo sobre questões juridicas e logo duas biographias de generaes. Tão depressa escrevia o titulo da obra como a punha de lado. O espirito soffrego colhia só as primicias da ideia, que aliás entrevia apenas. Uma vez, uma só vez, lembrou-se de escrever um romance, que era nada menos que o seu proprio; ao cabo de algumas paginas, reconheceu que a execução não correspondia ao pensamento, e que não saía das effusões lyricas e das proporções da anedocta.

Quando mais disposto se achava a compor essa autobiographia, occorreu vagar a casa da Tijuca, a mesma aonde fora uma vez com sua mãe e Estella, ponto de partida dos successos que lhe transformaram a existencia. Quiz vel-a novamente; talvez alli achasse uma fonte de inspiração. Foi; achou-a quasi no mesmo estado. Entrou curioso e tranquillo. Pouco a pouco sentiu que o passado começava a reviver; a resurreição foi completa, quando penetrou na varanda, em que da primeira vez achara o casal de pombos, solitario e esquecido. Já lá não estavam as pobres aves! Tinham voado ou morrido, como as esperanças delle, e tão discretamente que a ninguem revelaram o desastrado episodio. Mas as paredes eram as mesmas; eram os mesmos o parapeito e o ladrilho do chão. Jorge encostou-se ao parapeito, onde estivera Estella, com os pombos ao collo, diante delle, naquella fatal manhã. O que sentia nesse outro tempo, posto frisasse o amor, tinha ainda um pouco de estouvamento juvenil. Comtudo, a vista das paredes nuas e frias da varanda abria-lhe na alma a fonte das sensações austeras, e elle tornou a ver os olhos férvidos e o rosto pallido da moça; pareceu até escutar-lhe o som da voz. Viu tambem a sua propria violencia; e, como em meio de tantas vicissitudes, trazia ainda a consciencia integra, a recordação fel-o estremecer e abater. Jorge fincou os braços no parapeito e fechou a cabeça nas mãos.

—Olá, senhor dorminhoco! São horas de almoçar.

Jorge ergueu vivamente a cabeça e olhou para a chacara, donde lhe pareceu que saíra a voz. Na chacara, a vinte passos de distancia, estava um homem, que sorria para elle, com as mãos nas costas, seguras a uma grossa bengala. Jorge sentiu um calefrio, como se lhe descobrissem o segredo do passado. Só depois de desfeita a primeira sensação, respondeu sorrindo:

—Não durmo; estou pensando nos alugueis.

—Muda-se para aqui?

—Não.

—A casa é sua?

—É. Suba cá.

O homem galgou os seis degraos da escada de tijolo e entrou na varanda, onde Jorge assumira exclusivamente o papel de proprietario, olhando attentamente para as paredes do edificio.

—Que faz por aqui, Sr. Procopio Dias, ás dez horas da manhã? disse Jorge logo que o outro appareceu.

—Passei a noite na Tijuca; soube que esta casa vagara, vim vel-a; não sabia que era sua. Está um pouco estragada.

—Muito.

—Muito?

—Parece.

Procopio Dias abanou a cabeça com um gesto de lastima.

Não é assim que deve responder um proprietario, disse elle. Meu interesse é achal-a arruinada; o seu é dizer que apenas precisa de algum concerto. A realidade é que a casa está entre a minha e a sua opinião. Olhe, se está disposto a concordar sempre com os inquilinos, é melhor vender as casas todas que possue.—Ou fica perdido... Com que então esta casa é sua? A apparencia não é feia; ha alguma cousa que pode ser concertada e ficará então excellente. Não é casa moderna; mas é solida. Eu já a vi quasi toda; desci á chacara, e estava a examinal-a, quando o senhor appareceu na varanda.

—Quer ficar com ella?

—Ingenuo! respondeu Procopio Dias batendo-lhe alegremente no hombro. Se eu confesso que ella não está muito estragada é porque não a quero para mim. É grande de mais; e depois, fica muito longe da cidade. Se fosse mais para baixo...

—Mas no caso de que haja por ahi algum namoro? ponderou Jorge sorrindo.

—Falemos de outra cousa, acudiu o outro faiscando-lhe os olhos.

Os olhos de Procopio Dias eram cor de chumbo, com uma expressão reflectida e sonsa. Tinha cincoenta annos esse homem, uns cincoenta annos ainda verdes e prosperos. Era mediano de carnes e de estatura, e não horrivelmente feio; a porção de fealdade que lhe coubera, elle a disfarçava, quanto podia, por meio de qualidades que adquirira com o tempo e o trato social. Fazia ás vezes um movimento que lhe descrevia na testa cinco rugas horizontaes. Era uma das suas maneiras de rir. Além dessa particularidade, havia o feitio do nariz, que representava um triangulo de lados eguaes, ou quasi: nariz a um tempo sarcastico e inquisidor. Não obstante a expressão dos olhos, Procopio Dias tinha a particularidade de parecer simplorio, sempre que lhe convinha; nessas occasiões é que ria com a testa. Não usava barba; elle proprio a fazia com o maior esmero. Via-se que era homem abastado. As roupas, graves no corte e nas cores, eram da melhor fazenda e do mais perfeito acabado. Naquella manhã trazia uma longa sobrecasaca abotoada até metade do peito, deixando ver meio palmo de camisa, infinitamente bordada. Entre o ultimo botão da sobrecasaca e o unico do collarinho, fulgia um brilhante vasto, ostensivo, escandaloso. Um dos dedos da mão esquerda ornava-se com uma soberba granada. A bengala tinha o castão de ouro lavrado, com as iniciaes delle por cima,—de forma gothica.

Jorge conheceu Procopio Dias no Paraguay, onde este fora negociar e triplicar os capitaes, o que lhe permittiu collocar-se acima das viravoltas da fortuna. Travaram relações, não intimas, mas frequentes e agradaveis, e até certo ponto uteis a Procopio Dias, que obteve de Jorge mais de uma recommendação. Não obstante a frequencia das relações, estavam longe da amizade estreita; e isso, não por esforço de Procopio Dias, cujas maneiras faceis assediaram por muito tempo a inexperiencia de Jorge. O motivo de Procopio Dias cessou com a guerra, desde que com a guerra cessara tambem o interesse mercantil. Jorge não tinha motivo contra elle; quando o conhecera estava no periodo melancholico.

—Ainda não respondeu á minha suspeita, disse Jorge dando o braço a Procopio Dias.

—O namoro?

—Sim.

—Nem sombras disso, meu caro! Ou antes.... creio que vou entrar para um convento: é a minha ultima ambição.

Procopio Dias tinha dous credos. Era um delles o lucro. Mediante alguns annos de trabalho assiduo e finuras encobertas, viu engrossarem-lhe os cabedaes. Em 1864, por um instincto verdadeiramente miraculoso, farejou a crise e o descalabro dos bancos, e retirou a tempo os fundos que tinha em um delles. Sobrevindo a guerra, atirou-se a toda a sorte de meios que pudessem tresdobrar-lhe as rendas, cousa que effectivamente alcançou no fim de 1869.

A não ser o segundo credo, é provavel que Procopio Dias só liquidasse com a morte. Tendo chegado a uma posição solida, aos cincoenta annos, achou-se deante de outra riqueza, não inferior áquella, que era o tempo. Ora o segundo credo era o gozo. Para elle, a vida physica era todo o destino da especie humana. Nunca fora sordido; desde as primeiras phases da vida, reservou para si a porção de gozo compativel com os meios da occasião. Sua philosophia tinha dous paes: Lucullo e Salomão,—não o Lucullo general, nem o Salomão piedoso, mas só a parte sensual desses dous homens, porque o eterno feminino não o dominava menos que o eterno estomago. Entre os collegas de negocio foi sempre tido como um feliz vencedor de corações francos. E, ao envez de outros, não punha nisso a menor vaidade ou gloriola; preferia a cautella e a obscuridade, não em attenção ao pudor publico, mas porque era mais commodo. Nenhuma diva mundana teria jamais a audacia de cortejal-o na rua ou sorrir-lhe simplesmente; perdia o tempo e o sacerdote. Gozava para si, que é a perfeição sensual.

Não conhecia Jorge nem a vida nem o caracter do outro. Procopio Dias tinha o peor merito que pode caber a um homem sem moral: era insinuante, affavel, conversado; tinha certa viveza e graça. Era bom parceiro de rapazes e senhoras. Para os primeiros, quando elles o pediam, tinha a anedocta crespa e o estylo vil; se lhes repugnava isso, usava de atavios differentes. Com senhoras era o mais paciente dos homens, o mais serviçal, o mais boliçoso,—uma joia.

—Ninguem o vê, dizia elle d'ahi a duas horas, á mesa do almoço de Jorge, na casa da rua dos Invalidos. Não conheço os seus amigos de outro tempo, mas devo crer que todos lhe censuram essa vida de bicho do matto.—Nos theatros.... nunca vae aos theatros?

—Quasi nunca.

—Vamos hoje?

—Corruptor? disse Jorge sorrindo.

De noite foram ao theatro. Procopio Dias estava de veia; a palestra, a scena, o proprio tempo, tudo conspirou para dissipar as sombras de melancholia que a manhã accumulara na fronte de Jorge.—Não se deixe apodrecer na obscuridade, que é a mais fria das sepulturas, dizia Procopio Dias, á mesa de um hotel, onde fora ceiar. Jorge não comeu nada. Mau grado o prazer que achava em estar com elle, não quiz acceitar-lhe o obsequio da ceia, apezar de lhe ter feito o do almoço. Procopio Dias percebeu isso mesmo, mas não se molestou; abaixou a cabeça, deixou passar essa onda de desconfiança, e surgiu fóra, a rir. Sairam dalli uma hora depois. A evocação da Tijuca tinha-se esvaido.

Jorge deixou-se persuadir dos conselhos do outro. Abriu mão do ultimo livro planeado, contentando-se com tel-o vivido. Demais o tempo ia minando a antiga sensação, e a vida social tornava a prendel-o em suas malhas.

Entre as pessoas que tornou a ver, figurava a mesma Eulalia, com quem a mãe quizera casal-o, alguns annos antes. Eulalia não ficara solteira; estava na lua de mel, uma lua de mel que durava mais de um anno. O casamento fora a vara mosaica, mediante a qual se lhe abrira no coração uma fontesinha de ternura. Encontraram-se n'um baile. Nenhum delles sentiu acanhamento; como nunca chegaram a tratar dos projectos de Valeria, poderam falar com a mesma isenção de 1866. A differença é que Eulalia, que era feliz, exagerava a felicidade para melhor mostral-a a Jorge e convencel-o de que antes ganhara do que perdera com a recusa delle.

—Vá lá á rua de Olinda, disse a moça; quero mostrar-lhe meu filho.

Jorge foi. Eulalia mostrou-lhe o filho, creança que valia por duas, tão gorda e vigorosa era. Jorge chegou a pegar nelle, mas não sabia haver-se com as rendas, os babados, as fitas. Eulalia que possuia já toda a destreza materna, tomou-lh'o das mãos.—O senhor não entende disto, disse ella. E depois de concertar a touca da creança, beijou-a muitas vezes, riu-se para ella, fez-lhe um monologo, tudo com uma graça e poesia, que Jorge estava longe de lhe suppôr cinco annos antes. Elle contemplava essa joven mãe, elegante e natural, e sentia-se tomado de inveja e cobiça.

—A felicidade é isto mesmo, pensou elle.

Voltou lá algumas vezes, fez-se intimo da casa. Começou a receber tambem. Viu entre os frequentadores de sua casa o pae de Estella, que achou nelle a benevolencia do desembargador. O Sr. Antunes era conviva certo ao almoço dos domingos; dava-lhe noticias do genro e da filha. Elle pranteava ainda a chimera esvaida, e achava não sei que dolorido prazer em falar de Estella ao genro de suas ambições. Demais, era um como desforço do outro, a respeito de quem aventurou mais de uma queixa. Jorge, porém, ouvia-o sem lhe responder nada.

No meado do anno de 1871, fez Jorge uma excursão a Minas-Geraes, com o fim de ajoelhar-se á sepultura de sua mãe, cujos ossos transportaria opportunamente para um dos cemiterios do Rio de Janeiro. A excursão durou seis semanas. Jorge visitou alguns parentes, e regressou nos principios de Agosto.

Um incidente transtornou-lhe os planos.




VIII

Chegando ao Rio, Jorge teve noticia de que Luiz Garcia estava enfermo. Não contava com o incidente, que o poz em grande perplexidade. Não queria visital-o, e mal poderia deixar de o fazer. Luiz Garcia fora prezado de seus paes; elle proprio lhe tinha estima e consideração: motivos bastantes a aconselhar o desempenho de um dever de cortezia. Mas, por outro lado, ir a Santa Thereza era arriscar-se á suspeita de Estella. Jorge vacillou durante dous longos dias. Certo, elle sentiu algum alvoroço, com a ideia de a ver; ideia que, se buscou rejeitar ao espirito, lá ficou latente e dissimulada. Mas a razão que confessava a si proprio era a da conveniencia.

Venceu a hesitação e foi a Santa Thereza, na tarde do terceiro dia. A casa não era já a mesma; tinha dimensões um pouco maiores que a outra. Era nova, ladeada de verdura, com as telhas ainda da primeira cor. Havia duas entradas, uma para a sala, ficando a porta entre quatro janellas, outra para o jardim, e era uma porta de grade de ferro, aberta no centro de um pequeno muro, por cima do qual vinha debruçar-se a verdura de uma trepadeira. Ahi achou Raymundo, mais velho do que o deixara, mas não menos forte. Raymundo conheceu-o, apezar de queimado do sol. Abriu-lhe a porta; acompanhou-o alegremente ao fundo do jardim.

—Meu senhor vae ficar muito contente, dizia elle fazendo-o entrar.

—Está melhor?

—Está, sim senhor. Olhe, está alli.

Raymundo apontou para um grupo de pequenas arvores, atravez de cuja ramagem se descobriam vestidos de mulher. Jorge sentiu coar-lhe pelas veias uma onda de frio. Mas passou depressa; e deu o primeiro passo tão firme, como deante das legiões de Lopez.

—Quem é, Raymundo? cantou uma voz desconhecida, no meio das arvores.

Jorge viu apparecer uma moça, que representava ter dezoito annos e não contava mais de dezeseis; reconheceu a filha de Luiz Garcia. Ella não o reconheceu logo; os trabalhos da guerra tinham-n'o mudado. Demais, nas poucas vezes que o vira não lhe havia prestado muita attenção. Jorge foi conduzido até a cadeira onde se achava estirado Luiz Garcia, entre duas outras, uma com um trabalho de agulha em cima, outras com um livro aberto. Luiz Garcia recebeu-o com satisfação e cordialidade; Jorge explicou a demora da visita pelo facto de estar ausente. A explicação era uma cortezia nova; Luiz Garcia agradeceu-lh'a.

—Estive muito prostrado, disse elle; não sei mesmo se cheguei ás portas da morte. Agora estou quasi bom.

Jorge sentara-se a um lado do convalescente, emquanto Yayá, do outro lado, brincava com os cabellos do pae ou lhe apertava uma das mãos. Luiz Garcia contou as peripecias da doença e exaltou a dedicação da familia; Jorge falou pouco, já por evitar trahir a commoção que sentia ao penetrar naquella casa, já por não prolongar a visita e podel-a terminar no primeiro intervallo de silencio. No fim de quinze minutos levantou-se.

—Espere um pouco, disse o convalescente. Yayá, vae chamar tua madrasta.

Yayá levantou-se para obececer á ordem do pae; mas no momento em que ia pousar nos joelhos deste o livro que tinha no regaço, ouviu-se um passo na areia e logo depois esta subita palavra:

—Prompto!

Era Estella. O sobresalto de Jorge, por mais imperceptivel que fosse, não escapou a Yayá, e fel-a sorrir á socapa; attribuiu-o ao susto. Estella appareceu; mas, porque já sabia da presença de Jorge, pode encaral-o sem nenhuma apparente commoção. Houve certa hesitação entre um e outro, mas foi curta. A moça inclinou-se levemente e estendeu-lhe a mão. Jorge apertou-lh'a.

—Ainda não tinha tido a satisfação de a ver depois de minha volta do Paraguay, disse elle.

É verdade, respondeu a moça; vivemos muito retirados.

Estella chegou-se ao marido, affastando-se Jorge para deixal-a passar.—Prompto, repetiu ella. Trazia-lhe um copo de geléa. Em quanto Luiz Garcia tomava a refeição de convalescente, Estella ficou de pé, ao lado delle; depois sentou-se e dirigiu a palavra ao filho de Valeria. Naturalmente falou-lhe da campanha. Elle respondeu sem affectação, e com tranquillidade.

—Ja tive occasião de lhe dizer que foi um dos heroes, interveiu Luiz Garcia olhando para a mulher; mas o Dr. Jorge teima em escurecer os seus proprios serviços. Yayá não é a mesma cousa.

—Sim? perguntou Jorge.

É verdade; durante toda a campanha matou pelo menos metade do exercito paraguayo.

Yayá lançou ao pae um olhar de graciosa censura.

—Não precisa corar, disse Jorge; era uma maneira de ser patriota; mas creia que havia menos perigo em matar o inimigo cá de longe.

—O senhor matou algum! perguntou Yayá no fim de um instante.

—Provavelmente. Na guerra é preciso matar ou morrer. Não me importava morrer; mas ha occasiões em que o mais indifferente é um heroe. Eu fiz o que pude.

Como a tarde começasse a escurecer, Estella disse ao marido que era tempo de recolher-se a casa. Ergueu-se para lhe o dar o braço; Jorge porém apressou-se a substituil-a. Estella foi adeante, e quando Jorge entrou na sala com o convalescente, ella preparava a cadeira em que este devia sentar-se, uma larga e extensa cadeira de vime. Luiz Garcia esperou alguns instantes, em quanto a mulher collocava as almofadas, resvalando serenamente de um lado para outro.

Durante essa curta espera, Jorge olhava para a moça, e era a primeira vez que o fazia mais detidamente. Pouca era differença entre a Estella de 1867 e a de 1871. Tinha o mesmo rosto pallido e os mesmos olhos severos. As feições não haviam mudado; o busto conservava a graça antiga; estava só um pouco mais cheio, differença que não destoava da estatura, que era alta. Esta era a pessoa physica. Moralmente devia ser a mesma; mas que contraste na situação! Assim,—a mulher que o levara a servir por quatro annos uma campanha ardua e porfiosa, e cuja imagem não esquecera no centro do perigo, essa mulher estava alli, deante delle, ao pé de outro, feliz, serena, dedicada, como uma esposa biblica. A comparação doeu-lhe; mas o coração começava a repetir-lhe juvenilmente as mesmas horas que já havia batido. Para refreal-o, Jorge despediu-se dez minutos depois.

—Já! exclamou Luiz Garcia. Foi visita de medico. Agradeço-lhe, entretanto, a attenção. Esta casa é sua; sabe que todos nós o estimamos.

Jorge seguiu para casa, contente e arrependido da visita que acabava de fazer. Gastou as primeiras horas da noite a folhear dez ou doze tomos, lendo a troncos duas ou tres paginas de cada um, quando os olhos estavam mais attentos na pagina aberta, o espirito saía pé ante pé e deitava a correr pela infinita campanha dos sonhos vagos. Voltava de quando em quando; e os olhos que haviam chegado mecanicamente ao fim da pagina tornavam ao principio, a reatar o fio da attenção. Como se a culpa fosse do livro, trocava-o por outro, e ia da philosophia á historia, da critica á poesia, saltando de uma lingua a outra, e de um seculo a outro seculo, sem outra lei mais que o acaso.

O clarão da seguinte manhã dissipou uma parte dos cuidados da noite. O primeiro alvoroço tinha passado. Jorge disse a si mesmo que bastava ser homem, esquecer o incidente da vespera, e arredar para sempre a possibilidade de outros. Não repetiria a visita a Luiz Garcia; e provavelmente não os veria nunca mais. Na rua do Ouvidor encontrou Procopio Dias, que lhe disse á queima-roupa:

—Entrei meia hora depois do senhor sair.

—Onde?

—Em Santa Thereza. Se se demora meia hora mais, encontrava-o e poderiamos ter descido juntos. Conhece ha muito tempo o Luiz Garcia?

—Desde muito moço.

—Tambem eu; mas não o via ha dez annos. Está o mesmo homem; está melhor, porque casou com uma mulher bonita. Que gente é aquella?

—A mulher foi educada por minha mãe.

—Vê-se que sim. Oh! falámos muito do senhor.

—Sim? perguntou vivamente Jorge.

Procopio Dias olhou fixamente um instante; depois riu com a testa.

—Muito, repetiu elle; eu e o Luiz Garcia travamos um duello de louvores, e se não ha nisto vaidade creio que o venci; naturalmente por que sou mais expansivo do que elle. Na verdade, elle é secco, mas o pouco que disse, disse-o com sinceridade. Parece estimar-se muito aquella familia.

Procopio Dias tornou a falar-lhe de Santa Thereza, na noite do dia seguinte, em uma casa onde jantaram juntos. Falou-lhe primeiramente em particular, depois deante de outros. A dona da casa, que era uma Diana caçadora de boatos e novidades, farejou algum mysterio entre as rugas da testa de Procopio Dias, e dobrando as pontas do arco disparou subtilmente uma flecha que ninguem viu, mas foi enterrar-se no coração de Jorge. Este fez boa cara ao tiro, mas lá dentro sangrou um pouco de irritação e medo. Sentia no fundo da consciencia o calor de um sentimento honesto, e comtudo a opinião tendia a apoderar-se delle e a devassar-lhe as cinzas do passado; cinzas frias ou mornas, é o que elle não podia ainda discernir. Confiado em si mesmo, Jorge tremia deante da opinião,—a opinião do epigramma e da anedocta, que começava a sacudir o seu riso escarninho e cru.

Inquieto e aborrecido, saiu dalli pouco depois de jantar. O gracejo da dona da casa continuava a zumbir-lhe ao ouvido, ao mesmo tempo que a figura de Estella lhe surgia aos olhos, com o seu aspecto do costume. Já entrado na rua dos Invalidos, Jorge desandou o caminho e foi direito a um theatro, com o fim de aturdir-se e esquecer mais depressa. Eram nove horas e meia; assistiu a um resto de drama, que lhe pareceu jovial, e a uma comedia inteira, que lhe pareceu lugubre. Não obstante, arejou o espirito dos cuidados da noite, e caminhou para casa mais leve e desassombrado. Era uma hora quando chegou; o creado entregou-lhe uma carta.

—A pessoa que trouxe esta carta disse que era urgente.

Jorge reeebeu-a, sem conhecer a lettra do sobrescripto. Era lettra de mulher. Abriu-a sem pressa, mas não sem curiosidade. Não era longa; dizia simplesmente isto:—«Illm. Sr. doutor. Papae está muito mal; pede-lhe o favor de vir a nossa casa.—Lina Garcia.»

—A que horas veiu esta carta? perguntou elle ao creado.

—Ás sete.

Jorge fez um gesto de enfado e mandou buscar um tilbury. Dahi a uma hora parava á porta de Luiz Garcia. Era tudo silencio. Jorge deteve-se alguns instantes, incerto sobre o que convinha fazer. O perigo, se perigo houve, podia ter passado, e toda a familia estaria em repouso. Espreitou pela porta do jardim, e viu uma claridade frouxa, atravez de uma veneziana. Logo depois ouviu passos na areia. Era o Sr. Antunes que sentira parar o tilbury.

—Meu genro está mal, disse o pae de Estella; teve esta manhã uma recahida e perto das oito horas cuidamos perdel-o.

Jorge entrou.

Luiz Garcia estava prostrado; a febre ardia-lhe sinistramente nos olhos. De um lado e de outro do leito, viam-se a mulher e a filha, apparentemente quietas, mas gastando toda a força moral em suster a angustia que ameaçava fazer-se em lagrimas.

—Que tem? perguntou Jorge approximando-se do enfermo.

—Uma febrinha importuna, respondeu este.

A um signal, Estella e Yayá retiraram-se da alcova, onde só ficou Jorge.

Mandando chamar o moço, Luiz Garcia punha em execução um pensamento que lhe brotara no calor da febre. Ouviu do medico algumas palavras que lhe fizeram suppôr a probabilidade da morte; e, não tendo amigos nem parentes, e não querendo confiar a mulher e a filha ao sogro, lançou mão da pessoa que lhe pareceu ter a sisudez bastante e a influencia necessaria para as dirigir e proteger.

—Seu pae foi amigo de meu pae, disse elle; eu fui amigo de sua familia; devo-lhe obsequios apreciaveis. Se eu morrer, minha mulher e minha filha ficam amparadas da fortuna, por que o dote de uma servirá para ambas, que se estimam muito; mas ficam sem mim. É verdade que meu sogro, mas... mas, meu sogro tem outras occupações, está velho, pode faltar-lhes de repente. Quizera pedir-lhe que as protegesse e guiasse; que fosse um como tutor moral das duas. Não é que lhes falte juizo; mas duas senhoras sósinhas precisam de conselhos... e eu... desculpe-me se sou indiscreto. Promette?

Jorge prometteu tudo, com o fim de o tranquillisar, porque Luiz Garcia parecia excessivamente afflicto com a ideia daquella eterna separação. O pedido affigurou-se-lhe singular; attribuiu-o á exaltação febril do doente. Soube depois que a vida de Luiz Garcia dependia da primeira crise que fizesse a enfermidade, segundo havia declarado o medico.

Eram quasi quatro horas quando Jorge de lá saiu. Voltou ás nove e achou o medico. A crise era esperada na tarde desse dia, e só então se poderia dizer se a vida do enfermo estava perdida ou salva. Foi o que o medico lhe repetiu, á porta do jardim, aonde Jorge o foi acompanhar.

—Não obstante, concluiu o medico, elle tem outra doença que o deve matar dentro de alguns mezes, um anno ou anno e meio.

—Coração?

—Justamente.

Este noticia impressionou o moço.—Não será illusão da medicina? perguntou elle. O medico abanou a cabeça, e saiu. Jorge encaminhou-se para casa, mas teria dado apenas tres passos, quando viu Estella que vinha ao seu encontro. A moça parou deante delle.

—Que lhe disse o medico? perguntou.

—Tem esperanças; logo de tarde poderá affiançar mais alguma cousa.

—Só isso?

—Só.

—Não o desenganou?

—Não.

Estella reflectiu um instante.

—Dê-me sua palavra, disse ella.

Jorge estendeu-lhe a mão, sobre a qual Estella deixou cair a sua, não menos fria que pallida.

—Sou amigo de seu marido, disse Jorge depois de alguns instantes; creia que elle pode contar com toda a minha dedicação.

Estella pareceu accordar do momentaneo torpor; attentou no moço, retirou a mão e respondeu com um simples gesto de assentimento. A alma subjugada tornara á natural attitude. Jorge viu-a entrar em casa e ficou só alguns minutos, a recordar a revelação do medico, e a sentir que, ao pé da tristeza que o pungia, havia alguma cousa semelhante a um sentimento egoista e cruel.

Entre a esperança e receio gotejaram algumas horas longas, até que a crise veiu e passou, sem levar comsigo a vida ameaçada. Na manhã seguinte a alegria foi tamanha em redor do enfermo, que elle viu claramente o perigo e a salvação. Nem a filha nem a mulher pareciam alquebradas do trabalho e da vigilia; estavam frescas, risonhas, ageis, partindo entre si o pio da alegria, como haviam partido irmãmente o pão da angustia.

Durante a molestia e a convalescencia, Jorge visitou-os uma vez por dia; e força é dizer que, se por um instante houve em seu coração um impulso egoista, tal impulso não se lhe repetiu depois; serviu ao doente com desinteresse e lealdade. A familia deste mostrou-se-lhe agradecida. Luiz Garcia recordou ao moço o pedido que lhe fizera na noite em que o mandara chamar, e recordou-lh'o, não só para lhe agradecer a acquiescencia como para explical-o. Mas a explicação era difficil, porque elle cedera principalmente á aversão que lhe inspirava o sogro, em quem não tinha a minima confiança; não obstante as meias palavras de que usou, Jorge entendeu tudo.

