Nota de editor:
Devido à
existência de erros tipográficos neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Setembro 2010)
SCENAS DE VIAGEM
EXPLORAÇÃO
entre os rios Taquary e Aquidauana
no districto de Miranda.
MEMORIA DESCRIPTIVA
PELO 1º TENENTE D'ARTILHARIA
Alfredo d'Escragnolle Taunay
Engenheiro geographo,
bacharel em bellas letras pelo Imperial collegio de Pedro II,
bacharel em mathematicas e sciencias physicas,
official da Imperial ordem da Rosa,
condecorado com a medalha de campanha
das forças do sul de Mato-Grosso e ex-ajudante da
commissão
de engenheiros junto áquellas forças.
RIO DE JANEIRO
Typographia—Americana—rua dos Ourives n. 19
1868
Ao Illm. e Exm. Sr.
Tenente-General Conselheiro
Polydoro da Fonseca Quintanilha Jordão
O. D. C.
O Autor
Exm. Sr. General.
Tomo a liberdade de offerecer a V. Exc. estes apontamentos colhidos
n'uma viagem trabalhosa e rodeada de perigos.
Quando eu a executava, o sentimento do dever era o meio seguro para
achar menos arduas as contrariedades incessantes que me
acommettião.
A esse sentimento unia-se o desejo de corresponder á
espectativa de minha
familia e de meus chefes, cumprindo á risca as ordens que me
havião sido
dadas.
A lembrança de V. Exc. me era presente n'aquelles momentos e
desde
então formei a resolução de collocar
debaixo de sua prestigiosa protecção
qualquer trabalho que emprehendesse sobre essa
exploração.
Hoje cumpro com uma divida.
Assigno-me de V. Exc.
Muito respeitoso amigo e subordinado
Alfredo d'Escragnolle Taunay.
Rio de Janeiro, 12 de Outubro de 1867.
PREFAÇÃO
Incumbido de uma exploração importante n'uma zona
de mais
de cincoenta legoas, colhi os dados que ora apresento, procurando
tomar notas minuciosas de tudo quanto pudesse interessar e
coordenando-as
desde logo, de modo que formassem com pouco custo
um trabalho simples e despido de pretenções,
porém de alguma
vantagem para novos e mais habilitados exploradores, fornecendo-lhes
apenas uma base para futuros desenvolvimentos.
Coube-me a felicidade de ter para companheiro n'essa viagem, o
muito illustrado e digno engenheiro, o meu amigo Dr. Antonio
Florencio Pereira do Lago, capitão d'estado-maior de
1ª
classe,
cujo espirito eminentemente methodico e cultivado e cuja intelligencia,
ornada dos mais preciosos dotes da alma, vão-se tornando,
felizmente para a nobre classe a que pertence, de dia em
dia mais conhecidos.
Nas crises, porém, de uma peregrinação
atribulada, como a que
fizemos, vi-o desenvolver qualidades que demonstrão grande
energia
e sangue-frio, e que, servindo-me de proveitosa
lição, tornárão
para mim a sua amizade ainda mais preciosa.
Procurei tirar á minha narrativa o caracter official. Em
muitas
occasiões não pude livrar-me da technologia
scientifica; usei d'ella,
com parcimonia, e, organisando um trabalho singelo, envidei
esforços
para que fosse consciencioso e sobretudo veridico.
SCENAS DE VIAGEM
CAPITULO I
As forças destinadas ás
operações no districto de Miranda,
achavão-se, desde o dia 20 de Dezembro do anno de 1865,
acampadas na margem direita do rio Taquary, occupando,
desde a confluencia d'este com o rio Coxim, uma extensão
de mais de legoa.
Sobre este local existira grande controversia; uns o
apresentavão como excellente ponto de
estação para os
nossos soldados, dando-lhe as honras de posição
estrategica,
outros, contrariando fortemente tal opinião, fundados
no conhecimento da localidade, tiravão-lhe toda a
importancia de que era revestido. Na realidade, o melhor
possivel para a formação de uma colonia, como
existe
desde 1862 projecto, acha-se o ponto falto de todas as
condições para ser considerado como militar,
pronunciando-se
a commissão de engenheiros contra a escolha d'elle,
quando fôra consultada.
[10]
Entretanto ahi passárão as forças os
mezes da estação
pluviosa. Esta phase do anno, determinada claramente,
durante o verão, nas provincias do interior do Brasil,
começa geralmente a 8 de Setembro e vai, com mais
ou menos regularidade, até os fins de Abril. As enchentes
e trasbordamentos de rios n'uma zona baixa e plana,
como a de quasi toda a provincia de Mato-Grosso, são
correspondentes
a esta época chuvosa, formando-se, n'uma
extensão importantissima, um immenso terreno alagado,
d'onde surgem, de quando em quando, alguns pontos firmes,
devidos ás ondulações dos campos.
Entre o Coxim e
a villa de Miranda estendião-se então, impedindo
a passagem
até a viajantes escoteiros, esses pantanaes que,
chegando em certos
corixos a dar
nado, impossibilitavão
totalmente a marcha da expedição acompanhada por
bagagem
pesada e viaturas de artilharia.
Achava-se assim, pela força das circumstancias, detida
a columna, bem que o commandante d'ella, o bravo coronel
Galvão, ardesse em desejos de começar o trabalho
de reoccupação do districto, ainda n'aquelle
tempo todo
em poder do inimigo. Por isso acolheu elle pressuroso
as informações que
fornecêrão alguns fugitivos da villa
de Miranda, refugiados no Coxim, sobre a possibilidade
de abrir uma trilha, que, seguindo a base da serra de
Maracajú, permittisse, pelo desvio dos pantanaes, a passagem
até o rio Aquidauana. Fôra por ahi que se
déra
a fuga d'elles, havendo encontrado tão sómente
pequenas
difficuldades. Apressou-se pois o commando em ordenar
que dous engenheiros seguissem a reconhecer aquelles
terrenos, informando sobre a praticabilidade da
viação e
[11]
procedendo a uma exploração cuidadosa d'aquella
fralda de
serra. Tocou-nos essa commissão sobremaneira penosa,
em companhia do capitão Lago.
No dia 11 de Fevereiro fôra expedida a ordem; fizemo-nos
prestes e, no dia 13, effectuou-se a nossa partida
depois de melancolica despedida aos nossos companheiros,
que deixámos, com as forças, do outro lado do
Taquary,
onde devião demorar-se ainda perto de tres mezes.
As difficuldades no fornecimento de viveres durante a
estada no Coxim, reflectião-se dolorosamente na nossa
matalotagem, onde só viamos, em quantidade não
muito
satisfactoria, os generos da mais urgente necessidade.
Não tinhamos a pretenção de viajar
como Nababos, nem
possibilidade para isso; mas as provisões, ainda quando
para uma excursão não muito custosa, nos
faltavão de
todo e antolhavamos horisontes de certo pouco risonhos.
Com immensa dóse de resignação, o
melhor dos provimentos
para taes casos, partimos, escudados um no outro
e estribados n'esse sentimento, natural em todos e
eminentemente precioso, que constitue uma opinião
philosophica,
uma seita; o optimismo. Partimos.—
Arcades
ambo, ou melhor—
milites
ambo.
Antes de deixarmos o Coxim, talvez para sempre,
algumas palavras; e sejão ellas o nosso adeos, adeos
sem saudades, apezar do seu magestoso Taquary
[1],
de
sua verde mataria, de suas lindas garças, de seu
facies
melancolico, de seu céo puro e noites scintillantes que
terião feito surgir em nós poeticos sonhos, se o
estomago—e
[12]
quantas vezes!—não reagisse dolorosamente
com exigencias difficeis de satisfazer. A posição
do Coxim
é pitoresca,—salutar relativamente á
zona em que
se
ergue esse torrão—a
vegetação bonita.
Os terrenos patenteão
superabundancia de arêa, alguma argila; são
ondulados
sensivelmente, elevando-se até em outeiros que
vão
se unir á grande cadêa de Maracajú, a
qual, dez a doze
legoas além, levanta-se ao longo do caminho do rio Negro.
O aspecto phytologico não é novo:
continuação dos
cerrados de Goyaz, os quaes em
occasião opportuna
havemos procurado descrever, apresenta os arbustos que
lhes são mais communs: muitas
myrtaceas, das quaes
uma, a
eugenia dysenterica
(cagaiteira) quando lá chegámos,
curvava-se ao peso de seus lindos fructos côr
de ouro; várias
malpighiaceas, avultando o
mureci (byrsonima
verbascifolia) que tinha seu valor no mercado
improvisado do Coxim, assim como o
piqui (caryocar
brasiliense) de Saint-Hilaire e a
marmelada[2]
que é
da familia das
rubiaceas. Com
flôres vimos uma bellissima
acanthacea
[3],
diversas
hyptis e
outras labiadas
que resistião ao término da estacão da
florescencia. Muitas
melastomaceas das tribus
lavoisiera[4]
(capsulas seccas) e
[13]
osbeckia (sementes cochleiformes
[5])
salpicavão os prados,
formando grupos com
araticús (anonaceas) em
monticulos,
respeitados pelas aguas, onde sempre encontravamos um
araçá
rasteiro, de folhas largas. As
anonaceas ahi são
muito frequentes, chegando algumas vezes a attingirem a
altura de grandes arbustos.
Junto ao rio, como sempre, a vegetação
é mais abundante
e luxuriante: madeiras de construcção, como
aroeiras,
perobas,
ipés, etc., muitas
figueiras,
guanandys[6],
etc, corôão as
barrancas que encanão o rio.
Na passagem para o outro lado apresenta o Taquary a
largura de 70 braças, ganhando em profundidade o que
perde em superficie: ahi a velocidade é diminuta;
é já
um curso importante que mansa e socegadamente obedece
á lei da gravidade. Não ha mais o
buliçoso movimento, o
atirar louco, de encontro ás rochas, de alvos
lençóes de
liquido, a precipitada corrente ao receber o Coxim, na
confusão
das aguas; é a calma de quem não acha mais
obstaculos
que vencer; a tranquillidade do descanço. Comtudo
no nado a que forão obrigados os nossos pobres
pachidermes, enfraquecidos pelas pessimas pastagens do
local, essa correnteza levou-os a percorrer a diagonal de
140 braças, impossibilitando-nos longa viagem. N'esse dia,
andámos tão sómente um quarto de legoa
até o ribeirão
da Fortaleza, caminhando n'uma encosta elevada, coberta
por
papilionaceas rasteiras e mato
baixo de
araticús.
[14]
Este tributario do Taquary rola limpidas aguas sobre
chão de alvacenta arêa, e, já sobre
tarde, pudemos distinctamente
ver innumeros cardumes de
pirapitangas e
corimbatás subirem contra
a correnteza, descendo todos,
ao alvorecer. Na margem direita uma lindissima
anonacea,
com folhas lustrosas e ramos pendentes, attrahia as
vistas, surgindo com uma
cecropia
(embaiba) de um
grupo de
melastomaceas (rhexias
[7]),
solaneas e
araticús.
D'este ponto começão os terrenos baixos: a
barranca
abrupta do ribeirão, na margem esquerda, é o
córte alcantilado
do ponto firme que se chama Coxim; pelo outro
lado não existe ribanceira; um chão plano, a modo
de
lezira, com ligeiras ondulações, se estende quasi
de nivel
com as aguas, que, nas enchentes, com summa facilidade
invadem grande extensão.
Á noite, furioso furacão açoutou
cruelmente as nossas
barracas esburacadas: a nossa comitiva muito soffreu.
Os soldados, sem abrigo, semi-nús,
supportárão a inclemencia
do tempo; junto a um fogo extincto que provavelmente
os aquecia intencionalmente. Além de dous camaradas,
acompanhavão-nos seis praças e um furriel do
corpo
de cavallaria do coronel Dias, os quaes, achando-se transviados,
desde a invasão paraguaya e occultos em diversos
pontos, áquem e álém Aquidauana,
poucos dias
antes se
[15]
tinhão espontaneamente apresentado ao commandante das
forças, que os designára para nos servirem de
guias em
nossos reconhecimentos.
De alguns dos seus typos conservamos lembrança curiosa.
O furriel Salvador Rodrigues da Silva e os dous
irmãos Campos Leite muito nós
ajudárão, e, apezar de
terem sido no principio mal considerados, desmentindo a
nossa prevenção contra elles, sempre
derão provas de
grande dedicação e disciplina.
Começavamos a nossa viagem debaixo das mais tristes
impressões. A incerteza que nos dominava sobre o estado
da zona a percorrer, inundada completamente,—pantanal
medonho—, a approximação dos pontos
occupados
pelos
inimigos com a força de protecção, em
nada respeitavel,
que nos cercava, a perspectiva desanimadora de pouco
fornecimento para a excursão, não
constituião motivos para
que figurassemos aquella exploração um passeio
agradavel,
quando de todos os lados assomavão senão
perigos,
pelo menos innumeras contrariedades.
Era pois explicavel o sentimento de tristeza e melancolia
que nos apertou o coração, ao recebermos os
abraços de
nossos collegas; e, á noute, quando os échos
longinquos
repercutírão o signal de
silencio, que atroava no acampamento
do Coxim, pelas bocas metallicas de suas muitas
cornetas, alvoroçárão-se em
nós, na duvida de crises maiores,
as saudades do tempo que tinhamos passado ao lado
de nossos companheiros, se bem houvesse sido pouco
invejavel.
A
braços com a fome, na mais completa penuria,
ahi se tinhão esgotado dias penosos, angustiados
até,
em que no soffrer intimo não apparecia o vislumbre de
[16]
compensação, o raio de esperança por
melhores tempos.
Como densas nuvens, prenhes de tempestades, mil incommodos,
prestes a desfecharem maiores males, pesavão
sobre nossos espiritos e relampagos de quando em quando
escurecião-nos as vistas. Entretanto a união que
sempre
existíra entre nós, a cordialidade de
convivencia, a consolação
reciproca, o apoio mutuo, fazião communs e menos
sentidos os desgostos que nos acommettião,
adoçavão os
amargores da situação, amenisavão os
espinhos do presente. (
Nota A)
Fizemos as nossas despedidas ao Coxim, do alto de um
monticulo que domina o ponto de reunião d'este com o
Taquary, o qual de longe rola as turvas aguas, até
encontrar-se
com o alvo contingente de seu tributario. Demos
então as costas ao Norte, indo logo depois demandar a
margem esquerda do bello Taquarymirim, que ora afasta-se,
ora approxima-se muito do caminho. É este cortado
de continuo por pequenos corregos, os quaes, ufanos
n'aquella época, fenecem ao approximar a
estação fria
e secca.
Os campos, que nos cercavão, erão cobertos de
cerrados;
vegetação baixa, arborescente, comtudo mais
vistosa
que a de Goyaz. Até ás vezes algum
vinhatico[8]
levanta-se alteroso, bem que retorcido e sem as
proporções
a que attinge nas matas do Rio de Janeiro, como
demonstração da inferioridade de terrenos, cujas
causas
não hão de ser removidas tão cedo. Dos
outros typos ha
abundancia: muitas
myrtaceas,
malpighiaceas,
bombaceas,
[17]
anacardeas,
terebinthaceas e
dilleniaceas, das quaes
a
lixeira[9]
pareceu-nos commum a
todos os cerrados,
cassias,
papilionaceas,
bignoniaceas, algumas
melastomaceas;
entretanto predominão ahi visivelmente as
anonoceas. (
Nota B)
Nosso pouso foi n'uma baixada viçosa, coberta por verdejante
tapiz de bonita gramma, fronteiro a uma das
cabeceiras do Taquarymirim e ao lado de bellos grupos
de
boritys. Lugar encantador para um
espirito tranquillo,
cheio de maravilhas para a imaginação de um
poeta,
fonte de inspirações para um adorador da
natureza, não
nos provocou elle mais do que o prazer do descanço, fruido
depois de cançativa e morosa viagem de duas e meia legoas.
Entretanto, quão bellas erão as puras aguas que
revolvião-se em cachões de encontro a
cabeços de rochas e,
espumantes, traçavão mil caprichosas curvas?! Da
singeleza
magestosa e melancolica do bority nunca se ha de fallar
sobejamente. (
Nota C)
N'esse mesmo lugar, que denominámos
Pouso
dos Boritys[10],
existião os vestigios de um acampamento paraguayo,
formado por occasião do prolongamento da invasão,
em Abril de 1865, até o Coxim e a fazenda de Luiz
Theodoro
[11].
Galhos fincados no chão e apoiados uns nos
outros, com a ramagem para cima, formavão ranchos
improvisados,
[18]
em que se havião abrigado os soldados, sob a
coberta do ponche estendido por cima. A certa distancia,
achava-se um cercado para a cavalhada e, pelos arredores,
estavão varios objectos de picaria, ao lado de ossadas
dos cavallos, que erão degolados, á medida que
afrouxavão. A ida dos paraguayos ao Coxim foi feita com
celeridade estupenda; a artilharia passou por lugares medonhos
e, em poucos dias, completárão elles uma viagem
redonda de 146 legoas, no tempo da maior inclemencia
de aguas. Se bem tivessem levado excellente cavalhada,
voltárão muitos dos expedicionarios a
pé, pois que a peste,
commum n'estas localidades, incessantemente derribava os
seus melhores animaes de sella.
Um anno depois, no mesmo mez, occupavão o acampamento
dos Boritys, as forças brasileiras, em marcha sobre
os pontos em poder do inimigo e os seus soldados, aproveitando
os ranchinhos paraguayos, procuravão n'elles substitutos
ás barracas que lhes faltavão.
D'ahi por diante os vestigios da passagem dos invasores
tornão-se cada vez mais frequentes; as
inscripções
nas arvores são amiudadas, umas em hespanhol, outras
em guarany.
No corrego da Porteira, a meia legoa do pouso dos
Boritys, uma d'essas palmeiras tem o tronco coberto de
disticos, infelizmente quasi todos apagados. N'um d'elles
pudemos comtudo decifrar o genero de amabilidades
que dirigião-nos os nossos visinhos republicanos.
Além
da necessaria invectiva de
infames
esclavos, lia-se—
Los
brasileros non son hombres delante de Lopez.
Mão brasileira exarára já, no meio
d'esses insultos, o
[19]
contraprotesto
Morrão os
paraguayos, e datára—11 de
Junho de 1865.—Singular coincidencia! No dia, talvez na
mesma hora em que se escrevião, no meio dos
sertões,
essas palavras fatidicas, a bravura, o canhão e o
patriotismo
brasileiros executavão aos olhos do mundo aquella
sentença fatal. Riachuelo tinha a sua repercussão
instantanea,
electrica e o grito que erguia aos ares a valente
maruja do Brasil, echoava, para assim dizer,
n'aquelles longinquos e desertos páramos.