A frequencia trouxe a necessidade. Levado pelas circumstancias, Jorge acostumou-se ás visitas, e amiudou-as. No mez de Septembro, a pretexto de calor, que ainda não fazia, transferiu a residencia para a casa que tinha em Santa Thereza, e que não ficava a longa distancia da de Luiz Garcia. Não havia que reparar no caso; sua mãe tinha o costume de passar alli tres a quatro mezes no anno. Demais nas ultimas semanas, elle começara a fazer-se menos visto e menos frequentado. Podia facilmente passar a outra vida mais reclusa.

Entretanto, como essa mudança antecipada para Santa Thereza podia não ter em si mesma toda a explicação razoavel, Jorge buscou enganar-se a si proprio reunindo os elementos e lançando ao papel as primeiras linhas de um trabalho, que jamais devia acabar, mas que, em todo caso legitimava a necessidade de repouso. Nos intervallos deste é que visitava a casa de Luiz Garcia, uma ou duas vezes por semana. Aos domingos, tinha sempre a jantar o Sr. Antunes, com quem jogava uma partida de bilhar. Tentou ensinar-lhe o xadrez, mas desanimou ao fim de cinco licções.

—Ah! mas nem todos têm o seu talento! exclamou triumphalmente o pae de Estella.

Luiz Garcia jogava o xadrez. Era o recreio usual entre elle e Jorge; outras vezes saiam a passeio até curta distancia. Luiz Garcia acceitava de boa sombra essas distracções, que não eram turbulentas nem cançativas, mas brandas e pausadas, como elle. Demais nem sempre eram distracções sem fructo. Jorge apreciava agora melhor as conversações que não eram puros nadas, e os dous trocavam ideias e observações. Luiz Garcia era homem de escassa cultura, sobretudo irregular; mas tinha os dons naturaes e a longa solidão dera-lhe o habito de reflectir. Tambem elle ia á casa de Jorge, cujos livros lia de emprestimo. Era tarde; já não estava moço; faltava-lhe tempo e sobrava-lhe fome; atirou-se soffrego, sem grande methodo nem escrupulosa eleição; tinha vontade de colher a flor ao menos de cada cousa. E por que era leitor de boa casta, dos que casam a reflexão á impressão, quando acabava a leitura, recompunha o livro, incrustava-o por assim dizer, no cerebro; embora sem rigoroso methodo, essa leitura rectificou-lhe algumas ideias e lhe completou outras, que só tinha por intuição.

A necessidade intellectual de Luiz Garcia contribuiu assim para tornar mais intima a convivencia, unica excepção na vida reclusa que elle continuava a ter, ainda depois de casado. Jorge pela sua parte não desmentia até alli o bom conceito que o outro formava de suas qualidades; e a familia viu lentamente estabelecer-se a intimidade e a estima entre os dous homens. Uma noite, saindo Jorge da casa de Luiz Garcia, este e a mulher ficaram no jardim algum tempo. Luiz Garcia disse algumas palavras a respeito do filho de Valeria.

—Pode ser que eu me engane, concluiu o sceptico; mas persuado-me que é um bom rapaz.

Estella não respondeu nada; cravou os olhos n'uma nuvem negra, que manchava a brancura do luar. Mas Yayá que chegara alguns momentos antes, ergueu os hombros com um movimento nervoso.

Pode ser, disse ella; mas eu acho-o insupportavel.




IX

A nova ordem de cousas perturbou profundamente o animo de Estella. O procedimento de Jorge, por occasião da molestia do marido não lhe pareceu esconder nenhuma intenção particular; mas durante a convalescença, e sobretudo depois della, afigurou-se-lhe que a ideia do moço era insinuar-se na familia. Para que? Estella suppunha que o amor de Jorge, ao fim de tão longo periodo, estaria acabado de todo, como producto da primeira estação. Não lhe negou um pouco de gratidão, quando viu os obsequios que prestara ao marido enfermo, com tanta solicitude, discrição e dignidade. Agora, porém, ao ver a frequencia e a convivencia, suppoz alguma cousa mais do que a simples affeição tradiccional. Que encanto podia offerecer a casa de uma familia retirada e obscura a um homem creado em mais apparente plana social? Seu meio era outro; tendencias de espirito ou ambições de futuro o deviam levar a outra esphera. Esta consideração lhe pareceu decisiva. Concluiu que a paixão, vencida ou comprimida, soltava outra vez o brado da revolta; e se assim era, Jorge devia estar peor que em 1866, porque então os sentimentos rompiam com violencia e sinceridade, ao passo que agora o seu principal aspecto era a dissimulação. O amor, se amor havia, trazia já os olhos abertos e dispunha da razão; de estouvado, tornava-se cautelloso e subtil.

—Que ideia faz elle de mim? perguntou Estella a si mesma.

Quando esta palavra lhe soou no espirito, Estella sentiu-se diminuida e humilhada aos olhos de Jorge. Cumpria pôr termo a uma vida de reticencias e dubiedade. Estella cogitou no meio de fazer cessar a intimidade dos dous homens; quando menos, a frequencia de Jorge naquella casa. Pensou em pedil-o directamente a Jorge; mas rejeitou desde logo a ideia, aliás incompativel com sua indole; depois, pensou em dizer tudo ao marido.

Uma noite, na primeira semana de Novembro, Estella assentou definitivamente revelar ao marido a unica pagina de seu passado. Estava sósinha, no jardim, e vira desmaiar o crepusculo da tarde—uma tarde cinzenta e amortecida. De quando em quando o espirito volvia ao passado, e toda ella estremecia com uma sensação extranha, mysteriosa e insupportavel. A noite caiu de todo, e a alma de Estella mergulharia tambem na vaga e perfida escuridão do futuro, se a rude voz do escravo não a viesse acordar.

—Nhanhã está apanhando sereno, disse Raymundo.

Estella ergueu-se e foi dalli ao gabinete do marido. Luiz Garcia trabalhava, á claridade de um lampeão, que toda convergia para elle e os papeis que tinha deante de si, graças ao effeito de um abat-jour. O resto do aposento ficava na meia obscuridade.

—Que é? perguntou Luiz Garcia sem levantar a cabeça.

Estella parou do outro lado da secretaria; Luiz Garcia ergueu então a cabeça e olhou para ella, sem lhe poder ver o transtorno das feições.

—Que é? repetiu.

Vendo-o entregue ao trabalho, por amor della e da filha, Estella hesitou; pareceu-lhe crueldade dar-lhe, em troca da protecção e do affecto, um desengano e uma afflicção. Hesitou um instante, e passou da hesitação á renuncia. Conteve-se e saiu. Escolheu o silencio.

Mas o silencio só por si não melhorava nada; tarde ou cedo, o marido viria a ler em seu rosto o constrangimento, em relação a Jorge, constrangimento inexplicavel, que elle podia interpretar contra ella. Foi então que a serpente lhe ensinou a dissimulação. A necessidade deu-lhe a intuição machiavelica; isto é, a occasião não consentia um rosto franco, sinceramente hostil, mas um ar ameno, uma cordialidade de superficie, friamente cortez, mas cortez. Desse modo, salvava-se a paz domestica, e era o essencial. Ao mesmo tempo mostraria a destemidez de seu coração, capaz de affrontar todo o artificio do outro.

Com o tempo, verificou Estella que o procedimento de Jorge, se alguma intenção escondia, não a deixava sequer suspeitar; não lhe parecia já dissimulação, mas abstenção. Elle proprio a evitava; fugia ás conversas longas, sobretudo ás conversas solitarias. Era respeitoso e frio.

Com effeito, Jorge não havia cedido a nenhum plano preconcebido; ia á feição do tempo; mettia-se por um atalho, sem saber se iria dar á estrada recta ou a um abysmo. Nenhuma preoccupação lhe ensombrava a fronte risonha e placida. Dir-se-hia que, após longa e trabalhosa jornada, vingara o cume das delicias humanas.

A verdade é que o amor de Jorge tinha como que despido a qualidade de sentimento para constituir-se ideia fixa. Nascido de uma primeira explosão de juventude, curtiu alguns annos de ausencia. A ausencia disciplinou os primeiros ardores, quebrou os impetos, afrouxou o alento; o amor atou aos hombros as azas de um mysticismo quieto. Não parou nessa evolução. Do coração em que pousava tomou impulso e alou-se ao cerebro, onde assumiu a fixidez das resoluções definitivas. Não era já uma paixão, mas uma convicção, isto é, outra cousa. Pensava muitas vezes na consequencia de herdar em breve prazo a esposa de Luiz Garcia, resolução que lhe parecia necessaria; era o que elle dizia a si mesmo. E esse casamento tinha dous resultados: era uma reparação e uma desforra: reparação do mal que elle fizera, desforra do tratamento que ella lhe deu. Ambos tinham que reprochar um ao outro. O casamento absolvia-os. Talvez na balança commum não fossem eguaes as dividas, mas Jorge tinha certo fundo de equidade, e entendia que, se padecera muito e longo, não excedeu o padecimento á injuria, que, a seus olhos, fora grave.

Os ralhos da consciencia eram agora menos frequentes e menos rispidos: é o effeito natural dessa ordem de situações violentas. Os mais rigidos podem chegar assim ás complacencias inexplicaveis, e o que é hoje nobre repugnancia, é amanhã hesitação pueril. Jorge não ficou extranho a essa lei do costume. De si para si julgava-se innocente, porque era impassivel, esquecendo a lettra do decalogo que não defende sómente a acção, mas a propria intenção.

Duas circumstancias perturbaram, entretanto, o espirito de Jorge, antes do fim daquelle anno.

A primeira foi a assiduidade de Procopio Dias, que lhe pareceu pouco explicavel. Procopio Dias era recebido com agazalho mais cordial do que elle. Em relação a Jorge, o procedimento de Estella era cautelloso e apenas affavel; o de Yayá era de algum modo medroso ou hostil; uma e outra pareciam alegrar-se quando Procopio Dias assomava á porta. Era uma expressão differente. Este acompanhava-as ás vezes nos passeios, ou conversava-as largo tempo, fazendo-as rir com uma espontaneidade, que não tinham a falar com Jorge. Obedecia aos desejos da madrasta e aos caprichos da enteada, quaesquer que fossem, com tamanha tolerancia e bom humor, que fazia despeitar o outro, sem o saber. Jorge attentou nos dictos e acções do intruso, e com o tempo veiu a tranquillisar-se.

—É um celibatario necessitado da companhia de mulheres, disse comsigo.

Procopio Dias não parecia outra cousa; a atmosphera feminina era para elle uma necessidade; o ruge-ruge das saias a melhor musica a seus ouvidos. Graças á edade, Yayá era mais familiar do que Estella; ás vezes chegava a «judiar» com elle, excesso que o pae ou a madrasta reprimia, e reprimia sem necessidade. Procopio Dias não manifestava nem sentia o menor despeito; achava-lhe graça e chegava a fazer coro com ella.

A segunda circumstancia que projectou alguma sombra no espirito de Jorge, foi justamente a hostilidade de Yayá Garcia.

—Que diabo fiz eu a esta menina? perguntava Jorge a si mesmo.

Durante a molestia e a convalescença do pae, Yayá tratara Jorge com muita gratidão e cordialidade. Algum tempo depois, começou a diminuir essa apparencia, até que cessou de todo e se converteu n'outra cousa, que visivelmente era repugnancia, com uma pontasinha de hostilidade. Luiz Garcia viu logo a differença, tanto mais facil de notar quanto que Estella, se não era já tão expansiva como nos primeiros dias, tratava ainda assim o filho de Valeria com uma affabilidade, que salvava as apparencias; a unica excepção era a filha. Não deixou de a advertir; ponderou-lhe que Jorge era filho de uma pessoa a quem elles deviam estima, e de quem ella mesma houvera uma recordação posthuma; que essa circumstancia devia atenuar a antipathia, se Jorge lhe era antipathico. Yayá ouvia e calava-se; emendava-se n'um dia, para reincidir toda a semana.

—És uma extranhona, disse uma vez o pae depois de lhe repetir a advertencia.

Podia ser estranhice. A vida que Yayá tivera durante largo tempo dera-lhe o amor exclusivo da solidão e da familia. Mas no caso presente parecia ser alguma cousa mais do que isso. O rosto com que recebia Jorge não era o mesmo com que via outras pessoas. Jorge ás vezes chegava quando ella estava ao piano; Yayá interrompia-se habilmente, fazia gottejar dos dedos umas tres ou quatro notas soltas e divergentes e erguia-se. Se elle ia conversar com ella e a madrasta, Yayá tomava a parte minima do dialogo e esquivava-se cautelosamente. Não sorria nunca se elle dizia uma cousa graciosa ou fazia cumprimento; não animava nunca a adopção de qualquer projecto que viesse delle; não lia os romances que elle lhe emprestava. Se era convidada a dizer o que pensava de um ou outro desses livros, fazia descair os cantos da boca commum gesto de indifferença. Não falava nunca de Jorge; apparecia-lhe o menos que podia. Este procedimento constante, não affrontoso, porque ella o disfarçava, impressionou o espirito do moço, que não lhe pode descobrir a causa verdadeira, ou pelo menos verosimil.

A verdadeira causa era nada menos que um sentimento de ciume filial. Yayá adorava o pae sobre todas as cousas; era o principal mandamento de seu cathecismo. Instigara o casamento, com o fim de lhe tornar a vida menos solitaria, e porque amava Estella. O casamento trouxe para casa uma companheira e uma affeição; não lhe diminuiu nada do seu quinhão de filha.

Yayá viu, entretanto, a mudança que houve nos habitos do pae, pouco depois de convalescido, e sobretudo desde os fins de Setembro. Esse homem sêcco para todos, expansivo sómente na familia, abrira uma excepção em favor de Jorge; sem mostrar maneiras ruidosas, aliás incompativeis com elle, era menos reservado, de mais facil e continuado accesso. Não foi porém esse primeiro reparo que produziu em Yayá a notada mudança; foi outro. Luiz Garcia deu a Jorge algumas demonstrações de confiança pessoal, e no dia em que a filha viu a primeira, recordou-se da carta que escrevera ao moço na noite em que a molestia do pae se aggravara, e da confidencia dos dois, cujo assumpto nunca lhe chegara aos ouvidos. Neste instante sentiu borbulhar no coração uma primeira gotta de fel. Imaginou que Jorge viera roubar-lhe alguma cousa. Não cogitou se haveria assumpto que dous homens devessem tratar exclusivamente entre si; suppoz-se despojada de uma parte da confiança do pae, e porque amava o pae sobre todas as cousas, seu amor tinha os ciumes, as coleras, os arrebatamentos do outro amor, e consequentemente os mesmos odios e lastimas.

Conhecia o pae toda a intensidade da affeição filial da moça, e não era menor a do seu amor; mas elle dizia comsigo philosophicamente, e não sem pezar, que a natureza se encarregaria de lhe ensinar outro sentimento, menos grave, mas não menos intenso e imperioso. Quando elle assim reflectia, contemplava a filha com um olhar já humido das primeiras saudades.

Yayá estava então em toda a limpidez de uma aurora sem nuvens. Era leve, agil, subita—com um pouco de destimidez; ás vezes aspera, mas dotada de um espirito ondulante, esguio e não incapaz de reflexão e tenacidade. Nisto podia ficar o retrato da menina, se não conviesse falar tambem dos olhos, que, se eram limpidos como os de Eva antes do peccado, se eram de rôla, como os da Sulamites, tinham como os desta alguma cousa escondida dentro, que não era de certo a mesma cousa. Quando ella olhava de certo modo, ameaçava ou penetrava os refolhos da consciencia alheia. Mas eram raras essas occasiões. A expressão usual era outra, meiga ou indifferente, e mais de infancia que de juventude. Talvez a boca fosse um pouco grande; mas os labios eram finos e energicos. Em resumo, as feições dos onze annos estavam alli desenvolvidas e mais accentuadas.

Uma tarde Luiz Garcia recebeu ordem de ir immediatamente á casa do ministro. Saiu, deixando a mulher e a filha, anciosas pelo resultado. Jorge appareceu pouco depois. A demora de Luiz Garcia foi longa, e Jorge ter-se-hia retirado, se não fora a chegada do Sr. Antunes, que deu um sopro de vida á conversa que expirava. Nove horas, dez horas, onze horas bateram sem que Luiz Garcia voltasse. Yayá estava impaciente; receiava alguma doença subita do pae, um desastre qualquer. Eram onze horas e um quarto quando este entrou offegante, porque viera depressa, tendo encontrado Raymundo, que, ouvindo as ancias da moça, saíra a encontral-o e a dizer-lh'as.

Yayá atirou-se-lhe aos braços.

—Medrosa! disse Luiz Garcia abrangendo-lhe a cabeça com as mãos.

Sentou-se um instante para repousar; com a mão esquerda comprimia o coração. Logo depois ergueu-se, chamou Jorge e foi até uma das janellas. Conversaram em voz baixa dez minutos. Disse-lhe que talvez fosse obrigado a sair no fim daquella semana; tratava-se de uma necessidade de serviço; salvo uma hypothese, a viagem era inevitavel.

Yayá não tirava os olhos de um e de outro; despediu-se de Jorge dando lhe as pontas dos dedos. Foi no dia seguinte que Estella lhe disse que talvez fossem obrigadas a sair por algum tempo. Ouvindo a noticia, Yayá comprehendeu a confidencia da vespera, e ficou consternada. Ella era a ultima que a recebia, e o primeiro fora um extranho, um intruso,—esteve quasi a dizer um inimigo. Nenhuma palavra do pae; nenhuma communicação directa.

—A ultima!

Esse resentimento exagerado era o proprio effeito da organização da moça, e, outrosim, de sua educação quasi solitaria. Para affastal-a de Jorge não foi preciso mais; o despeito apoderou-se inteiramente della. Se até ali pouco lhe havia falado, esse pouco diminuiu ainda com o tempo; fez-se quasi nada.

E essas duas forças, uma de impulsão, outra de repulsão, tendiam a esbarrar-se, no caminho de seus destinos.




X

Ora, quatro ou cinco dias depois, Luiz Garcia que, na previsão de viagem, começara a arranjar alguns papeis esparsos e antigos, dispoz-se a concluir esse trabalho, não obstante haver sido dispensada a commissão. Era dia de anno bom,—uma bella manhã, fresca, limpida, azul. Tinham ido á missa na capella do convento; almoçaram em familia, com a presença do Sr. Antunes, que inaugurara uma sobrecasaca, e trazia nessa manhã um aspecto, não sómente venerador, mas até veneravel.

Yayá accordara extremamente alegre e boliçosa. O Sr. Antunes levara-lhe um ramalhete de cravos, dizendo que era para que ella recebesse outros ramalhetes durante todo o anno, e a menina, depois de o receber e agradecer com uma mesura, foi pol-o n'um vaso, sobre o parapeito da janella da alcova. O Sr. Antunes despediu-se della, meia hora depois de almoçado.

—Já vae?

—Vou jogar uma partida de bilhar com o Jorge, disse familiarmente o pae de Estella. Viremos cedo.

—Elle vem jantar?

—Quero ver se o trago.

—Mas... papae não está prevenido, objectou Yayá.

—Está; foi elle proprio que me autorisou a trazel-o. Verdade é que fui eu que o pedi. Devemos muito áquelle moço, e ao defunto pae e á mãe, a Sra. D. Valeria, que Deus tenha. Até logo.

Yayá ficou só, e um instante pensativa; mas, logo depois ergueu os hombros, pegou de um trabalho de agulha, inventado para matar o tempo, e caminhou para o gabinete do pae, onde o foi achar com Estella.

—Virgem Nossa Senhora! disse a moça parando á porta.

Ao pé da secretaria estava uma vasta cesta, transbordando de papeis; sobre a secretaria papeis; papeis na mão de Luiz Garcia; outros na mão de Estella; alguns esparsos no chão. Era uma liquidação de seis annos. Luiz Garcia tinha o costume de guardar tudo, cartas, exemplares de jornaes em que havia alguma cousa de interesse, apontamentos, simples copias. De longe em longe inventariava e liquidava o passado. Havia já alguns annos que não fazia a costumada operação. Começara quando suppunha ter de deixar o Rio; agora tratava de concluir. Estella tinha entrado pouco antes da enteada; sentara-se em uma cadeira rasa, e entretinha-se a receber ou apanhar algum pedaço de jornal velho, e a ler algum trecho em que os olhos acertavam de cair.

—Que é? disse Luiz Garcia logo que a filha soltara a exclamação.

—Papae vae ficar afogado em papel, disse a moça.

Luiz Garcia não respondeu; voltara os olhos para uma carta que tinha na mão, e que sem duvida, lhe trazia alguma recordação amarga, porque elle sorria tristemente. Leu-a toda; releu alguns trechos; depois fez um gesto de desdem, rasgou-a e deitou os pedaços á cesta.

Yayá foi sentar-se do outro lado, a poucos passos do pae.

Na secretaria, ao pé deste, havia um maço de cousas que serviam, um maço pequeno; a grande maioria era a dos destroços inuteis. Não é isso mesmo a imagem do passado? Luiz Garcia desdobrava ás vezes um jornal, avaramente guardado havia annos; duas cruzes ou alguns traços indicavam o trecho que nesse tempo lhe chamara a attenção. Relia-o agora; buscava o motivo da reserva e sorria. A impressão que communicara algum interesse ao escripto desapparecera de todo; o escripto era um esqueleto. Tambem as cartas eram assim. Raras escapavam á destruição; as mais dellas eram dilaceradas, umas em dous pedaços,—as infimas,—outras em trinta, as que podiam ter alguma gravidade. Estella, que o ajudava, pegou casualmente em uma carta, cuja lettra do sobrescripto lhe não pareceu extranha.

—Eu conheço esta lettra, disse ella.

—Deixa ver.

Estella deu-lhe a carta.

—É do Dr. Jorge, disse o marido.

Abriu-a, e depois de ler algumas linhas, sorriu. Leu-a depois até o fim. Quando acabou, dobrou-a e ficou a olhar para a mulher; tornou a desdobral-a machinalmente.

—Vou restituil-a, disse elle depois de curta pausa; talvez se envergonhe de haver escripto estas cousas...

E dirigiu os olhos á carta, com uma insistencia de aguçar o mais embotado appetite. Depois, volveu a cabeça um pouco para traz, onde ficava a filha, a distancia, de olhos baixos; abafou a voz e disse a Estella:

—Nunca soubeste do verdadeiro motivo que o levou á guerra?

Estella ficou ainda mais pallida do que era; o sangue todo refluiu-lhe ao coração, donde lhe não saiu uma só palavra; foi com um gesto negativo que ella respondeu. E se não podia empallidecer mais, podia corar e corou de vergonha. Luiz Garcia não viu nem a primeira, nem a segunda impressão de suas palavras. Enrolava e desenrolava com os dedos um dos cantos da carta. Naturalmente relembrava os successos daquelles cinco annos, as confidencias da mãe e do filho.

—Quem diria que depois de tamanho sacrificio.... O que são rapazes! O que são paixões! Elle gostava de uma moça; não sei quem era, mas supponho.... A mãe fez quando pode para domal-o; quando desesperou, lembrou-se de o mandar para o sul; elle acceitou. Fui confidente de um e de outro. Tempos depois de embarcar.... espera.... a data hade estar aqui.... 67.... Ainda em 67 durava a tal paixão; afinal pareceu que só esperava o fim da guerra para acabar tambem. Morreu-lhe a paixão e elle engorda. Nunca suspeitaste nada?

—Não, murmurou Estella.

Luiz Garcia deu a carta á mulher, que a recebeu tremula e fria.

—Lê, que é interessante, disse elle.

Estella olhou para o papel e para o marido, vacilante, sem saber o que faria e o que pensasse.

—Lê; é curioso, disse este, que voltara aos demais papeis, abrindo uns, separando outros, tranquillo e indifferente.

Estella, sem levantar a cabeça, olhou ainda de esguelha para elle, como a procurar-lhe na fronte a intenção escondida, se por ventura havia alguma, e esse gesto era tão travado de receio e hesitação, era sobretudo tão dissimulado, que ella propria o sentiu e arrependeu-se. Cravou depois os olhos no papel, sem ler, sem fitar nenhuma linha, uma palavra unica. Não via as lettras; via, ao longe, dous pombos que voavam e a candura de seus labios embaciada por uns labios de homem; nada mais. A mão tremia; ella firmou-a sobre a borda da secretaria; mas o tremor, ainda que pouco perceptivel, não cessou.

—Leste? perguntou Luiz Garcia dobrando um jornal que acabava de passar pelos olhos.

Estella fez um gesto para que esperasse um instante. Não reparava que havia decorrido tempo sufficiente para haver lido a carta duas vezes. Fez um esforço; voltou a pagina; duas ou tres phrases lhe feriram os olhos: «Meu amor não sabe o que seja impaciencia ou ciume ou exclusivismo; é uma fé religiosa que pode viver inteira em muitos corações»—«O essencial é saber que amo a mais nobre creatura do mundo»—«A paixão veiu commigo, e se não cresceu é porque não podia crescer; mas transformou-se. De creança que era, fez-se homem de juizo.» Chegou ao fim da carta ou pareceu ter chegado; dobrou-a, e não se atreveu a dizer nada; depois tornou a abril-a.

—Que poesia, hem? disse Luiz Garcia sorrindo.

E o sorriso era tão natural, tão despreoccupado, tão honesto, que Estella ficou tranquilla. Tinha em grande conta a dignidade e a sinceridade do marido; não podia suppôr-lhe tanta hypocrisia nem tamanha indifferença. Sorriu tambem, mas um sorriso de acquiescencia, sem convicção nem espontaneidade. Luiz Garcia inclinou-se para ella; falou-lhe com a mesma voz abafada de pouco antes; referiu-lhe o amor que Valeria tinha ao filho e a estrategia usada para o fim de o arredar do Rio de Janeiro.

—Naquelle tempo, disse elle, não sei se cheguei a arrepender-me de a ter apoiado; hoje não. O filho ficou são e salvo de seus amores, com um posto e honras de sobra.

—É verdade, murmurou Estella, que o escutara com a attenção dispersa e impaciente.

Logo depois ergueu-se e foi á janella. Alli sacudiu a cabeça com um gesto energico. Talvez lutavam nella forças contrarias; ou era o seu passado que emergia da sombra do tempo, com todas as cores vivas ou escuras, com as delicias occultas e nunca revelladas, e ao mesmo tempo com as amarguras e resistencias. Era isso; era o coração que mordia impaciente o freio da necessidade e do orgulho, e vinha pedir ainda uma vez o seu quinhão de vida, e pedia-o em nome daquella carta, expressão remota de um amor desenganado e impassivel. Estella suffocava esses impetos, mas elles vinham. Após alguns minutos, deixou a janella, tornou á cadeira onde estava. Luiz Garcia lia então um retalho de jornal. Não chegou a levantar os olhos.

Defronte, Yayá tinha os olhos cravados na madrasta. Ouvira a principio o nome de Jorge e não lhe prestara muita attenção; mas uma ou duas palavras soltas do pae haviam-lhe despertado a curiosidade. Yayá ergueu a cabeça, inclinou-a depois, ouviu a confidencia do pae, não obstante ser feita em voz baixa, e emfim não retirou mais os olhos de Estella. Viu-a receber a carta, com a mão tremula; viu-a empallidecer ainda mais; viu-lhe a confusão e o enleio. Porque o enleio e a confusão? Um amor extincto de Jorge, uma paixão que o levara á guerra, que tinha ella, que tinham elles tres com isso?