É bem comprehender a monotonia da viagem que
faziamos, para avaliar a impressão moral por nós
sentida,
ao acordarem-se milhares de pensamentos, com essa
approximação que abria as azas á
imaginação desde
muito adormecida.
«Est Deus in
nobis, agitante calescimus illo»
Com muito mais animação, tocámos os
animaes e, d'ahi
a perto de duas horas, entravamos na sombria coberta
do ribeirão da Mata. N'esta zona os bosques são
mui
viçosos; os matagaes mais juntos, mais espessos; os
cerrados em menor numero; demais, a agua dos corregos
é limpida e pura até o rio Negro. Esperem os
viandantes pela compensação e
despeção-se de ante-mão
de tudo quanto fôr agua mais ou menos potavel.
Por emquanto goza-se junto áquelle bello ribeirão
de
todas as vantagens de um excellente pouso: frescor constante,
vista sempre amena de pura lympha, bonita mataria
e um pouco além excellente pastagem para animaes.
Quem viaja pelo interior dos sertões deve penetrar-se
[20]
da importancia d'essa condição, para que o pouso
mereça
escolha. Reduzidas, ha muito, pela falta de milho,
á simples alimentação herbacea, as
nossas cavalgaduras
não apresentavão fórmas para poderem
figurar em torneios,
e, a não ser o receio de descahir de assumpto, fallariamos
por extenso nos nossos transes em poupal-as e
nas
difficuldades em que nos vimos, logo nos primeiros dias
de viagem, pela morte de uma d'ellas.
O nosso microcosmo indispensavel á vida, bem que o
mais diminuto possivel, não podia soffrer córtes
e a
carga, que ficava por terra pelo afracamento de um
animal, era imparcialmente repartida pelos restantes.
Curvavão-se sob o peso de cargas babylonicas,
porém
avançavão sempre.
Começando já a avistar a cadêa de
Maracajú, fomos,
do ribeirão da Mata, cortando bonitas pradarias, mais ou
menos accidentadas, ornadas, de quando em quando, por
esses grupos de bella vegetação, a que
chamão
capões[12].
Devidos á acção da humidade,
são quasi sempre orlados
por fileiras de
boritys, que
misturão agradavelmente os
seus leques á folhagem tão diversa das
dicotyledoneas.
Os terrenos continuão seccos, argilo-silicosos; de vez
em quando algum atoleiro, algumas braças inundadas
que fazião já termos por certo a
approximação dos tão
temidos pantanaes. Entretanto só os deviamos atravessar
poucas legoas áquem do rio Negro e além....
sempre.
Com uma legoa de marcha passámos o
ribeirão Claro,
[21]
que bem merece esse nome pela alvura de suas aguas rapidas
e encachoeiradas.
O desbastamento das margens concorre para que essa
côr não seja alterada pela reflexão do
verde escuro das
arvores. Um unico
bority, direito
como um mastro, coroado
pelas flabelladas palmas, erguia-se garboso no seu
isolamento. A sua posição especial o condemnava
naturalmente
aos olhos de quem intentasse lançar um pontilhão
para o transito; não escapou pois aos machados,
quando nossos collegas vierão preparando o caminho para
a descida da força sobre Miranda. A utilidade artistica
não o pôde salvar.
Mais além encontrámos outra corrente de agua,
ainda
mais bella que as precedentes: o
ribeirão
Verde, que
corre, com velocidade consideravel, por entre margens
altas, cobertas de sombria e espessa mataria. O leito
de grandes lages, forradas de limo, e a folhagem basta,
dão ás aguas crystallinas a apparencia que serve
para
aquella denominação.
O lugar é encantador: massas liquidas de um bello
verde se deslisão prestesmente, galgando as pedras desiguaes
que tapetão o alveo, e precipitão-se, de um
degráo,
n'uma bacia bastante regular, que recebe a quéda. Grandes
bandos de peixinhos dourados e
pirapitangas brincão
entre as rochas, cortando rapidamente a correnteza, quando
envolvidos no turbilhão de aguas.
A disposição de espirito necessaria para dar o
devido
apreço a essas bellezas, não se achava em
nós. A passagem
a váo, difficultosa para os nossos animaes de
sella, tornou-se quasi impossivel para os cargueiros, que,
[22]
aos tombos e mergulhando as canastras, transpuzerão,
á
custa de muitos esforços, o ribeirão. E
aprecie-se assim
a natureza!
Á noute, felizmente depois de acampados, copiosa chuva,
como nos mais dias, veio avivar-nos a lembrança de
que estavamos na estação das aguas.
Malditas aguas!
CAPITULO II
A manhã levantou-se serena e bella. Ao longe
resplandecião
de novo verdor os prados: o ribeirão engrossado,
bem que sempre limpido, rolava bramantes cachões de
aguas esverdeadas e o frescor agradavel da natureza, depois
da trovoada da vespera, tornava o sitio tão magicamente
aprazivel, que se ergueu, no fundo de nossas almas,
um hymno de gratidão ao Creador. Entretanto, d'ahi a
pouco, a reunião dos nossos animaes veio arrancar-nos da
contemplação de scena tão
louçã e nunca se devem dar
poucas graças aos céos clementes, quando se os
encontrão
ás horas propicias.
Away pois!
Para medirmos com alguma exactidão as distancias, que
tinhão de ser ministradas ao commando das forças,
viamo-nos
obrigados a acompanhar um dos cargueiros que nos
dava a maior uniformidade de movimento. A
estimativa
[24]
era a media do tempo
gasto em diversas observações,
para percorrer uma extensão medida, havendo sido tomado
para unidade o minuto, que achámos correspondente
a 30 braças ,355.
A nossa qualidade official não nos permittia o pouco
mais ou menos: entretanto caminhar assim, é sobre
fastidioso,
em extremo cançativo. Accresce ainda a urgencia
de não distrahir-se um momento, consultar a todo instante
o relogio, tomar nota das menores particularidades, verificar
qualquer parada e visar, de quarto em quarto de
legoa, o rumo magnetico, em que se marcha, para o que
nos servia a excellente bussola prismatica do capitão
Karter,
tão commoda e propria para esses trabalhos.
Depois de 60 minutos de marcha, passámos uma matinha
e, d'ahi a 30 minutos, outra, chamada do
Major,
por pertencer a um official da guarda nacional de Minas
d'esse posto, que explorára aquelles terrenos.
Prolonga-se essa matinha até a descida de uma abrupta
rampa escorregadia, que finda n'um corrego insignificante,
o qual se espraia n'um almargeal. Os pontos encharcados
vão-se tornando mais frequentes: ahi tivemos
uma amostrasinha de pantanal. Durante mais de 5 minutos
seguimos uma vereda aberta no capim alto, toda
coberta de agua e com um fundo de hervas entresachadas,
que tivemos algum trabalho em vencer.
Com a menor secca acaba esse alagadiço, que se
fórma
tambem logo ás primeiras chuvas, devido ao represamento,
n'uma pequena extensão, de aguas, por dous firmes
de terra.
Depois de nova mata e novo charco, o terreno começa
[25]
a dar mostras de pedregoso, a levantar-se sensivelmente
e afinal a subir estreitado entre massas de rochedos até a
celebre passagem do Portão de Roma.
Dous massiços erguem-se ahi, cortados a pique, um
fronteiro ao outro, deixando intermedia uma estreita trilha,
toda embaraçada com grandes lages e matosinhos.
Não sabemos a razão de tal
denominação. As difficuldades,
os espinhos de sua vereda, a aberta n'um céo anilado,
como se nos afigurava, quando subiamos a encosta e
viamos duas linhas sombrias destacarem-se na abobada
celeste, justificavão muito mais a
especificação de
Portão
do Paraiso. A menos de ligar-se á cidade
eterna um
sentimento muito especial de religiosidade, que nunca correu
naturalmente pelo espirito de quem
[13]
lhe deu o
nome, parece elle completamente deslocado n'estas paragens.
O sitio é sobremaneira agreste e sombrio.
Salvador Rosa, nas fragosidades da Calabria, não encontraria
melhor typo para seu modo artistico. Um salteador,
de arcabuz ao lado, dominando o caminho, outro
estirado sobre uma rocha lisa, á espreita,
transportarião
a scena para aquellas serranias e nem faltavão, para
completo
da côr local, os
agaves
(pita
[14]),
que surgião por
entre as fendas, nem a
figueira
tenaz, a qual, agarrada
ás asperezas da pedra, estirava grossos ramos sobre a
senda.
Os paraguayos fizerão rolar as carretas de artilharia
por essa passagem difficultosissima, que obrigou, para o
[26]
transito das forças, a um prévio trabalho, feito
pelos engenheiros.
Considerado debaixo do ponto de vista scientifico, o
Portão de Roma é uma aberta praticada pelas aguas
em
rochas metamorphicas. Todos os rochedos dos lados e
leito da trilha, são de grés argiloso concreto. A
verdade
tornou-se-nos bem patente, quando, depois de margearmos
um pequeno pantanal, subimos o monticulo fronteiro ao
alcantil do Portão. Ao longe divisavamos uma serie de
montes encadeados, que trazião na superficie diversas
linhas continuadas parallelas, as quaes, segundo parece-nos,
mostrão as differentes alturas a que
tocárão as
aguas de um antigo lago geologico, que outr'ora aquella
bacia encerrou.
Nos cumulos que forão cobertos de todo e depois rapidamente
deixados pela massa liquida, apresentão-se
erosões profundas e córtes a prumo, como os que
acabavamos
de apreciar.
A mesma disposição de rochedos acha-se no
Lageadinho,
onde acampámos n'esse dia (16) junto a um fio de
agua que se deslisava por sobre um chão de pedras, indo
de quéda em quéda, perder-se na varzea proxima.
Procuravamos sempre seguir os pousos que as forças,
pelas nossas recommendações, devessem escolher:
assim
proporcionavamos, de antemão, as marchas e attendiamos
ás conveniencias dos acampamentos futuros.
Do ribeirão Verde ao Lageadinho tinhamos caminhado
duas legoas e um quarto, e, pela natureza do terreno e
impedimentos com que se podião contar, era marcha
já
penosa. Soubemos comtudo, ao depois, que, por ter seccado
[27]
aquelle lagrimal, contra as informações que
haviamos
colhido, prolongára-se ella uma legoa além.
No Lageadinho a abundancia de guabirobas (eugenias)
forneceu-nos excellentes fructosinhos. Entre todas faremos
especial menção da
guavyra[15],
cujo fructo assucarado
tem sabor mais agradavel e menos adstringente
que o araçá de corôa e é
sobretudo muito maior em
dimensão.
É um arbusto baixo, de folhas largas, tronco pardacento
claro.
Diversas especies de guabirobas ahi se vião, umas do
tamanho de plantas fruticulosas, outras frutescentes; umas
com fructos miudinhos amarellados, outras com bagas
maiores, d'aquella côr ou ainda, esverdeadas.
Á tarde, como de costume, cahio copiosa chuva. Amainou
promptamente. Depois d'ella, descambou o sol por
traz de nuvens rôxas, orladas de fimbrias de ouro e prata,
que, por largo tempo, atirárão lindos reflexos
sobre as
campinas, até se confundirem com os pallidos
clarões da
lua, a qual illuminou, com baça luz, os negros penhascos,
portaes d'aquella entrada colossal, com que defrontavamos.
Deixando o Lageadinho, fomos, com tres e meia legoas,
acampar junto ao corrego da Volta, atravessando
sempre campos virentes, cortados ora por fios de agua
alimentados pelas chuvas, ora por matasinhas e capões que
vão apparecendo mais frequentemente, á medida que
raleão
os cerrados.
[28]
Tinhamos dividido a extensão a viajar. Ao meio dia,
depois de duas legoas, descançámos junto ao
corrego,
chamado do Castelhano, por ter ahi sido, segundo nos
disserão os soldados, fuzilado um official paraguayo na
occasião da excursão ao Coxim.
Repousámos debaixo da folhosa coberta de uma lixeira
(dilleniacea
[16]),
para comermos um pseudo-jantar, em nada
conforme ás regras de Berchoux
[17].
.... tu, Tityre, lentus
in umbrâ, etc.
Tambem os gastronomos nunca imaginárão a
possibilidade
de figurar em idyllios, sobretudo a modo dos nossos,
e tal vida não comporta exigencias culinarias.
N'esses casos, quanto mais simples o manjar, tanto
mais aturavel. Assim um pedaço de carne, fisgada n'um
espeto de páo, um pouco de sal, fórmão
um
churrasco
appetitoso que se come com grande gosto, quando o
acompanhão algumas colheres de farinha.
No Coxim, comiamos pura e simplesmente o churrasco:
o habito custára-nos a adquirir, mas o organismo
accommodára-se.
Com a tarde, continuámos viagem, percorrendo mais
légoa e meia até uma matinha que o já
citado corrego
da Volta atravessa. Obrigados pela noute, armámos
barracas.... «
Suadentque cadentia sidera
somnos». Infelizmente
nuvens de mosquitos se alvoroçárão ao
derredor
[29]
dos ouvidos, perturbando as doces consequencias de
um somno reparador, ao passo que imprecações de
continuo
levantavão-se do grupo dos nossos camaradas, a
despeito da fogueira colossal que havião preparado. Assim
pois, decidimos nunca mais acampar dentro de matas,
abandonando além d'isso aquelle modo de viajar que, sobre
não dar o descanço preciso aos animaes, fatiga-os
com
excesso pelo facto de receberem cargas e serem descarregados
quatro vezes seguidamente.
Reunida a nossa recovagem, démos, no dia seguinte,
começo á viagem habitual, passando, d'ahi a hora
e
quarto, o bonito corrego do Perdigão, assim chamado, do
nome de um sertanejo que levantára uma choupana junto
á sua margem esquerda.
Muitas e bonitas macaúbas
[18]
dominão o baixo
matagal
que as cérca, vencendo-as em altura um grupo de
boritys, cujos fructos
attrahião innumeros bandos de aráras,
umas todas azues
[19],
outras de papo vermelho
[20]
ou amarello alaranjado
[21].
A mais que modesta habitação de
Perdigão não escapou
á furia incendiadora dos paraguayos, ficando como
vestigios os esteios carburetados. Ainda sobrevivião
á invasão
do mato alguns restos de cultura e poucos pés de
quingombôs (hibiscus esculentus), e algodoeiros (gossypium),
[30]
entre aboboreiras e pés de melancia (cucurbita
citrullus) resistião ao abandono.
O que levára aquelle pobre fugitivo da sociedade a
procurar tão remotos sertões, pisados a vez
primeira pela
planta de seu pé, abandonando os povoados, alheio a
todo o resto do mundo, vivendo vida de exilado? Fôra
a necessidade para, por tal preço, obter a impunidade,
ou o espirito melancolico de retiramento? Ainda
ahi não se achou em salvo: os invasores paraguayos
topárão a trilhada que elle abrira e o
expulsárão de seus
dominios pacificos e incontestados.
Hoje aquella trilha é caminho muito seguido, dando
passagem contínua a viajantes, carros e lotes de animaes,
de modo que o anachoreta Perdigão deve procurar
novos desertos onde vá a gosto
«
placatâ omnia mente
tueri», na phrase de Lucrecio.
Do corrego do Perdigão, levou-nos a trilha, depois de 41
minutos de marcha, á mata que intitulámos das
Jaós[22],
pelos incessantes pios que denunciavão ahi a
presença
d'aquellas aves. É uma gallinacea, do tamanho de um frango,
sem cauda, de côr pardacenta clara: anda commummente
em terra, dando, como a perdiz, um vôo horisontal
e pouco prolongado: a carne é alva e muito delicada.
O seu pio começa por uma nota destacada e alta, a
que succedem, com intervallo de dous a tres segundos,
tres outras rapidas e mais baixas.
[31]
N'essa mata havião os paraguayos deixado uma
barcaça
(
nota D), que vinhão
puxando desde o rio Aquidauana,
para os casos de passagens de rios: media 45
palmos de comprimento e 4 de boca.
Achando-se em bom estado, com mui pequenas
reparações,
podia perfeitamente servir para as forças, quando
chegassem á margem direita do rio Negro.
N'esse dia fomos, sem chuva, acampar, depois de 2
1⁄4
legoas de marcha, perto do corrego
Fundo, que obrigou-nos
á parada pelo estado atoladiço de suas margens,
posto
que a quantidade de boritys não tornasse difficil o
lançamento
de um pontilhão, para nos dar segura passagem.
Entre o capim crescia ahi uma linda
orchidea terrestre
cuja flôr de um rôxo suave, apresentava a massa
pollinica
pulverulenta, caracter particular á tribu das
neottias
de Lindley.
Reconhecemos tambem nos campos uma
scrophularinea
de flôr esverdeada, e uma
bignoniacea, com caule um
tanto sarmentoso, a qual expandia lindas flôres,
côr
solferino
(carmesim ligeiramente roxeado) que vimos depois
com admiração nos pantanaes, como adiante o
diremos.
Nos cerrados repetem-se os typos com frequencia: mangabeiras
(hancornia speciosa, Gomez) com suas candidas
flôres hypocrateriformes, muitas myrtaceas,
lixeiras, grandes
e pequenas
[23]
(dilleniaceas), etc., etc. Entretanto o
aspecto de todos elles é muito mais vistoso, continuando
a predominar em numero os
araticús (anonaceas).
[32]
Na margem esquerda do rio Negrinho, a tres legoas do
corrego Fundo, as quaes constituírão a marcha do
dia 18,
acampámos debaixo de magnifica cópa de folhudas
arvores,
formando um excellente pouso, se não fossemos atormentados
pelos muitos
mosquitos,
muriçócas ou
pernilongos.
Obrigava as vistas uma bella figueira, com volumoso
tronco, ao lado de uma
pitombeira[24],
que deu-nos
excellentes
fructinhos, e a cujos pés florescia uma
cofœa
ostentando, nas suas flôres azues, um brilho metallico
muito especial.
O rio Negrinho, entre margens sempre umbrosas, vai
perto confundir suas aguas com as do rio Negro, trasbordando
com extrema facilidade, depois de algumas chuvas
e inundando as cercanias. Perto d'elle, haviamos
atravessado algumas braças de pessimo transito, pois
que o caminho vara por um aguaçal com fundo lodoso.
A côr sombria do capim, a tarde que descahia depois
de um dia toldado de nuvens e chuvoso, os comoros
pardacentos de cupins, tornavão aquella natureza tristonha
e melancolica em extremo.
O rio Negrinho não dava commodo váo:
passámos por
cima de uma pinguela natural que a quéda de um grosso
madeiro formára, transportando as nossas cargas
ás costas.
Depois de legoa e meia, feita em terrenos já bastante
encharcados, ás vezes por extensos almargeaes
[25], outras
por matas, em que existem bastantemente os
aucurys[33]
(palmeiras de folha estreita) chegámos ao
Potreiro, onde
um grande rancho de palha abrigou-nos contra a chuva,
que começava a cahir e promettia dever de durar.