Yayá olhou a principio com curiosidade, depois com espanto, até que os olhos luziram de sagacidade e penetração. O estylete que elles escondiam desdobrou a ponta aguda e fina, e estendeu-a até ir ao fundo da consciencia de Estella. Era um olhar intenso, aquilino, profundo, que palpava o coração da outra, ouvia o sangue correr-lhe nas veias e penetrava no cerebro salteado de pensamentos vagos, turvos, sem ligação. Yayá adivinhou o passado de Estella; mas adivinhou de mais. Galgou a realidade até cair no possivel. Suppoz um vinculo anterior ao casamento, roto contra a vontade de ambos, talvez persistente, mau grado aos tempos e ás cousas. Tudo isso viu uma simples innocencia de dezesete annos. Seu pensamento cristalino e virginal, nunca embaciado pela experiencia, ignorava até as primeiras scismas de donzella. Não tinha ideia do mal; não conhecia as vicissitudes do coração. Jardim fechado, como a esposa do Cantico, viu subitamente rasgar-se-lhe uma porta, e esses dez minutos foram a sua puberdade moral. A creança acabara: principiava a mulher.

A impressão foi tão profunda, que apezar da força de resistencia que havia em sua organização, Yayá não pode ter-se alli mais tempo. Saiu e refugiou-se na alcova. Certo, aquelle amor intruso, se o havia, era para affligir e prostrar um coração de filha, amassado de ternura, para o qual a forma superior e exclusiva do sentimento era a paixão que a prendia a seu pae, como um vinculo indestructivel. Depois vinha o affecto que votava á madrasta, sua mãe electiva, affecto não menos sincero e real, e que já agora podia diminuir, quem sabe até se morrer todo?

Sentada na beira da cama, com os pés juntos, as mãos fechadas entre os joelhos, os olhos cravados no espelho que lhe ficava defronte, Yayá trabalhava mentalmente na sua descoberta. Confrontava o que acabava de ver com os factos anteriores, de todos os dias, isto é, a frieza, a indifferença, a stricta polidez dos dous, e mal podia combinar uma e outra cousa; mas ao mesmo tempo advertia que nem sempre estava presente quando Jorge alli ia, ou fugia-lhe muita vez, e podia ser que a indifferença não passasse de uma mascara. Demais, a commoção da madrasta era significativa. Estendeu o espirito pelo tempo atraz, até o dia da primeira visita de Jorge, e lembrou-se que elle estremecera ouvindo a voz de Estella, circumstancia que lhe pareceu então indifferente. Agora via que não.

Uma hora inteira gastou nesse cogitar solitario, a sós com a suspeita e o remorso. Tambem remorso, por que de quando em quando atterrada com a vista do caminho andado, a alma recuava e estremecia; tinha horror de si mesma. Mas a figura pallida da madrasta surgia ao pé della, com a expressão que lhe vira pouco antes, e a consciencia fazia as pazes com a malicia.

Vede a consequencia. Estella não era culpada; um incidente do passado é que projectava tamanha sombra na vida presente; mas bastou o espectaculo da commoção para turbar o espirito da enteada e lançar lá dentro os primeiros germens da sciencia do mal. Que seria se fosse culpada? Talvez o mais lastimoso effeito dos desvios domesticos é essa corrupção dos corações ingenuos, impassiveis testemunhas do que ignoram um dia, do que suspeitam, percebem e sabem na seguinte manhã: primeira violação da virgindade.

Yayá agitava-se na alcova, de um para outro lado, desejosa e receiosa ao mesmo tempo de ir ter com Estella. Duas vezes chegou á porta e recuou. Uma das vezes, voltando para dentro, deu com os olhos no retrato do pae que pendia junto á cabeceira,—uma simples photographia. Tirou-o dalli, contemplou longamente a fronte austera e pura. Que! Haveria na terra quem o amasse uma vez e não sentisse que o amor lhe dominaria a vida inteira? Tão affectuoso! tão bom! vivendo exclusivamente para os seus, sem nada invejar ao resto dos homens. Isto lhe dizia o coração, emquanto ella ia beijando o retrato com respeito, com amor, afinal com delirio. Grossas lagrimas e quentes lhe romperam dos olhos; Yayá deixou-as cair: sorveu-as com seus proprios beijos. Quando essa primeira explosão acabou, acabou para se não repetir mais. Enxutos os olhos Yayá pode friamente reflectir, e a reflexão dominou a angustia.

O que se passou naquelle cerebro ainda verde, mas já robusto, foi uma resolução sem plano. Deslindar o vinculo espurio era o essencial e urgente, não cogitou no modo. Sua innocencia, assim como lhe dissimulava toda extensão possivel do mal, assim tambem lhe encobria as asperezas e os obices da execução. Era o coração que lhe designava esse papel de anjo guardador. Natureza simples e intacta, ia direito ao fim sem o temor que dá a experiencia e a contemplação da vida. Quem sabe? Não conhecia a hypocrisia, mas acabava de suspeital-a; começava talvez a apprendel-a.

Tinha-se demorado muito e era preciso sair do quarto; mas, como houvesse chorado, podiam ler-lhe os vestigios da dor. Yayá foi ao lavatorio deitou agua na bacia e começou a banhar os olhos e o rosto. O rumor da agua impediu-lhe ouvir que alguem abria a porta. Estella appareceu-lhe repentinamente.

—Que faz você aqui ha tanto tempo? disse a madrasta, parando á porta.

Yayá não se atreveu a olhar de rosto para ella; mastigou uma resposta esquiva e continuou o que estava fazendo.

—Que tens? perguntou Estella pegando-lhe dos braços e fazendo-a voltar para si. Você chorou? ... Chorou, sim; tem os olhos vermelhos. Que foi? Yayá, fala; que é?

—Não é nada, acudiu a outra procurando sorrir.

—Não minta, Yayá.

A enteada olhou de relance para o espelho; viu que era inutil mentir.

—Foi uma tolice, disse ella.

—Alguma travessura?

—Antes fosse!

Yayá pegou do retrato que puzera na borda do marmore de lavatorio, e olhou alguns instantes para elle. Estella quiz conchegal-a a si, mas a enteada fugiu-lhe com o corpo.

—Trata-se... de teu pae? perguntou a madrasta.

Yayá fitou-a e respondeu:

—Sim, mamãesinha; estava a sacudir a poeira do retrato de papae, e comecei a pensar... foi uma loucura... se elle... morresse?

Estella reprehendeu-a com uma interjeição; Yayá quiz continuar, mas a outra interrompeu-a impetuosamente:

—Cala-te, disse; não penses em tolices. Dá cá o retrato.

—Não é verdade que elle é o melhor dos homens? perguntou Yayá, em quanto Estella pendurava o retrato.

A unica resposta da madrasta foi caminhar para ella e dizer-lhe que nunca mais pensasse em semelhante cousa.

—Não sou senhora dos meus pensamentos, respondeu a moça, erguendo os hombros.

Após alguns segundos de silencio, Estella percebeu que alguma cousa preoccupava a enteada, e disse-lh'o. Yayá respondeu negativamente. Mas Estella insistiu:

—Não tens o teu ar do costume, e esses olhos andam vagamente de um lado para outro. Talvez... quem sabe...

—Não é isso que a senhora pensa, interrompeu Yayá seccamente.

Depois sentou-se, a olhar para o jardim, a morder o labio, que lhe tremia, e a comprimir os seios com a mão. Estella ficou um instante calada; emfim sacudiu benevolamente a cabeça e approximou-se da menina.

—Tu não tens confiança em mim, Yayá, disse ella pousando-lhe a mão no hombro. Se tivesses, dizias-me em que é que pensas, porque é de certo em alguma cousa. Não é difficil deixar de pensar no Procopio Dias; acho até que é a cousa mais facil; mas não será algum pensamento da mesma natureza? Anda; sê franca; sou apenas tua madrasta, e pouco mais velha que tu; posso ouvir tuas confidencias e aconselhar-te. Onde acharás melhor amiga do que eu?

Yayá tinha applacado a primeira sensação; afivellou de todo a mascara da tranquillidade, emquanto não a substituia por outra. Ergueu-se e disse com affouteza:

—Pois bem, vou confiar-lhe uma cousa... não... supponha... é melhor suppôr... tenho vergonha de dizer a verdade. Supponha que tive um amor de collegio...

—Tu? Aos treze annos!

—Aos doze e meio.

—Bonito! Não foi começar tarde. Esse amor naturalmente expirou nos braços da ultima boneca.

—Supponha que não, disse Yayá em tom serio. Ora, se eu tiver de casar com o Procopio Dias...

—Quem te fala em casar com elle?

—Por ora é um gracejo; mas, se elle teimar, é possivel que nem a senhora nem papae o desemparem, e ainda mais possivel que eu me deixe vencer para contentar a todos. Mas é este o ponto de minha confidencia; é uma ideia que me persegue ha dias. Devo eu casar com um homem amando a outro? posso fazel-o? devo fazel-o?

Estella estremeceu levemente, sob o olhar impassivel e puro da enteada, e não respondeu logo. Yayá parecia folgar com esse enleio de um minuto; mas ao mesmo tempo o coração lhe sangrava, porque o enleio era a confirmação de suas recentes supposições. A madrasta não tinha a penetração da enteada; além disso, como suppôr nella o conhecimento de um facto remoto e não divulgado? Estella nem cogitou nisso. Escoou-se o minuto, e ella respondeu com tranquillidade:

—Não deves casar, se o amor pode ser satisfeito sem obstaculo. No caso contrario, o casamento é uma simples escolha da razão: sacrifica-te.

Yayá, que tinha uma das mãos da madrasta entre as suas, largou-a subitamente. Estella riu, e bateu-lhe na testa com a ponta do dedo.

—Esta cabecinha! disse ella. Ha aqui dentro muita cousa que é preciso capinar...

No primeiro instante, Yayá empallideceu. Ao ultimo gesto de Estella, respondeu com um sorriso forçado e sem cor. Logo que esta saiu, deixou-se cair na cadeira e fechou o rosto nas mãos. Quando dalli saiu, meia hora depois, não trazia nenhum signal de lagrimas, ou sequer de tristeza. Não vinha alegre, de certo; serena, sim, daquella serenidade com que o caçador do sertão se dispõe a encarar a onça.

Jorge foi jantar, e sobre a tarde appareceu Procopio Dias. Durante o jantar e a noite, Yayá fez impressão na familia e nos extranhos, pela singular alteração de seus modos. Estava um pouco pallida, mas a viva luz dos olhos parecia communicar ao rosto uma porção do colorido ausente. Mostrou-se expansiva, e não golhofeira. Suas phrases eram longas, deduzidas, iam até o fim do pensamento, sem as interrupções e saltos do costume. De costume, parecia que a moça pensava aos fragmentos, porque era quasi impossivel ter com ella uma conversa inteiriça e ordenada com a sua variedade propria. Naquelle dia era o contrario. Como que a alma despira a roupa de bailarina, para enfiar um roupão caseiro, simples, apertado, subido até o pescoço. Era melhor assim? era peor? Nem uma nem outra cousa; era uma apparencia nova.

Mais do que ninguem, Jorge estimou essa alteração, porque em relação a elle a moça tambem havia mudado alguma cousa. Yayá sentira nesse dia mais repugnancia do que nunca ao ver o filho de Valeria, e chegou a recuar instinctivamente a mão. Cedeu, porém, e o sorriso com que corrigiu a recusa foi o primeiro que Jorge recebeu directamente della. Nesse dia a moça respondeu-lhe sem custo, e talvez lhe dirigiu a palavra alguma vez; o que tudo viu Luiz Garcia e attribuiu a effeito de suas admoestações.

Nem Luiz Garcia nem Jorge poderiam suppôr que sobre a cabeça da madrasta e da enteada a carta de 1867 agitava as suas lettras de fogo. Essa carta importuna, poupada da destruição immediata, era a scentelha subitamente lançada no amor adormecido de uma e no odio nascente de outra; Jorge estava longe de o ler no rosto affavel de Yayá, e no olhar fugidio de Estella.

Pouco depois das dez horas dispersou-se a reunião. O Sr. Antunes aposentou-se por essa noite em casa do genro. Jorge e Procopio Dias sairam juntos.

—Vae para a cidade a esta hora? perguntou Jorge.

—Repare que ainda me não offereceu cama, disse rindo o outro.

—Mas offereço-lhe agora.

—Acceito. Precisava justamente falar-lhe: negocio grave.

—Não é de certo algum fornecimento?

—Nem só de pão vive o homem, acudiu Procopio Dias.

—Que negocio é?

—Uma explicação.

—Sobre...

—Hade ser lá em casa; a noite é escura e os quintaes são traçoeiros.




XI

Entrados em casa, Procopio Dias não se apressou a dar ou pedir a explicação. Ceou primeiro, porque confessou haver adquerido esse costume, e Jorge não se demorou em obsequial-o. A ceia improvisada, composta de viandas frias e dous ou tres calices de vinho puro, deixou-o em paz com a natureza. Satisfeita esta, era a hora da explicação.

Não veiu ella com facilidade. Indolentemente reclinado n'uma ottomana, Procopio Dias fumava com volupia e falava com precaução, usando a voz pausada e avara de um homem para quem o digerir, é meditar. Se alguma ideia lhe avoaçava lá dentro, era difficil percebel-o atravez do olhar exhausto e morbido. Entretanto, a curiosidade de Jorge não lhe permittiu mais longa dilação e Procopio Dias foi compellido a salisfazel-a, quando o moço, parando deante delle, fracamente lh'o pediu.

—Parecia-me mais facil do que é, disse elle, sobretudo porque apezar de nos conhecermos ha algum tempo, não estou certo da opinião que o senhor forma de mim. Boa?

—Boa.

—Dê-me sua mão. Promette-me ser franco?

—Prometto:

—Qual das duas o leva á casa de Luiz Garcia?

Sobresaltado, Jorge retirou vivamente a mão.

—Bem vê, tornou Procopio Dias; é uma dellas.

Passada a primeira impressão, Jorge sentou-se tranquillamente, menos comtudo do que affectava estar.

—Na verdade, a sua pergunta é das mais exquisitas que eu esperava ouvir. Ignora as relações de amizade que me prendem áquella casa, relações que herdei de minha familia, e que eu apenas continuo? Qual das duas! Não ha alli duas; ha uma, uma sómente, uma... e...

—Não é essa? não é Yayá?

Jorge fez um gesto negativo.

—Acredite que me restitue a tranquillidade ao coração, disse Procopio Dias sentando-se de todo. Não é meu rival? não tem nenhuma ideia?... nenhuma ideia vaga?... É isso o que precise saber... é só isso, e é tudo.

—O senhor gosta de Yayá?

Procopio Dias fez primeiro um gesto affirmativo; depois balbuciou a confissão plena de seus sentimentos, mas com um ar de envergonhado, meio sincero e meio fingido, e tão a ponto e natural, que era difficil saber onde acabava a sinceridade e onde começava a simulação. Animou-se a pouco e pouco, e não lhe escondeu nada. Confessou que a filha de Luiz Garcia lhe transtornara de todo o espirito e que elle estava resoluto aos maiores sacrificios para obter-lhe a mão.

—Ás vezes suppunha que o senhor andava nas minhas fronteiras, concluiu elle, ideia que me affligia, porque o senhor tem sobre mim vantagens incontestaveis. A suspeita desvanecia-se e eu tranquillisava-me. Hoje, porém, confesso-lhe que a suspeita reappareceu e entrou a devorar-me o coração; e ainda assim, tinha intervallos, porque ora me parecia que o seu objecto era Yayá, ora que era a outra...

—Perdão, interrompeu Jorge; eu já lhe disse o que devia, e não posso consentir que voltemos ao mesmo ponto. Uma de suas suspeitas é injurias para mim.

—Tem razão; eu devia tel-o pensado, assentiu Procopio Dias. Mas que quer? Nada se deve imputar aos dementes e aos namorados. Perdoa-me? Em todo caso, pode crer que a minha indole não é tão tolerante com o vicio que me fizesse desejar haver dado em balda certa. Não sou rigoroso; sei que as paixões governam os homens, e que a força de as reger não é vulgar. Por isso mesmo é que se estima a virtude. No dia em que a natureza se fizer communista e distribuir egualmente as boas qualidades moraes, a virtude deixa de ser uma riqueza; fica sendo cousa nenhuma.

—Deixe-me falar-lhe com franqueza, disse Jorge, rindo; eu desconfio que o senhor é ainda menos rigoroso do que diz. Parece-me que se a sua suspeita, em relação á outra, tivesse fundamento, o senhor não me ouviria com indignação.

—Talvez estimasse.

Jorge não disse nada; olhou sómente para o interlocutor, com um ar de estupefacção, a que o outro sorriu benevolamente. Fez-se uma curta pausa. Procopio Dias rompeu emfim o silencio:

—Talvez estimasse, sem deixar de indignar-me depois; isto é, a indignação no momento seria abafada pelo interesse. Attenda-me, doutor; sejamos justos com o natureza humana. Virtudes inteiriças são invenções de poetas. Não me fazia bom cabello que a senhor gostasse da outra, e menos ainda que ella lhe correspondesse, porque, em summa; ambicionando entrar na familia, não desejaria que a familia tivesse a menor macula. Esta é a realidade. Mas, eu amo, doutor; e por mais ridicula que pareça esta confissão, por mais grosseira que seja a minha casca, a verdade é que amo a enteada apaixonadamente: é o meu pensamento de todos os dias. Ora, dado que o senhor amasse a outra, qual era o primeiro movimento do meu coração? Ligal-os ao meu interesse. Desde que entre os dous houvesse um segredo, e que esse segredo fosse descoberto ou suspeitado por mim, o senhor e ella eram os meus melhores alliados, e a resistencia daquella menina, e a vontade do pae, tudo cedia em meu favor.

Procopio Dias proferiu estas palavras com simplicidade e convicção. Seus olhos plumbeos pareciam duas portas abertas sobre a consciencia. A expressão do rosto era a de um cynismo candido. Jorge contemplou-o alguns instantes sem dizer palavra, ao parecer subjugado pelo raciocinio. Ouvira-o pasmado e satisfeito. Tanta franqueza não mostrava que Procopio Dias já não suspeitava nada? Jorge sorriu e replicou:

—O que o senhor acaba de dizer não será animador, mas persuado-me que é a realidade pura. Admira-me sómente que tenha tanta penetração e superioridade para ver e confessar os vicios da natureza humana...

—Sou pratico, tornou o outro sorrindo. Raras vezes me irrito, comquanto lastime sempre o que é fraqueza ou perversão. Assim, por exemplo, eu não lhe ficaria querendo mal se o senhor me houvesse illudido agora acerca de seus sentimentos, porque o seu interesse e o seu dever é negal-os.

—Perdão; já lhe dei minha palavra...

—Não deu, nem eu lh'a pedi, nem pediria, porque a palavra de honra não obriga a consciencia, quando é dada para salvar uma questão de honra. O senhor poderia dal-a sem sinceridade nem remorso. Já não é a mesma cousa se me jurasse, por que o juramento, invocando o testemunho de um ente superior, esse obriga a consciencia que não está pervertida.

—Não exige de mim que jure, espero eu? disse Jorge.

—Ha ainda uma raiz de duvida, em meu coração, replicou Procopio Dias sorrindo.

—Pois juro-lhe...

Procopio Dias levantou-se de subito.

—Não precisa mais, exclamou elle apertando-lhe as mãos. Agora creio; creio de todo. Não é meu rival, nem corrompe a familia a que pretendo unir-me. Se soubesse o prazer que me deu com a sua ultima palavra! Obrigado! Agora creio. Ria-se de mim, ria-se; eu creio que esta expansão pode ter um lado grotesco,—hade ter de certo. O que lhe affianço é que se minha felicidade não é completa depende sómente da fortuna não dos homens...

Sentou-se depois destas palavras, proferidas quasi sem respirar. Jorge acompanhou-o nessa expansão de felicidade. Pareciam satisfeitos um do outro. Procopio Dias confessou que era a primeira pessoa a quem falava de seus sentimentos, e não se vexava de dizer que, ao cabo de alguns mezes, nada podia saber do coração da moça. Ás vezes suppunha ser acceito; outras, e eram as mais numerosas, tinha a persuasão contraria.

—O senhor naturalmente conhece-a e sabe que obra de contradicção é aquella mocinha, disse elle. Ha occasiões em que sua familiaridade commigo chega quasi á seducção. Talvez exagéro; mas que heide de pensar de uma moça que me pede instantemente que vá lá, em certo dia, com um modo grave e cheio de promessas? digo-lhe sim; vou, recebe-me com um epigramma, ri-se de mim, abusa da complacencia e não sei se do amor, porque, comquanto não lhe haja dito nada, acho natural que ella o tenha descoberto nos meus olhos. Se fico despeitado e resolvido a não voltar lá, ella torna-se mansa, como uma pomba, carinhosa, macia, e o meu despeito evapora-se, e eu continuo a minha viagem interminavel.

—Nunca lhe deu a entender nada, ao menos por allusão?

—Nunca; receio que não me deixasse acabar.

—Não creia; eu supponho que ella gosta do senhor.

—Sabe disse?

—Não; mas é o que concluo do que me contou. As mulheres têm ás vezes caprichos; e demais ha naquella uns restos de creança, que a faz ainda mais caprichosa. Meu raciocinio é este: se ella percebeu, e não o repelle absolutamente, é porque o senhor ainda pode ter esperanças...

Procopio Dias não pode exprimir a alegria que estas palavras de Jorge lhe entornaram na alma; seus olhos brilharam da uma luz extranha, depois fecharam-se, emquanto a cabeça pendeu para traz, de um geito languido. Durante essa pausa de alguns minutos, Jorge pode analysar as feições de Procopio Dias, pouco proprias a fascinar uns olhos de dezeseis annos, e achou natural que Yayá não se sentisse tomada de cego enthusiasmo. Comtudo, não era impossivel corresponder-lhe de algum modo, se a razão tomasse as redeas ao coração. Jorge suppunha até que houvesse em Yayá uma semente de sympathia, que bastava fazer germinar.

Entrando no quarto que lhe fora destinado, Procopio Dias estava longe de ter somno; a excitação trazia-o esperto. Entrou, abriu a janella e olhou ao largo. O aroma vivo das plantas da chacara ainda mais lhe apurou o systema. Não era homem de contemplar estrellas nem de fazer philosophias acerca da solidão nocturna e do somno das cousas; limitou-se a pensar no que acabava de ouvir.

—Gosta da Estella, murmurou elle; antes de jurar podia ser duvidoso; depois do juramento é positivo, se ella não gosta delle faz mal; é um rapaz de espavento.

Depois, abriu as azas ao pensamento e foi direito a Yayá, galgando o espaço e derrubando paredes: foi e contemplou o seu somno de virgem, que elle suppunha ser quieto e puro, mas que a essa mesma hora, era turbado e já complicado das ideias do mal. Procopio Dias deixou-se ir ao sabor da paixão, que era viva e sincera, uma conspiração surda e mysteriosa de todas as forças sensuaes.

A figura terna e virginal de Yayá apparecera-lhe um dia, subitamente, como uma visão não sonhada. Se elle a visse em algum salão aristocratico pensaria nelle uma noite, talvez uma semana, até esquecel-a ou substituil-a. Mas o que o prendeu a Yayá Garcia foi justamente a mediocridade do nascimento. Possuil-a era fazer-lhe um favor. Quantas outras lhe não levaram os olhos de satyro, ao descer de uma carruagem, ou ao resvalar indolentamente o seu talhe na contradança de bom tom? Elle via-as passar ou estar, com os hombros nus ou cingidos da cachemira elegante, risonhas umas, outras sérias, todas altivas e compassadas, e sentia que os annos, feições e maneiras o distanceavam dellas; não era difficil apagal-as de memoria.

Yayá teria antes de agradecer a escolha; era a sua convicção, e foi o que mais o ligou á filha de Luiz Garcia.

Quando a moça reflectisse que acharia no marido a satisfação de todas as velleidades do luxo, o gozo das cousas superfinas, elegantes e raras, devia ceder por força e preferil-o a quem lhe désse apenas coração, trabalho e necessidades. Uma vez brotada a ideia, cresceu e tomou-lhe o cerebro todo. Yayá era então a figura presente a seus olhos, ora divina e casta, ora ardente e lubrica,—lubrica, porque elle em sua imaginação conspurcava-a, antes mesmo de a possuir.

No dia seguinte acordaram tarde e almoçaram juntos, sem tomar no assumpto da vespera. No fim do almoço, Procopio Dias referiu-se a elle, dizendo que fora excessivo na noite anterior, e pedindo a Jorge que o não levasse a mal; porquanto era tudo filho de um sentimento que não pécca por moderado na suspeita, nem equitativo na apreciação.

—Não podia attribuir-lhe outro motivo, redarguiu Jorge sorrindo.

—Não ficou mal commigo?

—Mal? A prova é que se dependesse de mim casal-o, casava-o amanhã mesmo.

Procopio Dias agradeceu-lhe a sympathia e o obsequio, e saiu. Jorge foi dalli vestir-se para ir passar alguns minutos no escriptorio. Emquanto se vestia, pensava na situação do ex-fornecedor do exercito. Não eram amigos, mas o caso de Procopio Dias interessava-o; era sympathico a seus olhos. Não indagou se essa sympathia brotava do medo; persuadia-se ingenuamente do contrario. Um marido apaixonado e opulento! Duas vantagens que uma moça nas condições de Yayá, devia acceitar com ambas as mãos. Talvez Procopio Dias não fosse mal acceito ao coração da moça; sómente, havia nesta uns vestigios de creança, que o tempo devia apagar.

—Naquella edade um pretendente é uma especie de boneca, dizia Jorge atando a gravata; o que é preciso, a todo trance, é fazer da boneca um esposo.

Chegando ao escriptorio, ao meio dia, Jorge encontrou o Sr. Antunes consternado. Tinha dormido até onze horas, chegara tarde á casa em que trabalhava, o patrão convidara-o a fazer as contas. Era uma pequena casa de commercio, onde o Sr. Antunes, que entendia de escripturação mercantil, trabalhava desde algum tempo, graças ao obsequio de Jorge:

—Mas já foi despedido? perguntou este.

—Devo fazer as minhas contas e retirar-me no fim do mez.

Jorge escreveu duas linhas ao patrão do Sr. Antunes. De tarde, foi este a Santa Thereza. Jorge ia sentar-se á mesa do jantar; o Sr. Antunes já tinha jantado, mas acompanhou-o.

—Venha, venha, disse o moço; preciso ralhar-lhe.

Vexado e timido, o Sr. Antunes sentou-se defronte de Jorge, que não lhe disse nada durante os primeiros minutos. Jorge falou emfim, reprehendendo-o amigavelmente; disse-lhe que as exigencias do commerciante não eram exageradas, e em todo caso não havia meio de oppôr-se a ellas, salvo se quizesse deixar a casa.

—Isso mesmo, disse o pae de Estella.

—Não faça isso; não se ganha nada em andar de emprego em emprego. Demais, francamente, não vejo que entrar antes das dez horas seja cousa difficil. Seu genro faz isso ha muitos annos.

—Meu genro!... meu genro!... disse o Sr. Antunes sacudindo a cabeça com um gesto de enfado.

Jorge fingiu não attender ao gesto e ao tom do pae de Estella, e tratou de o converter á pontualidade, obra que começava a ser difficil, porque o Sr. Antunes entrava já nas consequencias logicas e naturaes de uma longa dependencia; preferia o favor ao trabalho, e os annos contribuiam para esse amor da inercia e do beneficio gratuito. A maior ambição que o animou, se a fortuna a houvera realisado, dar-lhe-hia todos os meios de envelhecer tranquillo. Agora tinha encanecido, e o corpo, embora lesto, começava a suspirar pela inacção.

Jorge deixou o assumpto para não vexar o antigo protegido do pae, e acabou o jantar alegremente. No fim recebeu um bilhetinho de Procopio Dias. «Não imagina, dizia este, que dia tenho passado, depois da nossa conversa de hontem. Teimo em dizer que fui excessivo, e ainda uma vez lhe peço me releve a falta. Poderia o senhor castigar um doido? O amor não tem imputação. Queime este bilhete; em todo caso não o revele a ninguem, sobretudo á pessoa de que se trata.» Jorge sorriu e releu o bilhete; depois fechou-o na secretaria e escreveu esta simples resposta: «Ainda uma vez, não ha que perdoar. O senhor foi apenas desconfiado, como todos os ciumentos; mas, como não inventou o ciume, não lhe faço carga disso.» Entregue a resposta, Jorge olhou para o Sr. Antunes, que fumava discretamente um charuto do bacharel.