O Potreiro é um vallesinho, fechado quasi circularmente,
por dous ramos da serra de Maracajú, a qual
vinhamos avistando, havia mais de dez legoas.
Era ahi que se fazia a reunião do gado, pertencente ao
cidadão Alves Ribeiro, com destino ao acampamento do
Coxim e cuja obtenção, pela falta de cavalhada,
ia se
tornando cada vez mais custosa.
O lugar é insalubre, em razão da humidade que
ressumbra
constantemente do solo: por isso a estada n'esse
ponto, prolongada por mais de mez, foi extremamente
nociva ás forças, sobretudo quando as aguas, em
Maio,
contra a expectação, attingirão ao
maximo crescimento,
nos pantanaes.
No Potreiro organisámos os trabalhos, que deviamos enviar
ao commandante das forças: traçámos o
caminho topographicamente,
acompanhando-o uma ligeira memoria
descriptiva, que marcava os pousos e os lugares, onde se
tornavão precisos alguns melhoramentos.
O caminho, como já o havemos feito sentir, é uma
simples
trilha. De natureza argilo-silicosa (época terciaria),
póde ser considerado secco, com
excepção de alguns pontos,
que serião facilmente transpostos. Com exclusão
do
Portão de Roma, proximidades do Lageadinho, margens
de corregos e ribeirões, os declives são sempre
bons.
Refazendo-nos de forças e tomando provisão de
carne,
deixámos o Potreiro no dia 26 de Fevereiro, para
dirigirmo-nos
á passagem do rio Negro, onde começava a
[34]
vereda, que dizião ter sido deixada por alguns fugitivos
de Miranda.
Ahi nascião tambem as incertezas; dominava a
indecisão.
Sem guia, iamos correr risco de uma exploração
que nos parecia, como realmente o foi, penosissima,
cheia de perigos e sobretudo infructifera.
CAPITULO III
A nossa verdadeira missão ia ter principio. Verificar
a possibilidade de uma passagem, até o Aquidauana, no
tempo das aguas, quando os pantanaes se tornão
intransitaveis,
seguir, ao longo da serra de Maracajú, uma pretendida
senda, que fugitivos havião aberto; observar a natureza
dos terrenos e os obstaculos que pudessem impedir
a descida das forças nos mezes de Abril e Maio, continuar
ainda mais a exploração até o rio
Aquidauana, cuja margem
esquerda estava occupada pelo inimigo, apromptar os meios
de passagem para aquelle rio, era o nosso programma, vasto
e brilhante, importando não pequena responsabilidade, mas
cuja boa execução principalmente dependia de
meios, que
não nos tinhão sido ministrados. Oito soldados
nos acompanhavão
e, d'esses, nenhum tinha conhecimento da tal
passagem, aliás com rações,
sómente para onze dias, e
armados com fuzis de pederneira, nos quaes as balas só
entravão partidas!
[36]
Um unico machado era propriedade nossa particular.
As chuvas que não cessavão, cahindo de continuo
fortes
rajadas, havião arruinado, quasi totalmente, a carne
preparada
no Potreiro, de modo que, de lá, partimos com as
provisões meio esgotadas, confiados apenas no muito gado
que vaguea pelos campos, por onde deviamos passar. Iamos
viajar á tôa, esperançados em que nosso
bom fado nos
facilitasse caminho e alimento.
Era muito exigir.
Não procuravamos, nem mereciamos a terra de
Promissão;
nunca nos guiou portanto a nuvem de fogo, nunca
nos cahio o manná de Jehovah.
Desde a sahida do Potreiro, comprehendemos as difficuldades
que nos esperavão, e forão desde logo se
complicando.
As terras, já nimiamente baixas, apresentavão
grandes
extensões completamente alagadas, a que se
seguião matas
de
aucurys (
nota E),
onde a humidade
continua mantinha
o terreno ennatado, sempre lodacento, que nos custou boas
horas para vencer.
A trilha ia, além de tudo, tornando-se cada vez mais
apagada: as
taquaras, nos cerrados,
cruzavão-se emmaranhadas,
deixando apenas passagem para pedestres; nas
varzeas, a agua já era muita e as abertas indecisas.
Viagem fadigosa, em que se descarregavão incessantemente
os cargueiros, vencendo depois de um dia completo
de marcha, legoa e meia tão sómente!
Quasi ao cahir a noute, acossados logo dos mosquitos,
entravamos na mata do rio Negro, quando nos deteve os
passos uma
corixa (
nota
F), fonte de
novas contrariedades.
[37]
Esta
corixa dava nado em toda sua
extensão, obrigando-nos
a fazer
pelotas, que
devião transportar nossas
cargas. Nada mais expedito: um couro bem secco, levantado
nas quatro pontas, que se ligão por cordeis ou
tiras, recebe os pesos que, são solidamente amarrados, de
modo a formarem um systema immovel, em cima do qual
assenta-se o passageiro, como melhor puder. Depois de
lançada á agua com todo o cuidado, atira-se um
nadador
á frente da pelota, levando entre os dentes a cordinha
que a guia, ao passo que um segundo ajuda a mantel-a
na boa direcção, empurrando-a de quando em
quando.
A impressão que recebe o viajante bisonho, ao sentir-se
em tão singular embarcação,
é profunda; parece-lhe que, a
lodo momento, o fragil bóte improvisado vai submergindo-se
pouco a pouco e que a agua invade por todos os lados.
Entretanto depois passavamos, com perfeita tranquillidade,
não as mansas aguas de corixas, mas a forte correnteza
de rios caudalosos, em pelotas que levavão para
mais de seis arrobas: tal era a confiança que nos inspirava
a pericia natatoria dos irmãos Campos Leite, homens
preciosos para esse serviço e incansaveis.
O tempo que haviamos gasto na transposição d'essa
corixa,
fez com que chegassemos, com a noute já fechada,
á
margem direita do rio Negro, e, muito depois de nós os
animaes de carga e camaradas.
A lua veio então esclarecer a nossa
posição, que podia,
por momentos, tornar-se muito critica.
De nivel com a margem, corria furioso o rio, parecendo
dever trasbordar e invadir o terreno, em que contavamos
passar a noute; e a rapidez das aguas, a mataria baixa,
[38]
com vestigios recentes de uma d'essas temiveis cheias,
não pouco nos inquietavão.
Entretanto imaginámos expedientes, que, salvando-nos
momentaneamente, não nos promettião agradavel
perspectiva:
soltar os animaes, suspender as canastras e mais
objectos nas arvores mais altas, procurando nós mesmos
refugio na rama extrema.
Tivemos crueis momentos de anxiedade.
Por isso, com prazer immenso, indescriptivel, ouvimos
um dos soldados gritar: o rio está baixando!
Corremos todos a examinal-o.
A descensão das aguas era, na realidade, sensivel aos
olhos: em breve, deixárão meio palmo descoberto,
minutos
depois, dous palmos e, d'ahi a pouco, meia braça. A
facilidade, com que se davão essas
oscillações, demonstrão
a proximidade das cabeceiras: com effeito, a pouca distancia
ficava a serra, d'onde procedem as nascentes do rio.
Á hora em que nos recolhemos, elle baixára mais
de
braça e, no dia seguinte, as margens estavão
barrancosas,
como o são normalmente.
O rio Negro apresenta ahi 20 a 30 braças de largura:
a velocidade é de 3 a 4 palmos por segundo, profundidade
de 10 a 12, não fazendo váo em parte alguma.
Depois de um curso muito irregular por terrenos empantanados,
recebe o Tabôco, e, ora entre margens, ora
espraiando-se pelos campos, vai ter ao rio Paraguay.
As suas proximidades são perigosas pelos paúes,
que com
elle visinhão: as febres intermittentes, paludosas e outras
graves enfermidades originão-se ahi dos miasmas deleterios,
produzidos pela acção solar sobre os depositos
vegetaes
[39]
que as enchentes atirão nos campos e
abandonão,
quando dá-se o escoamento das aguas.
Na etiologia da molestia, que grassou na força e a dizimou,
depois da sua estada junto ao rio Negro, a—paralysia
dos membros inferiores ou paraplegia—, devem ser
assignalados o ar humido e vapores corruptos, que, por
mais de mez, respirárão aquelles que se
achárão debaixo
de sua perniciosa influencia.
O chão, sobre que assentava o acampamento geral, era
uma verdadeira
turbeira: com poucos
palmos de profundidade,
tiravão os soldados, junto ás barrancas, agua, de
poças d'onde sahião páos, que,
seccados, servião para alimentar
o fogo de suas modestas cosinhas.
Mais tarde fallaremos, com algum desenvolvimento,
n'essa enfermidade, que roubou-nos tantos companheiros,
n'um curto intervallo de tempo.
Passámos o rio Negro em pelotas, e, ás 10 horas
do
dia 26 de Fevereiro, achavamo-nos na sua margem esquerda,
n'uma estreita trilha que devia-nos guiar, sempre
em
rumo certo,
asseverára-nos na vespera,
seriamente,
um indio do Potreiro.
O tal aborigene não professava os principios de Epaminondas:
entretanto, ainda n'aquelle dia, davamos á sua
asserção toda a fé, a estimavamos
valiosa,
«N'aquelle engano d'alma,
ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito.»
Fomos acampar junto á serra que, a 500 braças do
rio,
ergue-se empinada; e ahi aproveitámos o sol para seccar
[40]
as nossas roupas, que tinhão-se ensopado em diversos
mergulhos de canastra, nos alagadiços.
Diante de nós abrião-se os campos
além, com cerrados
ao longe; á nossa direita, havia um matosinho com olhos
d'agua, e, á esquerda, levantava-se uma serrania elevada,
cujos cabeços mais proximos reflectião ao sol,
grandes
quebradas vermelho-rubras, confundindo-se os mais afastados,
n'uma linha continua, com o azul do céo.
A serra de
Maracajú[26]
percorre a direcção constante,
media de N. N. E. a S. S. O., desde perto do Piquiry até
as ramificações na republica do Paraguay e na
provincia
do Paraná. Interrompida de quando em quando, ás
vezes
seguida, e com alturas diversas, destaca ramos, que correm,
ou parallelamente, ou ainda perpendicularmente, como
o vimos no Potreiro.
A sua estructura geologica é de grés argiloso,
compacto
em certos pontos; tendo soffrido a acção de
aguas, manifestada,
em muitos lugares, pelas extensas linhas parallelas,
como já o haviamos observado na serra da Cabelleira,
em Goyaz, e em todos os serrotes do caminho do
Coxim.
É evidente que o lago, cuja existencia parece-nos
[27]
tão claramente patenteada, tomava
proporções de mediterraneo,
[41]
á vista da extensão occupada, e o
estudo comparativo
das diversas alturas, que se notão n'essas differentes
cadêas, deve trazer resultados interessantes, dando
certeza scientifica n'esta curiosa questão.
A serra de Maracajú não foi, de certo, resultado
de
erupção, mas sim de levantamento, devido a algum
terremoto,
das camadas da região que a cerca, e que apresenta
os mesmos typos geologicos.
A vegetação acompanha as dobras e declives da
serra
até o topo: só os pedaços de
desaggregação achão-se desnudados.
O aspecto que esses pontos apresentão, é quasi
sempre
regular: ora, são córtes a pique, ora,
fórmas abauladas;
algumas vezes, á semelhança de arcos com
irradiações,
outras, traços continuados e dispostos parallelamente: a
côr é visivelmente de barro, a
disposição schistosa.
Existe controversia sobre o nome que deva ter essa cadêa
de montanha: para uns é a serra de Amambahy
[28],
para outros, de Maracajú. Parece-nos que o primeiro nome
só póde convir á sua parte meridional,
quando dá nascimento
ao rio d'aquelle nome, antes de penetrar no territorio
da republica e de estender os seus braços para as
provincias do Paraná e Rio-Grande do Sul, a cujo systema
oreographico vão pertencer.
No primeiro pouso junto á serra, verificámos que
o
[42]
nosso ultimo pedaço de carne estava arruinado: comemos
comtudo um saboroso churrasco de queixada, morto na
vespera, cujos restos forão devorados pelos nossos
camaradas.
Embaidos com esperanças no muito gado, não
consideravamos
então o perigo de nossa situação e
adormecemos
com a doce persuasão, que em breve concluiriamos
aquella peregrinação.
No dia seguinte (27) puzemo-nos em marcha, encontrando,
logo ao sahir, tres a quatro trilhas, que levavão
para direcções mui differentes.
Seguindo, ao acaso, por uma d'ellas, fomos esbarrar
n'um pantanal: tomando outra, de volta ao ponto de partida,
fomos ter a um matagal impenetravel. Comprehendemos
então, que erão ellas formadas pelas pisadas do
gado, que deviamos só confiar na bussola, e, quanto
nos fosse possivel, ir cortando sempre a rumo sul.
Essa marcha, cançativa para nossos animaes e sobretudo
para os homens que nos acompanhavão de pé,
não
pôde prolongar-se por muito tempo, pela grande quantidade
de
sapé cortante
(anatherium bicorne) e
cragoatás
(bromelia spinosa).
Esbarrámos de novo com uma mata fechada de
mimosaceas
espinhosas, que foi necessario rodear, depois de
perdermos muito tempo.
Logo depois atravessámos uma campina, coberta por
gramineas mui rasteiras, na qual gastámos mais de uma
hora, pela natureza do chão fôfo, em que se
atolavão os
animaes. Observámos que, n'aquellas pradarias perfidas,
não se nota o rasto de nenhum animal, e que, por instincto,
[43]
procurão sempre desviar-se d'ellas, percorrendo
uma fita mais solida, intermedia entre o campo e os
bosques, que bordão a fralda da serra.
Essa zona, além de difficultosa, a unica viavel, offerece
desvios mui longos, voltas muito extensas, de modo que,
para marcharmos um quarto de legoa, na boa
direcção S.,
faziamos tres quartos, virando quasi sempre para L., mas
raras vezes a O.
A viagem, assim em zig-zag, tornava-se muito monotona;
pois que, tomando ponto de referencia em alguns
dos cabeços da serra, sempre os viamos na mesma
posição
em que os tinhamos observado.
Desanimados, sem róta certa nem esperança de a
encontrarmos,
acampámos, quasi ao anoitecer, n'uma varzea,
não muito humida, despida de arvores, a que
chamão
barreiro.
São campos salinos, em que se fórmão
poças de agua
notavelmente salgada, com sabor muito apreciavel para os
animaes, que ahi se reunem, em grande quantidade, não
só mammiferos como aves.
Uma graminea pardacenta, muito baixa, que parece
vegetar com difficuldade, algumas
synanthereas, espalhadas
aqui e acolá, e poucos pés de
mimosas, constituem o
aspecto botanico d'esses barreiros. Ás vezes tambem apparece
uma bignoniacea, o
para-tudo[29],
principalmente
para os lados do Apa e norte da republica do Paraguay.
[44]
N'esse barreiro vimos innumeras pégádas de gado.
Ao
longe mugião rezes, acordando em nós a
esperança de
fazer caçada proveitosa, pois que confiavamos na certeza
dos tiros de nossos soldados.
«Desejos sempre
vãos, reaes só
dôres!»
D'ahi a horas, voltárão os caçadores,
cabisbaixos, merencorios:
nenhuma pontaria acertára. O gado, bravio em extremo,
fugia apenas presentia qualquer vulto e sua
obtenção,
por arma de fogo, tornava-se tão difficil, quanto a de
qualquer
animal das selvas. Refreando as redeas á appetencia, que
se havia despertado ao som dos tiros, para melhores
occasiões,
passámos a noite, impacientes pela manhã.
Entretanto
esse primeiro dia devia de ser o resumo de toda a
nossa viagem.
A narrativa de infelicidades sempre uniformes não
póde
de certo affectar senão uma fórma descriptiva,
cuja prolongação
hade impreterivelmente tocar, tão de perto, os
dominios da monotonia, que a repercussão é
infallivel no
espirito do leitor.
Consideremos, pois, as miserias por alto, englobadamente
e apressemos a narração, que não deixa
de ser custosa.
Fiquem os soffrimentos por minutos, por segundos, aos
que lhes sentirão os espinhos.
Em todos os dias subsequentes, andámos perdidos; ora,
estacados por muitos dias em pousos, á espera de nossos
animaes que fugião, 6 e 7 legoas atraz, perseguidos dos
mosqui
Em todos os dias subsequentes, andámos perdidos; ora,
estacados por muitos dias em pousos, á espera de nossos
animaes que fugião, 6 e 7 legoas atraz, perseguidos dos
mosquitos; ora, caminhando por cerrados inundados, ora
abrindo veredas em taquaraes, que afinal nos obrigavão a
[45]
retroceder, ora emfim, rodeando as campinas, de que fallámos
já, cahindo, para distracção, em
grandes pantanaes.
A zona que percorriamos era uma baixada, alagada pelas
aguas da serra e estreitada por duas lombas; uma junto
ao monte, coberta de
taquarissima e
aucurys e a outra
fronteira com cerrados, que não podiamos alcançar
em
razão dos pantanaes, que encontravamos, apenas tentavamos
descer.
Aquella região é a mais ingrata possivel.
Com o gado, que entretanto avistavamos, pastando em
grandes manadas, não podiamos mais contar: milhares de
decepções tinhão-nos convencido da
impossibilidade em
obtel-o.
Tudo nos corria em contrario: nenhum fructo, a agua
pessima e sempre quente: os nossos animaes afracando,
outros fugidos, nós completamente perdidos e arcando,
desde muitos dias, não com essa falta de
alimentação que
haviamos anteriormente sentido no Coxim, mas com a
verdadeira
fome, descarnada e
horrorosa.
Sustentavamo-nos com duas chicaras de chá, uma ao sahir
do pouso, outra ao anoitecer, medidas e reguladas, em
attenção ao terrivel
ámanhã.
Os soldados chupavão miolo
[30]
de macaubeiros;
comião
jatobás[31]
verdes, cujo
sabor desagradavel sobrepuja ao
cheiro nauseabundo.
[46]
Esses nossos fieis companheiros de viagem e soffrimentos
trazião-nos sempre, com admiravel lealdade, a sua
insufficiente
colheita de fructos.
N'esse estado de depauperamento de forças, a anorexia
era completa; custára-nos apenas o primeiro dia de fome,
nos outros, sentiamos nauseas, syncopes frequentes e completa
turbação de vista.
Entretanto nunca o desanimo pairou sobre nós. Como
n'um naufragio, procuravamos, luctando e debatendo-nos,
uma sahida para essa crise.
Abandonámos cargas e canastras no mato.
Alliviando os animaes, que nos restavão, caminhavamos
sem cessar, apezar do estado de fraqueza que nos acabrunhava,
interrogando as menores treitas, consultando a
cada momento o horisonte, fazendo continuo fogo sobre
rezes, cuja vida illesa ficava garantida pelo nosso
caiporismo...
e, sobretudo, pela distancia, em que erão atiradas.
Oito dias d'esse martyrio ingente que nos esgotava as
forças, havião-se passado, nos quaes
só tinhamos vencido
onze legoas.
Decidimos, tomando para O., ir cahir na parte conhecida
do pantanal, embora estivesse ella completamente coberta
pelas aguas. Não podiamos continuar semelhante
viagem, debaixo de auspicios tão negros e terriveis;
não
deviamos, sem grave imprudencia, teimar em achar caminho,
por onde só havião passado algumas pessoas,
acossadas
do inimigo, e occultando os signaes de sua fuga.
Assim, pois, voltando as costas á serra, seguimos por
uma trilha firme de gado, em direcção ao poente,
caminhando
n'este rumo mais de uma legoa.
[47]
Encontrámos, com alegria estrondosa, córtes nas
arvores,
que significavão a passagem recente de um homem. Ainda
mais, esbarrámos n'um pouso de fugitivos abandonado, e,
o que é melhor, com um mato de palmeiras, que nos
derão palmitos e côcos.
A agua excellente de um corrego e aquelles ingredientes
formárão uma refeição
solemne, com a qual surgio
em nós a esperança de podermos ter outras
melhores:
vestibulo para momentos mais suaves, a que tinhamos
feito completo jus.
CAPITULO IV
No dia 4 de Março, pelas onze horas da manhã,
alcançámos
o caminho do pantanal.
Haviamos, na nossa digressão, escapado aos
alagadiços do
rio Negro, que davão nado, e restava-nos a parte mais
secca, para chegarmos ao Tabôco e, com facilidade,
á aldêa
da Piranhinha, d'onde deviamos ir ter aos Morros.
Esta parte, mais enxuta, apresentava comtudo uma profundidade
em aguas, que nos incommodava sobremaneira.
Viajando continuamente com as botas molhadas, chegámos
ao pouso da Piuva
[32],
onde um soldado conseguio emfim.....
matar uma rez.
A rapidez, com que foi ella esquartejada, a fogueira, que
chammejou logo, atirando ardente calor sobre immensos
pedaços de carne espetados, o olhar devorador de todos,
[50]
a impaciencia que obrigava a comer partes semi-crúas,
attestárão
a importancia d'esse tiro abençoado.
Julgavamos, eu e o meu companheiro, dever de ter
appetite feroz, como o dos soldados: entretanto, nossos estomagos
mais delicados, mal podérão aceitar uma minima
porção da alimentação
necessaria.
Apraziamo-nos, porém, em apreciar o movimento continuo
das facas, o trabalho incessante dos queixos que
funccionavão, depois de tantos dias de quasi absoluto
descanço,
a modo das mandibulas dos heróes pantaguelicos
de Rabelais.
Durante toda a noite não se cessou de comer.
A fogueira, de continuo, assava
churrascos, que
desapparecião
fantasmagoricamente e despedia, sobre aquelle
grupo faminto, reflexos, que fazião reluzir a avidez de
seus olhares, a sofreguidão de sua
occupação.
A manhã de 5 pareceu-nos mais risonha.
O aspecto das cousas havia-se modificado radicalmente e
podiamo-nos considerar salvos do perigo imminente.
Então, por uma das prerogativas felizes do espirito
humano—a
reluctancia ás reminiscencias desagradaveis—os
tempos de desgraça parecia-nos se tinhão passado
em
época mui remota, talvez nos dominios de tétrico
sonho.
Só cuidavamos no presente, que se abria para um futuro
de doces compensações.
Accresceu á nossa satisfação um pucaro
de delicioso
mel de
jaty (
Nota G),
que nos trouxe
um camarada.
N'aquelles cerrados havia grande abundancia de colmêas,
e, d'ahi por diante, podiamos adoçar alguma
bebida.
[51]
Até a margem direita do rio Tabôco, o terreno todo
constitue, com pequenos intervallos, um pantanal de muitas
legoas de extensão, o qual nos não custou,
comtudo,
muitos dias de viagem, pela firmeza da trilha em que
se anda.
No principio das aguas e no seu final, pelo embeber
das terras e depois pelo seu deseccamento lento, o transito
é mais penoso, quando a natureza do sólo
não se
opponha á formação de atoleiros e
tremedaes
[33],
como em
alguns pontos em que prevalece o elemento arenoso.
Os pantanaes, no districto de Miranda, produzidos, como
dissemos atraz, durante a estação chuvosa, pelo
trasbordar
de todos os rios, ribeirões, corregos e regatos, que
cortão aquella zona de terreno muito baixa e plana,
estendem-se
entre o Aquidauána e o rio Negro, occupando
muitas legoas, desde a base da serra do Maracajú
até o rio
Paraguay, nas quaes, só de ponto em ponto distante, se
encontra lugar firme e secco, em alguma collina mais
elevada nas planicies.
A invasão das aguas nos campos, sensivel nos principios
de Novembro, toca ao maximo nos meiados de Fevereiro
e Março, decrescendo em Abril e escoando-se em
principios de Maio.
Esta regra, fixa para a zona que percorremos, soffre
grande alteração nas proximidades do rio
Paraguay, por
isso que, quando os rios seus tributarios já
inundárão os
[52]
campos, elle vai lentamente engrossando; trasbordando
por seu turno, quando os contingentes tendem a baixar,
dando-se o escoamento dos pantanaes de Miranda.
O caracter, que tem o trasbordamento d'aquella massa
enorme de aguas, é muito importante.
Os lugares proximos ficão completamente alagados; as
mais altas arvores, cobertas, mal deixão vêr a
extrema
rama, e grandes canôas, senão vapores,
navegão livremente,
a tres e quatro legoas de distancia do verdadeiro
alveo do Paraguay.
As enchentes, ás vezes, forção a que
os rios do districto
de Miranda sejão refluidos e despejem de novo nos
campos a agua que não encontra vasante.
N'essa occasião, a navegação faz-se
com extrema facilidade
e celeridade; as canôas cortão, como diz-se, a
rumo
certo, e abrevião de muitos dias a viagem,
sobretudo
quando ella se faz rio acima, por encontrarem aguas placidas
e dormentes, e não a correnteza contraria de um
curso veloz.
A
zinga habitual, que o barqueiro
finca no leito do rio,
para fazer caminhar a canôa, é então
substituida por compridos
páos de forquilha, para aproveitar os ramos das arvores
submersas e afastar d'elles a barquinha, na occasião
precisa.
Os pantanaes, que atravessámos, offerecem á vista
um
aspecto de vegetação com caracter particular, o
qual reproduz-se
uniformemente pelo numero limitado de generos
de plantas que resistem, em inundações
periodicas, á immersão
de suas raizes, durante mezes inteiros, e á seccura
completa, durante o resto do anno.
[53]
Monocotyledoneas, sobretudo
cyperaceas, abundão
naturalmente,
durante as aguas, e differentes especies de
capim, entre o qual
nympheaceas e
outras plantas palustres
se expandem, cobrem grandes espaços, nos quaes
só cresce um arbusto, o
mureci-penina[34]
(byrsonima
chrysophylla), unico que apparece nos verdadeiros pantanaes.
Nos campos alagados, capões e cerrados, surgem
de dentro d'agua.
Com admiração vimos lindas
convolvulaceas, cujas
flôres
azul-celestes (hypomœa) casavão-se agradavelmente
com
as corollas, côr-solferino (carmim-roxeado), de uma notavel
bignoniacea (caule sarmentoso).
Muitos grupos de
araçás,
chamados vulgarmente de corôa,
levantão-se, aqui e alli, no meio do capim.
Disserão-nos
que esses fructos produzem febres intermittentes; a razão
nos não parece clara, entretanto nenhum sertanejo deixa
de afiançar, com toda a energia, que o
araçá do pantáno[35]
dá sempre maleitas.
Observámos que, á medida que as aguas
vão subindo,
o capim desenvolve-se; razão pela qual, nas proximidades
do rio Paraguay, podem-se arrancar pés de algumas
braças
[54]
de comprimento. As abertas n'elle indicão as trilhas e
pisadas
de gado, as quaes são excellentes guias para lugares
enxutos.
O aspecto de um pantanal é profundamente melancolico:
o viajante fica possuido de um sentimento contristador,
ao atravessar aquellas paragens, em que o perigo
póde sorprehendel-o a cada instante.
O chão furta-se ás suas vistas indagadoras. O
bater monotono
dos pés dos animaes na agua, os sombrios aspectos
que o cercão, os comoros de cupins que, com escura
côr, surgem, aqui, acolá, de entre moutas de capim
pardacento,
o silencio de toda essa natureza tristonha e anormal,
acabrunhão a alma e a prostrão grandemente.
O horisonte parece acanhado: o céo como que pesa,
com curva mais abatida, sobre aquella scena de
desolação.
O sertanejo, comtudo, passa calmo e cantando: apenas,
de vez em quando, examina, debruçando-se sobre as aguas
paradas, se os perfidos enleios das hervas não lhe
impedirão
a passagem.
Muitas vezes, para um viajor novato, o receio não
é fóra
de proposito. De repente sobe a altura da agua: já toca
o sellim; mais um passo, o cobrirá—é
uma
corixa—.
Apear-se dentro d'agua, formar uma pelota para as suas
cargas, atirar-se, prestes a nado, com a corda entre os dentes,
é questão de minutos, para o prático,
e origem de
mil aborrecimentos, para quem não o fôr.
Os viventes, que se encontrão nos pantanaes,
achão-se
em relação com o seu
facies tristonho. É o
desadornado
socó, que
esvoaça pesadamente, indo pousar desairoso
sobre as torres de cupim; é o desaprasivel
tuyuyú, com o
[55]
pescoço vermelho e bico longo, que cruza-se nos ares com
o desengraçado
tabu-yáyá[36].
Alegra, de quando em quando,
a vista alguma
garça que,
com rapidez, corta o azul
do céo, estirando o elegante collo e reflectindo, ao sol, o
branco esplendido de sua plumagem; rompem, de quando
em quando, o silencio, barulhentos bandos de
patos (anas)
e
marrequinhas, que erguem custoso
vôo ao minimo ruido.
Nos firmes, as pégádas da temivel
onça pintada
não
são raras, assim como as do
tamanduá bandeira
(myrmecophaga
jubata) que encontra sobeja alimentação nos
muitos formigueiros e casas de cupins.
O gado dá-se perfeitamente no pantanal: durante o
dia, desce elle todo para os lugares inundados, porém
não
atoladiços (o que evitão com muito cuidado)
recolhendo-se,
á prima noite, para os pontos descobertos ou para os
barreiros,
onde pastão em grandes manadas.
Estas salsas pousadas constituem uma das grandes riquezas
da provincia, para a creação de rezes: ahi
achão
ellas o sal necessario para a alimentação,
tornando-se-lhes a
carne tão saborosa, que dispensa qualquer
preparação, para
ser deliciosa ao paladar.
As poças, que se fórmão nas
depressões d'aquellas regiões
salinas, contém uma agua que os animaes bebem
com avidez, voltando, de muitas legoas além, para saciarem
ahi a sêde, apezar de qualquer outra que possão
encontrar.
Já o dissemos, é um lugar curioso de
reunião: nas arvores
pousão grandes cohortes de aligeros e melodiosos cantores
[37],
[56]
ao passo que numerosos rastos de
porcos[38],
veados,
antas,
tatús, e etc.,
indicão a continua frequencia
d'esses animaes.
Assim como o homem ahi vai esperar motivos para
grandes façanhas cynegeticas, a
onça, por instinctos mais
naturaes, nunca se arreda muito d'esses lugares, tão bem
providos para os seus appetites ferozes. Bem junta ao chão,
atraz de qualquer moutasinha, prepara ella o bóte que deve
dar-lhe a posse do pobre vivente, que se colloca na sua
terrivel esphera de actividade. Obrigada a retirada cautelosa,
quando se approximão as numerosas varas de
queixadas,
vai ella mais longe esperar algum, que se atraze
e separe-se da columna respeitavel d'aquelles suinos, cujos
dentes compridos e aguçados, com razão, lhe
inspirão receios.
Nos barreiros o chão é sempre firme e, apezar de
inundado
por muitos mezes, nunca se torna atoladiço. Tinhamos
feito observação que, em todos aquelles campos,
onde
crescem as
synanthereas—perpetuas
do campo—, o terreno
é sempre estavel: de modo que, de longe, ao avistarmos
as campinas, que só differençavão-se,
por terem ou
não aquellas plantinhas, podiamos com confiança
atravessal-as
ou procuravamos cuidadosamente rodeal-as.
Poder-se-hia, com menos certeza comtudo, dizer o mesmo,
quanto a umas
mimosaceas,
indicadoras quasi sempre de
um local enxuto.
[57]
Fugiamos, pelo contrario, cautelosamente das varzeas
limpas e vistosas, em que traiçoeira e virente grama
occultava
atoleiros continuos e perigosos—
Latet anguis in
herbâ.
Custosa experiencia fez-nos observar essas particularidades,
que de muito servirão-nos, no seguimento d'aquella
viagem.
Os habitantes do sul de Mato-Grosso procurão, nas
épocas de grande carencia de sal e sua consequente e
excessiva
carestia, tirar, dos terrenos salinos, aquelle necessario
condimento, a despeito de haver difficuldade n'essa
extracção e os meios empregados serem mui
grosseiros.
Nas proximidades de Coimbra existem terrenos, já conhecidos
e explorados com vantagem, d'onde extrahe-se o chamado
sal da terra, que vende-se
completamente impuro.
Em 1855, quando as communicações terrestres,
interrompidas
pela previsão da proxima navegação do
Paraguay,
por alguns mezes, deixárão de fornecer o sal para
consumo
de todos os pontos da provincia, aquelles barreiros
[39]
tornárão-se
fonte de extraordinario ganho para alguns e, por
isso, centro de attracção para muitos
especuladores.
Entretanto a ganancia achou-se a tempo frustrada, pela
entrada de um navio que, cortando aguas acima o Paraguay,
foi abastecer de sal o porto de Corumbá e a capital
da provincia. Era uma barca de nacionalidade paraguaya;
a primeira que aproveitava-se do tratado de
navegação
entre o Imperio e a Republica.
[58]
A essa seguirão-se logo outras, estabelecendo um movimento
commercial activo, que deu o ultimo golpe á
especulação
da utilisação dos barreiros.
A decepção foi merecida, a idéa
comtudo não deve perder-se.
CAPITULO V
A crise, em que se achou a provincia de Mato-Grosso,
por occasião da invasão de 1865, veio renovar os
apuros
pela falta de sal, até que de novo recomeçassem
as recovagens
a transportar este genero das provincias beira-mar.
Era a renovação obrigatoria dos meios de
communicação
antigos, cujo estabelecimento demorado deu lugar ao espirito
ganancieiro.
Em Cuyabá vendeu-se o alqueire de sal a 600$000 rs.
e em pouco tempo subio a mais de conto!
Entretanto um pouco de industria
[40]
suppriria ao sal
recebido do exterior, ou, pelo menos, attenuaria muito as
consequencias de sua diminuição.
[60]
A França, por occasião do bloqueio continental,
recorreu
aos seus sabios e o assucar de beterraba livrou-a do jugo
colonial: a sciencia deu as mãos á industria,
ajudando a
politica espantosa, que podia desfechar golpe mortal no
poder inglez.
Em Mato-Grosso, não se tornavão precisos os
esforços
intellectuaes dos mestres da sciencia. Com pequenos melhoramentos,
força de vontade e de trabalho, tirar-se-ião
grandes quantidades de sal, cortando os vôos á
especulação
abusiva e altamente reprovavel. Todos comtudo se
sujeitão ás imposições dos
monopolistas, que, na razão
crescente da carencia, alteavão cada vez mais o
preço de
seu genero, na carreira vertiginosa de lucros exorbitantes.
Entretanto os barreiros jazem abandonados, entregues
aos animaes, que ali obtem, pela lambedura, o que tanto
custa aos homens.
A indolencia parece ter assentado sua séde em Mato-Grosso.
Existe nos campos d'aquella provincia, uma
população
sui generis, meramente entregue
á creação de gado, com
habitos arraigados, que a inhabilitão para qualquer outro
trabalho.
No districto de Miranda, ou se é negociante ou fazendeiro.
A vida do fazendeiro é marcar, em certas épocas
do
anno, os bezerros,
costear o gado,
de quando em quando,
e negociar com elle.
Sua fazenda é uma área de terreno indeterminada,
muitas
vezes com 5, 10, 20 e mais legoas de extensão, tendo,
em certo ponto, um rancho, coberto quase sempre de palha,
[61]
raras vezes de telha, que serve de vivenda ao dono
d'essas gigantescas propriedades, onde caberião,
á larga,
dez a doze grão-ducados ou principados allemães.
Ahi passará elle toda sua existencia; 50, 60 annos,
sem que lhe corra pela idéa a necessidade de um melhoramento
em suas terras, em sua palhoça, a
fruição
de um canto aprazivel, de um pomar. Raras vaccas
mansas rodeão um espaço limpo só pelas
patas do gado;
porém dezenas de milhares de rezes percorrem as suas
campinas desertas e innumeros touros mugem ao longe.
Este aspecto desolador é o mais frequente: entretanto
a descripção, que nos fizerão, da
fazenda das Pirapitangas
[41],
pertencente ao Sr. barão de Villa-Maria, indica da
parte do seu proprietario, espirito de actividade e gosto
pelo trabalho, pouco communs na provincia.
Uma alteração profunda no systema actual de viver
não hade comtudo soffrer detença: a passagem para
a vida
agricola.
A epidemia que grassa entre os cavallos, produzirá a
modificação de que fallamos.
Não ha cavallo que resista a essa peste, depois de poucos
annos de trabalho, de modo que, em certas épocas,
qualquer animal attinge a preços despropositados.
Em alguns annos, a difficuldade em obter cavalhada tem
impossibilitado o
costêo[42],
sem o qual o
gado se torna
arisco e bravio, como o que avistavamos na base da serra
de Maracajú.
[62]
Transportada da Bolivia em 1857, começou aquella enfermidade
a grassar entre os cavallos, com todos os caracteres
de epidemica. Hoje tornou-se endemica.
A destruição foi quasi completa; mal
escapárão alguns,
em localidades salubres e aos quaes se poupára o excesso
de serviço.
Desde então, annualmente reapparece: ora, atacando
com pouca intensidade, ora, levando cavallos aos centos,
augmentando com o calor, na estação das aguas,
diminuindo
com o frio e lavrando, sobretudo, na razão da
agglomeração de animaes muares, como aconteceu
com
os da expedição, durante a estada no Coxim, onde
morrêrão
quasi todos os burros, não escapando um só
cavallo.
A zona, em que actua esse mal, estende-se do sul do
districto de Miranda até Cuyabá, exactamente em
todos os
pontos, onde se dão as inundações
periodicas e o alagamento
dos campos.