—Ouvi dizer hoje uma cousa, disse Jorge com ar indifferente; ouvi dizer que Yayá vae casar.

—Casar? repetiu o Sr. Antunes com um sobresalto. E depois de um instante:—É possivel; naquella casa o ultimo que sabe das cousas sou eu.

—Talvez não passe de balella. Nem me disseram com quem. Provavelmente ha algum namorado ou apparencia disso, e então os novelleiros vão logo ao fim. Mas haverá deveras algum pretendente ou namoro?...

—Que eu saiba, nada, asseverou o Sr. Antunes. E até, deixe-me dizer-lhe o que penso, duvido que ella cuide por ora de semelhante cousa. Aquella menina não tem cabeça.

—Oh! exclamou Jorge rindo.

—Não tem, digo-lhe eu. Está alli, está no hospicio. Não se póde dizer que seja travessura, porque não está em edade disso; é pancada. Se soubesse as cousas que ella faz ás vezes!

—Não me parece; quando a vejo, é sempre com um modo comedido, e muitas vezes serio...

—Lá isso. é porque ella não gosta do senhor.

—Não gosta de mim? perguntou Jorge admirado.

—Não digo que absolutamente não goste, obtemperou o pae da Estella; não lhe tem muita sympathia, é o que é.

—Como sabe você disso?

—Ouvi uma vez o pae reprehendel-a, por que de proposito voltara as costas ao senhor; e então ella levantou os hombros, assim com um ar de pouco caso. O pae tornou a dizer que aquillo não era bonito, mas perdeu o tempo; Yayá pregou os olhos nas unhas, com a testa franzida, e eu sai porque já não podia aturar nem um nem outro.

Jorge ficou alguns instantes pensativo. Era certo que Yayá o tratara sempre com muito resguardo e frieza; mas, supposto que isso não significasse sympathia, e até lhe sentisse alguma hostilidade, estava longe de attribuir-lhe declarada aversão. Do gesto a que o Sr. Antunes alludira, não se lembrava absolutamente, mas era possivel. Demais, pensou elle, o Sr. Antunes não o inventaria na occasião; não era callumniador; faltava-lhe essa ferocidade. Mas, porque motivo não gostaria delle a filha de Luiz Garcia? Era a segunda vez que Jorge fazia essa pergunta, sem lhe achar resposta plausivel. Em seguida, recordou-se da noite anterior, e observou ao pae de Estella que Yayá o tratara na vespera com alguma cordialidade.

—Milagre de anno bom! explicou o Sr. Antunes. Tambem lhe digo que não perde nada se ella não gostar do senhor; é uma fortuna. Porque ella, quando gosta de uma pessoa, é de fazer-lhe perder a paciencia.

—Mas parece ter bom coração, e creio que gosta muito do pae.

—Tambem Estella gosta de mim.

Jorge fechou neste ponto a conversação. Seu pensamento voltou á revelação inopinada do Sr. Antunes. Por mais indifferente que Yayá lhe fosse, Jorge sentia-se molestado com a certeza de que a moça não gostava delle. Porque seria? Simples antipathia ou outra cousa?

A preoccupação desvaneceu-se na tarde do dia seguinte, quando Jorge appareceu em casa de Luiz Garcia. Foi a propria Yayá quem veiu abrir-lhe a porta do jardim dizendo, alegremente:—Entre, Sr. doutor, que já se fazia esperado. Jorge não pode esconder o assombro que lhe produzira aquella recepção; nem o assombro nem a alegria. Entrou e estendeu-lhe a mão.

—Não posso, tornou a moça mostrando a sua, fechada; só se adivinhar o que está aqui dentro.

—Não é uma estrella.

—Não, senhor; é um cavallo.

No fundo do jardim estava Luiz Garcia, com o taboleiro do xadrez: acabava de dar uma licção á filha, que lh'a pedira desde antes do jantar. Yayá levou até lá o filho de Valeria. Pela primeira vez sentou-se ao pé dos dous para vel-os jogar; fincou os cotovellos na mesa e encostou o queixo nas mãos; queria aprender, dizia ella, em tres semanas.

—Tres semanas! repetiu o pae a sorrir e a olhar para Jorge.

Das qualidades necessarias ao xadrez, Yayá possuia as duas essenciaes: vista prompta e paciencia benedictina; qualidades preciosas na vida, que tambem é um xadrez, com seus problemas e partidas, umas ganhas, outras perdidas, outras nullas.




XII

Quinze dias depois, Procopio Dias appareceu em casa de Jorge com o luto no vestuario e no rosto. De Buenos-Ayres chegara-lhe na vespera, á tarde, a noticia da morte de um irmão, seu ultimo parente, noticia que o obrigava a embarcar no dia seguinte e demorar-se no Rio da Prata cinco a seis semanas. Não se pode dizer que elle estivesse triste; estava serio,—serio e preoccupado. A viagem a Buenos-Ayres não tinha por fim o cadaver do irmão, mas a herança, que posto não fosse grande, valia alguma cousa.

Procopio Dias offereceu seus serviços ao filho de Valeria, que de sua parte prometteu-lhe algumas cartas de apresentação, se precisasse. Procopio Dias acceitou uma. Jorge levou-lh'a no dia seguinte. Elle recebeu-a com demonstrações de agradecido e quasi terno. E depois de um momento de silencio:

—Já agora entrego-lhe pessoalmente esta carta, que devia ser levada amanhã por um portador.

Jorge quiz abrir:—Não, acudiu o outro; prometta-me que só a abrirá amanhã.

—Porque não hoje de noite?

—Podia ser hoje de noite; mas é bom que entre a impressão da despedida e a leitura desse papel decorra o espaço da noite e o somno. Talvez seu juizo seja differente.

Jorge prometteu. Procopio Dias partiu. No dia seguinte abriu a carta e leu estas poucas palavras: «Seja o meu anjo de guarda durante a minha ausencia.»

—Porque não? disse elle comsigo.

De tarde, saiu a cavallo, costeando o aqueducto segundo costumava, e ia pensando seriamente na conveniencia de casar os dous. Naquellas duas semanas tivera tempo de apreciar um pouco as qualidades da moça, que lhe pareceram boas, com quanto lhe achasse tambem alguma cousa original, mysteriosa ou romanesca, muito acima da comprehensão ou do sentimento de Procopio Dias. Jorge não se illudia acerca da paixão do pretendente; suppunha-a sincera, mas não lhe attribuia a virgindade das primeiras ou das segundas commoções: era uma paixão da ultima hora, um occaso ardente e abraseado entre o dia que lá ia, e a noite que não tardava a sombrear tudo. Ainda assim a alliança lhe parecia conveniente. Yayá possuia de certo a força necessaria para dominar desde logo o marido; e o titão encadeado teria ao pé de si, em vez de um abutre a picar-lhe o figado, uma formosa rôla destinada a prolongar-lhe as illusões da juventude.

Se eram boas as impressões que Yayá lhe deixara nos ultimos dias, não eram ainda assim isentas de algum enfado, aliás passageiro. Uma ou duas vezes, Yayá lhe pareceu singularmente aspera, e sem motivo nem duração. Esses assomos porém, eram logo compensados por uma afabilidade, que parecia mais viva, mais ruidosa, talvez um pouco importuna. Occasião houve em que Estella disse á enteada, com um sorriso de reprehensão:—Não amofines o Sr. doutor Jorge. Não comprehendeu Jorge porque motivo essa palavra simples, dita em tom brando, deu ao rosto de Yayá uma expressão indignada; lembrava-se porém que a expressão foi passageira, e que ella passou do singular amúo á habitual alegria:—Bem vê, replicou Estella, bem vê que é uma creança.

Jorge ia assim a reflectir, e já de volta, quando ouviu uma voz que dizia o seu nome. Era Yayá que descia da casa da velha ama. Jorge parou o cavallo.

—Em que vae pensando? disse ella.

—Na senhora, respondeu o moço affoutamente, depois de verificar que ninguem os podia ouvir.

Yayá caminhou até á rua, acompanhada de um homem velho, o irmão de Maria das Dores.

—Que anda fazendo aqui? continuou Jorge inclinando o busto sobre o pescoço do cavallo.

—Vim visitar a Maria das Dores. Coitada! esta tão abatida!

—Bem; eu logo lhe direi o que é; vá ver a doente.

—Já a vi; volto agora para casa. O Sr. João vae acompanhar-me.

Jorge apeou-se.

—Deixa-me acompanhal-a tambem? perguntou.

—Deixo; mas é só por ser curiosa. Quero saber o que ia pensando a meu respeito. Vamos, Sr. João?

Jorge enfiou a redea no braço e collocou-se ao lado della; Yayá tomou-lhe affoutamente o outro braço.

—Vá, conte-me tudo.

—O Procopio Dias embarcou hoje.

Yayá, que já havia dado os primeiros passos, estacou.

—Para onde? disse.

—Para o Rio da Prata; morreu-lhe um irmão em Buenos-Ayres.

—Mas sem se despedir de nós!

—Naturalmente, custava-lhe fazel-o, e quiz poupar-se á dor da separação. Esteve porém commigo, e prometteu-me que a demora seria curta. Vi-o muito afflicto com a viagem, tão afflicto que não sei se lhe diga que era... era, decerto, era maior a dor da viagem do que a da morte do irmão. Talvez lhe faça injuria nisto, mas parecia.

—Porque? perguntou a moça erguendo os olhos para elle.

—Não sei se lhe deva dizer porque, acudiu Jorge. E dahi, não se tratando de nenhuma cousa do outro mundo... É verdade que as moças bonitas como a senhora, costumam ser crueis... Não sei... Ha situações um pouco...

—Ridiculas, concluiu Yayá.

—Como ridiculas?

—Por exemplo, a sua.

Jorge enfiou um pouco; mas a um homem de sociedade, Yayá não parecia de força a fazer perder o equilibrio. Sorriu levemente, e retorquiu sem azedume.

—Não é ridiculo ser affectuoso; eu cuidava responder á linguagem de seu coração.

—Suppunha que a ausencia de Procopio Dias me deixava saudades...

—Suppunha.

—Que tem o senhor com isso?

A resposta de Jorge foi um simples gesto negativo. Comtudo, não pode zangar-se, porque sentia tremer o braço da moça, e olhando de esguelha para ella via-a pallida e com os olhos no chão. Se a pallidez e o tremor eram de colera não chegou a sabel-o; mas provavelmente não era outra cousa porque ao cabo de tres a quatro minutos, Yayá ergueu os olhos e estendeu-lhe a mão, dizendo:

—Façamos as pazes.

—Nunca estivemos em guerra, acho eu.

—Talvez em vespera da guerra.

—Não por culpa minha...

—Nem minha, acudiu a moça. E erguendo o chapellinho do sol para o ceu. Talvez por culpa daquelle, disse ella suspirando.

Após o suspiro, veiu uma risadinha secca e forçada, mas longa ainda assim como o som de um golpe no crystal. Tinham andado poucos minutos e esses poucos eram já de sobra para espertar a curiosidade de Jorge, e para lhe dar direito a pedir uma explicação. Jorge pediu-lh'a em termos affectuosos, perguntando por que razão era o ceu culpado em uma guerra que devia romper entre ambos, e sobretudo qual seria o pretexto dessa guerra. Yayá reflectiu um instante, e começou a falar com os olhos baixos.

—O motivo é o senhor mesmo, disse ella.

—Eu?

—O senhor, que é meu inimigo, que me detesta. Não me dirá que mal lhe fiz eu? continuou ella erguendo subitamente os olhos. Escusa fazer esse gesto de espanto; sei que o senhor me detesta, e por mais que pergunte a mim mesma—não sei, não me recordo... Diga, fale com franqueza.

—Tanto melhor! exclamou Jorge. Vejo que havia entre nós um equivoco e é chegada a occasião de o desfazer. Quer que lhe fale com franqueza? O inimigo não sou eu, é a senhora; é a senhora, ou antes, era ou parecia ser. Agora comprehendo; retribuia-me a aversão que suppunha haver em mim. Tanto melhor! Façamos as pazes de uma vez.

Yayá apertou a mão que elle lhe offereceu e chegaram alegremente a casa. Jorge quiz retirar-se logo, mas a moça ordenou a Raymundo que conduzisse o cavallo, e Jorge foi compellido a entrar por alguns minutos. Luiz Garcia não estava em casa. Estava o Sr. Antunes. Yayá mal deu tempo aos primeiros comprimentos.—Ande jogar commigo, disse ella.

—Em boa paz?

—Em boa paz.

Yayá preparou o xadrez, no gabinete contiguo á sala; Jorge sentou-se pacientemente deante da adversaria, rectificou a posição de duas peças, excluiu as que lhe dava de pardido e adiantou o primeiro pião.

—Vá, disse; é a sua vez.

Yayá não obedeceu ao convite. Olhava para elle, com ar inquieto.

—Dá-me sua palavra de honra de que me não negará o que lhe vou perguntar? disse ella ao cabo de alguns instantes de silencio.

Jorge hesitou um pouco.

—Conforme.

—Exijo.

—Que me pedirá ella que lhe não possa affirmar? pensou Jorge. E em voz alta respondeu:

—Dou.

—Foi elle quem lhe encommendou...

—O sermão? interrompeu Jorge sorrindo. Serei franco; foi elle mesmo.

Yayá baixou os olhos ao taboleiro, cavalgou a torre com o bispo, como distrahida, e em voz ainda mais baixa do que lhe falara, perguntou:

—O senhor é homem de segredo!

—Sou, redarguiu afoutamente Jorge.

—Pois bem, continuou Yayá, eu gosto delle, gosto muito, mas não desejo que elle saiba.

—Deveras? não está gracejando?

—Não estou.

Jorge estendeu-lhe a mão:—Magnifico, disse elle alegre; não é preciso mais. Uma vez que se amam, virão naturalmente a...

Não pode acabar, porque a moça, erguendo-se de subito, affastou-se da mesa, com um arremeço, e dirigiu-se á janella, que dava para o jardim. Jorge ficou espantado. Não entendia o que estava vendo. Inclinou-se sobre o taboleiro e começou a mover as peças, sósinho, sem plano, machinalmente. Assim jogando, ouvia o som do tacão de Yayá que feria o ladrilho do chão, com um movimento precipitado e nervoso. Durou isto cinco minutos. Yayá voltou-se para dentro, saiu da janella e approximou-se da mesa. Jorge ergueu então a cabeça para ella e sorriu.

—Não me dirá que lhe fiz eu, para ficar tão zangada commigo? perguntou com benevolencia.

—Nada; eu é que fui estouvada e não sei se mais alguma cousa.

Jorge protestou que não.—Foi rispida sómente disse elle; e se o foi sem querer, não foi sem motivo. Não me dirá que motivo é esse? Parece-me que não a tratei mal...

—Não.

—Nesse caso, o motivo está na senhora mesma; e se eu não tivesse medo de que se zangasse outra vez commigo, atrevia-me a pedir-lhe que me dissesse tudo—ou pelo menos alguma cousa.

—Para que? Vamos jogar.

—Está escurecendo.

—Mando vir luzes.

Vieram luzes; começaram a jogar. Entre elles o xadrez não podia offerecer interesse, mas dado que pudesse, não seria naquella occasião. Um e outro estavam distrahidos e preoccupados. A primeira partida foi concluida, em pouco tempo, quasi sem calculo.

—Outra? perguntou Yayá.

—Vamos.

Antes de começar, disse ella collocando as peças, e sem olhar para Jorge, quero dizer que tem um meio seguro de nunca brigar commigo.

—Qual é?

—É ser meu confidente.

—Senhor de seus segredos?

—Todos.

—O meio é facil; só eu ganho na troca.

—Nisso dou prova de grande coração.

Já não era a menina rispida de alguns instantes; dissera as ultimas palavras com muita graça e placidez. Ao mesmo tempo, continuava a arranjar methodicamente as peças. Acabou e reclinou-se no dorso da cadeira.

—Não me declarou ainda se acceitava, disse ella.

Jorge hesitou um instante. Era gracejo ou proposta séria? A um gracejo responde-se com outro, a uma proposta responde-se com seriedade. Jorge hesitava em tomar sobre os hombros uma parte de responsabilidade dos sentimentos da moça. Quaes seriam elles? que projectos despertariam naquelle cerebro provavelmente indomavel? Não podiam ser outros senão os de casamento com Procopio Dias, visto que ella confessava amal-o. Esta reflexão fel-o declarar affoutamente que acceitava a confidencia.

—Sabe o que acceita? perguntou Yayá.

—Farejo.

—Toque! disse ella estendendo-lhe a mão.

Jorge deu-lhe a sua.

—Não se trata em todo caso de nenhum assassinato? perguntou rindo.

—Não.

A segunda partida foi mais animada, mas só por parte de Yayá. A moça ria ás vezes, mas a maior parte do tempo fazia convergir toda a sua attenção para o jogo. Quando falava, era moderada e docil. Essa alternativa e contraste de maneiras interessava naquelle momento o espirito de Jorge. Que especie de mulher fosse, imperiosa como uma matrona, travessa como uma creança, incoherente e enigmatica, era cousa que elle não podia em tão pouco tempo descobrir; mas o enigma aguçava-lhe attenção. Em quanto ella tinha os olhos no taboleiro, Jorge buscava ler-lhe a alma na fronte lisa e candida; mas não via a alma, via só uns fiapos castanhos do cabello, que lhe caíam sobre a testa e esvoaçavam levemente ao sopro da aragem que entrava pela janella, e lhe davam um ar de puericia. A boca fina e pensativa corrigia aquella expressão da cabeça; era a primeira vez que elle lhe descobria um forte indicio de energia e tenacidade.

Quando era a vez de Jorge, Yayá affastava o busto, reclinava-se no espaldar de cadeira e ficava a olhar para elle, como elle havia olhado para ella. Mas nesse olhar não scintillava curiosidade; era uma luz velada e baça, como alheia ao mundo exterior. Encontravam-se assim os olhos de um e de outro, e a partida continuava, até chegar ao fim sem novo incidente.

Prestes a acabar, Estella entrou no gabinete, sem os interromper. Sentou-se caladamente a um canto da janella. O jogo cessou no momento em que entrou Luiz Garcia.—Perdi duas partidas, papae, disse a moça; mas por um triz não ganhei a segunda. Jorge quiz sair logo depois; foi obrigado a demorar-se, porque Yayá lembrou-se de ir tocar piano. Era a primeira vez que Jorge conseguia ouvil-a. A moça escolheu uma pagina de Meyerbeer; Jorge confessara uma vez que era esse o autor de sua predilecção.

No dia seguinte a impressão deste era um tanto complexa e perplexa. Aquella mistura de franqueza e reticencia, de aggressão e meiguice, dava á filha de Luiz Garcia uma physionomia propria, fazia della uma personalidade; mas a physionomia era ainda confusa e a personalidade vaga. Jorge sentia-se empuxado e retido, ao mesmo tempo, por dous sentimentos contrarios; tinha curiosidade e repugnancia de penetrar o caracter da moça, e conhecer e distinguir os elementos que o compunham. O que lhe parecia claro e definitivo era que as primeiras palavras de Yayá, tão duras e tão seccas, não passavam de uma expressão de despeito, por suppôr da parte delle a aversão que não existia; e se as palavras em si o magoavam, a explicação lisongeava-lhe o amor-proprio. O resto era inexplicavel. Jorge resolveu, entretanto, não lhe falar mais de Procopio Dias, apezar da confissão aliás contrastada ou diminuida pelo gesto que se lhe seguiu.

Yayá pareceu perder a disposição aggressiva; á força de affabilidade apagou inteiramente os vestigios da antiga rispidez. A alma não se lhe tornou mais transparente, nem o caracter menos complexo; mas a exquisita urbanidade dos modos fazia supportaveis os saltos mortaes do espirito, e augmentava o interesse do que havia nella obscuro ou irregular; finalmente, era um correctivo á tenacidade com que a moça confiscava litteralmente o filho de Valeria. Jorge estimou, sobre todas, esta circumstancia, porque lhe tornou mais facil a frequencia da casa. Elle pertencia ao pae ou á filha—muitas vezes aos dous. Yayá atirou-se ao xadrez com um ardor incomprehensivel, e dizendo-lhe Jorge que era preciso ler alguns tratados, ella pediu-lhe um, e porque elle só os tivesse em inglez, Yayá pediu que lhe ensinasse inglez.

—Mas eu sou um mestre muito rispido, observou elle.

—A discipula é muito peor.

Estella assistia algumas vezes ás lições do idioma e do jogo;—duas cousas que lhe pareciam incompativeis com o espirito da enteada. Verdade é que Yayá mudara tanto naquellas ultimas semanas! Não lhe suppuzera nunca tão longa paciencia, nem tão repousada attenção. Yayá gastava uma a duas horas por dia a decorar os verbos e os substantivos da nova lingua, e essa paixão recente tinha o condão singular de irritar a madrasta. Jorge, pelo contrario, sentia em si os jubilos do pedagogo. O professor é o pae intellectual do discipulo; Jorge contemplava paternalmente aquella intelligencia fina, paciente e tenaz servida por dous olhos de pomba e duas mãos de archanjo.

No meado de Fevereiro tornaram a falar de Procopio Dias, a proposito de uma carta que Luiz Garcia recebera.

—Veja lá, disse a moça; elle escreveu a papae e nem uma palavra especial para mim. «Lembranças a D. Estella e a Yayá.» Nada mais. Elle escreveu-lhe?

—Até agora, não.

—Não ha nada como a ausencia para fazer esquecer tudo—isto é, esquecer os que ficam. Talvez já não pense em casar commigo. Foi um capricho que passou, como todos os caprichos; foi como a chuva de hontem, que deu apenas alguns salpicos de nada. E com tudo parecia que vinha abaixo o ceu. Não é? a paixão delle não é como a trovoada? ameaçou no Rio de Janeiro e foi cair em Buenos-Ayres. Aposto que vem de lá casado. Verá que não é outra cousa. Que me diz a isso? Vamos; diga alguma cousa.

—Não posso, redarguiu Jorge. A senhora deu-me o cargo de confidente e não de conselheiro; limito-me a ouvil-a. Verdade é que o tal cargo até agora parece simples sinecura.

—Que é sinecura?

Jorge sorriu e definiu-lhe a palavra.

—Não é sinecura, acudiu Yayá; pelo contrario, é um cargo muito espinhoso.

—Não creio. A confidencia unica até hoje não me pareceu sincera. A senhora não ama o Procopio Dias.

Yayá franziu a testa.

—Porque me diz isso?

—Porque, se o amasse, falaria de outro modo, e sobretudo não falaria tanto. O amor, nessa edade, vive de reticencias, não de phrases e menos ainda de phrases tão compostas.

—Cale-se! interrompeu ella batendo-lhe com a grammatica na ponta dos dedos. E depois de uma pausa:—Se elle lhe escrever, mostra-me a carta!

Como Jorge lhe dissesse que sim, Yayá fez um movimento para rasgar o volume em dous pedaços. Jorge perguntou-lhe o que tinha.—Nervoso! respondeu a moça sacudindo os hombros com um calefrio. Depois, como a amparar-se, lançou-lhe a mão a um dos pulsos. Jorge sentiu a pressão de uns dedos de ferro; e parece que outros dedos invisiveis tambem comprimiam as faces da moça, vermelhas como se vertessem sangue.




XIII

Jorge achou em casa, nessa mesma noite, uma carta de Buenos-Ayres. Procopio Dias narrava-lhe a viagem e os primeiros passos, e dizia ter toda a esperança de se demorar pouco tempo. Tudo isso era a terça parte da carta. As duas outras terças partes eram saudades, protestos, expressões de sentimento, e um nome no fim, um nome unico, e que era a chave do escripto. Jorge leu attentamente essas confidencias, e na mesma noite esboçou uma resposta. Não era facil combinar a discrição que quizera conservar em suas relações com Procopio Dias e a necessidade de lhe mandar algumas esperanças. Embora com esforço, redigiu a resposta conveniente, contando-lhe as boas impressões que tinha; só as boas, não lhe disse as duvidosas; sobretudo não desceu a nenhuma realidade, a nenhum nome proprio; nada mais que uma extensa serie de locuções egualmente animadoras e vagas.

No dia seguinte não foi á casa de Luiz Garcia; choveu torrencialmente. Mas no outro dia foi, logo depois do jantar. Achou reunida a familia.

Good evening, my dear mestre! bradou Yayá logo que o viu entrar na sala.

—Faltava mais uma lingua a esta tagarella, disse Luiz Garcia rindo; daqui a pouco tempo ninguem a poderá aturar.

Jorge não esperava, de certo, encontrar na moça a mesma expressão que lhe deixára na antevespera, quando de um gesto nervoso lhe comprimira o pulso. Tinham passado quarenta e oito horas, e para que ella se restabelecesse bastariam apenas quarenta e oito minutos. Contava com a mudança; não obstante procurou ler-lh'a nos olhos, e achou-os tão alegres como o tom em que ella o saudara. A licção isolou-os, e foi tambem o pretexto mais favoravel para lhe mostrar a carta de Procopio Dias. Yayá viu-a sellada e comprehendeu tudo; arrebatou-a ás mãos de Jorge.

—Ah! disse este, seu gesto vale um discurso.

—Posso ler?

—Pode.

Yayá desdobrou a carta e leu-a para si, Emquanto lia, Jorge fitava-a. Não lhe via nenhuma confusão, alvoroço ou alegria; os olhos seguiam lentamente de uma linha a outra, e a mão firme voltava a pagina. No fim, quando leu o proprio nome, teve um movimento de tedio, e inconscientemente amarrotou o papel; mas emendou-se logo, alisou a carta com a mão e restituiu-a silenciosamente. Durante alguns segundos occupou-se em traçar com um lapis alguns circulos na margen da folha aberta da grammatica; ergueu emfim os olhos e perguntou sem rir:

—Acredita no que diz essa carta?

—Acredito; tudo o que está ahi escripto, já o ouvi de viva voz, e com a mesma sinceridade e calor. Quem sabe? pode ser que seja o primeiro amor desse homem.

—O primeiro... o primeiro... repetiu ella entre dentes.

—Talvez o primeiro, insistiu Jorge; e para uma moça, acho que deve ter algum encanto ser amada por um homem, considerado superior ás paixões. A vida de Procopio Dias teve sempre outra ordem de interesses...

—Conhece-o ha muitos annos?

—Ha muitos, não; conheço-o desde o Paraguay.

—Acha que eu fazia bem em me casar com elle?

—Bem ou mal, conforme o amor que lhe tiver. Esse é o ponto necessario, e em meu conceito, o ponto duvidoso. Receio que a senhora o não ame deveras; já tive occasião de o dizer.

—Preciso de alguns esclarecimentos. O senhor amou de certo alguma vez...

—Nunca.

—Nunca? Nunca teve um amor, um só que fosse? Não creio. Um coronel! Nada; não creio; só se me jurasse; era capaz de jurar?

—Juro.

—Em nome de sua mãe? concluiu ella fitando-lhe uns olhos cuja expressão imperativa contrastava com o tom submisso da palavra.

Jorge hesitou um instante. Tinha scepticismo bastante para proferir uma formula vaga de juramento; mas recuou deante da formula positiva. Hesitou e ladeou a pergunta.

—Esse nome resume justamente o meu unico amor, disse elle; amei a minha mãe.

Yayá sorriu com ar de duvida; depois olhou para elle commovida.—Eu amo meu pae, redarguiu ella; nossos corações podem entender-se.

A esta palavra não havia que replicar; pareceu-lhe a condemnação do pretendente. Apertou a mão que a moça lhe estendeu, e sentiu-a fria. Após uma curta pausa, abanou a cabeça, murmurando:

—Assim pois, nenhuma sombra de esperança...

—Faça o que entender, disse a moça no fim de outra pausa. Em todo o caso desejo ler a resposta que lhe der.