Nos lugares mais altos, em Nioac e junto á serra,
é molestia
pouco conhecida, e, do outro lado da cadêa, não
penetrou ella, ficando limitada nos locaes, em que achou
condições favoraveis para o seu desenvolvimento.
O governo da provincia, attendendo á estabilidade d'essa
molestia, cujos effeitos ruinosos, ha muito, se fazem sensiveis,
mandou contratar um veterinario em França, para vir
estuda-la e fornecer meios de combate-la, visto como, sem
resultados apreciaveis, continuão as
applicações, que experimentão
os fazendeiros.
Disserão-nos que se déra a vinda para o Brasil
d'esse
especialista, o qual, porém, ficára no Rio de
Janeiro; não
se tratando mais de chama-lo á provincia, em cujo seio
[63]
dão-se, em escala crescente, os casos de
destruição de todos
os animaes muares.
Os prodromos da molestia são variadissimos. Ás
vezes,
manisfestão-se por simples ruidos no ventre: excrementos
reseccados e duros, inappetencia completa, magreza repentina.
Outras vezes, com falta de todos aquelles symptomas,
apparece a impossibilidade ou difficuldade em beber,
ficando, comtudo, largo tempo, o animal, com a cabeça
mettida
n'agua, demonstrando o seu desejo.
Succedem-se então phenomenos, cujo final obrigatorio
é
a morte.
Ora os animaes ficão tristonhos e, em poucos dias,
vão
definhando até morrerem; ora tornão-se
espantadiços; correm,
sem direcção certa, girando até
cahirem, ou seguindo
diagonalmente; ora completamente cégos; ora surdos.
Em todos os casos, as cadeiras ficão tolhidas, a parte
posterior derreada e o animal arrastra as patas trazeiras
com difficuldade e cançaço, d'onde
provém a especificação
de
peste-cadeira ou de
cadeiras.
Pessoa habilitada procedeu á autopsia de um cavallo,
victima d'aquella enfermidade, e encontrou, como era natural,
alteração profunda na medula espinhal.
Um curioso de algum merecimento, o Sr. João Lemes
do Prado, depois de esgotados muitos remedios, para subtrahir
algum de seus cavallos á peste, usou com proveito
do
crótalo, extrahido da
cobra cascavel.
Entretanto, nunca os escapos recobravão o antigo vigor
e, apezar de gordos, empregavão extraordinario
esforço nas
subidas e descidas de rampas.
Parece fóra de duvida, pelos singulares phenomenos na
[64]
locomoção, inherentes a essa enfermidade
[43], que
a lesão
na espinha dorsal, propaga-se ou repercute-se nos lóbulos
cervicaes, como o demonstrão as interessantes experiencias
e acertadas indagações de Flourens, na
vivi-secção.
Havemos, mais adiante, de verificar curiosas
relações
entre a peste dos animaes, e a que dizimou parte da columna
expedicionaria, confirmando a esclarecida opinião de
Backewel, Chadwick, Harrison e Graves, quando tratão da
connexão entre as epidemias e epizootias.
CAPITULO VI
Entretanto, a 10 de Março, achavamo-nos na margem
direita do rio Tabôco, o qual, contra as previsões
de
nossos soldados, que trilhavão já caminho
conhecido,
dava nado de lado a lado, n'uma extensão de mais de
30 braças, quando a sua largura normal não excede
de
18 a 20.
Passámos a noite debaixo de um laranjal, que servia de
pomar á casa do cidadão Joaquim Alves de Souza, a
qual
teve de hospedar aos paraguayos, quando elles ião para o
Coxim, e fôra testemunha dos attentados que ahi
praticárão.
Esses hospedes incommodos forão tratados com urbanidade
tão bem fingida, que não
duvidárão em deixar o dono
da casa em sua fazenda, com promessas de leva-lo com
toda familia para a villa de Miranda. Um camarada,
havendo, n'essa occasião, tentado fugir, foi pelos soldados
[66]
fustigado, amarrado a um pé de
piuva[44]
(peroba) e quasi
esfolado pelas pontas do açoute.
Depois d'aquella execução barbara, a que assistio
o misero
patrão, com custosa indifferença,
partírão elles, promettendo
voltar breve, concluida a expedição ao norte do
districto.
Se elles cumprírão a palavra, Joaquim Alves
julgou-se
com razões ponderosas para não fazer o mesmo.
Apenas voltárão as costas, fugio com toda sua
gente
para os matos, tomando depois caminho de Sant'Anna do
Paranahyba.
Vingárão-se os paraguayos do logro, feito
á ingenuidade
de homens brutaes e barbaros, queimando as casas e dependencias,
e destruindo tudo quanto encontrárão.
A denominação de
Tabôco é de
origem guaycurú: significa
fundo, apezar de seu pouco volume de
aguas habitual.
Alguns indios, porém, d'aquella nação,
havendo habitado
junto a um peráu, formado n'uma das voltas do rio,
derão-lhe em toda a extensão aquella
especificação pouco
conveniente.
Officialmente e nos mappas da provincia diz-se
Dabôco,
muito erradamente e sem razão.
Suscitando-se, em Agosto de 1866, a dúvida a respeito
do nome exacto, colhemos a certeza não só da boca
de
pessoas conhecedoras da lingua guaycurú
[45], senão
dos proprios
naturaes d'aquella nação.
[67]
Os que dizem
Dabôco a todo
o trance, não se firmão em
principio algum, a menos que apresentem, como autoridade,
dous ou tres mappas da provincia, em que apparece aquella
palavra escripta por um
D.
O rio, no lugar da passagem, tem a margem direita alta,
a esquerda baixa e paludosa depois das
inundações, frequentes,
em razão da proximidade das cabeceiras, se bem
de pouca duração. Bellas figueiras e alguns
pés de
ingá
(ingá edulis) tornão esse lado umbroso, ao passo
que o
outro é completamente descoberto.
Um pouco abaixo, o rio bifurca-se: um ramo segue
direcção, no rumo médio O.; o outro
diverge para S. O., deixando
intermedia uma comprida insua rasa e arenosa.
Os desmoronamentos da barranca direita deixão perceber
a natureza completamente arenacea dos terrenos proximos,
o que tambem póde explicar o nome de
fundo, dado
em certa época a um rio que, carregando grandes
porções
de arêa, modifica com facilidade o leito em que corre.
Fallárão-nos, na realidade, nas diversas phases
por que
elle tem passado, assignalando-se datas, não mui remotas,
em que a sua profundidade variou extraordinariamente.
Ao chegarmos junto ao Tabôco, a noite, ha muito, tinha
cahido. Nuvens carregadas de chuva pesavão no horisonte,
estendendo um véo tristonho, por entre o qual a lua, a
custo, diffundia raios amortecidos e tibios.
As arvores, formando densa mouteira, lançavão
sombras
vigorosas sobre a superficie turva do rio que rolava, engrossado
pelas chuvas passadas, toldadas aguas, em cujo
seio, de quando em quando, abria-se, com o espadanar do
salto de algum peixe, um vão luminoso.
[68]
Com o nosso approximar, um bando de
capivaras[46]
(hydrochœrus
capibara) atirou-se ao rio, afundindo-se com estrondo,
e indo surgir na margem opposta, ao passo que
barulhentos
quero-quero[47],
acordando, com estrepitosos gritos,
os echos, cruzavão-se nos ares com precipitado
vôo.
Ahi achavão-se vestigios da passagem de numerosa comitiva,
e, ao aclarar o dia, reconhecêrão os soldados
serem pisadas de indios, a despeito de não apreciarmos os
signaes que differençassem essas
pégádas, das de qualquer
outra planta de pé, como com razão o
affiançavão
elles.
Esses homens são de uma sagacidade espantosa; nunca
se enganão e conhecem perfeitamente os rastos de todos os
animaes. Ao depois, vimos nos indios demonstração
de
um tino tão fino, que reconhecem, pela impressão
do pé
no terreno, a pessoa que a deixára.
O Tabôco dava nado de lado a lado: recorremos aos couros
e o passámos com difficuldade, perigando, n'essa
occasião,
a fragil pelota, em que se mettêra o nosso collega Lago.
N'esse dia (10) deviamos emfim chegar á aldêa dos
indios
da Piranhinha: aligeirando pois a marcha, tomámos
aquella direcção, tendo á frente dous
soldados, conhecedores
d'esses lugares, que caminhavão com a confiança
que
lhes faltára junto á serra, isto é,
cortando campos, seguindo
[69]
trilhas imperceptiveis e rompendo por veredas cobertas
pelo matagal e capim.
Haviamos deixado a serra de Maracajú e iamos
então
fraldejando um ramo d'ella, o qual segue para o sul, parallelamente
á cadêa, em cujo novo encontro achava-se a
aldêa.
Os campos são pouco dobrados; o verdor das arvores,
o capim crescido denotavão, que, havia tempo, não
lavrava
fogo n'elles.
Cerrados, como sempre, se estendem por todos os lados;
n'elles apparecem com frequencia as
bignoniaceas[48],
as quaes
tem menos representantes nos das outras provincias:
continuão
comtudo a predominar os
araticús.
Caminhando uma legoa e tres quartos na direcção
media
S., attingimos ao morrete que faz ponta ao ramo,
que, então, diverge para N. S. e vai unir-se á
serra, a qual
avistavamos de novo, dominando, com pincaros recortados,
o aldêamento da Piranhinha.
D'aquella ponta de morro, parte o caminho, que leva ao
Aquidauana e ao porto, chamado do Souza, onde existia
então um destacamento paraguayo, com uma
guarnição
de pouco mais de cem homens, a qual vigiava o rio e a
estrada do Tabôco, pela qual presumião dever de
descer a
força brasileira.
Ao dobrarmos aquelle promontorio, avistámos, na distancia
de tres a quatro legoas, uma columna de fumaça,
[70]
que, maculando com rolos alvacentos o puro campo do
céo, subia pesadamente, destacando de si ligeiros
flócos,
em breve dissipados ao sopro da brisa.
Era o fogo do invasor atirado aos campos do Brasil,
era o signal da usurpação.
Indicava aquelle ponto negro a posse, depois da perfidia,
o dominio após a violencia: posse momentanea que
o governo de Lopes havia de pagar bem caro, dominio
temporario, que custou milhares de vidas, nas grandes
questões á mão armada, que se
debatêrão nas planicies da
republica do Paraguay.
Caminhando uma legoa e um quarto d'aquelle morro,
passámos o lindo regato das Piranhinhas, no meio de
luxuriante
mata, finda a qual, começámos a trilhar estrada,
que mostrava signaes de muita frequencia.
Na realidade n'uma volta além, achava-se a aldêa,
cujos
ruidos, cada vez mais crescentes, denunciavão vida e
animação.
Os baques de machados, confundião-se com o cantar de
gallos e o vozear de homens, formando um concerto, que
então preferiamos aos mais sublimes acórdes do
autor de
Ernani, pois significava-nos o final de todos os soffrimentos;
alegrava-nos o espirito e o corpo, abrindo largos horisontes
ao nosso direito de compensações.
Em breve, diante de nós, corrêra um indio.
Noticia importante circulou pela aldêa.
Ouviamos grande vozeria, algazarra continuada, e, quando
surgírão ante nós as primeiras
palhoças, uma chusma
de gente armada se atirou ao nosso encontro.
O aspecto não era agradavel. Chegárão
alguns a apontar
[71]
para nós: a vista porém dos soldados que lhes
erão conhecidos,
o nosso passo pouco bellicoso, o nosso acompanhamento,
em nada medonho, dissipárão logo qualquer
dúvida.
A reacção foi estrepitosa. Explicámos
a razão de nossa
chegada, e, cercados, quasi em braços, no meio d'aquella
boa gente, fomos ter a casa do capitão José
Pedro, que
nos acolheu, não como chefe de indios, mas como um
filho da civilisação.
Não pouca estranheza nos causava a apparencia de nossos
novos amigos, pintados de
genipapo e
urucú.
Fallavão,
com volubilidade espantosa, lingua que nos parecia então
extraordinariamente aspera e estavão armados, uns com
lanças, chuços, espadas, quasi todos com
espingardas e
clavinas.
Depois de fartarem, por mais de uma hora, a curiosidade,
que lhes causavamos, a um aceno do capitão
deixárão
a palhoça, em que nos achavamos, e podémos,
afinal, comer socegadamente uma gallinha cosida com arroz,
que teria merecimento em qualquer parte do mundo.
A noite passou-se em narrar a José Pedro os acontecimentos
que havião precedido a guerra com o Paraguay, os
successos do sul e os nossos triumphos, que muito o
enthusiasmárão.
Fallou-nos elle, com verdadeiro sentimento respeitoso, do
Imperador, de Suas altas attribuições e
mostrou-se conhecedor
reconhecido da benevolencia, que o monarcha brasileiro
nutre pelos indios de Seu Imperio.
Narrou-nos, com côres vivas e expressivas, a
invasão,
suas phases; elogiou o comportamento de varios individuos
de sua tribu, nunca fallou de si, e, mostrando sempre os
[72]
principios de uma boa educação
esboçada, deu-nos prova
de intelligencia clara e capaz de desenvolvimento.
O capitão José Pedro de Souza sabia lêr
e escrever;
mantinha em sua aldêa severa disciplina;
organisára uma
escola de meninos, na qual figuravão os seus dous filhos
e sempre se havia mostrado affeiçoado aos brasileiros,
unindo-se com elles nas horas de infelicidade.
Era digno, debaixo de todos os titulos, de obter do governo
imperial a confirmação do posto, que lhe
fôra concedido
pelo virtuoso missionario frei Marianno de Bagnaia,
sob cujas vistas foi educado, na aldêa dos
Quiniquináos do
Bom-Conselho, além do rio Paraguay
[49].
Estabelecidos na aldêa do
Naxe-daxe ou de
Santa Cruz,
a 6 legoas da villa de Miranda, tinhão os indios Terenas
procurado um refugio, por occasião da invasão dos
paraguayos,
dedicando-se logo ao plantio, apezar da carencia
de sementes e grãos, em que se
achárão.
Entretanto, quando chegámos, já havião
colhido boa quantidade
de arroz, algum milho e mandioca, da qual fazem
excellente farinha.
Na manhã do dia seguinte, aquelles generos com mel e
rapaduras figurárão nos presentes, que o
mulherio, em peso,
veio offerecer aos dous hospedes da nação terena.
Retribuimos com moedas de prata de duzentos réis; o
que causou alegria manifesta.
Muitas mulheres, na confusão, accusavão
não ter sido
[73]
contempladas e só se retiravão depois de
satisfeitas as suas
exigencias, voltando com dadivas novas para fazerem jus
á nova distribuição de dinheiro.
O capitão livrou-nos de mais sacrificios pecuniarios,
levando-nos
a passeio. A aldêa preparava-se para uma festa
e varios indios
padres
cantavão debaixo de alpendres de
perypery[50],
para que o mel
colhido,
de dias, fermentasse
depressa.
Fallaremos, em capitulo separado, de todas essas ceremonias
e mais costumes dos indios de Miranda; ainda depois
do muito que se tem dito a este respeito, é estudo
curioso esmerilhar as praticas especiaes d'essa gente, que
tem conservado o seu typo bem caracteristico, apezar do
longo contacto com os brancos.
CAPITULO VII
No dia 11 de Março, dizendo adeos áquella boa
gente
e acompanhados pelo capitão José Pedro e mais
alguns
dos seus, tomámos a trilha que communicava a aldêa
com
a localidade em que se achavão os refugiados, a 3
1⁄2
legoas. (
Nota H)
Para penetrarmos no reconcavo da Piranhinha, haviamos
caminhado completamente a E.; desfazendo a volta,
isto é, tomando rumo O., chegámos de novo
á ponta de
morro, de que acima fallámos e dirigimo-nos para a serrania.
Em breve começou a ascensão.
As matas tornavão-se mais frequentes: o declive era
já
agro.
De repente desciamos; logo após subiamos
cançativa
rampa.
A trilha, entaliscada entre fileiras de rochedos altos, seguia
[76]
ora por baixo de taquaraes, ora por entre densos
matagaes.
Comprehendia-se que era caminho de refugiados.
A meiga luz da tarde nos esclarecia paisagens lindissimas:
erão quebradas de montanhas, que deixavão a vista
estender-se por sobre um rico docel de verdura, nos declives
além: erão crystallinas aguas, que, serpeando
entre
grossos matacões,
despenhavão-se—borbulhantes
cascatas—riscando
de branco a pedra negra e sumindo-se por escuras
fendas.
As sombras cobrião já as profundezas do valle,
que muito
ao longe avistavamos; galgavão apressadas as primeiras
dobras da montanha e só alguns raios descorados de sol
allumiavão a rama extrema das arvores, que
corôavão o
topo da serra.
Haviamos caminhado já tres legoas e um quarto, e temiamos,
que a noite nos sorprehendesse n'essas brenhas.
Com o cahir da tarde, subimos uma rampa tão ingreme,
que obrigou-nos a apear de animal e a galgal-a de pé.
Era o ultimo degráo que restava vencer, antes de chegar
ao chapadão, que se estende sobre a cadêa.
Na realidade, pouco depois, pisavamos um terreno plano,
silicoso, coberto de cerrados.
O crepusculo, cada vez mais fraco, mal deixava distinguir
a trilha. Emfim cahia a noite fechada, quando, por
entre a folhagem de umas moutas, vimos brilhar luzes......
Era o final de nossa viagem: era o repouso, não para
algumas horas, para uma noite; mas sim para dias, semanas......
Era o descanço, a tranquillidade! a vida!
[77]
Era o socego depois de tantos trabalhos, a
quietação
depois de tanto movimento!
Quantos sentimentos em nós se
alvoroçárão!
A responsabilidade official estava salva. Haviamos cumprido
a parte mais custosa de nossas instrucções, e
cumprido,
com risco de saude, com sacrificio penoso, com perigo
de vida.
Démos tudo por bem empregado.
O recebimento cordial e espontaneo, que nos esperava,
constitue um d'esses factos, que o homem de sentimento
nunca mais esquece. Homo sum......
O nosso actual amigo, o Sr. João Pacheco de Almeida
recebeu-nos e acolheu-nos, em sua palhoça, com a nobreza,
com que um principe hospedaria em seu palacio.
A longa convivencia, na qual estivemos, por muitos mezes,
com esse digno cavalheiro, é uma lembrança, que
sempre
em nós desperta a gratidão.
Passámos a noite em excellentes redes: o somno foi
reparador.
A curiosidade, de que se achavão possuidos todos os
refugiados, em saberem noticias da força que os vinha
proteger, do que se passára desde Janeiro de 1865, era
modificada pelo desejo de dar-nos o descanço depois de
tanta atribulação e assim podémos
desfructar repouso longo
e tranquillo, que ainda durava, quando o sol já ia
alto......