Jorge abriu a carteira, e tirou de lá o rascunho da carta que pretendia mandar a Procopio Dias.

—A resposta, disse elle, já está escripta. Não querendo matal-o, puz aqui algumas gottas de esperança; não ousaria comtudo mandar o remedio, sem ouvil-a.

Yayá recebeu o papel dobrado, olhou um instante para elle, outro para Jorge.—Leia, disse este. Yayá não obedeceu: pegou do lapis, e sobre a folha do papel dobrado começou a lançar os traços de um desenho. Posto que a luz batesse em chão no papel, Jorge não pode ver desde logo o que era; mas esperava, em frente da moça, que ella rematasse o capricho. Nessa occasião, Estella foi ter com elles.

—Já acabou a licção? perguntou.

—Agora é uma licção de desenho, ao que parece, disse Jorge.

Estella poz a mão no hombro da enteada.—É o Procopio Dias! disse ella olhando para o desenho. Era, mas o desenho frisava com a caricatura; a fealdade de Procopio Dias excedia as proporções verdadeiras, o nariz era enormemente triangular, as rugas da testa grossas e infinitas: um monstro comico. Estella sorriu da travessura, mas reprehendeu-a.

—Deixe ver, disse Jorge quando ella acabou.

—Para que? retorquiu Yayá com indifferença.

E levando o papel á chamma, queimou-o. Jorge interrogou-o com os olhos; ella encarou-o sem se perturbar. Depois folheou a grammatica lentamente.

—Continuemos a licção, disse ella. I love. Vá; onde estavamos? Aqui, era aqui.

Estella assistiu á licção toda, com a paciencia da curiosidade. Não olhava nunca para o mestre, dividia a attenção entre a discipula e o livro. A licção foi longa, mais longa do que era necessario, porque o proprio mestre não acompanhava pontualmente o texto e a leitura. Yayá tinha deante de si dous juizes, cada um dos quaes buscava decifrar-lhe na fronte a inscripção que lá lhe teria posto o seu destino. Percebia-o, e não se enfadava. Ia de um tempo a outro, e do indicativo ao imperativo, voltando ao começo logo que chegava ao fim, fitando os dous inquisidores com um olhar em que pareciam dormir todas as ignorancias da terra.

A tranquillidade era apparente. Nessa noite, recolhida aos aposentos, a moça deu largas a dous sentimentos oppostos. Entrou alli prostrada.—Que estou eu fazendo? disse ella apertando a cabeça entre os punhos. Abriu a veneziana da janella e interrogou o ceu. O ceu não lhe respondeu nada; esse immenso taciturno tem olhos para ver, mas não tem ouvidos para ouvir. A noite era clara e serena; os milhões de estrellas que scintillavam pareciam rir dos milhões de angustias da terra. Duas dellas despegaram-se e mergulharam na escuridão, como os figos verdes do Apocalipse. Yayá teve a superstição de crer que tambem ella mergulharia alli dentro e cedo. Então, fechou os olhos ao grande mudo, e alçou o pensamento ao grande misericordioso, ao ceu que se não vê, mas de que ha uma parcella ou um raio no coração dos simplices. Esse ouviu-a e confortou-a; alli achou ella apoio e fortaleza. Uma voz parecia dizer-lhe:—Prosegue a tua obra; sacrifica-te; salva a paz domestica. Restaurada a alma, ergueu-se do primeiro abatimento. Quando abriu de novo os olhos, não foi para interrogar, mas para affirmar,—para dizer á noite que naquelle corpo franzino e tenro havia uma alma capaz de encravar a roda do destino.

Tarde conciliou o somno. Já dia claro, sonhou que ia calcando a beira de um abysmo, e que uma figura de mulher lhe lançava as mãos á cinta e a levantava ao ar como uma pluma. Pallida, com o olhar desvairado, a boca ironica, essa mulher sorria, de um sorriso triumphante e mau; murmurava algumas phrases truncadas que ella não entendia. Yayá bradou-lhe em alta voz:—Dize-me que não amas e eu te amarei como te amava! Mas a mulher sacudindo a cabeça com um gesto tragico, e collando-lhe os labios nos labios, soprou alli um beijo convulso e frio como a morte. Yayá sentiu-se desfallecer e rolou ao abysmo. Accordou agitada e deu com a madrasta, a contemplal-a, ao pé da cama. No primeiro instante, fechou os olhos e recuou até a parede; mas logo depois voltou a si.

—Tive um pesadelo horrível, disse ella respirando largamente; rolei no fundo de um abysmo, empurrada por duas mãos de ferro. Ainda estou fria. Veja as minhas mãos. Tenho o peito opprimido. Felizmente passou. Está aqui ha muito tempo? Eu agitei-me muito?

—Falaste em voz bem alta.

—Que foi?

—«Dize-me que não amas e eu te amarei como te amava,» Não sei que estas palavra se possam dizer no fundo de um abysmo. Tu confundes os sonhos...

—Talvez; não me lembra outra cousa. Só me lembro do abysmo, que felizmente não passou da minha imaginação. É muito tarde, não é?

—Nove horas.

—Nove horas!

Estella foi a janella, e, abrindo a veneziana, mostrou-lhe o sol. Depois encostou-se alli a olhar para fóra. Entrara alguns minutos antes, admirada do prolongado somno da enteada, e ia pousar-lhe a mão no hombro, quando ouviu aquella palavra balbuciada no meio de grande agitação; palavra mysteriosa e vaga, mas que se lhe embebeu no coração como um espinho. De sua parte, Yayá não estava menos inquieta. Receiava que houvesse dito alguma cousa mais,—um nome ou uma circumstancia precisa;—em todo caso, era bastante o que ouvira a madrasta, para imaginar que o sonho lhe escancarara as portas da consciencia. Uma e outra espreitavam-se desconfiadas e medrosas. A madrasta deixou a janella e foi sentar-se na beira da cama. Ambas sorriam com esforço e nenhuma conseguia falar primeiro. Correram assim tres longos minutos de acanhamento e observação reciproca. Estella foi a primeira que rompeu o silencio.

—O teu pesadelo foi um castigo, disse ella; foi o castigo da caricatura que hontem fizeste. Aquillo não é bonito. Todos sabem que o Procopio Dias é bem recebido em nossa casa. Que se hade pensar de nós, quando virem que se tratam assim as pessoas ausentes?

Yayá reflectiu um instante.—Era preciso, disse ella; era uma maneira de desenganar de uma vez as pretenções desse senhor.

—Mas quem te falou nellas?

—O Dr. Jorge, que parece protegel-o. Não é possivel que haja ninguem mais feliz do que aquelle homem. Bastou gostar de mim, para que todos se empenhem em approval-o e aconselhar-me que não devo tomar outro marido. Parece-lhe que eu...

—A que proposito te falou nisso o Dr. Jorge?

—A proposito de cousa nenhuma; falou porque é amigo delle. Não lhe disse eu uma vez que um dia, se todos teimarem, serei obrigada a casar com o Procopio Dias? Receio muito que assim aconteça.

—Não, disse Estella vivamente; não hade acontecer assim, primeiramente por que eu não o consentirei nunca; depois, por que tu amas a outro...

—Eu?

—O teu amor de collegio, aos doze annos e meio...

—Ah! disse Yayá. E depois de alguns instantes continuou, com um gesto de grande vergonha:—Fiz mal em lhe dizer aquillo; peço-lhe que não repita a ninguem.

Estella não ouviu as ultimas palavras. Erguera-se outra vez para dissimular a commoção, que parecia crescer. Entretanto, Yayá enfiou um roupão e enterrou o pé na chinellinha matinal. Quando, cinco minutos depois, encontrou os olhos de Estella, achou-os sombrios, como os da figura do pesadelo, e insensivelmente buscou ver se teria um abysmo ao pé de si.

—Yayá, disse Estella em tom secco, tu amas, tu confessas que amas a alguem; quero que me digas o nome desse homem, ouves? Exijo sabel-o para avaliar o que te convem. Sabes que tenho autoridade de mãe.

Yayá sentiu ferver-lhe o sangue nas veias.

—Minha mãe morreu, redarguiu com egual sequidão; estou prompta a obedecer a meu pae.

Estella apenas disfarçou a sensação interior; após alguns instantes de silencio, saiu.

Longe da enteada, a madrasta deu inteira expansão aos sentimentos que a combaliam. Fechou-se no gabinete do marido; depois evocou o passado, como uma força contra o presente, porque era o presente que ameaçava tragal-a. Um instante abalada pela leitura da carta de 1867, buscou recobrar a antiga quietação, mas a interferencia de Yayá perturbou essa obra de sinceridade. O procedimento da enteada, a subita conversão ás attenções de Jorge, toda aquella intimidade visivel e recente, accordara no coração de Estella um sentimento, que nem aos orgulhosos poupa. Ciume ou não, revolvera a cinza morna e achou lá dentro uma braza. Suspeitou a rivalidade da outra, e não foi preciso mais para que o grito de rebellião fizesse estremecer aquella alma solitaria e virgem. O pensamento perdeu a habitual placidez. O coração começou de bater com a celeridade e a violencia das grandes febres.

Eram as energias latentes de um amor comprimido, mas intenso, como uma cratera que acaso fechasse uma abobada de gelo; peor que tudo, tinha a fatalidade de um longo constrangimento, a luta de duas forças egualmente pujantes, indomaveis e cegas. O orgulho vencera uma vez; agora era o amor, que, durante os annos de jugo e compressão, criara musculos a saía a combater de novo. A Victoria seria uma catastrophe, porque Estella não dispunha da arte de combinar a paixão espuria com a tranquillidade domestica; teria as lutas e as primeiras dissimulações; uma vez subjugada, iria direito ao mal.

Ora no meio desse duello, já doloroso, embora ainda curto, ouviu Estella a ultima palavra da enteada, commentario da que lhe escapara na agitação do pesadelo. Saiu dalli atterrada, tacteando as sombras, e desviando os olhos quando algum clarão de realidade se lhe accendia ao longe. Não podia crer na rivalidade consciente e declarada de Yayá; era inverosimil, seria a sua propria vergonha e condemnação. Mas as palavras retiniam-lhe ao ouvido, e o gesto frio e duro da enteada parecia clarear o que havia obscuro nellas.

Não podia durar muitas horas a situação em que a fatalidade das circumstancias havia posto as duas mulheres. Yayá era a mais ductil, e, outrosim, a mais interessada. Logo que Estella a deixou só, caiu em si e comprehendeu que, além de ferir cruelmente a mulher que lhe servia de mãe, levantara uma ponta do veu em que trazia envolto o pensamento; ao demais, a injuria produzira a reacção do amor,—do amor que lhe tinha e não perdera de todo, apezar dos acontecimentos ultimos. Na seguinte manhã foi ter com a madrasta.

—Confesso que fui excessiva e desobediente, disse ella; não o devia ser, mas a senhora falou com um modo tão secco! tão duro! Pareceu-me que duvidava de mim; fosse o que fosse, não era o seu modo do costume. Sempre a respectei como minha mãe; não nego, não poderia negar nunca os seus direitos, assim como não desconheço a sua amizade; mas a senhora mesma tem um bocadinho de culpa; sempre me tratou antes como irmã do que como filha. Dahi veiu alguma confiança, alguma liberdade, e foi por isso que hontem cheguei a esquecer quem eramos, para a tratar como não devia. Foi isso sómente; foi um excesso, uma leviandade, nada mais. Consulte o seu proprio coração e elle lhe responderá que não foi mais do que isso. Vá; pergunte-lhe, elle me conhece.

Estella escutou-a silenciosamente, sem vergar a altivez da fronte, mas tambem sem nenhuma expressão de despeito ou desafio. Luzia-lhe nos olhos alguma cousa que espreitava a alma da outra por baixo das palpebras descidas. Yayá falara de um jacto, mas não de um só tom; simplicidade, timidez, faceirice,—havia de tudo na maneira porque se exprimiu durante aquelles poucos segundos. A explicação era a um tempo sincera e habil, mas de tal modo se confundiam os dous caracteres, que a propria habilidade não tinha consciencia de si: era antes um instincto do que um calculo.

—Que me pedes tu? disse Estella no fim de alguns instantes. Que te perdoe? Que esqueça a tua imprudencia? Uma cousa é mais facil do que a outra. Estás absolvida; faze agora com que eu esqueça.

—Porque não? eu consegui fazer com que me amasse, quando a senhora não sabia ainda se eu era má ou boa.

—Era facil. Tua mãe era tua mãe; mas não te amou mais do que eu. Se alguma vez o reconheceste, não foi hontem; hontem cedeste a um mau preconceito contra as madrastas, e levantaste entre mim e ti um espectro, que se podesse falar seria para te condemnar tambem. Não me queixo; nunca me queixei de cousa nenhuma: quando estimo alguem, perdôo; quando não estimo, esqueço. Perdoar e esquecer é raro, mas não é impossivel; está nas tuas mãos.

Subjugada pelo tom com que a madrasta falara, simples, severo e levemente repassado de tristeza, Yayá cedeu a um nobre impulso de submissão. Pegou-lhe nas mãos e beijou-as. A madrasta sentiu nellas uma lagrima. Não recusou esse testemunho do coração, e tel-a-hia apertado ao seio se lh'o permittisse a inflexibilidade do espirito. Limitou-se a contemplal-a com os olhos amoraveis de outro tempo.

Quando se separaram dahi a alguns minutos, alguma cousa dizia á consciencia de ambas que não vinham de fundar a paz, mas simples tregoas. Essa persuasão cresceu nos demais dias, porque uma e outra sentiam-se mutuamente observadas. Como houvesse entre ellas um accordo tacito para não turbar a paz domestica, Luiz Garcia não percebeu essa situação nova; Jorge ainda menos do que elle. Yayá não alterou os habitos dos ultimos dias, comquanto usasse mais alguma cautella; as relações dos dous eram, aliás tão frequentes e familiares como d'antes. Uma vez, como a ausencia de Jorge se houvesse prolongado além do costume, Yayá mostrou-se-lhe um pouco retrahida: e, perguntando-lhe elle o que tinha, respondeu affoutamente, que a ausencia a magoara muito.

—Quatro dias apenas, observou elle.

No primeiro domingo de Março, Jorge foi alli ás onze horas da manhã, e só achou Luiz Garcia e Estella. Yayá tinha ido á casa de Maria das Dores. Quando a moça voltou, Jorge e Estella estavam no jardim, ao pé da porta da sala; entre ambos havia uma cadeira vaga,—a de Luiz Garcia, que fora dentro alguns minutos antes. Nenhum dos dous falava nessa occasião; Estella estalava as unhas, Jorge batia na testa com o castão da bengala. Era constrangimento? Era dissimulação? Yayá não soube decidir; mas o aspecto dos dous deixou-a sem pinga de sangue.

No dia seguinte voltou á casa de Maria das Dores; sabia do passeio usual de Jorge; queria vel-o, falar-lhe. A doente não contava com a visita tão proxima da outra. Yayá esteve com ella apenas alguns minutos, e saiu fóra, a pretexto de que fazia calor e queria ver a tarde. A tarde era bella; o ceu tinha todos os tons, desde o escarlate até o opala; ao nascente, algumas nuvens, raras e finas, manchavam de branco o fundo azul.

A casa ficava n'uma pequena elevação; Yayá sentou-se numa pedra lisa, que servia de banco, e d'ali circulou um olhar pelo horizonte; depois desceu os olhos á cidade e ao mar, e esse espectaculo, tão sahido delles, levou-a aos tempos, não mui remotos, em que entre ella e o pae nenhum coração viera interpôr-se. No meio das reflexões, viu parar um homem, ao longe; era Jorge; vinha a pé, em attitude de quem medita. Passaria elle sem a ver? Ergueu-se; viu-o approximar se, parar de novo e olhar na direcção da casa. Cortejou-o de longe e fez-lhe signal para que subisse. Jorge obedeceu sem difficuldade.

Maria das Dores, doente de uma paralysia, ficou estupefacta quando viu entrar um desconhecido pela mão de Yayá. Interrogou a moça com os olhos, e Yayá, depois de um instante de acanhado silencio, respondeu com desgarre:

—É meu noivo, que vem vel-a. Quero que o conheça e não diga nada a ninguem, ouviu?

Dizendo isto, approximou-o mais da paralytica. A boa velha contemplou-o alguns instantes, disse-lhe algumas palavras de conselho, pediu-lhe que fizesse feliz a sua filha de creação, e não obteve delle uma palavra ou um gesto de assentimento. Suppol-o commovido; mas elle estava simplesmente attonito.

Saindo fora da casa, assentaram-se á porta, na mesma pedra, assaz larga e extensa para dous.

—Foi preciso dizer-lhe aquillo, explicou Yayá, porque eu desejo conversar com o senhor, e os noivos conversam mais á vontade. Demais, ella não é só paralytica; tem a vista fraca; amanhã posso substituil-o, sem que ella dê pela mudança. Agora falemos de nós e daquella carta... E antes da carta, diga-me, sabia que eu estava aqui?

—Não; mas não vim até estes lados sem esperança de a encontrar. Já que fala na carta, deixe-me dar-lhe uma explicação; se a não dei até hoje, é porque não quizera voltar a um assumpto, aborrecido para a senhora e para mim.

—Para o senhor?

—Para mim.

Yayá apertou-lhe a mão com força.—Vá, disse; tambem tenho de lhe dizer alguma cousa grave; mas ouçamos primeiro a sua explicação.

—Oh! custa pouco, acudiu Jorge. Escrevi o esboço da carta por me parecer que podia ser-lhe agradavel. Lembra-se que uma vez me havia falado naquelle sentido? Duvidei mais tarde, e disse-lh'o. Comtudo, havia tanta incerteza e contradicção entre suas palavras e acções, que não era difficil suppôr alguma cousa; ha paixões que começam assim caprichosamente. A carta era um meio de dizer ao pretendente que seus suspiros podiam não ser inuteis. Era isso; só isso. Confesso que adoptei o papel mais passivo, desinteressado, e não sei até se... creio que a senhora já o qualificou de ridiculo. A forma podia não ser grave, mas a intenção era affectuosa, e se merecia um riso, tambem merecia um aperto de mão. Esboçada a carta, não a mandaria sem mostral-a; foi o que fiz; mas sua reprovação foi tão eloquente, que me fez cair em mim e reconhecer que a carta era de mais.

—Era de menos.

—Queria então que fosse eu proprio a Buenos-Ayres? perguntou Jorge sorrindo.

—Queria, se ao chegar lhe dissesse:—Pense em outra cousa; Yayá não o ama.

—Para isso, basta que lhe não diga nada.

—Não o ama, repetiu a moça; não o ama, não o ama.

—Desta vez é serio e definitivo?

—Que admira? replicou a moça com gravidade. Não lhe parece a cousa mais natural do mundo que uma moça não ame o Procopio Dias? Não sei o que são os outros homens; poucos tenho visto; nossa vida é tão retirada! Mas, emfim, não me parece que o Procopio Dias seja homem de se ficar morrendo por elle. E comtudo elle morre por mim. Meu coração perdoa-lhe; é o mais que pode fazer. Acceital-o seria impossivel. Já reparou nos olhos delle? Tem ás vezes uma expressão exquisita, que não vejo nos olhos de papae nem nos seus. Não gosto delle; não poderia gostar nunca.

Desta vez foi Jorge que lhe apertou a mão.

—Tem razão, disse elle; se o não ama deveras está tudo acabado. Não lhe digo que elle fosse um noivo perfeito; não podia ser; mas acceitavel era. Hoje percebo que entre a senhora e elle ha alguns contrastes; mas o que é que não concilia o tempo? Esqueça o que lhe disse a tal respeito; e assentemos não falar mais de semelhante assumpto. Provavelmente não escreverei nada; é duro dizer a um homem que todas as suas esperanças são vans.

—A paz do meu espirito não valerá esse sacrificio?

—Vale mais; posso fazel-o.

Yayá reflectiu.

—Não, não é preciso; não lhe diga nada; elle ha de entender tudo.

Como fizessem uma pausa longa, viram duas ou tres pessoas, que passavam em baixo, olharem para cima com certo ar curioso e indiscreto. Jorge ergueu-se.

—Estamos dando na vista, disse elle; hão de suppôr que somos dous namorados...

—Sente-se, disse Yayá em tom intimativo. E continuou:—Que perde o senhor com isso? Dirão que não tem mau gosto em amar uma moça bonita.

—Se dissessem que eramos dous namorados, erravam de certo, por que eu sei... eu suspeito que a senhora ama a outro. Uso dos meus direitos de confidente, exigindo que me diga a verdade.

—Toda, respondeu Yayá, e era esse o ponto grave de que lhe queria falar. Ainda uma vez, o senhor estima-me? tem-me amizade sincera?

—Pois duvida?

—Eu duvido de tudo e de todos; até de mim. Mas em fim, preciso de alguem que me ouça, a quem eu conte o que penso e o que sinto, e até o que receio, porque tambem receio, e ha horas em que tremo sem saber de que. É verdade, ha occasiões em que me parece que uma grande infelicidade vae cair sobre mim, e dahi a nada penso justamente o contrario; penso que vou receber maior felicidade do mundo, e fico alegre como um passarinho. Cousas de criança, não é?

—Não, cousas de moça. É certo que ama? a quem?

Yayá olhou para elle algum tempo, satisfeita da impaciencia que parecia ler-lhe na fronte.

—Respondo que sim e que não, disse ella. Se me pergunta a quem amo, digo-lhe que não sei, não amo ninguem; mas sinto alguma cousa mysteriosa e exquisita, e não sei... desconfio... não sei que seja. Porque é que as mesmas cousas, que me eram indifferentes, agora me parecem interessantes, e até chego a suppôr que me falam? Ainda ha pouco, antes de o ver, estava a olhar embebida para o ceu, quasi sem pensar, mas ainda assim curiosa ou anciosa; olhava para o ceu e para o mar; o coração apertou-se-me; depois alargou-se-me como se quizesse devorar tudo. Ha dias em que me levanto alegre e viva, como uma creança; papae diz que são os meus dias azues. Ha outros em que tenho vontade de quebrar tudo, e não digo mais de duas palavras em cada hora; são os meus dias negros. Ouço ás vezes uma voz que me fala; penso que é alguem e reconheço que a voz é a da minha propria imaginação. Tudo será imaginação, creio; mas é tão novo e tão bom! Em todo caso, parece-me extraordinario, e se não é loucura... É verdade, ás vezes penso que vou ficar douda, e nessas occasiões tenho medo. Será isso?

—Não, acudiu Jorge, não é loucura, é sabedoria, é a grande sabedoria da natureza. Isso que sente, não será amor; mas é a necessidade de amar; é o rebate que lhe dá o coração. Alguem virá um dia, e a voz anonyma que a senhora costuma ouvir, lhe falará então pela boca do homem que o coração lhe apontar.

Yayá escutava-o como encantada, mas sem olhar para elle. Quando Jorge acabou, fez-se entre ambos uma longa pausa. A moça tinha os olhos no horizonte onde as cores da tarde desmaiavam rapidamente. Jorge contemplava-a tomado de interesse e até de inveja; comprehendia os primeiros sobresaltos desse coração em flôr, e dizia a si mesmo que ha sensações que o tempo leva para não restituir mais.

Yayá accordou de suas reflexões.

—Francamente, disse ella; o senhor não se ri de mim?

—Rir? A senhora não me conhece. Não ha que rir de sentimentos sinceros; e seria praga muito mal a confiança de que me dá prova. Não me julgue um espirito vulgar...

—Papae faz-lhe muitos elogios.

—Hade saber, ou fica sabendo que minha natureza sympathisa com o que está acima do commum. A senhora vale muito; posso dizer que ha dous mezes eu ainda a não conhecia...

—Não tente a minha vaidade, interrompeu Yayá; prefiro que me dê um bom conselho.

—Dou-lhe um, disse Jorge depois de curta pausa; resista um pouco a essas sensações, cujo excesso pode perturbar-lhe a existencia. Não é só o coração que lhe fala, é tambem a imaginação, e a imaginação, se é boa amiga, tem seus dias de infidelidade. Dê um pouco de poesia á vida, mas não cáia no romanesco; o romanesco é perfido. Eu, que lhe falo, lastimo não ter já essa ordem de sentimentos em flôr, e comtudo não sei se ganharia com elles.

—Que! não seria capaz de amar?

—Meu coração não envelheceu ainda.

—Entendo; amaria hoje de outro modo...

—De outro modo, e tão sinceramente como d'antes; um amor de olhos abertos.

—Penso que o amor verdadeiro, ou ao menos o melhor, é o que não vê nada em volta de si, e caminha direito, resoluto e feliz aonde o leva o coração. Para que servem os olhos abertos?

—A senhora quer saber muita cousa, disse Jorge sorrindo. Não basta que o coração lhe diga: ame a este; é preciso que os olhos approvem a escolha do coração. Admira-se? Ouça-me até o fim; eu desejo preserval-a de alguma escolha má. Eleja um marido digno, um espirito que a entenda, que a admire, um homem que a possa honrar; não se deixe levar dos primeiros olhos que pareçam responder aos seus...

Yayá abaixou a cabeça.

—Não acharei nenhuns, disse ella; eu creio que este amor morrerá commigo...

Como essa ideia parecesse entristecel-a, Jorge sentiu-se tomado de compaixão, ao ver que persistia naquella aurora pura uma sombra de superstição romanesca. Pegou-lhe na mão, viu-a estremecer, recusar-lh'a e cruzar os braços.

—Tem medo de mim? disse elle ao cabo de um instante.

—Tenho.

Jorge calou-se. Com a bengala entrou a reproduzir no chão umas reminiscencias de geometria. Sentia-se atalhado, curioso, e tanto desejava como lhe custava sair d'alli. Não chegava a entendel-a claramente; a verdade, quando ia a tocal-a, parecia inverosimil. Entretanto, Yayá não rompia o silencio; tinha a fronte pendida e meditava. Talvez meditava na palavra que acabava de proferir, fructo da situação violenta em que ella propria ou os acontecimentos a haviam collocado. Era a rebellião do pudor. De quando em quando, sacudia a fronte como a expellir uma ideia enfadonha ou cruel. N'uma dessas vezes, Jorge disse com brandura:

—Para que negal-o? a senhora padece; não sei se com razão ou sem ella, mas parece padecer muito?

—Oh! muito!

E dessa vez a palavra era tão angustiosa, tão sincera, tão vinda do coração, que elle cedeu antes a um impulso de generosidade do que á conveniencia de não ser repellido segunda vez Pegou-lhe nas mãos e pediu-lhe que fosse até o fim da confiança, dizendo-lhe a causa de seus males. Talvez elle pudesse removel-os.

Yayá inclinou o rosto sobre as mãos de Jorge. Este sentiu nellas algumas lagrimas, vertidas sem soluços. Não passava ninguem: mas elle nem teve tempo de reflectir na possibilidade de um extranho. Inclinou-se tambem e perguntou-lhe affectuosamente o que tinha. Yayá ergueu a cabeça, e enxugou os olhos, mas não respondeu nada.

—A senhora não tem confiança em mim, disse Jorge.

—Ha cousas que se não fazem, outras que se não dizem; algumas ficarão entre mim e Deus, retorquiu ella como se fizesse uma reflexão para si. Depois fitou-o e pediu-lhe a promessa de que não diria nada do que acabava de ver e ouvir.

—Essa promessa não se faz; está feita por si. Quanto ao seu segredo, não quero violental-o, mas tenho esperança de que a senhora mesma o hade dizer um dia; eu saberei obter-lhe esse resto de confiança que ainda me nega.

—Já! exclamou a moça vendo Jorge levantar-se.

—Repare que a noite vem caindo; não posso ficar nem mais um minuto. Um confidente tem limites. Olhe; não peço muita cousa, mas desejo alguma cousa mais. Confidente é pouco; mestre é ainda menos. Dê-me outro titulo ou cargo; deixe-me ser seu... seu que? seu... seu irmão. Sim?

—Não! disse ella energicamente.

Jorge empallideceu, como se acabasse de ver o fundo da alma da moça. A negativa era alguma cousa mais do que um capricho. Não retorquiu; estendeu-lhe a mão.

—Até quando? disse ella.

—Até amanhã.

Tres minutos depois, Jorge estava na rua. A noite descia rapidamente. Elle não olhou para traz; se olhasse viria a figura de Yayá envolta já na meia sombra do crepusculo. Veria mais; vel-a-hia reflectir um pouco e espalmar a mão no ar, como uma ameaça, na direcção em que elle ia.

Yayá entrou na casa da doente.

—Seu noivo? disse esta.

—Já foi.

—Quando é o casamento?

—O dia não sei. E depois de uma pausa:—

Mas que se hade fazer é certo. Ou eu não sou quem sou.




XIV

Guiando para casa, Jorge ia agitado e inquieto; recapitulava a conversação que escabava de ter com a filha de Luiz Garcia. O acaso propuzera-lhe um enigma; o tempo dava-lhe a decifração. Seria a decifração? O espirito do moço recuava, não dava credito á realidade, pelo menos á realidade apparente; mas esta impunha-se-lhe de quando em quando, e Jorge recompunha todas as circumstancias daquellas ultimas semanas e ainda dos mezes anteriores. Que era a esquivança, a rispidez, a hostilidade de Yayá, senão a mascara de um sentimento contrario, a vingança de um coração atordoado pelo supposto desdem de outro? Esta reflexão vinha tão de molde com os factos dos ultimos tempos, que era difficil achar mais ajustada explicação. Logo depois, considerava que seria absurdo attribuir á moça uma ligeireza e um desgarre inconciliaveis com a prudencia que reconhecia nella, a despeito dos assomos de travessura intermittente.

—Impossivel! disse elle sacudindo o hombro.

Mas esse impossivel tornava a descer ás regiões da probabilidade, até galgar os limites da certeza. A observação lhe mostrava que Yayá tinha a audacia no sangue, e a razão lhe dizia que um amor sem freio possue todas as imprudencias e vertigens; que umas naturezas são stoicas, outras rebeldes; finalmente, que ha situações moraes incomportaveis, e que a uma candura de dezesete annos é licito não distinguir entre o sentimento que fala e a conveniencia que restringe. Esta era a interpretação benevola; depois vinha a interpretação pessimista. Podia ser que todos aquelles atrevimentos encobrissem um calculo,—o calculo da ambição, que intentasse trocar a belleza pelo beneficio de uma posição ostensiva e superior. Quando essa suspeita lhe brotou no espirito, Jorge não sentiu diminuir a admiração nem a estima; porquanto, a ambição, se ambição havia, parecia ser de boa raça. Mas era impossivel combinar o calculo com as lagrimas daquella tarde, e e elle as sentira quentes, silenciosas, e não podia crer que uma vida quasi adolescente possuisse já a arte da hypocrisia.

Não ha vida tão physica ou tão alheia ao sentimento da personalidade, que em tal situação não padecesse, ao menos, trinta minutos de insomnia. A insomnia de Jorge durou mais algum tempo. De envolta com as conjecturas havia um pouco de satisfação pessoal. A certeza ou a probabilidade de que, sem nenhuma acção propria, iniciara nos mysterios do amor, uma alma ainda nova e ingenua, dava ao coração delle alguma cousa da volupia do egoismo; sensação que, aliás, diminuiu quando lhe occorreu que talvez esse amor obscuro lhe houvesse já custado lagrimas e desesperos. Elle tinha razão quando dizia não ser espirito vulgar. Afrouxara-se-lhe o ardor dos primeiros tempos, a imaginação tinha o vôo mais curto; mas a generosidade juvenil ficara intacta, e com ella a faculdade de resentir as dores alheias.

—Pobre menina! dizia comsigo.

No dia seguinte, Jorge examinou detidamente se lhe convinha tornar á casa de Luiz Garcia, ao menos com a assiduidade do costume. A situação moral de Yayá tendia a aggravar-se com a presença continua d'elle; em taes casos, a ausencia, era um acto de criterio e até de misericordia. Misericordia foi o que elle disse comsigo, e sorriu logo depois, com um sorriso de modestia envergonhada. A verdade é que Jorge anciava por lá voltar; tinha curiosidade de contemplar a sua obra, agora que a descobria ou presumia havel-a descoberto; senão é que a noite lhe trouxera uma sombra de duvida, e elle queria verificar definitivamente a realidade.

De noite foi. Luiz Garcia estava um pouco andado e abatido.—Venha, doutor! disse elle quando viu entrar o filho de Valeria; este coração é o meu importuno. A mulher procurava animal-o; a filha tinha o terror nos olhos. Jorge auxiliou a familia no trabalho de o confortar; tres quartos de hora depois a molestia cedia, e tornava ao trabalho surdo da destruição. Luiz Garcia era outro, logo que passava uma dessas crises; tornava-se garrulo e risonho, com o fim de reanimar elle proprio a familia, e communicar-lhe a esperança que lhe começava a faltar. Jorge não se deixou contaminar da illusão; recordou a sentença do medico e sentiu a proxima extincção daquelle homem. Yayá não conhecia a sentença do medico; mas o espectaculo da afflicção do pae tinha-a prostrado muito. Apparentemente não se lembrava da entrevista da vespera; podia até suppôr-se que, de quando em quando, não se lembrava da presença de Jorge.

Jorge achou-a nos subsequentes dias, tal qual era nos outros, menos travessa, porém, e muito mais senhora. Ao cabo de uma semana, trazia todos os elementos de convicção:—Ama-me! pensava elle ao sair d'alli uma noite. A convicção, por mais que a suspeita a houvesse prevenido, atordoou o espirito de Jorge, que nessa mesma noite resolveu não voltar lá; resolução varonil, que durou quarenta e oito horas.

Alguns dias, tres semanas, decorreram assim na mais aprazivel familiaridade. Jorge, se não obtivera o titulo, exercia realmente as funcções de irmão mais velho; era um guia, um conselheiro, uma autoridade. Escutava-a com interesse; recebia a confidencia dos sentimentos da moça, e as ambições de um coração cuja sêde parecia contentar-se da agua que pudesse conter a propria mão, no primeiro arroio do caminho. Ao mesmo tempo, buscava temperar-lhe o romanesco com uma forte dose de realidade.

Durante esse tempo, nenhuma phrase egual ás daquella tarde veiu sacudir o espirito de Jorge; nenhuma lagrima lhe caiu nas mãos. Mas, se a palavra não vinha, a voz era insinuante e commovida, ás vezes; se os olhos não choravam, luziam ou quebravam-se de um modo pouco commum. Jorge fingia não comprehender; mais do que isso, forcejou por se persuadir a si proprio que não comprehendia: resultado util, que lhe dava a vantagem de saborear em silencio o gozo de se saber amado, sem perder o de contemplar uma natureza original, moralmente exhuberante e forte, que, além de tudo, tinha para elle a fascinação do mysterio.

No fim daquellas tres semanas encontraram-se em casa da paralytica. Não houve accordo, mas nada foi casual.—Vou amanhã á casa de Maria das Dores, disse Yayá uma noite, prestes a despedir-se delle. E no outro dia de tarde, Jorge, que havia rareado os passeios daquelles ultimos tempos, acertou de caminhar para alli, e com tão boa fortuna, que achou a moça sentada no mesmo banco de pedra em que lhe falára da primeira vez.

Outra vez, quando Yayá alli voltou, já encontrou Jorge, ao pé da enferma. Maria das Dores estava ainda mais contente com a honra da visita do que com a esmola que elle dissimuladamente lhe levara envolvida em um lenço de ramagens. Jorge animava-a, dizia-lhe que ainda iriam á Penha naquelle anno. Yayá parou á porta, espantada e contente.

—Venha, disse a enferma, ande ver como seu noivo está caçoando com a velha.

—Agradeço-lhe, disse Yayá; creia que ella merece todas as consolações.

Na noite desse dia, quando Jorge entrou em casa, um pouco inebriado da entrevista, achou uma carta de Procopio Dias, que o encheu de contentamento. Procopio Dias tinha necessidade de se demorar ainda uns dous mezes. Dous mezes! Era a eternidade. Jorge sentiu-se confortado com a noticia de tão longa ausencia. Que importava a presença, se ella o não amava? Essa reflexão não a fez Jorge, mas a filha de Luiz Garcia, quando elle lhe deu a noticia da carta:

—Que tenho eu que elle esteja ausente ou presente? elle ou um extranho é a mesma cousa.

A eternidade foi um minuto; os dous mezes voaram como um tufão. Um dia, no ultimo desses dous mezes, Yayá disse ao filho de Valeria que achara emfim um marido.

—Um marido? repetiu Jorge empallidecendo.

—Parece que um marido. Não me approva?

—Se ainda o não conheço.

—Não sei se é um marido, continuou Yayá depois de um instante; mas achei o homem a quem amo.

—É a mesma cousa.

—Ou quasi.

Houve entre ambos uma longa pausa, durante a qual Yayá tinha os olhos fitos no moço, emquanto este não tinha os seus em parte nenhuma; vagavam de um ponto a outro. Yayá repetiu que achara um marido.

—É a segunda vez que me diz isso, redarguiu Jorge com a voz tremula e irritada; se o achou, tanto melhor; casará com elle.

—Não me disse uma vez que não me deixasse ir com os primeiros olhos que parecessem responder aos meus? não me disse que era conveniente escolher um homem...

—O que eu disse foram palavras sem sentido, tornou Jorge; não se dão conselhos ao coração que ama. O casamento vem talhado do ceu, segundo diz o povo; outros dirão que vem do acaso; ou é o destino de cada um, ou é uma loteria. A senhora não me pede certamente que lhe diga o numero em que ha de sair a sorte grande? Compre bilhete e deixe correr a roda. Alguns dias de paciencia e nada mais...

A excitação de Jorge era extraordinaria, mas não foi longa. Alguns instantes de silencio bastaram a applacal-a ou diminuil-a; pelo menos o gesto não trahiu a agitação interior. Pallido, sim, estava pallido; mas a voz, se não era firme, perdera a aspereza do primeiro instante.

—Reflecti depois da nossa conversa, disse elle e não desejo tomar nenhuma responsabilidade em um acto de que depende a felicidade de sua vida.

—Então, não me estima, é o que é, disse Yayá em voz queixosa.

Jorge respondeu com um olhar, e a resposta que elle quizera fosse um simples protesto, transgrediu esse limite: foi um protesto, uma queixa e acaso uma interrogação. Yayá abaixou os olhos; uma onda de sangue lhe avermelhou a face; Jorge viu-a offegante e acanhada durante alguns segundos. Não indagou o motivo; ergueu-se para sair. Yayá retevo-o pela aba do fraque.

—Nega-me então todo o auxilio? disse ella. Depois de alguns mezes de uma vida em que me acostumei a ouvir seus conselhos, o senhor recusa-me este. Que lhe fiz eu?

—Nada.

Jorge saiu.—Que tenho eu que ella ame, que se case ou não se case? Sou eu sou pae? seu tutor? Quando assim falava, sentia dentro de si uma resposta; a consciencia desvendava-lhe a realidade. Sim, tu amas, dizia-lhe ella, tu não fazes outra cousa ha dous mezes; deixaste-te envolver nos fios invisiveis; não sentiste que essa intimidade de todos os dias era a gotta d'agua que te cavava o coração. Ah! tu querias saciar a curiosidade e sair dalli sem deixar alguma cousa, sem receber tambem alguma outra cousa? Não se brinca com um inimigo; e ella o era, e continuará a sel-o, por que tu estás definitivamente atado.

A esta voz importuna e verdadeira, Jorge erguia os hombros. Tentou refugiar-se no somno. O somno rejeitou-o de si. Então fumou, desceu á chacara, fatigou o corpo para melhor adormecer o espirito; mas a lua que batia no repucho mostrava-lhe, ora um casebre de Santa Thereza, ora uma varanda da Tijuca, como se fossem o verso e o anverso da medalha de seu coração, toda a historia da vida que elle vivera até alli. A differença entre uma e outra dessas duas phases é que presentemente o desengano não o levaria á guerra, nem lhe daria os desesperos do primeiro dia. Não; Jorge levantou-sa na manhã seguinte um pouco atordoado, mas não inteiramente abatido. Sentia alguma oppressão moral, um desejo de saber quem era o adversário preferido. Merecel-a-hia? Que a merecesse, embora; elle tinha um direito anterior e superior; desde que a amava, excluía todos os outros.

A força de pensar naquillo, chegou a entrever a realidade; perguntou a si mesmo se a declaração da moça não seria antes um estratagema. Podia ser; tinha-a visto corar, inclinar o collo, ficar por algum tempo acanhada e commovida. Essa conjectura desabafou-lhe um pouco o espirito, e, por isso que era a conjectura da esperança, não tardou em transferir-se a evidencia. Relembrou todas as acções de Yayá, suas palavras, as circumstancias e os termos de reconciliação, as lagrimas sem motivo, a paciencia, o interesse, o gosto de o conversar; finalmente, esse quê mysterioso que divulga a uma alma a preferencia de outra. Quando pouco a pouco lhe penetrou no coração essa ideia, Jorge reconheceu que havia sido precipitado. Queria escrever-lhe e recuou; queria lá voltar, mas resolveu o contrario.

—Se é um estratagema, pensou elle, ella terá nisto o seu castigo; se verdadeiramente ama a outro, que vou lá fazer agora?

Pensou isto; pensou mais; só não pensou em Estella.

Yayá não se pode conter. Ao cabo de sete dias de ausencia determinou ir ao logar onde mais de uma vez encontrara o filho de Valeria.

—Vae chover, disse Luiz Garcia; guarda a visita para amanhã.

Yayá teimou na resolução.—É uma nuvem que passa, disse ella; em saindo a lua verá como o tempo fica limpo.

Estava inquieta, preoccupada, tinha estremecimentos nervosos; não attendeu á segunda observação do pae. O pae dizia-lhe que não havia necessidade de desobedecer para realisar um capricho. Como repetisse a expressão, Yayá ficou pallida e não ousou responder; mas Estella, que assistia callada aos conselhos de um e á resistencia de outro, disse sorrindo á enteada:

—Vá; seu pae deixa-a ir.

Yayá ia agradecer a intervenção; mas, quando os olhos das duas mulheres se encontraram, detiveram-se por um instante longo. Poucos minutos depois chegava a moça á casa de Maria das Dores. Despediu Raymundo; a porta estava aberta; entrou. Da sala, onde se deteve, ouviu n'outra sala interior a voz de Jorge.

—Não se esqueça; hade entregar-lhe isto, quando ella vier; não mande lá á casa; é um livro.

Yayá entrou.

—Não contava commigo? disse ella.

—Não; por isso deixava-lhe este livro, respondeu Jorge tirando o embrulho á doente e entregando-o á moça; é um romance, creio que lhe falei nelle uma vez.

Yayá tomou-lhe o livro, abriu-o, folheou-o com soffreguidão, como certa de achar uma pagina marcada. Estava marcada uma pagina, e a marca era um bilhete. Abriu-o; dizia assim: «A senhora deu-me uma vez um titulo que eu esperei viesse a ser verdadeiro. Diga se me enganei, se o ceu lhe destinou outro noivo, ou se meu coração pode ter ainda uma esperança. Não lhe custará muito; não custa muito uma simples palavra.»

Emquanto ella lia rapidamente estas linhas, e tornava-as a ler, Jorge affastou-se até á sala da frente. A carta era das que não permittem a presença do autor; precisam do prestigio da ausencia; são, para assim dizer, expressões truncadas que a imaginação perfaz e amplia. Jorge ia a sair, quando ouviu o rumor dos passos de Yayá; deteve-se a esperar a resposta. A moça parou deante delle, e entre ambos houve um momento de silencio e hesitação.

—Cego! disse emfim Yayá estendendo-lhe as mãos com um ar de simplicidade e confiança.

Jorge recebeu-as nas suas, e a linguagem que a alma não quiz confiar do labio do homem, elles a disseram com os olhos, durante alguns minutos largos. Jorge perguntou finalmente:—É certo? ama-me?—Yayá cingiu-lhe o pescoço com os braços, e inclinou a cabeça com um gesto de submissão. Jorge inclinou-se tambem, e nos cabellos,—nos fios de cabello, que lhe pendiam na testa, pousou o mais puro e fugitivo dos beijos. Ao contacto daquelle labio, Yayá enrubeceu e estremeceu toda; mas não fugiu, não retirou os braços; deixou-se ficar subjugada e feliz.

Homero conta que Venus, descendo ao campo da batalha entre gregos e troyanos, saiu d'alli ferida e ensanguentada. Yayá teve a sorte da diva homerica; interpondo-se entre Jorge e Estella trouxe d'alli ferido o coração. Naquelle espaço de alguns mezes, obra de paciencia e luta, de violencia e simulação, para o qual fizera convergir todas as forças moraes, não suspeitou que, vencendo ao outro, podia vencer-se a si mesma. Queria ser uma barreira entre o passado e o presente, sem cogitar na difficuldade do plano, nem nas consequencias possiveis delle. Sobretudo, não pensou na moralidade da acção. Que podia ella saber d'isto? A suspeita ia até admittir a persistencia do amor no coração da madrasta, mas não lhe attribuia mais do que uma aspiração ou saudade silenciosa; não sabia mais. Para combater esse inimigo inerte, é que poz em campo a porção de astucia que a natureza lhe dera, as graças do rosto e a, rara penetração de espirito.

Yayá transpoz a soleira e saiu; precisava de ar, de espaço, de luz; a alma cobiçava um immenso banho de azul e ouro, e a tarde esperava-a trajada de suas purpuras mais bellas. Jorge acompanhou-a; a commoção delle era sincera e forte, mas menos intensa, menos desvairada que a de Yayá, cujos olhos pareciam dizer a tudo o que a rodeava, desde o sol poente até ao ultimo grelo de capim:—olhae, vede as bodas do meu coração; este é o meu amado. Perto da noite, Raymundo veiu buscal-a; Jorge acompanhou-a. Yayá lembrou-se de traçar com um grampo, no musgo que reveste o aqueducto, o nome de Jorge e a data; instando com elle, Jorge escreveu tambem o nome d'ella. Raymundo sorria entre dentes. Em caminho falaram do presente e do futuro; e, n'um intervallo, tocaram levemente no passado.

—Sabe que eu tinha um desgotosinho? disse Yayá. Jorge interrogou-a com os olhos. É verdade, um capricho, continuou ella. Quizera que o senhor nunca tivesse gostado de outra pessoa, e é bem possivel que não seja este o primeiro amor de seu coração.

—Não é, respondeu Jorge depois de um instante de reflexão. Amei uma vez, ha muito tempo; mas todo esse passado acabou.

—Está certo de que acabou?

—Creança! Que noiva receiou nunca de um amor antigo, começado e acabado, antes d'ella ser amada tambem? Que o novo amor seja sincero e fiel, eis o que se deve pedir e exigir. Quanto ao passado, é como os defuntos; reza-se por elle, quando se reza.

—Tenho medo de almas do outro mundo, tornou Yayá sorrindo.

Yayá mostrou-se tão expansiva n'aquella noite e nos seguintes dias, derramou de tal modo a vida que a enchia que Estella comprehendeu tudo o que se passava entre a enteada e Jorge. Ha uns amores, aliás verdadeiros, a que precedem muitas contrafacções; primeiro que a alma os sinta, tem despendido a virgindade em sensações intimas. Yayá ignorava tudo; não soletrara o amor, aprendera-o de um lance. Trazia o coração intacto. Seu accordar foi uma aurora subita, mas rutilante e limpida. No meio da embriaguez que lhe dava o novo sentimento, não cogitou nas possiveis consequencias d'elle; não perguntou a si propria se era verdade que no coração da madrasta havia uma saudade ou uma esperança silenciosa, e se isso podia ser a raiz de largos odios e dissenções domesticas. Não interrogou o futuro. Phenomeno curioso! A lembrança do pae foi por um instante esquecida; o egoismo do amor devorou-a.




XV

A fronte de Estella não tinha a tristeza dos vencidos. O amor persistia no coração, como um mau hospede; e o espectaculo daquelles ultimos mezes não fizera mais do que irrital-o. Mas a força moral de Estella subjugou-o. A luta fora longa, violenta e cruel; a consciencia do dever e o respeito de si propria acabaram vencendo. Talvez não fosse difficil perceber, por baixo da serenidade do rosto, o cançasso que deixam as grandes tempestades moraes. A tempestade ninguem lh'a viu.

Não obstante, no dia em que a paixão dos dous lhe pareceu evidente, Estella sentiu rugir-lhe no coração um vento de colera; vento forte e instantaneo. Dessa vez, o olhar penetrante de Yayá não pode ler no fundo da alma da madrasta; e por ventura lhe diminuiu a suspeita, quando a viu contemplar sem irritação nem abatimento a situação nascida de seu esforço unico.

Entretanto, a molestia, que solapava a existencia de Luiz Garcia, aggravou-se por aquelle tempo, e o enfermo foi compellido a pedir alguns mezes de licença. Chamado a vel-o, o medico reconheceu que a enfermidade tocava ao desenlace, e com a enfermidade a vida. Não o disse á familia, mas não o escondeu de Jorge, quando este directamente lh'o perguntou.

—Está condemnado á morte, disse elle; a molestia devorou-o lentamente, mas com segurança. Pode viver dous a tres mezes.

Jorge ficou atterrado, Os acontecimentos tinham tomado tal feição, que elle já pedia a vida de Luiz Garcia. Quem lh'o dissera alguns annos antes? Não sómente padeceria com a morte do enfermo, mas teria de ver padecer Yayá, de cuja adoração filial era testemunha, e chegava a receiar que o golpe lhe fosse fatal. Nada disse; affectou tranquillidade e indifferença, mas entendeu que os successos o designavam a proteger a familia e dispunha-se a assumir esse papel, quando fosse occasião.

Estella não receiou menos do que na molestia anterior; mas dessa vez não interrogou Jorge, com quanto o visse falar ao medico. Nos ultimos tempos, o seu silencio era mais continuo e habitual. Parecia desinteressada de tudo, menos do marido. Suspeitou da gravidade da molestia, interrogou o medico, e ouviu deste palavras de esperança:

—Não lhe peço esperanças illusorias, disse Estella; peço-lhe que me diga toda a verdade.

—A verdade é cruel de dizer.

—Perdido? disse ella com voz surda.

O silencio do medico foi a confirmação d'aquella palavra. Estella sentiu fugir-lhe todo o sangue; mas não soltou uma lagrima. Pode reflectir no perigo de ser vista essa denuncia do mal, e dominou-se. Quando se achou só comsigo, deu livre campo ás angustias; encarou a catastrophe e pensou nas consequencias da morte e no incerto futuro que a aguardava dentro de poucos dias. O futuro trouxe-a ao presente, o presente levou-a ao passado. A vida só lhe dera alegrias medias e dores maximas. Não foi a paixão que a levou ao casamento, mas sómente a conveniencia e o raciocinio. No casamento achara os sentimentos de apreço, a mutua consideração, a brandura das relações domesticas; esse fogo, porém, cuja intensidade não dura, mas que é o férvido sol dos primeiros dias, precursor necessario da tarde repousada e da noite tranquilla, esse fogo, essa fusão de duas existencias, esse ardor expansivo, condição de sua natureza moral, não os conheceu Estella. Ou o destino ou o orgulho privou-a de achar no casamento a paixão sanctificada. Pois bem, se alguma cousa podia compensar-lhe a falta, era a longa duração de uma felicidade segura, embora tibia; era envelhecer sob a monotonia de um horizonte sem sol nem tempestade. O destino negava-lhe a compensação.

Não tinha Estella ao pé de si com quem repartisse as tristezas. O pae seria o ultimo de todos. A viuvez deixal-a-hia sem familia. Esta ideia trouxe outra,—a de apressar o casamento da enteada, de modo que nenhum vinculo moral lhe sobrevivesse ao marido. Uma noite, tendo Luiz Garcia adormecido, Estella deu a perceber á enteada que o estado do pae era grave. Yayá empallideceu. Jorge fez um gesto de reprovação.

—A molestia não é leve de certo, disse este; nas não se segue dahi que se deva...

—Tudo se deve prever, tornou Estella. Pela minha parte, entendo que prevenir um caso fatal não é fazer com que elle se dê. Yayá sabe o amor que lhe tem seu pae; seria para elle uma fortuna poder abençoal-a. Vamos lá, continuou ella, pegando nas mãos de um e de outro, por que é que se não casam?

Momentaneamente acanhados, nenhum delles assentiu nem recusou. Yayá olhava espantada para a madrasta.

—O silencio é uma maneira de responder, continuou esta; querem dizer que concordam commigo, não é? Nesse caso, seremos tres para fazer a cousa mais simples do mundo, que é casar duas creaturas, que se amam... Porque não a pede o senhor amanhã? O casamento pode ser feito dentro de poucos dias, á capucha, cousa simples...

Yayá tinha emfim sahido do primeiro instante de estupefacção.—Mas, papae, está mal? disse ella.

—Todos nós estamos mal, apezar de termos saude, respondeu Estella; n'um dia cae a casa. A doença delle é grave, é coração...

—Tem razão, interveiu Jorge; podemos concluir tudo em poucos dias, duas semanas, quando muito, ou tres.

Jorge não ficou pouco impressionado da intervenção de Estella. Conhecendo os sentimentos que a distinguiam, admirava essa impassibilidade moral que esquecia ou fingia esquecer. Depois examinou-se a si proprio; sentiu que o amor que o dominava agora, posto fosse profundo, não era violento, não lhe queimava o coração. Comparou-se ao que tinha sido, e esse cotejo, no primeiro instante, não foi importuno; foi antes licção e philosophia. Mentalmente sorriu. Era elle o mesmo homem? Outrora caminhara resoluto ás soluções tragicas; agora, com egual sinceridade, entregava o coração a outra mulher. Na fronte desta mal ousara roçar um osculo medroso e casto, elle, que fizera a scena da Tijuca. O homem não era o mesmo. Embora a isenção presente, Jorge experimentou um pouco da nostalgia do passado; sorria sem amargura, mas com um travo de melancolia.

—Aquelle orgulho é ainda maior do que eu pensava, dizia elle.

No dia seguinte, Procopio Dias veiu accordal-o em casa.

—Quando chegou? perguntou Jorge.

—Hontem de tarde, a primeira visita que faço é esta. Demorei-me mais do que queria; mas emfim cá estou,—cá estou, e mais magro. O senhor é que me parece mais gordo.

Procopio Dias falou compridamente da politica argentina e da magistratura de Buenos-Ayres; falou tambem um pouco das mulheres platinas. De quando em quando, abria um claro, como para deixar que o outro intercalasse alguma cousa menos extrangeira; Jorge, porém, falava pouco e sem appetite; o constrangimento delle foi visivel quando Procopio Dias o interrogou, acerca da familia de Luiz Garcia; respondeu-lhe sem interesse. Procopio Dias fitou-o durante alguns segundos; as rugas da testa engrossaram-se-lhe extraordinariamente.

—E Yayá! disse elle; parece-lhe então que nenhuma esperança...

Fez uma pausa; Jorge preencheu-a com um sorriso descorado, mas assaz explicativo. Procopio Dias começou a farejar a realidade, mas nenhuma das linhas do rosto denunciou a impressão que esta lhe causara. Após um silencio largo, entrou a rir de bom humor.

—Quer que lhe diga uma cousa? perguntou elle. Saiba que volto curado. Quando penso na molestia tenho vergonha; é verdade, tenho vergonha da figura que fiz. Já sou muito maduro para cavallarias altas. A doença ainda me durou algum tempo; sarei com a mudança de clima; o amor, ao menos na minha edade, é uma especie de beri-beri... Hade ter-se rido de mim; é justo, porque eu não faço hoje outra cousa.