O acampamento de João Pacheco occupava uma área
de 20 braças quadradas. Um bello corrego dividia-o em
[78]
duas partes, ambas sombreadas, mais do que convinha á
saude, por magnificas arvores de construcção.
Amontoavão-se, n'esse pequeno espaço, 18 a 20
casinhas
que parecia tinhão-se encostado umas ás outras,
apertando o
circulo, para protegerem-se reciprocamente.
Á medida que o receio dos paraguayos
[51] diminuia, as
palhoças ião se affastando, a procurarem mais
espaço e liberdade.
A meia legoa d'esse nucleo, formára-se outro ao redor
do fazendeiro Francisco Dias, cujo nome servia para designar
aquelle acampamento. A posição era muito
pitoresca:
a serra faz ahi um reconcavo, todo cercado por
morros alcantilados, que fechão uma planura de pouca
extensão,
porém muito aprazivel.
As fórmas singulares, que tomão as montanhas, a
brisa
constante que ahi reina, mantida por duas grandes abertas
que correspondem, tornão esse lugar eminentemente
ameno e saudavel.
Todas as pessoas, em numero superior a 100, que compunhão
aquelle acampamento, vierão comprimentar-nos no
dia seguinte ao de nossa chegada, e no rancho de João
Pacheco reunio-se a quasi totalidade do que o districto
de Miranda continha em autoridades e fazendeiros.
A desgraça extrema não se descreve: esses homens
achavão-se todos de pés no chão,
cobertos de farrapos,
ostentando no rosto o soffrimento prolongado, o martyrio
de muitos mezes.
[79]
Obrigados ao trabalho para viverem, manejavão, com
ardor digno de admiração, o machado e a fouce e
luctavão
com todas as dificuldades da inexperiencia n'esse
serviço pesado, para proverem o sustento de suas familias.
As mulheres, por seu lado, não se esquivavão da
mais
ardua tarefa. Causava dó vêr debeis
moças socando, por
esforço de braços, o milho para reduzil-o a
farinha ou
descascando no pilão o arroz.
Todos com persistencia exemplar e espirito immenso de
resignação, curvavão-se ás
crueis exigencias da occasião
e, cumprindo com a imperiosa lei do trabalho, vivião vida
penosa e altamente precaria, depois do esbulho de todos
os seus bens e dos dolorosos trances de fuga ante um
inimigo feroz e implacavel.
CAPITULO VIII
No dia 24 de Março, partimos em
direcção ao rio
Aquidauana, cuja margem direita deviamos explorar, como
recommendavão-nos as instrucções.
Alguns moradores dos Morros nos acompanhavão n'este
reconhecimento, em que havia perigos a correr, por qualquer
eventualidade possivel, quando não provavel.
O Sr. João Pacheco, entre todos, primava pela
dedicação
e energia; costumado a andar de pé longas distancias,
servia-nos de excellente guia, caminhando com toda a galhardia
diante de nossas cavalgaduras, que com difficuldade
seguião-lhe os ligeiros passos.
O rio Aquidauana, em Marco de 1866, formava a linha
divisoria material entre o Brasil e a republica do
Paraguay
e o districto todo de Miranda, a mais linda
porção
[82]
da provincia de Mato Grosso, achava-se occupado debaixo
do titulo de districto militar de Mbotety
[52].
A margem esquerda era guardada por um forte destacamento
e cuidadosamente rondada em toda sua extensão,
e, bem que, desde Maio de 1865, o presidente Lopez
houvesse prohibido
[53]
a transposição do rio aos
seus soldados,
as correrias, no outro lado, tinhão-se dado varias
vezes, com grande susto da população dos Morros.
Iamos assim, apezar da falta de meios para isso, effectuar
um verdadeiro reconhecimento militar.
Dirigindo-nos pois para o acampamento de Francisco
Dias, que distava do nosso meia legoa, como já o havemos
dito, reunimos ahi mais alguns companheiros, com
os quaes galgámos a encosta oriental da bacia em que
está encerrado aquelle acampamento.
A trilha, aberta pelos cascos de animaes, dá difficil
transito,
subindo as rampas abruptas d'aquellas fragosidades.
De certa altura, dominámos os picos vizinhos: alargou-se-nos
o horisonte; as grandes cópas dos madeiros
ficárão
ao nivel comnosco e nossos olhares se atiravão
além e bem
ao longe.
[83]
No cume, a paizagem tomou amplidão immensa. Erão
campos, a perder de vista, verdejantes aqui, azues mais
adiante e roxeados nos extremos limites, cortados por grupos
raros de bosques, ao passo que continua mataria mostra
o curso das aguas do Aquidauana.
Taes aspectos da natureza são profundamente melancolicos:
o espirito como que se atira por essas immensidades,
que recordão o indefinido do oceano, sem terem comtudo
aquella magestade que encanta a alma, lançando-a
n'uma prostração incomprehensivel.
Para o habitante do litoral, as vastidões terrestres
acordão
milhares de recordações saudosas; suave tristeza
se
apodera de nós e transporta o espirito ás bellas
praias
do mar.
Outro sentimento contristador dominava-nos então.
Atraz de um morrete longinquo achava-se a villa de Miranda,
presa do estrangeiro e fogos, em um ponto e outro
pela campina, lembravão a occupação
inimiga.
Muitos dos nossos companheiros se embebecêrão
então
na contemplação sombria que dominára o
mouro, quando,
do alto da rocha dos Suspiros, elle lançára as
derradeiras
vistas sobre os formosos campos de Granada e talvez as
palavras de Aixa fossem de novo bem cabidas, como
exprobração
merecida.
Essa scena desappareceu no descambar da serra.
Por todos os lados novamente cercárão-nos matas
espessas,
e o sol, a furto, desenhava, por entre a folhagem,
seus circulos fugaces no caminho.
Os ribeirões succedião uns aos outros, tombando
de
quéda em quéda e despenhando-se pelos declives
abaixo.
[84]
Como primeiros exploradores, fomos-lhes applicando
nomes que nos parecião mais convenientes, ora procurando
um distinctivo que os tornasse facilmente conhecidos;
ora consagrando-os á lembrança de nymphas
classicas ou
americanas; assim passámos o ribeirão da
Congonha
[54],
mais adiante o de Euterpe e, meia legoa além, o de Catharina
Pazes, uma lindissima quiniquináo, que habitava nos
Morros.
Junto a este ultimo, tomámos ligeira
refeição, comendo,
debaixo de aprazivel sombra, a matalotagem preparada de
vespera e bebendo a pura lympha d'aquelle bello riacho.
Continuando a descer, achámo-nos em breve na planicie,
abrindo-se ante nós os campos, que levão a
Camapuan[55],
illuminados então pelo brilho do sol em seu zenith.
Tencionavamos visitar dous aldeamentos indios, collocados
a 7 legoas do ponto de nossa partida: por isso
tomavamos direcção E., da qual deviamos divergir
para
S., quando procurassemos as margens do Aquidauana.
Assim pois caminhando, n'aquelle primeiro rumo, mais
tres legoas, fomos pousar junto ao lindo corrego das
Palmeiras,
na casa do cidadão Valerio de Arruda Botelho
que recebeu-nos franca e amavelmente.
Ahi tivemos um agradavel dia de falha, que nos proporcionou
a jovialidade de nosso amphitryão.
Foragido de Miranda, Botelho conservára-se, por muitos
[85]
mezes, occulto com sua familia nas matas de sua propria
fazenda do Embauval, perto do rio Miranda, apesar da
passagem continua dos paraguayos por suas terras.
Afinal transportára-se com crianças, e cargas
para a
margem direita do Aquidauana, depois de uma perigosa
viagem de dias, entre as rondas inimigas.
O lugar de sua nova habitação era encantador:
magestosos
boritys, banhando os pés nas aguas rapidas do
corrego, se erguião fronteiros a ella, e na fralda de um
morro abaulado coberto de vegetação, que se
estende para
N. E., formando com outras pontas isoladas, um systema
perfeitamente distincto. A grande serra corre para S., elevada
como sempre e dependurada desde ahi sobre o ribeirão
das Pirapitangas, que deviamos atravessar quatro vezes.
Deixando as Palmeiras no dia 26, em companhia de
Valerio fomos á aldêa do
Oauassú[56]
onde alguns
indios
quiniquináos havião procurado refugio, depois de
expulsos
de suas palhoças do
Euagaxigo, além
Aquidauana.
[86]
Tomando sensivelmente a E. N. E., fomos do Oauassú
ao aldeamento da
Boa-Vista, formado
pelos indios laianos,
distante do outro tres e meia legoas. O caminho de
communicação
era uma apertada trilha atirada por sobre lindos
campos, ora perfeitamente planos, ora dobrados mais ou
menos profundamente.
De quando em quando, fraldejavamos um d'aquelles
picos destacados ou passavamos por abertas estreitas entre
morretes, cujos córtes a prumo obrigavão a
attenção.
A aldêa da Boa-Vista estava situada n'um outeiro encostado
a varios morros e constava de cincoenta a sessenta
ranchos de palha.
Os indios nos acolhêrão do modo o mais sympathico
e
cordial. Achámos um rancho feito de proposito, em
attenção
á nossa visita e ahi nos obsequiárão
com grandes
mostras de respeito.
Os laianos da Boa-Vista moravão, antes da
invasão, a
uma e meia legoa da villa de Miranda, e d'entre elles se
tiravão os melhores camaradas para o trabalho de
roças,
serviço de canôas e
costêo de gado. Como quasi
todos os
indios, são excellentes cavalleiros e domadores destemidos.
Em honra á nossa chegada, o capitão
José Vieira organisou
dançados, que durárão até
alta noute, formados tão
sómente pelo desejo de festejar-nos, posto que faltasse o
incentivo obrigatorio para taes divertimentos a—aguardente.
Diante de um pifaro e um tambor, collocárão-se
tres
rapazes e igual numero de raparigas, os quaes, de mãos
dadas, avançavão e recuavão, imitando
os gestos e movimentos
titubantes dos embriagados.
[87]
Conforme a perfeição ou inexactidão na
imitação, colhião
os dançadores applausos dos circumstantes ou apupadas,
o que fazem batendo a mão aberta de encontro
á boca.
A toada é sobremaneira monotona; o dançado
igualmente;
quando não ha o elemento que transforme o fingido
em triste realidade: então todos tem n'elle parte com
ardor e furia indescriptiveis, até cahirem completamente
exhaustos.
Ao som d'aquella musica insipida, adormecemos.
Depois de combinarmos, no dia seguinte, com Vieira,
sobre o ponto de reunião em que elle devia se achar com
vinte de seus indios
[57]
junto ao Aquidauana, despedimo-nos
d'aquella gente simples, voltando á casa de Valerio,
onde de novo falhámos um dia.
CAPITULO IX
Acabada a digressão, dirigimo-nos no dia 29 para a
margem direita do rio Aquidauana.
Atravessando o ribeirão das
Pirapitangas, fomos seguindo,
de novo, a serra na direcção S., até
chegarmos junto á
margem do rio, depois de 2
1⁄2
legoas de marcha. Os aspectos
do terreno continuão os mesmos.
As margens são aprumadas, cobertas de
vegetação vigorosa,
na qual avultão os elegantes taquarussús, que
fórmão grupos compactos, entremeados com elevadas
macaúbeiras.
O Aquidauana é o mais bello rio caudal, que se encontra
em todo o districto de Miranda: as mais lindas paizagens
se fórmão em seu correr; as mais animadas scenas
se achão em suas vizinhanças.
A abundancia de pesca e caça ahi se encontra por modo
prodigioso.
[90]
A natureza virgem, os viventes que lhe infundem o movimento,
aquellas matarias tão verdejantes, aquellas aguas
puras e crystallinas a reflectirem um céo de saphyra, a
serra azulando ao longe, levão o extase a uma alma artistica
e a atirão n'essa alegria pura e suave, repassada
de tristeza, que Horacio tão bem exprimio
pelo—
flebile
nescio quid.
Lembrar-nos-hemos sempre de um ponto de vista, que
attrahiria os olhares do ente menos admirador do bello.
O rio, ahi, descendo em rapida
corredeira, morre de
repente n'uma bacia, que se abre regularmente no reconcavo
de barrancos, cortados a pique.
Ahi as aguas dormem: circulos ligeiros mal encrespão
a superficie,—ultimos impulsos da correnteza—e, em
ondulações concentricas, vão
desapparecer de encontro ás
margens.
Ora a brisa geme na folhagem delicada dos taquarussús
e brinca sobre as aguas; ora é o vento, que, vergando
os flexiveis colmos, anima aquella scena com harmonia
mais grandiosa. Assim a vimos.
No alto das margens alcantilosas, as arvores estremecião
aos embates de forte sopro: as elevadas cannas se
enroscavão,
se confundião, se debatião frementes,
ás vezes, ligando
os flexuosos topos ás copas das macaúbas, outras
abatendo-os até tocarem o chão.
O sereno lago, perturbado pelas lufadas, reflectia, de
quando em quando, o sombrio de nuvens que orlavão o azul
celeste das abertas, por entre as quaes o sol estirava raios
destacados de scintillante luz.
Centenares de passaros esvoaçavão: uns tocados
pelo
[91]
vento, com as azas meio encolhidas; outros cortando, com
vôo mais firme, a ventania e suspendendo-se n'ella. Muitas
marrequinhas brincavão n'agua, sobre a qual brancas
garças deslisavão-se veloces, ao passo que
lontras fazião reluzir
ao sol o pello lustroso, mergulhando de continuo e
nadando com ligeireza.
Tudo isto gritava, tudo isto piava, unindo mil vozes diversas,
produzindo mil sons differentes que, combinados no
espaço, davão á natureza aquella
animação e vida, só proprias
das obras do Creador.
Outra vez vimos essa bacia debaixo de novo aspecto.
Tudo era calma; as aguas não se movião; as
arvores não
se mexião.
O silencio da natureza como que se deixava ouvir; permitta-se-nos
essa expressão arrojada.
Um calor abrasador abatia e enervava a vida; luz deslumbrante
penetrava tudo.
A mataria, illuminada nos seus recantos mais sombrios,
não tinha mysterios; as arêas
apparecião no fundo de esverdeadas
aguas, e só cardumes de peixes, symbolo do
mutismo, nadavão em todos os sentidos.....
O rio Aquidauana nasce de vertentes da grande serra
de Maracajú
[58].
Recebe, depois de algumas legoas de curso,
os rios Cachoeirinha e Cachoeira, tomando desde então
importante
volume de aguas, engrossado pelos ribeirões
Dous
Irmãos, do
Taquarussú e
Uacôgo[59],
que
entrão pela
[92]
margem esquerda e de
João
Dias, corregos do
Paxexi e da
Paixão, que
desaguão pela margem direita.
Do ribeirão de João Dias, onde existe a ultima
corredeira,
o seu curso é livre de obstaculos, com profundidade
quasi constante de 8 a 10 palmos, e largura média de 30
braças.
Navegavel para grandes canôas n'uma extensão de
quasi
40 legoas, fenece no rio Miranda pelo lado direito, confundindo
as suas aguas claras e puras ás revoltas e barrentas
d'aquelle rio.
O seu nome é de origem uaycurú.
Um capitão dos cadiuéos tem a mesma
denominação, com
o accrescimo de um T.—Taquidauana.
Não nos podérão explicar o que
significa.
Nas matas d'esse rio habitão os animaes vulgares da fauna
brasileira:
onças (felis
variarum specierum),
antas (tapirus
americanus),
lobinhos,
jaguatiricas, (felis pardalis,
Neuwied),
raposas,
macacos, (simia v. sp.),
tamanduás,
tatús (Dasypus
v. sp.), muitos
queixadas (dicotyles
labiatus), etc.;
lontras
(lutra),
ariranhas (lutra
brasiliensis) e
capiváras
atravessão,
a todo instante, a correnteza; em seus campos proximos
pullulão
cervos (cervus
paludosus, Desm.),
veados (cervus
rufus, c. campestris),
emas (rhea
americana),
ceryemas
(dicholophus cristatus.); nos cerrados,
jabotís (testudo
tabulata), muitas
cobras venenosas
(crotalus horridus, bothrops
Neuwiedi, b. surucucú, boipébas,
urutús, etc.) e reptis
de outras sortes.
Em aves ha os
jacús
(penelope marail),
jacu-cácas (penelope
jacucáca, Spix.),
jacutingas (penelope leucoptera,
Neuwied),
mutuns (crax v. sp.),
jaós (crypturus noctivagus)
[93]
e
aracuans[60],
tucanos (rhamphastos v. sp.),
araçaris
(pteroglossus), muitas
pombas,
gralhas,
periquitos
(psittacula v. sp.),
papagaios,
(psittacus v. sp.),
aráras,
enfeitão a ramagem das arvores, ao passo que os
inhumas[61]
(palamedea chavaria),
jaburús ou
tuyuyús[62],
tabuyayás[63]
(ciconia m.),
socós
(ardea),
curicácas (ibis
melanopsis) e bandos de numerosos
patos (anas) e
marrequinhas
pousão nas ribeiras ou se agrupão nos rochedos
e insuas do rio. (
Nota I)
Em pescado o Aquidauana é fartissimo.
Abundão os
jaús, os
sorubys,
dourados, em certos
mezes
pacús,
pirapitangas,
corimbatás e
pacu-pebas,
papa-terras (geophagus, Heckel),
raias, etc., etc.
O
jaú é o
maior peixe dos rios de Mato-Grosso: extremamente
[94]
voraz, não duvida atacar o homem
[64].
A resistencia
que tal monstro faz, quando agarrado ao anzol, é prodigiosa
e não são raros os exemplos de grandes
canôas viradas
na sua pesca.
O
soruby (platystoma), chamado mais
commummente
na provincia—pintado—, é peixe de pelle,
com malhas
pardacentas em fundo escuro. A cabeça é chata,
com
appendiculos como a dos bagres e occupa um terço do
comprimento total: a carne é saborosa, bem que um tanto
forte.
O mais abundante e ao mesmo tempo um dos mais delicados
peixes de Mato-Grosso é o
pacú, (prochilodus,
Agassiz) tambem chamado
caranha, do
qual Pison diz:
«melioris saporis et nutrimenti habetur, quàm
sargus
Europeus»: tem côr pardacenta, azulada n'agua,
escamas
pequenas com reflexos dourados; geralmente 2 a 3 palmos
de comprimento. É achatado.
Em certas occasiões, dá tal abundancia de
gordura, que
alimenta proveitoso commercio de azeite. A quantidade é
prodigiosa.
Nas enchentes do Paraguay, os
pacús seguem o movimento
das aguas em grandes cardumes, que ficão, na retirada
d'ellas, presos em poças dos campos e lagôas, onde
morrem á mingoa d'agua e por causa da elevada temperatura.
O ar fica então inficionado muitas legoas em derredor.
Contárão-nos que, em certos pontos perto do rio
Paraguay,
[95]
fica o chão forrado, em extensões
importantes, com
camadas de 2 a 3 palmos d'esses restos.
A gordura do pacú é preconisada para varias
molestias:
dizem ser de grande efficacia na pica malacia, pelo
enjôo que causa ao enfermo.
Um dos peixes, com razão, mais apreciados dos rios da
provincia, é a
pirapitanga (species characini),
chamado
em Goyaz
jurupensen (?) e pelos
indios guanás
araráitiissi
(peixe de rabo vermelho). As suas dimensões
nunca são extraordinarias; attinge no maximo a tres palmos
de comprido; mais commummente regula de um 1 a
2 palmos. A carne, com listras vermelhas, é consistente,
saborosa, bem que, como a dos outros peixes de rios,
seja crivada de perigosas espinhas bifurcadas.
As pirapitangas sobem os ribeirões e corregos até
onde
encontrão agua sufficiente. Muitas vezes, ficão
retidas em
poças mais fundas até a época das
enchentes. No corrego
dos Laianas apanhámos algumas de bom tamanho, apezar
da agua ter apenas
1⁄2
palmo de profundidade.
No Aquidauana é muito rara a presença dos
monstruosos
sucurys, assim como a das
perigosissimas
piranhas (myletes
macropomus).
São habitantes predilectos do grande Paraguay.
Da voracidade da piranha se ha fallado sufficientemente:
nada resiste aos dentes aguçados de myriades d'aquelles
peixes
[65],
que no ardor da fome, devorão-se uns aos
outros, com rapidez prodigiosa.
[96]
Os
sucurys[66]
(boa murina),
verdadeiros representantes
antediluvianos, chegão a dimensões que os
tornão entes
deslocados na natureza proporcional de nosso globo. Vimos
uma d'essas serpentes, com 30 palmos de comprido e 15
de circumferencia na barriga; era comtudo muito nova,
pois que o nosso amigo, o tenente de guarda nacional, João
Faustino do Prado nos asseverou attingirem muito além de
6 braças, contando-nos a este respeito um episodio curioso
nas historias de sucurys.
N'uma viagem a Cuyabá, passando elle pelos pantanaes
do Piquiry, observára de longe um touro, o qual
disparava em todos os sentidos, parecendo retido por um
extenso cipó, que conheceu era um enorme sucury. De
mais perto notou aquella curiosa contenda. A serpente,
depois de estirar-se o mais possivel, retrahia-se de vagar,
trazendo, de rastros ao chão, o seu adversario exhausto.
Com o approximar de gente, o touro deu um arranco
desesperado e partio á disparada, bramando loucamente. O
sucury deu de si até ficar da grossura de tres dedos: depois
começou a encolher-se, arrastando a presa que, extenuada
por tantos esforços, de novo se deixára cahir.
A victoria era certa; o final conhecido.
Um novo elemento perturbou a peripecia natural. O
facão do homem, de um golpe, cortou o sucury e deu a
liberdade ao touro. Este, erguendo-se de um só pulo, sacudio
[97]
a
cabeça e, arrojando-se pela campina, com o tronco
da serpente pendurada ao pescoço, em breve desappareceu
d'aquelle theatro, onde devêra achar a morte.
Ás vezes, os sucurys atacão as onças e
antas com
exito
[67].
Entretanto n'uma margem do Paraguay, o capitão
Francisco Domingos da Costa Pereira vio uma onça arrebentar
um sucury, por quem fôra enlaçada.
Com uma facasinha o homem defende-se perfeitamente
d'essas serpentes: basta uma ligeira picada, levantando
as escamas para obrigal-as a desapertar os seus fataes
enleios.
Já em occasião opportuna fallámos
sobre os ferrões que
os sucurys tem ao redor do anus, e o que pensamos a
tal respeito
[68].
As rochas, sobre que rolão as aguas do Aquidauana,
são
de grés; em muitas partes, o seu leito é
completamente
silicoso, em outras, argiloso; lamacento, raras vezes. N'estes
ultimos pontos reunem-se os
corimbatás[69]
(schizodon,
Agassiz),
piáus,
traíras (erythrinus),
bagres, etc. Os
[98]
seixos rolados abundão nas margens e entre elles o
silex
e os
silicatos de ferro.
As enchentes do rio nunca sobem a grandes alturas; raramente
trasbordão, não só pela
elevação dos barrancos,
senão pela facilidade com que se escoão as aguas
no rio
Miranda, o qual corre por campos baixos e faceis de serem
inundados.
CAPITULO X
Do primeiro pouso junto ao Aquidauana, seguimos a O.
fraldejando sempre a serra, que se eleva, cada vez mais,
com pincaros escalvados e talhados até a base.
Os sitios são agrestes e sombrios; as plantas sexatiles
se agrupão de lado a lado da trilha que sobe e desce,
conforme
as dobras extremas da serrania.
De vez em quando, descobrem-se as corredeiras do rio,
cujo ruido se ouve de longe; de vez em quando descortinão-se
pedaços de campo distante, com lindas arvores,
a modo de vergeis.
N'um ponto, a vereda parece ir esbarrar n'um córte a
pique de montanha: a paizagem é ahi muito curiosa e
eminentemente pitoresca.
Penetra-se então n'uma fenda monstruosa que dá
passagem
ao viajante, entaliscando-o n'um corredor humido,
cujas gotejantes paredes achão-se tapetadas por
achamalotadas
[100]
begonias,
argyrostigmas,
capillus-veneris,
adiantos,
etc.
Depois, sahe-se em campo: ahi acaba a serra
[70].
As campinas, queimadas pouco tempo antes, reverdecião
depois das ultimas chuvas, e se estendião vicejantes, a
perder de vista, como tapiz vistoso salpicado de flôresinhas
mimosas
[71].
Caminhámos 2
1⁄2
legoas até o corrego do Paxexi,
onde
fizemos pouso, aproveitando ranchos abandonados e em
ruinas.
A noite cahio serena: a trovoada do dia dissipára-se ao
sopro de forte ventania e tão sómente fugaces
relampagos
rasgavão um massiço de nuvens, amontoadas em um
ponto
do horisonte. Roncos longinquos, intervallados, mal se
ouvião, rompendo o silencio crepuscular, tão
solemne n'aquellas
paragens.
A lua subio então, espargindo sua meiga luz sobre a natureza
e infundindo aquella doce tristura, que acompanha
essas noites de calma e tranquillidade.
O dia da Paixão de Christo, em que estavamos, mais
nos engolfava n'essa meditação melancolica, que,
sem
[101]
méta, sem direcção certa, se atira no
espaço, e durante
a qual os olhos da materia se fixão, sem vista, n'um
ponto, ao tempo que os olhos da alma vagueão pelos mundos
além creados, pelo indefinido e indeterminado.
De repente, atraz de um morro erguêrão-se nuvens
rubras,
densas na base, flocadas acima e adelgaçadas.
«São os paraguayos,
disse-nos o velho indio Palhá, que estão
vaquejando
no Taquarussú, a 5 legoas d'aqui; queimão
á noite os
campos, para chamar o gado
esparramado
(espalhado)...»
Sahindo de Paxexí com a madrugada, fomos em
direcção
ao porto de D. Maria Domingas, o qual deviamos examinar
como ponto de passagem para as forças. Estavamos
então a uma legoa de distancia d'elle.
Já se havião reunido a nós os indios
da Boa-Vista, que
vinhão constituir a nossa guarda de
protecção. Montados
em bois, marchavão uns atraz dos outros, com a
lentidão
grave d'aquelles ruminantes, a qual não sería
alterada,
ainda quando apparecessem os inimigos.
Já começavamos então a avistar grandes
manadas de
gado: as
pontas pastavão
em compactos grupos, que se apartavão
com a nossa chegada, fugindo as vaccas e bezerros,
ao passo que os touros paravão, para olhar-nos com
desconfiança
e sobranceria. Ás vezes, de um ponto afastado,
corria ao nosso encontro um d'elles; estacava junto ao
caminho e ahi nos esperava com ar de desafio e
resolução.
Bastava, comtudo, um simples grito, um aceno para
desvial-o, senão para afugental-o bem longe
[72].
[102]
O caminho vai sempre seguindo o rio, o qual ora sahe
em campo limpo, ora d'elle se separa por uma mata espessa
e sombria.
Passavamos, de quando em quando, por tapéras
[73];
erão
ranchos vastos cobertos de
herva de S.
Caetano[74],
rodeados
de urzes e espinhos; erão moendas, engenhos, queimados
em parte, cortados pelos machados do invasor; em
toda a parte, signaes de desolação e
destruição inutil e barbara.
Só a natureza, no brilhantismo de seus verdores, consolava
ao derredor as vistas, cançadas de tamanhas provas
de vandalismo; ella que, embora desfigurada pela mão do
homem, procura de continuo reparar os estragos que tenha
soffrido.
O porto de
D. Maria Domingas,
chamado pelos indios,
alinána, é uma
larga aberta na mata. Dava passagem
aos carros que, das fazendas da margem direita do rio,
se dirigião para a villa de Miranda.
Esse lugar fôra testemunha de uma das poucas scenas
de resistencia no longo periodo da occupação
paraguaya
e apresentava gloriosas mostras d'aquelle feito de armas:
varias arvores varadas por balas e cinco ossadas humanas.
Em Maio de
186 , dezeseis
indios terenas,
occupados
[103]
em fazer ahi rapaduras, tinhão sido atacados por duzentos
paraguayos, os quaes, recebidos de dentro da mata por um
fogo vivo e certeiro, em poucos minutos forão obrigados
á retirada, abandonando não só mortos
como feridos, que
morrêrão ás mãos de seus
encarniçados inimigos.
Cada vez que uma caravana india passa por junto d'esses
restos, levanta-se um clamor immenso: uns quebrão os
ossos, outros insultão as caveiras, cuspindo n'ellas e
calcando-as
aos pés; outros riem-se estrepitosamente e dirigem
motejos aos manes paraguayos.
Prohibimos demonstrações d'essa barbara
expansão ao
nosso sequito, que, a custo, conservou-se calado, ao passar
duas vezes por diante dos alvejantes craneos, na entrada
e sahida da mata: entretanto alguns indios, descendo de
seus bois, apanhárão uns ossos que
levárão escondidos.
O porto de D. Maria Domingas offerecia as melhores
condições para uma passagem de forças,
estando a outra
margem occupada pelo inimigo. Pouco frequentado, afastado
da estrada por onde os paraguayos presumião dever
descer a nossa gente, com váo seguro e commodo, com
uma boa mataria para protecção na
transposição, era além
d'isso o ponto onde convergião todos os caminhos do
districto
e cuja posse cortava as communicações entre os
postos do Taquarussú e Souza, então existentes
mais proximos
do rio e que deviamos primeiro atacar.
Ahi decidimos que se effectuaria a passagem e trabalhámos
sempre n'esse sentido, apezar dos estorvos que se
levantárão contra essa escolha razoavel e
conveniente.
Como, entretanto, não se realisárão as
nossas previsões e
falhárão os nossos planos pela demora das
forças brasileiras
[104]
e retirada dos paraguayos em Agosto, deixaremos de parte
essas questões que tinhão interesse immenso no
momento
e que o terião no futuro, se houvessem surtido effeito as
providencias, que n'aquelle sentido tomámos.
As terras, que atravessámos, pertencião a D.
Maria Domingas
de Faria, senhora estimada pelas suas excellentes
qualidades e virtudes. As suas posses importantes
estèndião-se
em toda a margem direita e esquerda do Aquidauana
e n'ellas estavão estabelecidos os seus parentes
mais chegados e filhos, entre os quaes temos o prazer de
contar um amigo, o sympathico fazendeiro—João
Mamede
Cordeiro de Faria.
Tangidos violentamente de suas propriedades pela invasão,
havião todos esses pacificos habitantes fugido de
suas fazendas, indo, depois de mil trabalhos e peripecias,
se refugiar a 50 legoas d'ahi, junto ao rio Taquary, a 7
legoas do lugar onde acampou a força no Coxim.
Sahindo do porto de D. Maria Domingas, fomos pousar
no laranjal de Francisco Dias, que estava então acoutado
nos Morros, e, no dia seguinte, chegámos ao porto do
Pires, a uma legoa do entrincheiramento paraguayo.
Ahi esperava-nos a maior contrariedade. Haviamos combinado
com vinte e tantos moradores dos Morros, para que
nos fossem esperar n'aquelle ponto, bem armados e com
munição sufficiente para defesa, no caso de
sermos perturbados
na ultima legoa, que restava fazer.
Apressáramos a viagem, com o fim de não nos
tornar esperados;
deixáramos de parte muita curiosidade que examinar;
haviamos desprezado o entretenimento de pescas e
caçadas em completa perda.
[105]
Verificando os nossos recursos, o municiamento e armas,
achámo-nos com 18 pessoas mal armadas e municiadas
só
a um ou dous cartuxos.
Os indios revelavão receio latente: a cada instante
ouvião
toques de caixa e cornetas, os quaes, entretanto, apezar
de nossa boa audição, nunca podémos
perceber.
A cada instante nos avisavão que os paraguayos
estavão
em vigilancia continua e que erão muito valentes. Accrescia
ainda que, n'aquelle dia, haviamos desconfiado da passagem
de gente para a margem direita, por causa de
pontas de gado que parecião vir tangidas dos lados do
porto do Souza e que, por diversas vezes, havião passado
diante de nós, n'uma corrida tremenda.
Assim pois, perigos nos cercavão sem a
protecção conveniente
para os casos de aperto: continuar, fôra temeridade
improficua; proseguir, passo inconsiderado.
Resolvemos por isso fazer-nos na volta dos Morros, cortando
campo em direcção a um dos picos da serra em
que ficava a nossa pousada.
Assim, voltámos as costas ao sul, havendo
préviamente
lançado fogo á campina que, abrasada pelo sol,
incontinente
despedio ao céo rolos de negrejante fumaça.
Minutos depois apparecia, na margem de lá, outra
fumaça,
em signal de aceitação de desafio, como
usavão os
paraguayos.
Desappareceu, porém, debaixo do formidavel aguaceiro
que, por mais de meia hora, despejárão as nuvens,
protegendo
a nossa retirada e impedindo qualquer tentativa
de perseguição.
N'esse mesmo dia (2 de Abril) chegámos ao nosso acampamento,
[106]
onde encontrámos os commodos que tanto consolo
nos havião dado depois dos dias penosos de nossa primeira
viagem; ficando em nós, d'aquella digressão
ás bellas
margens do Aquidauana, a immarcessivel recordação
de dias alegres e felizes.
CAPITULO XI
Depois de alguns dias de obrigatorio descanso, remettemos
ao commando das forças, acampadas então no rio
Negro,
os desenhos e relatorios de nossa viagem ao Aquidauana,
cuidando desde então nos meios de passagem
d'aquelle rio, a qual, segundo as communicações
que recebiamos,
devia se effectuar em meiados de Junho.
Esperámos comtudo desde Abril até principios de
Julho.
As mil difficuldades que embaraçárão a
marcha das forças,
a peste, a fome que acommettêrão os nossos
infelizes soldados,
o fallecimento de officiaes e afinal do commandante
o bravo general Galvão, erão as causas d'essa
demora
desesperadora que, retendo a expedição em
mortiferos
paúes, ia, mezes depois, produzir a medonha
enfermidade,—a
paralysia reflexa—, adquirida n'aquelle periodo fatal.
Não assistimos ás scenas desoladoras do rio
Negro; não
presenciámos os duros trances em que se vio a columna:
[108]
haviamos, de antecedencia, pago pesado tributo, com quinhão
consideravel de soffrimentos.
Á nossa penna, além d'isso, faltão a
precisa energia,
as côres vivas para descrever tão extremas
necessidades,
a força e enthusiasmo para traçar a
abnegação, o heroismo
e resignação que, n'aquelles momentos
tormentosos, patenteou
o nobre soldado brasileiro.
Durante a estada prolongada, que tivemos nos morros,
procurámos estudar a sociedade que existíra no
Baixo-Paraguay,
analysar a indole dos indios, o elemento mais numeroso
n'elle, investigar o gráo de
civilisação em que se
achão e os resultados da convivencia com os brancos.
Nunca se apresentará occasião tão
favoravel para um
espirito indagador. As grandes provanças
descarnão os homens.
No soffrimento e na desgraça, o caracter bondadoso se
requinta; o máu se exaspera e se
irrita; as paixões nobres
ou baixas apparecem então ao descoberto da mascara
que as convenções e conveniencias da sociedade
apresentão
aos olhos incautos.
Tinhão se dado as scenas angustiosas da
invasão.
O organismo social desarranjado, acabára com as formalidades
que, a bem da moralidade, se costumão respeitar:
a hypocrisia fugíra ao longe; a falsa amizade
desapparecêra.
Nos dias lugubres da fugida ante os paraguayos os verdadeiros
amigos forão raros: apresentárão-se
rasgos de nobreza
[109]
de caracter em quem tal não era de esperar e
amesquinhárão-se aquelles com quem se contava.
Nunca o egoismo desenvolveu-se em tão larga escala.
Alguns atopetárão as suas canôas
[75] com
os objectos mais
inuteis, trazendo de Miranda até garrafas vasias, ao passo
que negavão passagem aos seus affeiçoados da
vespera, pretextando
falta de espaço.
Outros prohibião a matança de seu gado a pobres
refugiados,
maltratando-os por cartas, que declaravão ser-lhes
preferivel o roubo dos paraguayos.
Do conflicto d'esses sentimentos resultárão
collisões, cuja
lembrança não deve occupar a
attenção d'aquelles que aprecião
o homem como typo de nobreza, e sujeitão ás suas
virtudes moraes, a ordem physica das cousas, brutal e
necessaria.
O valor absoluto das idéas do utopista é
tão precioso
que, ainda com prejuizo da indispensavel necessidade do
conhecimento dos homens, devemos desviar os olhos das
lições d'aquella perigosa experiencia:
bastão os desgostos
no correr da vida normal, bastão os desenganos na sociedade
polida, no mundo civilisado, em seus eixos, em seu
curso natural.
CAPITULO XII
OS INDIOS DO DISTRICTO DE MIRANDA
Em dous importantes grupos se divide a raça india, habitante
de Miranda: os
guaycurús
e os
chanés. Os primeiros
comprehendem tres tribus: a
guaycurú, propriamente
dita, que vai desapparecendo pelo contacto immediato
com a gente branca, os
cadiuéos que, pelo
contrario,
conservão-se no estado quasi selvatico, em terrenos proximos
aos rios Paraguay e Nabilek, ainda não bem explorados,
e os
beaquiéos que
habitão com os cadiuéos
[76].