Jorge contestou com um simples gesto; mas Procopio Dias falava com tanta naturalidade, ria com tamanha franqueza, que a explicação deu á conserva a vida que ella tendia a perder. Jorge foi mais expansivo, mais alegre; não lhe confiou a nova situação, mas o segredo parecia debruçar-se-lhe das palpebras e dos cantos da boca. Essa alegria era um respiro da consciencia, que se sentia um pouco vexada em presença daquelle homem, cuja confiança fora a origem de seu recente amor; era tambem a satisfação de não ter conseguido ligal-o á filha de Luiz Garcia; consorcio repugnante, hybrido, cujo resultado seria dar á moça uma longa amargura sem certeza de resgate.

Quando Procopio Dias saiu d'alli ia suspeitoso da realidade.—Mas a outra? dizia elle comsigo. Sacudiu os hombros, e não ficou mais tranquillo. Levava já no peito um pouco de impaciencia e irritação; tinha a fronte obscurecida por uma nuvem. Mais tarde allumiou-a um clarão subito, ainda que frouxo, era um reflexo de esperança. Talvez houvesse julgado com precipitação: era possivel attribuir a reserva de Jorge, não á competencia pessoal, mas a uma maneira de entender as maximas do decoro. Quem sabe? Elle podia ter-se arrependido de haver permettido tanto. Essa reflexão arejou um pouco o espirito, sem lhe tirar de lá o miasma corruptor. Era força conhecer a verdade. Nesse mesmo dia, foi elle a Santa Thereza.

Luiz Garcia concedera n'aquella manhã a mão da filha. Na occasião em que Procopio Dias alli entrou, tinha-a elle ao pé de si, e contemplava-a com amor e saude,—duas vezes saudade, porque tambem a morte os viria desunir. Entre si recordava os tempos em que elle e ella eram, um para o outro, toda a terra e todo o ceu; e perguntava á natureza se era justo sobrepor ao primeiro vinculo outro vinculo extranho, e a natureza lhe respondia que não sómente era justo, mas até necessario. Então o pae sentia-se feliz com a felicidade da filha, cujo egoismo lhe ensinava a abnegação. Se ella devia amar a outrem, que faria elle mais do que ceder? Quanto ao noivo eleito, merecia-lhe todas as approvações; era o unico extranho que lhe penetrara um pouco mais na intimidade; amante, bemquisto e opulento, podia dar á moça, além da felicidade do coração, todas as vantagens sociaes, ainda as mais solidas, ainda as mais frivolas:—e esse homem obscuro, enfastiado e sceptico, saboreava a ventura que a filha iria achar no turbilhão das cousas, que elle não cobiçara nunca.

Uma noite bastou a Procopio Dias para conhecer a situação. Não obstante as declarações do pretendente, que acceitou como sinceras, Jorge buscou dissimulal-a. Se Procopio Dias não tornasse a ver a moça, é possivel que o tempo lhe abafasse a paixão. Mas viu-a, e viu-a mais bella do que a deixara.

—E a outra? dizia elle.

Dessa vez a pergunta não passou vagamente; trouxe uma ideia comsigo, deante da qual Procopio Dias chegou a recuar. Esse ideia era envenenar na propria origem a affeição recente; nada menos que denunciar a madrasta á enteada. Se alguma cousa pudesse attenuar a perversidade de semelhante recurso, era a persuasão que elle tinha de que diria a verdade. Cria deveras no amor secreto dos dous; com algum esforço poderia fazer suppôr que o casamento da filha de Luiz Garcia era uma suggestão da madrasta. Elle proprio achava essa combinação verosimil, conveniente, reparadora.

—Maganão! a duas amarras! dizia o pretendente em tom surdo.

A occasião veiu. Um pouco irritada com a assiduidade de Procopio Dias e a confiança que parecia renascer nelle, Yayá assentou de lhe dizer francamente que estava prestes a casar. Procopio Dias empallideceu. Suppunha apenas provavel o que era já definitivo. Olhou longamente para ella; a extincção da esperança não implicava a extincção do desejo; pela contrario, vinha pungil-o e açulal-o. Seus olhos mostraram então duas expressões diversas; a primeira involuntaria, a mesma com que os dous velhos de Israel espreitavam a filha de Helcias, um olhar terreno e mau; a segunda voluntaria, não de queixa, não de supplica, mas de lastima. A ideia ruim tornava a arder-lhe no cerebro.

—Não sabia, disse elle, depois de curta pausa. Com quem?

—Com o Dr. Jorge.

—Ah!

Procopio Dias riu com a testa, e tornou a deitar-lhe um olhar de lastima.—Pobre moça! murmurou elle entre dentes. Yayá fitou-o severamente; depois, sorriu e perguntou com alguma ironia:

—Não approva a escolha?

—A escolha é excellente, disse elle; mas ha circumstancias que fazem do optimo pessimo. Ouça-me; a senhora sabe que eu a amei; suppõe talvez que já não a amo e engana-se; amo-a como no primeiro dia. Tive ideia de casar com a senhora; perdi a ideia, mas guardei o sentimento. Talvez isso lhe diminua a sinceridade das minhas palavras; mas eu cedo á voz da consciencia, sem calcular com a sua approvação...

Fez uma pausa.

—Acabe, disse a moça.

—Ha cousas que um coração inexperiente não pode entender; cousas que talvez se lhe não devam referir. Quer um conselho? não acceite o casamento; desfaça-o, não para casar commigo, mas desfaça-o.

Yayá fez-se pallida. Procopio Dias, pasmado do proprio arrojo, comprehendeu que havia ido muito longe naquellas poucas palavras; mas já não havia meio de as explicar de modo verosimil. Como se fizesse um monologo interior, abanava a cabeça ou levantava a ponta do labio, emquanto os olhos, perdidos no ar, tinham o aspecto vitreo das fortes concentrações. Yayá olhou para elle atonita e confusa: não sabia o que pensasse, não podia ou não queria entender. Afinal, collingido todas as forças, perguntou audazmente porque motivo lhe cumpria desfazer o casamento.

—Qualquer que seja o motivo, disse elle, não lhe aconselho que o acceite logo como decisivo. Reflicta antes de resolver; a responsabilidade será sua, do mesmo modo que o beneficio ha de ser seu. Meu conselho é que o desfaça.

—Porque muitas vezes o casamento é... é uma mascara, uma... Seu noivo ama a outra pessoa... Que tem?

Yayá fizera-se livida. Terror, indignação, abatimento, sua alma passou por todos esses estados, padeceu-os até simultaneamente, sem que a boca achasse uma só palavra de resposta ou de protesto. A delação fulminara-a; nunca Procopio Dias chegou a comprehender o motivo de tamanho e tão subito effeito. O effeito aterrou-o em parte, e em parte o consternou; alguma fibra lhe ficara intacta, no meio da decomposição moral de todo o seu ser, essa bastou a resentir o golpe que elle mesmo vibrara.

—Outra... Que outra? balbuciou Yayá segurando-lhe um dos braços.

Procopio Dias abanou a cabeça solemnemnte, como a dizer que não podia ir mais longe. A esse gesto seguiu-se um silencio largo, durante o qual a moça pode vencer a primeira commoção e reflectir sobre o que lhe convinha entender.

—Ama a outra? disse ella. Quem quer que seja essa rival, já agora o noivo é meu; e é natural que me ame mais do que a ella, visto que prefere casar commigo...

Não obstante a firmeza que procurava dar á palavra, a palavra era difficil e a voz parecia morrer-lhe na garganta. Procopio Dias comprehendeu que a commoção estava apenas dominada, e que o veneno penetrara abaixo da epiderme. Era a primeira vez que lhe via esse aspecto dolorido; antes de embarcar, conhecia-a menina caprichosa; depois do regresso, achou-a senhora reflectida; naquella occasião, a dor, occulta embora, como que lhe dava um encanto mais. Effectivamente o rosto de Yayá trahia o estado do coração; os olhos não correspondiam ao esforço que ella fazia para os fixar.

—Se lhe parece, esqueça o meu conselho, disse elle, e não me leve a mal se lhe preguei um susto. Talvez o susto haja passado. Não importa; creia que ha casamentos impossiveis; casamentos destinados a... não sei a que... pode ser que a cousa nenhuma... ou a cousa muito grave, muito grave.

—Cale-se! rugiu surdamente a moça.

Procopio Dias continuou:

—Uma só palavra, disse elle. Hade attribuir ao despeito o aviso que lhe dei. É verdade; ha uma grande porção de despeito em mim. Porque lhe falaria eu, se não tivesse um motivo pessoal? Esse homem trahiu-me; eu tinha-lhe confiado o deposito do meu amor; elle abusou da confiança: fez-se amado em meu logar. Não me queixo da senhora. A senhora não me devia nada;—um pouco de sympathia, talvez;—no futuro, pode ser que me deva tambem um pouco de gratidão.

Procopio Dias saiu logo depois destas palavras. Estava satisfeito; desde que pode formular em um ou dous raciocinios o sentimento occulto que o fazia agir, achou nelle a legitimidade de tudo o que acabava de dizer. Era um duello; recebera um golpe na espadua, respondia com outro no coração, mais certeiro e provavelmente mortal; e se não era duello, era emboscada por emboscada; direito de represalia.

Prostrada com o golpe que acabava de receber, Yayá não teve sequer as lagrimas do desespero nem as da indignação. Ha dores seccas, como ha coleras mudas. A suspeita, que o tempo devia carcomer de todo, e que o amor de Jorge ia já tornando problematica, essa ruim suspeita renascia tão vivaz e pertinaz como alguns mezes antes, quando arrancou aos olhos de Yayá as primeiras lagrimas de mulher. Não podia crer que o amor de Jorge não fosse sincero; era-o; parecia-o, ao menos. Mas a existencia do outro amor, não era já o coração que lh'o dizia, era uma voz extranha que a vinha delatar: circumstancia nova, que fazia convalescer a duvida anterior, até o ponto de lhe dar todos os visos da realidade. Yayá sentia-se arrojada outra vez ao vasto e escuro espaço de suas antigas cogitações;—erma, desamparada de toda protecção humana, não lhe restava mais que duvidar e gemer, até achar na propria ductilidade de seu espirito a força que lhe não podia dar nenhuma origem exterior.

A madrasta foi ter com ella meia hora depois de sair Procopio Dias. Pouco antes, o marido tivera tamanha afflicção, que Estella chegou a receiar o ultimo golpe; agora ficava prostrado. Estella appareceu á enteada com o olhar ainda assustado e o passo mal seguro; Yayá não viu essa mudança, nem ouviu as primeiras palavras com que ella lhe falou do pae. Olhava só, emquanto o coração parecia querer despedaçar-lhe a arca do peito.

—Yayá, ande ter com seu pae; seu pae está hoje muito doente.

Vendo que a moça não se movia, Estella lançou-lhe o braço á roda da cintura.—Vamos, disse. Yayá estremeceu toda; depois, mettendo-lhe as mãos nos hombros, empurrou-a violentamente e caminhou para a porta.

—Yayá! bradou a madrasta.

A enteada voltou-se, e, estendendo o dedo sobre os labios, impoz-lhe silencio. O olhar desvairado e inconscio parecia antes de loucura que de indignação. Estella ficou estupefacta.

Luiz Garcia foi o laço que ainda pode conservar atadas essas duas existencias, já agora antipathicas uma á outra. A vida delle era necessaria a ambas. Uma punha nella todas as esperanças de um coração credulo; outra apenas lhe dava aquella porção ultima, que não desampara os necessitados. Tregoas houve, mas sombrias e violentas. Não se falavam as duas, não trocavam um só olhar na ausencia de Luiz Garcia; deante delle, mostravam-se como d'antes. Esta situação incomportavel parecia, aliás, definitiva.

Jorge percebeu-a; elle proprio sentiu a principio o effeito de um acontecimento, que não podia adivinhar e necessariamente era grave. Yayá, porém, venceu-se depressa em relação a elle. A alma, se o vento lh'a fizera dobrar, para logo retomou a posição dos outros dias; mostrou-se terna com elle, affavel, impaciente de concluir o casamento. Um só pensamento influia nella: confiscar aquelle homem, arrastal-o comsigo, dominal-o depois, despedaçar de uma vez o laço que suppunha atal-o ao coração da madrasta.

Marcou-se um sabbado para o casamento; mas os primeiros dias da semana foram de tão mau agouro, que a familia resolveu deferil-o para melhor occasião. O enfermo peiorou rapidamente. A molestia entrou no ultimo periodo.

Yayá viu morrer tristemente o sol do sabbado, e não viu nascer mais aprazivelmente o de domingo. Não pensava ainda na morte do pae, mas alguma cousa lhe fazia tremer o coração. A presença de Jorge é que lhe dava animo e conforto, posto que elle proprio se sentisse apprehensivo com o desenlace proximo da enfermidade de Luiz Garcia.

Lenta e caprichosa nos primeiros tempos, a enfermidade teve rapido e inflexivel o periodo ultimo. No fim de poucos dias a morte foi declarada imminente. Estella, não obstante achar-se preparada para o golpe, mal pode resistir ao primeiro abalo. Yayá ficou como douda. O pae fora a sua primeira e continua adoração. Durante alguns annos não conheceu outro mundo, outro affecto, outra familia, além daquelle homem grave e terno, cujos olhos a protegiam e alumiavam. No primeiro instante não pode crer na triste nova. Mas a realidade avultou a seus olhos, e foi então que a alma tentou romper todos os elos e voar, antes d'elle, a esperal-o na immensa vastidão azul, para emprehenderem juntos a derradeira viagem. Não chorou nas primeiras horas; a dor trancara-lhe as lagrimas; mas estas vieram logo depois, e ella as verteu em silencio, suffocando os soluços, estorcendo-se na solidão da alcova.

Luiz Garcia reiterou a Jorge o pedido que lhe fizera um vez, em relação á familia; mas agora restringia-o a Estella.

—Peço-lhe que não desampare os meus. Sei que morro, e quero ter a certeza de que só deixo algumas saudades. O senhor vae casar com minha filha; nada me inquieta a este respeito. Mas Estella, que não é mãe de Yayá, ou é sómente mãe de coração, Estella vae ficar só, e eu não quizera morrer com a ideia de que a deixo infeliz. Promette-me que não a desamparará nunca?

Jorge prometteu. Estella, que estava presente, procurou tranquillisar o enfermo, e pediu-lhe que não falasse tanto. Luiz Garcia não attendeu; exaltou as virtudes da mulher, a dedicação, o zelo, a affeição que lhe tinha.

—Digo-lhe que fui feliz, concluiu elle; minha alma era já velha, quando a d'ella se lhe uniu, e comtudo... sim, minha alma rejuvenesceu um pouco...

—Já tem falado muito, interrompeu Estella, descance, não quero que diga mais nada.

Luiz Garcia pediu ainda á mulher e á filha que se amassem como até alli. Tinha falado excessivamente; ficara abatido. D'alli em deante, a morte não fez mais do que apoderar-se, trecho a trecho, da sua victima. Já a noite d'esse dia foi mais cruel que as anteriores; todo o seguinte dia foi de angustia para as duas mulheres. Na manhã do outro começou a agonia d'elle, que durou algumas horas.

Ao vel-o morrer, as duas mulheres ficaram longo tempo prostradas. Era a primeira vez que contemplavam a morte. Nenhuma d'ellas vira nunca expirar uma só creatura humana, e a primeira que a seus olhos se despedia da vida representava para ellas largos annos de affeição terna e profunda, e o mais forte laço moral que as ligava uma a outra. N'esse instante solemne, abraçaram-se sem reflexão; a dor impelliu-as com a mão de ferro, e, madrasta e enteada confundiram alli suas nobres, tristes e inuteis lagrimas.

Aos pés da cama, com o gesto dolorido, Jorge via a afflicção duas das mulheres, sem lhes poder nem querer valer. Quanto a Raymundo, não pode ver expirar o senhor; correu ao jardim, onde ficou longo tempo sentado no chão, com a cabeça encanecida entre os joelhos, sacudido pela violencia dos soluços.




XVI

A morte de Luiz Garcia foi uma complicação mais. Passados os primeiros dous mezes, Jorge pensou em realisar o casamento, sem apparato, como um simples acto de interesse domestico, aliás necessario pela situação em que se achavam as duas senhoras. O Sr. Antunes fora morar com ellas, e era o chefe natural da familia; mas Jorge não esquecera que Luiz Garcia nenhuma confiança tinha na pessoa do sogro; demais, entregara directamente a Jorge a chefia da casa. Ora, cumpria legalisar e sanctificar a designação do moribundo.

Mas, se isto lhe parecia claro e necessario, não se atrevia ainda assim propôl-o á noiva, e por duas razões. A primeira era o natural respeito á dor da filha, que elle podia magoar ainda mais falando-lhe desde logo no casamento. Era a segunda a frieza e o silencio com que esta o tratava depois da morte do pae. A differença era positiva e inexplicavel; mas a boa fé explica tudo, e Jorge attribuiu essa nova feição da moça ao profundo golpe que o desastre lhe desfechara. Sabia da paixão filial de Yayá; era testemunha dessa adoração constante, que parecia contar com a eternidade da vida.

A ideia de falar a Estella apenas lhe passou pela mente; rejeitou-a sem esforço. Limitou-se a esperar, e ia alli com a assiduidade que lhe permittia a condição de noivo. Ia ás noites, não todas; passava uma ou duas horas, a atar e desatar uma conversação frouxa, muita vez sem interesse. Sobre todos tres, mas principalmente sobre as duas, pesava ainda a lembrança do finado. O Sr. Antunes tomava parte nessas conversações intimas, e era elle quem forcejava por lhes dar a perdida animação; temperava-a com algum dito folgazão, ouvido com indifferença, quando não com tedio. Posto que o casamento de Jorge com a enteada da filha estivesse tratado, elle nutria a esperança de que alguma cousa o viria desfazer, e nessa carta incerta jogava todo o futuro.

Uma noite, Jorge propoz directamente a Yayá a necessidade de apressar o casamento.

Não sendo a ceremonia publica, disse elle, não daremos que falar aos outros, se alguma cousa ha que falar...

—Quer a minha resposta hoje mesmo? interrompeu Yayá.

—Podia ser hoje.

Estella que estava presente, apoiou a reflexão de Jorge.—Convem decidir quanto antes, disse ella; não vale a pena deixar passar mais tempo sem utilidade.

—Sem utilidade, repetiu Yayá olhando para o tecto.

—Decerto...

Yayá baixou os olhos aos dous; fitou-os a um e outro, longo tempo, com severidade; depois, retorquiu em tom rispido:

—Deixem-me ao menos o tempo de chorar meu pae!

Jorge proferiu algumas palavras de affeição; Estella não protestou nem retorquiu; erguendo-se silenciosamente e deixou-os. O silencio foi longo. Jorge não tomara á má parte a supplica da noiva; attribuiu-a ao sentimento de piedade filial, que era nella mais forte que qualquer outro.

—Yayá, disse elle, ninguem lhe nega o direito de chorar seu pae; se insistimos é em beneficio da familia. Seu pae recommendou-me que olhasse pelos seus, e eu quizera poder fazel-o, não como extranho, mas como parente; por isso lembrei a conveniencia de realisar o casamento quanto antes, mas se lhe parece que pode ser addiado...

—Pode.

—Até quando?

—Até um dia.

—Que dia?

—Sabbado de Alleluia, por exemplo.

—Falemos serio, disse Jorge.

—Serio? Dia de S. Nunca.

Jorge franziu a testa.

—Que quer isso dizer? Retira a sua palavra? Em todo o caso, tenho direito de saber o motivo, porque algum motivo ha de haver...

Yayá tinha-se levantado, pegou-lhe na mão e levou-o até á janella. O transtorno das feições era visivel; os olhos luziam de impaciencia, emquanto a palavra parecia medrosa e recalcitrante. Pasmado do que via, e curioso do que ella lhe iria dizer, Jorge não pensou sequer em a aquietar; se lhe pegou nas mãos foi por um movimento instinctivo; mas quando as sentiu geladas e tremulas ficou atterrado.

—Que tem Yayá? Você padece; vamos, fale, diga-me tudo. Já me não ama?

—Se o não amo! disse vivamente a moça deitando os olhos ao ceu, como a tomal-o por testemunha da sinceridade de seu coração; mas logo depois arrependeu-se e continuou de um modo compassado e frio.—Amei-o; não importa saber se muito ou pouco, mas amei-o. O senhor foi a primeira pessoa que me fez bater o coração de um modo differente do que elle batia; foi a primeira pessoa que me disse palavras novas, que me fizeram bem...

Jorge lançou-lhe o braço a cintura e conchegou-a ao coração.—Pois sim, disse elle; eu repetirei essas palavras em todo o resto da nossa vida. Seja boa, e sobretudo seja franca. Para que ha de negar o que se está vendo? Eu sei que ainda me ama...

—Eu? disse a moça deslaçando-se-lhe dos braços. Eu tenho-lhe horror.

Jorge sorriu.—Horror, por que? disse elle. Mas o gesto da moça veiu apagar-lhe o sorriso começado. Yayá levara as mãos ao seio, como se quizera conter os impetos do coração; os olhos luziam-lhe de extraordinario fulgor. Offegante, por alguns minutos, não pode articular uma só palavra; quando chegou a falar disse simplesmente:

—Que razão ha agora para que nos casemos? E depois de uma pausa:—Tenho ciumes do passado, e o senhor amou já uma vez. Assim como eu ia entregar-me ao senhor, com o coração limpo de qualquer outro affecto, assim quizera que o senhor nunca houvesse amado a ninguem. Que é o seu coração para mim? Um sobejo de outra; talvez nem isso; esse mesmo resto não me pertence, não é meu; fiquemos neste ponto, e tome cada um de nós a sua liberdade.

Yayá recusou outra explicação, aliás desnecessaria; a linguagem era transparente. Jorge saiu dalli com o espirito transtornado e confuso. O motivo da recusa, para ser sincero, era pueril ou romanesco demais; nenhuma noiva teve ciumes de um amor anonymo e extincto; logo, a allusão de Yayá não era vaga e sem objecto, mas ia direito á pessoa de Estella. Seria isso? Jorge não queria crer e mal podia duvidar.

No dia seguinte, acabado o almoço, appareceu-lhe o pae de Estella.

—Yayá manda-lhe isto, disse elle saccando da algibeira uma carta.

Jorge recebeu-a presurosamente e abriu-a; leu estas palavras unicas:—«Não posso ser sua mulher; esqueça-me e seja feliz.» Empallideceu; tornou a ler a carta, sem a entender, posto que ella não fosse mais do que a formula escripta e secca do que Yayá lhe dissera na vespera. Mas entre as queixas e effusões de uma hora de desanimo e aquella intimação, havia um abysmo; a carta trazia o cunho da resolução definitiva, que elle não achara ou não quizera achar nas declarações verbaes da moça.

—Yayá deu-lhe isto agora mesmo?

—Antes do almoço, respondeu o Sr. Antunes, cujo olhar forcejava por soletrar no rosto de Jorge algumas linhas do drama que suppunha haver lá dentro.

—Não lhe parece que Yayá anda triste? perguntou Jorge no fim de um minuto.

—A morte do pae prostou-a muito.

Jorge foi dalli ao gabinete; o Sr. Antunes acompanhou-o. A preoccupação do moço era uma chuva benefica ás esperanças do pae de Estella, que todas pareciam reflorir. Como este falasse da filha com a prolixidade astuta do pretendente, Jorge attentou n'uma ideia, que a principio lhe pareceu absurda, mas com a qual se familiarisou a pouco e pouco; mordeu-lhe o coração a suspeita de que o procedimento de Yayá era uma desforra de Estella, uma como vingança posthuma. O inexplicavel da carta podia justificar até certo ponto essa suspeita sem fundamento nem verosimilhança, que afinal acabou por não achar nenhuma repulsa na consciencia delle.

Duas horas depois Jorge escrevia estas poucas palavras á viuva de Luiz Garcia:

«Yayá mandou-me ha pouco o incluso bilhete. Peço-lhe o favor de uma explicação.»

A carta de Yayá fora escripta naquella manhã, depois de uma noite de agitação e luta. Nem foi a unica. Yayá escrevera outra, menos laconica, a Procopio Dias. Morto o pae, esse homem fora alli tres vezes, sem trocar com a moça uma só palavra relativa á extranha confidencia que lhe fizera antes. Eram visitas de meia hora, não mais; durante esse curto lapso de tempo, Procopio Dias não discrepava um instante da gravidade um pouco triste que adoptara. Não era o folgasão primitivo, mas tambem não era um poeta desesperado e pallido; ficava a egual distancia de um e outro modelo. Os acontecimentos pareciam aconselhar-lhe uma discreta ausencia; mas, além de não ter melindres nem escrupulos, floria-lhe no peito a esperança, a esperança tenaz dos cabiçosos. Não a sussurrava ao ouvido da moça, nem a ostentava nos olhos, na compostura, nos meneios, todos elles impregnados da submissão de uma alma desenganada e passiva. Yayá tratava-o com bondade, já agora mais constante; posto não lhe passasse pela cabeça a ideia de vir a desposal-o, não lhe destoava o aspecto dessa paixão resignada e muda.

Depois de soltar a palavra decisiva, Yayá entendeu que lhe devia dar a forma ultima, desligando-se da solemne promessa. Não o fez sem muita lagrima solitaria. A pobre creança amava o filho de Valeria com a singeleza de um coração quasi adolescente, e só então mediu todo o imperio que elle adquirira sobre ella. Mas duas circumstancias a induziam ao desfecho; era a primeira a revelação de Procopio Dias, confirmação de suas suspeitas; a segunda foi o espectaculo que se lhe offereceu aos olhos, naquella noite, logo depois de se despedir do noivo. Sabendo que a madrasta estava no gabinete do pae, alli foi ter e espreitou pela fechadura; viu-a sentada com a cabeça inclinada ao chão, desfeito o penteado, mas desfeito violentamente, como se lhe mettera as mãos em um momento de desespero, e caindo-lhe o cabello em ondas amplas sobre a espadua, com a desordem da peccadora evangelica. Yayá não a viu sem que os olhos se humedecessem.

—Que se casem! disse a moça resolutamente.

Desligando-se da promessa feita, Yayá reflectiu que ia ficar só, e que precisava forçosamente de um amparo; foi então que lhe lembrou Procopio Dias. Não encarou a ideia sem repugnancia; acceitavel na palestra, Procopio Dias era-lhe antipathico para a convivencia conjugal. Não o podia amar, e, uma vez resoluta a acceital-o, começou logo de o aborrecer. Que muito? Era um marido; não exigia outro merito. A carta que lhe escreveu não saiu de um jacto, foi trabalhada e repizada; o texto definitivo dizia que fosse alli sem demora para lhe falar de objecto que interessava á felicidade de ambos. Isto, e nada mais que uma lagrima, que lhe resvalou dos cilios no papel como um protesto contra o que ia nelle escripto.

Raymundo, chamado para levar essa carta, recebeu-a depois de alguma hesitação. Olhou para o papel e para a sinhá moça. Depois sacudiu a cabeça com um ar de duvida. Yayá simulou não ver nada, mas o gesto do preto impressionou-a. Ia affastar-se, Raymundo reteve-a dizendo:

—Yayá me desculpe... esta carta... Raymundo não gosta de falar áquelle homem.

—Não lhe fales; basta deixar a carta em casa delle.

Raymundo não insistiu; acompanhou com os olhos a filha de seu antigo senhor, abanando a cabeça com o mesmo ar de alguns momentos antes. Depois olhou para a carta, como se quizesse adivinhar o que ia dentro. Não era só presentimento, mas tambem deducção do que elle via naquellas ultimas semanas. Tinham-lhe dado noticia do casamento; falara-se nisso todos os dias antes da morte de Luiz Garcia. Morto este, cessou toda a allusão ao projecto, que parecia dever executar-se dentro de pouco tempo. O coração do preto dizia que aquella carta era alguma cousa mais do que um recado sem consequencia. Quiz leval-a a Estella; mas rejeitou o expediente, por lhe parecer infidelidade. Dez minutos depois saiu em direcção á casa de Procopio Dias.

Entretanto, chegavam ás mãos de Estella o bilhete de Jorge e o de Yayá. A viuva não podia crer o que lera. A carta da enteada era um acto de insubordinação, inexplicavel na essencia e na forma: e se essa carta a fez pasmar, a de Jorge fel-a gemer. O noivo desenganado recorria á intervenção de Estella. A primeira amada desse homem era agora a sua confidente, a quem elle escrevia sem saudade, sem remorso, talvez sem hesitação.

—Sogra! concluiu Estella com amargura; e erguendo os olhos do papel para o espelho, que pendia da parede fronteira, contemplou caladamente as suas graças ainda em flor. Yayá entrou nessa occasião. A madrasta chamou-a ao pé de si, e mostrando-lhe o bilhete que escrevera ao noivo, perguntou-lhe o que queria dizer aquillo. A enteada ficou silenciosa durante alguns segundos; mas a resolução deu-lhe força e tranquillidade.

—Quer dizer o que ahi está escripto, respondeu ella; não posso casar com o Dr. Jorge.

—Porque?

—Não posso.

—Porque? repetiu Estella com autoridade.

—Amo a outra pessoa.

—Não creio; tem de certo outro motivo.

—Que motivo?

—Nenhum que seja sensato, acudiu a madrasta, mas algum ha de haver, que não seja esse. O passo que deu é grave; não é proprio de uma moça obediente; chega a ser contrario á cortezia. Não importa; tudo se pode explicar; explique-me esta carta.

Yayá não obedeceu á intimação da madrasta, e para tirar á recusa qualquer apparencia offensiva, conservou um ar de modestia e resignação. Estella não se deu por vencida; demonstrou-lhe que só um motivo grave podia justificar semelhante procedimento, e que era forçoso dizel-o ao noivo; lembrou-lhe finalmente a estima que sempre houvera entre Jorge e o pae. Neste ponto Yayá estremeceu e fitou na madrasta uns olhos que não eram os de pouco antes. Parecia-lhe sacrilegio evocar o nome do pae. Não se pode ter; deu um passo e interrompeu-a com sequidão:

—Não posso casar, porque a senhora gosta delle.

Estella, que já então estava sentada, ergueu-se de golpe ao ouvir esta subita e inesperada explicação. A face pallida, que o traje de viuva ainda mais empallidecia, tingiu-se de uns longes de vermelho. Podia ser confusão ou indignação. Durante uma pausa relativamente longa, Yayá não tirou os olhos da madrasta. Essas duas lampadas buscavam examinar-lhe, no momento supremo todos os recantos da consciencia, e todos os atalhos do passado. Não disse nada, para melhor gozar do abalo que acabava de produzir em Estella; era o juro do sacrificio. Mas Estella sentou-se dahi a pouco, e foi a primeira que rompeu o silencio.

—Tu estás maluca, disse ella tranquillamente. Quem te metteu semelhante ideia na cabeça?

—Não examinemos agora quem foi ou o que foi que me fez adivinhar a verdade, respondeu Yayá; basta saber que decidi romper o casamento, que o mandei dizer ao Dr. Jorge, e que talvez dentro de poucos dias outra pessoa lhe pedirá minha mão.

Estas palavras transtornaram de todo a viuva, que, atonita e irritada, deu alguns passos na sala, buscando conter a explosão de seus sentimentos. Yayá foi ter com ella, falou-lhe com brandura e submissão.

—Não se zangue, mamãesinha, se lhe não disse antes o que fiz agora mesmo; estava certa de que approvaria, ou me perdoaria, quando menos. O homem de que lhe falo ama-me, e a senhora mesma não rejeitou a ideia de me ver casada com elle.

—Não tens culpa da imprudencia que commetteste, disse Estella; porque antes disso tinhas perdido a razão. Vem cá; disseste-me ahi uma palavra absurda, e é preciso que me digas outra com que expliques a primeira. Porque eu gosto delle? continuou depois de alguns instantes. Que quer dizer com isso?

Yayá curvou a cabeça.

—Fala!

—Não direi nada; essa palavra explica tudo. Se gosta como eu creio, é a sua felicidade que lhe trago, não digo a troco da minha, porque seria lançar-lhe em rosto o sacrificio, mas a troco de uma illusão, e nada mais. Não pense que lhe quero mal; não posso querer mal a quem me tem ou teve alguma affeição e substituiu dignamente minha mãe. Se lhe quizesse mal, é provavel que não fizesse o que fiz.

Em quanto falava a enteada, Estella tinha a fronte inclinada e pensativa; attitude em que se conservou ainda durante algum tempo.

—Bem vê que acertei, disse Yayá; seu silencio confirma a minha supposição.

—Eu! exclamou Estella estremecendo. Tu não entendes nada dos sentimentos, não conheces o coração. Eu amal-o? eu? Não! não é possivel!

—Talvez não, mas o que está feito, está feito.

A madrasta quiz retel-a, mas não pode; Yayá saiu sem dizer nada. Estella ficou atordoada, confusa e até medrosa; reboavam-lhe aos ouvidos as palavras de Yayá, não como um som exterior, mas como o brado da propria consciencia. Venceu o abatimento, reagiu depressa como lh'o pediam as circumstancias e a propria necessidade de sua natureza. Não teve tempo de cogitar no modo por que a enteada chegara a suspeitar um sentimento que ella recalcara no coração. Urgia reparar o mal feito pela imprudencia da moça. Estella dispoz-se a responder desde logo á carta de Jorge, e não sabia ainda claramente o que lhe havia de dizer. Tratou primeiro de chamar Raymundo, e vendo que elle não acudia foi ter com Yayá.

—Raymundo foi levar uma carta minha ao Procopio Dias, respondeu esta.

Estella caiu n'uma cadeira. Pela primeira vez, alumiou-lhe o espirito uma ideia cruel: a ideia de que a suspeita de Yayá fosse mais do que uma simples e innocente conjectura. Os olhos que lançou á moça ardiam de indignação. Cobriu-os depressa, não para chorar, mas para fugir aos da outra. O olhar de Estella fez vacillar por um instante a convicção da enteada; a colera pareceu-lhe sincera e até excessiva; mas o gesto que se lhe seguiu attenuou e desvaneceu a primeira impressão. Yayá suppoz ver na attitude da madrasta uma confissão involuntaria, uma expressão de abatimento e desespero, como de pessoa que entrevê a felicidade propria e julga dever sacrifical-a á de outrem. Era generosa. Caminhou para ella, dobrou as curvas, pousou-lhe no regaço os braços, tremulos de commoção; com as mãos desviou as de Estella e fitou-lhe os olhos, que estavam sombrios.

—Fui estouvada, confesso, disse ella; devia tel-a consultado antes de fazer o que fiz. Mas eu temia a sua opposição, e não queria tornal-a desgraçada. Sou mais moça que a senhora; se tivesse de consolar-me, consolava-me despressa. Mas não tenho; não amava; cedi a um capricho, e não sinto a menor dor ao despedir-me delle. Ande, perdôe-me; e esteja certa de que não a amarei menos do que até agora.

Ergueu-se e procurou beijal-a. A madrasta recuou instinctivamente a cabeça; era um resto de repugnancia, que a physionomia ingenua e pura de Yayá para logo dissipou. Em tão verdes annos, sem nenhum trato social, era licito suppôr na menina tamanha dissimulação? Estella concluiu que a acção da enteada vinha, não de uma supposição ultrajante, mas de um impulso desinteressado. Qualquer que fosse o fundamento da suspeita, o procedimento da enteada trazia o cunho da candura e da boa fé; assim pensando, Estella sentiu desopprimir-se-lhe a alma. Não era generosa,—ou tinha sómente a generosidade fria e altiva, que nasce da soberba. Mas não era insensivel, e o desinteresse da menina tocou-lhe profundamente o coração. Inclinou-se para ella, tomou-lhe a cabeça entre as mãos e fitou-a, com um olhar severo e maternal ao mesmo tempo.

—Perdoo-te, disse finalmente, porque não sabes o que fizeste. A intenção é que te salva do meu odio; digo mal, do meu desprezo. Se queres medir bem a profundidade do abysmo que acabas de cavar, fica sabendo que me injuriaste, pensando servir-me, e que o resultado do teu erro pode talvez arrancar-te lagrimas amargas e inuteis. Teu castigo será que só eu os enxugarei;—ouves bem? só eu.

Dizendo isto, soltou a cabeça da enteada com um gesto rispido, em que havia ainda um pouco de irritação. Yayá estava pallida. Sentiu na palavra secca e fria da madrasta um alento de indignação sincera; e a alma caiu-lhe prostrada, mais ainda do que o corpo, que não podendo suster-se, procurou amparar-se no movel que achou mais proximo. A duvida, que já antes atravessara o espirito da moça, começou a invadil-o. Yayá fitou Estella com o mais agudo de seus olhares, acompanhou-a de um lado para outro, por que a madrasta, logo depois das palavras que lhe disse, entrara a andar e a reflectir. Se a viuva era sincera, Yayá acabava de fazer gratuitamente a sua propria desgraça; foi o que a moça pensou. No atordoamento moral em que esta hypothese a lançou, Yayá achou-se entre dous desejos, mal definidos, mas inteiramente oppostos um ao outro. Quizera e não quizera ter-se enganado; aspirava a conciliar o coração e a consciencia. Seu espirito evocou a hora inicial da suspeita,—aquella funesta manhã, em que a carta de Jorge foi lida por Estella; recordou o gesto da madrasta, o tremor, a lividez, os vivos symptomas da consternação, do medo ou do remorso. Seria engano aquillo? não era evidente que elles se haviam amado, que se amavam ainda naquella occasião; e, dada affirmativa, era acaso impossivel que Estella, ao menos, o amasse ainda hoje?

Yayá ateve-se a esta conclusão, embora confirmasse a ruina de suas esperanças; a conclusão, porém, contrastava com a impassibilidade da madrasta. Já então perdera Estella o alvoroço do primeiro momento. Depois de alguns minutos de reflexão, parara em frente da enteada. Era difficil ver na attitude quieta, no aspecto de matrona severa e digna alguma cousa que se parecesse com as ancias, o triumpho ou o abatimento de uma rival. Yayá deixou-se estar deante della, a fital-a e a revolvel-a. A porção da alma que transparecia do rosto da viuva era tão fria, tão indifferente, que mal se podia combinar com o sentimento que Yayá lhe attribuia. Foi o que esta pensou ver com seus olhos finamente sagazes; e no meio desse contraste entre o aspecto presente e a revelação passada, Yayá acabou por não saber definitivamente onde ficava a verdade, e esteve a ponto de lh'a pedir de joelhos.

Achavam-se então no gabinete de Luiz Garcia, defronte da secretaria, onde o finado encontrara, com outros papeis, a carta que dera logar ás conjecturas de Yayá. Não havia mudança nem no numero nem na disposição dos moveis. Só a luz era differente, porque a daquelle dia era viva e clara, coada atravez de uma atmosphera serena, como a vida anterior dessa familia, ao passo que a de hoje vinha turva e meia apagada pelas nuvens de um ceu chuvoso e triste. Na longa pausa que houve entre a madrasta e a enteada, os unicos sons que se ouviam eram o rufar da chuva na folhagem do jardim e o tic-tac de um relogio de parede.

—Escuta, disse finalmente Estella; se alguma razão tens para crer que amo esse homem, é necessrio mostrar-te a realidade das cousas.

Estella abriu duas ou tres gavetinhas da secretaria, e depois de alguma busca entre os maços de cartas que ahi encontrou, tirou uma, abriu-a e deu-a á enteada. Yayá recebeu-a com as mãos tremulas de curiosidade; leu-a toda; devia ser a mesma que o pae mostrara á madrasta.

—Essa moça era a senhora? murmurou ella como se ainda esperasse resposta negativa.

—Era eu.

Yayá deixou-se cair n'uma cadeira raza, a mesma em que Estella estivera sentada, quando ouviu a confidencia do marido.

—Vês? disse Estella; foi por mim que elle fez o sacrificio de ir para a guerra, sem esperança de ser retribuido nem de contar um dia com a minha gratidão. Foi para a guerra, lutou, padeceu, fiel ao sentimento que o tinha levado, até o ponto de o crer eterno. Eterno! Sabes quanto durou essa eternidade de alguns annos. É duro de ouvir, minha filha, mas não ha nada eterno neste mundo; nada, nada. As mais profundas paixões morrem com o tempo. Um homem sacrifica o repouso, arrisca a vida, affronta a vontade de sua mãe, rebella-se, e pede a morte; e essa paixão violenta e extraordinaria acaba ás portas de um simples namoro, entre duas chicaras de chá...

—A senhora não o amou nunca? interrompeu Yayá, ao sentir o tremor e o despeito com que a madrasta proferira as ultimas palavras.

—Havia entre nós um fosso largo, muito largo, disse Estella. Eu era humilde e obscura, elle distincto e considerado; differença que podia desapparecer, se a natureza me houvesse dado outro coração. Medi toda a distancia que nos separava e tratei simplesmente de evital-o. Foi então que elle embarcou; interiormente approvei-o. Talvez lhe não neguei um pouco de compaixão silenciosa, mas nada mais. Casamento entre nós, era impossivel, ainda que todos trabalhassem para elle; era impossivel, sim, porque o consideraria uma especie de favor, e eu tenho em grande respeito a minha propria condição. Meu pae já me achava, em pequena, uns arremeços de orgulho. Como querias tu que, com tal sentimento, pudesse desposar um homem, socialmente superior a mim? Era preciso dar-me outra indole. Todas as felicidades do casamento achei-as ao pé de teu pae. Não nos casamos por amor; foi escolha da razão, e por isso acertada. Não tínhamos illusões; pudemos ser felizes sem desencanto. Teu pae não tinha os mesmos sentimentos que eu; era mais timido que orgulhoso. Qualquer que fosse a razão do seu desapego ao mundo, bastava que o tivesse, para me fazer feliz; vivemos assim alguns annos de inteiro isolamento, sem conhecer o amargor, que é o que fica no fundo da vida, sem necessidade da dissimulação... Minto; tive necessidade de fingir, desde que aquelle homem aqui appareceu; era necessario. Um dia teu pae mostrou-me essa carta e referiu-me a paixão encoberta que ahi se conta; podes imaginar se ouvi tranquilla. Mas fóra desse acontecimento, que outro podia perturbar minha alma? Não vi nenhuma porta abrir-se-me por obsequio, nenhuma mão apertou a minha por simples condescendencia. Não conheci a polidez humilhante, nem a afabilidade sem calor. Meu nome não serviu de pasto á natural curiosidade dos amigos de meu marido. Quem é ella? donde veiu? Ninguem me perguntou donde vinha, não é verdade? Perguntaste-me quem era eu? Não; amaste-me como tinhas amado tua mãe, e eu amei-te, como se foras minha filha. E para isso bastou-nos estender os braços; não foi preciso descer nem subir.

—Não foi, bradou Yayá commovida, apertando-lhe as mãos.

—Já vês quem eu era e sou; uma especie de animal feroz, que prefere a charneca ao jardim. Não me senti lisongeada com a paixão que inspirei; rejeitei, talvez, um marido digno das ambições de qualquer mulher. Era isto o que querias saber? Pois ahi tens a minha historia, a historia, dessa carta, que já agora podemos rasgar...

Estella pegou na carta e rasgou-a lentamente, em pedaços miudos, emquanto a enteada reflectia nas revelações que acabava de ouvir. A madrasta deitou os fragmentos do papel á cesta.

—Resta concertar a imprudencia e casar, disse Estella dando á palavra um tom galhofeiro.

—Não sei! murmurou Yayá. O que a senhora me disse é grave; não ha sentimentos eternos. Parece que depois de tamanha paixão, qualquer outro affecto não terá longa vida.

—Porque não? Não has de querer agora uma paixão, que o leve á guerra; seria um desastre. Mas está nas tuas mãos fazer que elle te ame sempre e muito.

Yayá reflectiu um instante.

—Jure-me que o não ama!

Estella franziu o sobr'olho; depois mostrou-lhe o bilhete que Jorge lhe escrevera pouco antes, e cuja redacção dissiparia á moça qualquer duvida em relação ao noivo. Era uma evasiva para lhe não confessar nem mentir. A primeira vez que lhe negara o amor, foi antes um grito do coração que queria enganar-se a si proprio: agora preferia calar-se. A certeza da isenção de Jorge importava muito mais que a de Estella; a alma de Yayá no primeiro instante, respirou á larga. O respeito que tinha á madrasta, e um pouco de ciume retrospectivo que a mordia, ao pensar naquella paixão tão violenta e tão desenganada, empeciam á moça qualquer outra manifestação. Quando se achou a sós comsigo, levava o espirito arejado da suspeita que o opprimira durante largos mezes; mas o vento que o lavou das sombras, lá lhe queimou algumas das flores desabotoadas ao calor do primeiro sol. A felicidade tinha um travo de desgosto e humilhação; o coração tremia de medo.

Quando mais absorta estava nesse contraste de sensações, viu Raymundo transpor a porta do jardim.




XVII

Yayá foi ter com Raymundo.

—Entregaste?

—Não entreguei, disse o preto.

Yayá ficou alguns instantes immovel. Raymundo tirou a carta do bolso, e esteve com ella nas mãos, sem atrever-se a levantar os olhos; levantou-os emfim e disse resolutamente:

—Raymundo não achou bonito que Yayá escrevesse áquelle homem, que não é seu pae nem seu noivo, e voltou para falar a nhanhã Estella.

—Dê cá, disse a moça seccamente; não é preciso.

Raymundo entregou-lhe a carta, e sacudiu a cabeça encanecida, como se quizera repellir os annos que sobre ella pesavam, e retroceder ao tempo em que Yayá era uma simples creança, travessa e nada mais. Tinha-lhe custado a resolução; tres vezes investira a porta de Procopio Dias para obedecer á filha do seu antigo senhor, e tres vezes recuara, até que venceu nelle o presentimento,—uma cousa que lhe martellava no coração, dizia elle dahi a pouco a Estella, quando lhe referiu tudo.

Estella não se deteve mais. Na carta, que escreveu a Jorge, disse que a enteada era apenas uma menina romanesca, desconfiada e curiosa; queria desfazer o casamento, porque suppunha não ser amada com egual ardor ao seu.—«Yayá adora-o, concluia Estella, e não se sente adorada. Venha prostrar-se ao pé do altar, e terá em mim a mais piedosa sacristã.»

Yayá teve noticia da carta, e já tarde para oppôr qualquer objecção. O primeiro impulso foi agradecer a pia fraude da madrasta; mas a alma, picada por um resto de ciume, depressa conteve o impulso, e a unica resposta da moça foi um gesto de acanhamento e um silencio largo. Ouviu-a depois sem azedume nem impaciencia, attenta á menor hesitação que lhe truncasse a palavra, ou á minima sombra de desgosto que lhe velasse os olhos. A verdade é que a ternura da madrasta e a jovialidade recente de seus modos traziam certa nota desusada e violenta, e esse excesso fazia reflectir a enteada.

Entretanto, a carta de Estella chegou ás mãos de Jorge, que a leu duas vezes para conseguir entender-lhe o sentido. A explicação tinha o defeito de ser um pouco subtil; mas a alma de Jorge conservava sempre uma porta aberta aos sentimentos extraordinarios. Demais, qualquer explicação favoravel era um beneficio, e aquella tinha a vantagem de affagar o amor-proprio, além de vir ajustada com o espirito inquieto e subito da noiva. Leu a carta sem cotejar o texto com a assignatura, sem attentar naquella sacristã em cujos hombros quizera outr'ora atar a veste sacerdotal.

Nessa mesma noite foi á casa da noiva, que o recebeu sem contentamento nem mortificação, um pouco laconica e meditativa. Nem um nem outro alludiu aos successos ultimos; fel-o Estella com muita pertinencia e tacto. Não obstante, como a explicação da viuva não correspondia exactamente á realidade das cousas, a situação ficou ainda obscura e vaga, e por ventura exagerou o acanhamento reciproco. A persuasão de que Yayá exigia da parte delle maior intensidade de sentimento, não inclinara o espirito de Jorge a nenhuma ostentasão theatral,—mas acabou por lhe infundir deveras maior ternura, e augmentou a vitalidade de um sentimento, que é a forma desinteressada do egoismo,—a felicidade de fazer outrem feliz.

—Marquemos o casamento para esta semana, disse Estella na noite de um domingo.

—Ainda não, respondeu a enteada.

Posto visse dissipada a tempestade que lhe negrejara sobre a cabeça, Yayá enxergava ainda para o lado poente um spectro, e para o lado do nascente uma possibilidade. Esses dous pontos negros vinham estragar a belleza azul do ceu e tornal-o pesado e melancholico. O mysterio do futuro unia-se ao mysterio do passado; um e outro podiam devorar o presente, e ella receiava ser esmagada entre ambos. A convivencia da familia atterrava-a. Que seria para ella o casamento, se tivesse de penetrar nelle com a perpetua ameaça deante dos olhos, uma antiga semente de amor, que a primara brisa da primavera podia fazer brotar e crescer de novo? Acreditava na isenção presente da madrasta, e na inteira cura do marido, mas o futuro? A belleza de Estella estava ainda longe do declinio, e a modestia de Yayá fazia-a persuadir de que, ainda no declinio, seria superior á sua.

Uma noite, entrou o Sr. Antunes e deu uma carta á filha, que a leu silenciosamente.

—Olha, disse ella apresentando a carta á enteada.

Yayá leu-a; eram duas paginas escriptas de alto abaixo, e por lettra desconhecida. Uma antiga condiscipula de Estella, residente no norte de S. Paulo, acceitava a proposta que esta lhe fizera, de ir dirigir-lhe o estabelecimento de educação que alli fundara desde alguns mezes.

—Bem vês que é necessario casar-te quanto antes, disse Estella logo que a enteada acabou a leitura.

Yayá sentiu os olhos humidos e atirou-se aos braços da madrasta. A effusão era sincera; havia alli affecto, reconhecimento e admiração. Mas, por isso mesmo que era sincera, deveria molestar a madrasta, se alguma cousa podesse já molestal-a. Estella sorriu,—um sorriso que queria dizer:—Bem sei que sou de mais. A lingua, porém, não proferiu uma palavra unica.

—Que quer dizer isso? perguntou o pae de Estella, que nada sabia da carta, e consequentemente nada entendia daquella expansão da moça.

Estella mostrou-lhe a carta. O pae não pode acabar de ler: a primeira pagina fizera-lhe comprehender tudo. Seus olhos iam do papel á filha e da filha ao papel, sem que a boca se atrevesse a formular nenhuma queixa ou censura.

—Não digo que me obedeças, murmurou elle; mas parece que podias consultar-me...

—Eu estava certa da sua approvação, respondeu Estella. Ou parece-lhe que fiz mal?

—Nunca fizeste bem em cousa nenhuma, disse tristemente o pae. E pegando-lhe nas mãos:—Tão moça! tão bonita!

O dia do casamento foi definitivamente marcado naquella noite. Como Estella declarasse que ella propria serviria de madrinha, Yayá procurou dissuadil-a cautelosamente; tambem ao noivo repugnou a intervenção espiritual da viuva. Mas Estella não se deu por entendida. O papel de acolyta, que a si mesma distribuira, tinha-o desempenhado com lealdade e dignidade. Quiz ir até o fim. Era o melhor modo de se mostrar isenta e superior. Jorge sentia-se vexado e transportado ao mesmo tempo, ao observar a simplicidade e o desvello que a viuva punha naquelle acto. Yayá sentia só admiração e gratidão. Tinha já certeza de que o passado era pouca cousa, e de que o futuro seria cousa nenhuma. O casamento ia separal-as, reconciliando-as.

Casados os dous, Estella preparou-se para seguir viagem, não obstante a resistencia do pae, que foi tenaz e habil. O pae ficaria. Estava já tão cançado para viagens longas! A differença do clima, a falta de relações, a necessidade de não abrir mão do emprego, eram motivos de grave peso para não arriscar-se a deixar o Rio.

—Ao menos, promettes vir ver-me de quando em quando? disse o Sr. Antunes sentindo tremer-lhe nos olhos uma lagrima sincera.

Estella respondeu que sim; depois pediu-lhe que acceitasse uma mezada. O pae recusou commovido.—Tu vales muito, exclamou elle. O tom com que preferiu estas palavras deu uma esperança á filha.

—O senhor pode valer ainda mais do que eu, disse ella.

Depois contou-lhe a paixão de Jorge e todo o episodio da Tijuca, causa originaria dos acontecimentos narrados neste livro; mostrou-lhe com calor, com eloquencia, que, recusando ceder á paixão de Jorge, sacrificara algumas vantagens ao seu proprio decoro; sacrificio tanto mais digno de respeito, quanto que ella amava naquelle tempo o filho de Valeria. Que pedia agora ao pae? Pouca e muita cousa; pedia que a acompanhasse, que cessasse a vida de dependencia e servilidade em que vivera até alli; era um modo de a respeitar e respeitar-se. O pae escutava-a attonito.

—Tu chegaste a amal-o! exclamou elle. Não aborrecias? Amaram-se? E só agora sei... Bem digo eu; tu és uma fera. Não tens, nunca tiveste pena de minha velhice... Elle é tão bom! tão digno! E se morresse por tua causa? não terias remorsos? não te havia doer o coração quando soubesses que um moço tão bem nascido, que gostava de ti... Sim, elle gostava muito de ti; e tu tambem... e só hoje!

Estella fechou os olhos para não ver o pae. Nem esse amparo lhe ficava na solidão. Comprehendeu que devia contar só comsigo, e encarou serenamente o futuro. Partiu; o pae despediu-se della com o desespero no coração,—e desta vez a dor era desinteressada e pura. Jorge consolou-o depressa. Não houve interrupção na convivencia, e o Sr. Antunes continuou a achar alli a mesma protecção e cordialidade. Se o casamento fora um attentado, elle os absolveu disso, e repartiu com ambos infinita solicitude. Outra vez comensal assiduo, tornou a ser o homem de confiança. Fóra dalli, as horas de lazer que lhe deixava o pouco trabalho, eram empregadas nas sessões do jury, nas galerias da camara dos deputados ou nos bancos do Carceller. Não tendo já a aspiração de uma alliança vantajosa, adoptou a devoção da loteria. Era elle quem dava, secretamente, noticias de Estella a Yayá.

Esta achou no casamento a felicidade sem contraste. A sociedade não lhe negou carinhos e respeitos. Se antes de casar, Yayá possuia o abecedario da elegancia, depressa aprendeu a prosodia e a syntaxe; affez-se a todos os requintes da urbanidade, com a presteza de um espirito sagaz e penetrante. Nenhuma nuvem do passado veiu sombrear a fronte de um ou de outro; ninguem se interpunha entre elles. Yayá escrevia algumas vezes a Estella, que lhe respondia regularmente, e no mais puro estylo de familia. De longe em longe a enteada presenteava a madrasta, que lhe retribuia logo na primeira occasião. Quanto a encontrarem-se, era difficil; Estella applicava todos os seus cuidados á nova occupação.

Procopio Dias viu a morte de todas as esperanças ultimas, com uma philosophia que não suppunha ter em si. Naturalmente padeceu alguns dias de despeito; mas o despeito acabou com o amor. Verdade é que o ambiciado casamento abriu nelle o desejo de não morrer solteiro; e, perdida uma opportunidade, tratou de haver outras á mão. Ultimamente voltou á religião do celibato. Duas ou tres vezes encontrou Yayá e o marido. A ultima foi n'um sarau. Jogou o voltarete com Jorge e acompanhou a mulher até á carruagem, não sem lançar um olhar furtivo ao estribo, onde Yayá pousou o pé, cançado de valsar.

No primeiro anniversario da morte de Luiz Garcia, Yayá foi com o marido ao cemiterio, afim de depositar na sepultura do pae uma corôa de saudades. Outra corôa havia sido alli posta, com uma fita em que se liam estas palavras:—Á meu marido. Yayá beijou com ardor a singela dedicatoria, como beijaria a madrasta se ella lhe apparecesse naquelle instante. Era sincera a piedade da viuva. Alguma cousa escapa ao naufragio das illusões.




FIN