Os
chanés subdividem-se
em quatro ramificações: os
terenas, que constituem os tres
quintos da população aborigene,
os
laianas, os
quiniquináos e os
guanás ou
chooronós,
de entre todos, os mais doceis e civilisados.
[112]
A lingua é a mesma para todos estes, com algumas
alterações
que entretanto não lhes impedem a facil
comprehensão
reciproca. Os costumes e praticas geraes: o seu typo, porém,
conservando um
facies bem
determinado offerece distincções
que assignalão caracteristicamente cada uma d'estas tribus.
O
terena é agil e activo:
o seu parecer exprime mobilidade;
a sua intelligencia é astuciosa e com propensão
ao mal. Aceita com difficuldade as nossas idéas e conserva
arreigados os seus usos especiaes, talvez por espirito
mais firme de liberdade. O homem é robusto, corpulento,
de boa estatura; o seu semblante apresenta o
nariz um tanto achatado na base; as sobrancelhas pouco
obliquas, em alguns individuos bastas e desenhadas com
regularidade; ás vezes é pugibarba, outras tem
buço e
barbas bem apparentes. A desconfiança transluz nos seus
olhares inquietos, vivos; a dobrez nos seus gestos. Escondem
com gosto os sentimentos que os agitão; fallão
com volubilidade,
usando do seu idioma sempre que podem, e indicando
o aborrecimento em se expressarem em portuguez.
As mulheres são de estatura baixa: tem a cara larga,
beiços finos, cabellos grossos e compridos. Ás
vezes, o
seu typo tem um cunho de amenidade que admira, grande
regularidade nas feições e expressão
de intelligencia.
Trazem commummente parte do busto descoberto e uma
julata
[77]
de algodão cingido abaixo dos seios, com uma
das pontas passada entre as coxas e segura na cintura.
Raras mulheres sabem fallar o portuguez: todas
porém o comprehendem bem, apezar de fingirem não
[113]
entendel-o. São as mais laboriosas e industriosas da
raça
india, guardada a relação necessaria entre a
actividade e
indolencia proprias das nações indias.
O
laiana é um typo de
transição: tem muito melhores
instinctos, menos aversão aos brancos, de cuja lingua
se servem sem repugnancia, pelo contrario, com
gosto e facilidade. O homem é mais delgado que o terena,
menos inquieto; a physionomia com tudo é muito
menos viva e intelligente. Os seus habitos de trabalho são
mais aproveitaveis, porém menos constantes e
esforçados.
As mulheres geralmente são feias: tem os olhos commummente
apertados, a côr dubia: não é o
avermelhado
franco do corpo da terena nem o amarello, algum tanto
macilento, da quiniquináo. Entretanto, como em quasi
todas as indias chanés, o talho do corpo é
elegante e
esbelto, as mãos e pés pequenos e delicados.
O typo
quiniquináo
é já mui diverso dos dous precedentes:
o homem traz estampadas no rosto a apathia
e placidez: as feições, sem
animação, são regulares e
proximamente bellas. A sua força de trabalho é
muito
diminuta: elle passa os dias, deitado sobre um couro
pellado, sem saudades do passado, nem receios do futuro;
cultiva, com grande custo, alguns cereaes que a familia
come na proporção da colheita; se
abundante, muito;
tudo em poucos dias; se nenhuma, passará a côcos e
fructas
[78]
do mato.
[114]
A mulher quiniquináo é bella: pela mistura de
raças,
facil n'essa tribu mais relacionada com os brancos e negros
e encostada a elles, a côr ou é de um amarello
escuro de canella (caburé) ou de um branco ligeiramente
amarellado. N'este caso, as faces são delicadamente
rosadas; a tez pura, os labios rubros, as gengivas vermelhas.
Quasi todas comprehendem o portuguez: fazem
esforços para fallal-o, apezar do vexame que
mostrão experimentar.
O
guaná, no districto,
quasi tem desapparecido nas
raças branca, india ou negra, que o cercão. Vimos
porém
uma india, chamada Antonia, filha de pae quiniquináo
e mãe guaná, que, sobre ser um verdadeiro typo
de belleza pela venustade do rosto, pelo delicado da
epiderme e elegancia do corpo, tinha summa graciosidade
e donaire.
Os
guaycurús, homens em
extremo vigorosos, tem
as feições brutaes e grosseiras; estatura maior
que meiã,
avantajada, ás vezes, por modo estranhavel.
O capitão Lapagates, chefe de uma aldêa de
cadiuéos,
o qual vimos no Tabôco, era um varão imponente,
com rosto expressivo e olhar intelligente; tinha no
trato uma amenidade bondadosa que muito caracterisava
aquelle heróe do forte—Olympo.
É geral a todos os indios aguçarem os dentes,
formando
pontas finas; é tambem geral usarem de
urucú[79]
e
genipapo, para pintarem no rosto
arabescos, figurando
desenhos singulares ou para fingirem barbas e bigodes.
[115]
Entre os cadiuéos, comtudo, é isto regalia
peculiar ás
mulheres e filhas dos capitães: os mais pintão
tão sómente
ao redor da boca, o que lhes dá aspecto curiosamente
feroz.
Esses desenhos são, ás vezes, feitos com muita
regularidade,
ora simplesmente com alguma tinta corante em
vesperas de solemnidades, ora marcados indelevelmente
com uma ponta de agulha em brasa.
É tambem commum a todos os indios do districto
[80]
o habito da mais apurada limpeza: lavão o corpo tres
ou quatro vezes por dia; por qualquer tempo que faça,
calor ou frio. As mulheres cuidão muito na alvura de
seus pannos e procurão sempre andar limpas, exceptas
as velhas que dão, com o tempo, de mão a esses
cuidados.
Os terenas, como acima dissemos, fórmão a maior
parte
da população india do districto: as suas
aldêas estavão
situadas no
Naxedaxe, a 6 legoas da
villa de Miranda;
no
Ipêgue, a
7
1⁄2;
na
Cachoeirinha, e
n'um lugar a
3 legoas, constituindo um aldeamento chamado
Grande,
além de outros pequenos centros. Tres a quatro mil
individuos
moravão n'esses diversos pontos.
Os quiniquináos aldeavão no
Euagaxigo, a 7 legoas N. E.
[116]
de Miranda; os guanás no
Eponadigo e no
Lauiád[81],
em numero de 30 a 40; e os laianas a meia legoa da
villa.
Os guaycurús habitavão no
Lalima e perto de
Nioac
e os indomitos e falsos cadiuéos em
Amagalobida e
Nabilek,
para os lados do rio Paraguay.
O aldeamento modelo no Baixo Paraguay era incontestavelmente
o do
Mato-Grande ou do
Bom-Successo, perto
de Albuquerque, onde os quiniquináos, debaixo da paternal
e intelligente direcção do virtuosissimo
missionario
Frei Marianno de Bagnaia, apresentavão os fructos valiosos
da catechese bem entendida. Ahi os indios obrigados a um
trabalho regular, vivião na abundancia,
entregavão-se a
diversos officios e aprendião as artes liberaes. Havia uma
banda de musica, toda composta de indigenas. Uma escola
de primeiras letras funccionava com numero crescido
de alumnos estudiosos e n'ella se incutião os principios
de religião, de que tanto necessitão aquellas
infelizes
creaturas.
Uma tribu, que desappareceu do districto quasi totalmente,
é a dos
guaxís, da qual se
encontrão só alguns
individuos, confundidos com gente de outra nação.
Esta
extincção é devida ao habito
extraordinariamente immoral
da morte dos fetos no ventre das mães, as quaes produzem
os vómitos, usando de hervas e raizes apropriadas. Os
[117]
laianas vão tambem pouco a pouco se extinguindo e, apezar
do contacto continuo com os mirandenses, iguaes factos
se dão entre quiniquináos e terenas.
Entre os indios acima mencionados, apparecem alguns
caiuás. Habitantes do
norte da republica do Paraguay,
nas cabeceiras do rio Aquidaván, são prisioneiros
de guerra
nas correrias que os cadiuéos costumavão fazer
nas terras
d'aquella republica. Para esse fim sahião do Nabilek,
passavão os campos da Pedra de Cal
[82] e, costeando a serra
de Dourados, ião ter ás aguas do Iguatemy,
contravertente
do Aquidaván.
Os caiuás erão vendidos depois e
passavão, de mão em
mão, na qualidade de captivos, aos quaes chamão
captiveiros.
A escravidão é a mais doce possivel. O
captiveiro faz
parte da familia, come com ella, é tratado como filho da
casa; tem até regalias especiaes. A senhora irá
buscar
agua á fonte e lavar a roupa que pertença ao seu
escravo
e nunca o obrigará a estes serviços. Entretanto
os captivos
são vendidos com summa facilidade e por qualquer
ninharia, apezar da longa convivencia que os unão ao
senhor.
Os indios do districto vivem na maior ignorancia e
indifferença
em materia de religião. A catechese acha-se
muito atrazada e tem sido mal dirigida. Poucos quiniquináos
[118]
conhecem a significação da
Cruz e sómente alguns
guanás usão de nossas preces.
O mais existe nas maiores trévas: entretanto elles tem
na lingua uma palavra para exprimirem Deos, a quem
chamão
Nhande-iára[83].
Cada tribu tem porém um certo numero de
padres cantores,
os quaes servem ao mesmo tempo de medicos e
feiticeiros: são destinados desde a infancia ao sacerdocio e
ainda crianças aprendem as poucas cantigas que lhes
são
particulares. Homens e mulheres servem indistinctamente:
nenhum signal os distingue: nenhum respeito os rodêa.
O mais absurdo fetichismo pareceu-nos ser a religião
dos padres: por qualquer motivo, colheitas, chuva continua,
sol ardente,
pendoar do milho, etc.,
cantarão noites
inteiras, denunciando presagios e conversando com a ave
macauán, que elles fingem
chamar de longe, imitando o
cantar tristonho.
Este passaro é pois para elles um ente sagrado. Entretanto
os outros indios matão o macauán
[84] com
tão pouca
reverencia, que indica o pouco caso que d'elle fazem.
Temos por sem duvida que os proprios padres, em occasião
opportuna, saboreem a carne d'aquella ave, dando de
mão aos principios religiosos e ao encargo de consciencia.
Ás vezes, no meio de suas praticas, o padre faz grosseiros
[119]
exercicios de prestidigitação: finge
engolir pennas
compridas, tira-as do nariz, introduz flechas no estomago,
etc., etc.; entretanto os seus admiradores são quasi sempre
crianças e velhas; os homens passão por diante
d'elle, lançando
olhares do mais completo indifferentismo, quiçá
incredulidade.
O
padre, para suas vigilias,
veste-se com uma
julata,
ornada de lentejóulas e presa á cintura por uma
especie
de talim de contas; pinta o thorax, braços e cara com
genipapo
e urucú. Estende um couro diante de sua porta e
n'elle caminha, lenta e compassadamente, avançando e
recuando,
a cantar, ora estrondosamente, ora em voz baixa
e monotona, com acompanhamento de um chocalho, que
elle segura na mão direita. Na esquerda empunha um
espanador feito de pennas de ema e bordado com desenhos
caprichosos.
Uma familia inteira póde ser de padres: assim pae,
mãe
e filhos cantão juntamente noites inteiras, cada um no seu
couro, com seu espanador, cabaça e mais adornos; as
mulheres, como os homens, trazem a parte superior do
corpo núa e pintada.
O canto de madrugada soffre uma parada longa: de repente
sôa muito ao longe o grito do
macauán: responde-lhe
o padre; vem-se approximando o passaro com pios cada
vez mais proximos, e, afinal, começão as suas
revelações
ao sacerdote. Essa scena não deixa de impressionar, pois
a imitação do cantar do macauán ao
longe e successivamente
mais e mais perto, é feita com toda a
perfeição.
O padre, como medico, é da mais crassa ignorancia;
não usa das plantas medicinaes que o
rodêão e cujas propriedades
[120]
medicamentosas parece desconhecer completamente.
Elle aparta tão sómente o doente do contacto com
os outros, apalpa-o diversas vezes, sopra no lugar enfermo
[85]
e canta frequentemente, consultando o macauán. É
a verdadeira
medicina expectante, com formulas charlatanicas proprias
da intelligencia do facultativo e do medicando.
Quando o doente fallece, o medico jacta-se de tel-o deixado
morrer por gosto
[86];
nos casos de cura, recebe presentes
e por muitos dias é ainda sustentado pela familia
do convalescente
[87],
a qual tem esta obrigação
durante toda
a molestia.
Quando morre um individuo, a aldêa toda entra em alvoroto.
A casa do morto é invadida, e n'ella levantão-se
gemidos e gritos agudissimos, soltos pelo mulherio e
crianças
[88].
Ora, é um barulho ingente dominado pelo soluçar
estrepitoso do parente mais proximo; ora, é um murmurio
confuso que dura alguns minutos, recomeçando aquellas
lamentações,
que se ouvem muito longe.
O corpo fica em casa duas ou tres horas sómente:
é
logo amarrado em uma rede enfiada n'um varapáo, que
[121]
vai carregado por dous parentes. O enterro dirige-se para
o cemiterio, acompanhado por todas as pessoas das casas
por defronte das quaes vai passando; a grita se ergue assim
cada vez mais intensa: todos lamentão-se, todos
urrão.
No acto de entregar o cadaver á terra, junto á
cova
matão-se os animaes mais queridos do morto, ao qual
enterrão com todos os objectos, que mais
affeiçoára. Se,
n'esse acto, se apresenta alguem pedindo qualquer animal
ou objecto, obtem-o logo sem difficuldade nem paga,
ficando desde ahi propriedade d'elle.
Os parentes cedem por esse modo rezes, manadas de
egoas, etc., etc., procurando desfazer-se de tudo quanto
pertencêra ao defunto.
De volta do cemiterio, o rancho é abandonado: toda
a familia muda-se: entretanto, durante muito tempo, conserva-se,
na palhada desoccupada, agoa, fogo e cigarros,
para que a alma do morto beba, se aqueça e fume.
Eis a idéa que manifestão da immortalidade da
alma.
Quando é uma mulher que morre, de volta do enterro,
quebrão-se todos os potes, pratos, etc. O rancho
tambem é completamente desmanchado.
Os signaes porque os chanés manifestão a sua
dôr,
são extremamente ruidosos. O seu lamentar é em
altos
gritos.
Mezes depois do fallecimento de um parente, qualquer
recordação
[89]
provoca scenas de dôr
estrepitosa, que é
[122]
logo acompanhada por todas as velhas da aldêa: assim,
o aspecto de um animal que se pareça com um, outr'ora
affeiçoado do defunto, o apparecimento da lua, a vista
de uma roupagem, são causas de explosão de
gritos,
que durão muitas horas.
O luto consiste—nas mulheres—em tirar os seus
adornos de prata e ouro
[90],
brincos e collares, e cortar
os cabellos na altura das faces:—nos homens—em usar
de roupas escuras, sem distinctivos nem enfeites.
A duração do luto varía conforme o
gráo de parentesco:
o de filho obriga a um anno; de pae e mãe a
muito menos tempo.
Perto de nosso rancho de palha, nos Morros, habitava
uma pobre india velha que lamentava, noute e dia, da
morte de seu filho unico, agarrado pelos paraguayos em
fins de 1865 e morto por elles a lançadas. O seu
soluçar
mostrava a dôr profunda em que jazia, entretanto
seus olhos erão seccos e nenhuma lagrima se deslisava
pelas rugosas faces. Os indios chorão com muita
difficuldade.
Ora ella enumerava, n'um cantar monotono, as
virtudes de seu filho; ora pedia á lua que recebesse a
alma d'elle; ora rogava ao sol que aquecesse o lugar em
que fôra alanceado.
Era essa infeliz mulher um typo de dôr materna: estava
magra como um esqueleto e vivia n'uma agitação
constante.
Quasi sempre aquellas manifestações
são indifferentemente
patenteadas, quer pelo fallecimento de um homem
[123]
ou uma mulher, quer pelo de uma criança de peito: em
todos os casos, é o mesmo ulular; identicas as ceremonias.
A affeição que as mães
demonstrão pelos filhos, que
um pae tributa á familia, a amizade que une os
irmãos,
são edificantes, os extremos tocantes.
Assim os paes servirão com toda a
dedicação a seus
filhos, que lhes obedecem cegamente. Isto em cada grupo,
em cada circulo. Não notámos particular respeito
aos velhos,
deferencia á velhice, como acontece aos indios da
America do norte, de cujos costumes, um tanto poetisados,
fez Chateaubriant assumpto de um poema.
D'essa submissão resulta a verdadeira venda que se executa
entre o pae de uma mulher nubil e qualquer homem
que a queira para companheira ou para mero passatempo:
a filha sujeitar-se-ha á imposição
paterna, aceitando sem
murmurar o esposo, que lhe apresentem ou despresando
aquelle, cuja separação aconselharem.
As mulheres amamentão as crianças por tempo
indeterminado:
vimos rapagotes de seis a sete annos, que vinhão
correndo suspender-se aos seios de suas complacentes
mães.
Esta pratica faz com que, depois que parem, fiquem as
mulheres completamente estragadas: os seus seios, com a
prolongada pressão, pendem ao longo do corpo, o qual
tambem, pelo habito de carregarem as crianças cavalgando
n'um dos quadris, fica arqueado e desengraçado.
O casamento é ceremonia pouco usual: os meios de
contrahirem-se nupcias são presentes e dinheiro, fonte
d'onde dimana a mais horrorosa immoralidade, visto que a
[124]
ganancia dos paes simplifica todos os preliminares, que, sem
dúvida, erão primitivamente exigidos.
Por dinheiro obtem-se mulher: quer indio, quer branco
ou negro, tem necessidade de sujeitar-se ás
condições dos
paes, os quaes tambem aconselhão ás suas filhas a
liberdade
a mais completa em materia de fidelidade.
O genio dos indios do districto, em que o ciume é sentimento
quasi desconhecido, concorre para desenvolvimento
da mais reprovavel devassidão de costumes, augmentada
pela indole dos habitantes de Miranda, como adiante mostraremos
na parte em que tratarmos das relações entre
as duas raças.
No casamento mais regular e muito mais raro, o noivo
escolhe a sua esposa, quando ainda ella é
criança: trata
d'ella, dá-lhe roupa, concorre para a
alimentação dos paes
dos quaes é considerado filho e recebe tal tratamento.
Aos 10 annos, mal apontão os peitos, ainda não
nubil,
é a noiva entregue ao seu marido e enrolada com elle
n'uma esteira, ao redor da qual os convidados
danção, cantando,
bebendo aguardente e comendo os presentes que
são a parte mais importante do casamento.
Esse habito de entregarem meninas a homens é geral:
d'elle tirão os progenitores maior lucro, dimanado da
luxuria
em seus desmandos brutaes, pois essas infelizes crianças
são procuradas e obtem quasi sempre altos preços.
É o effeito de idéas desmoralisadoras e nojentas.
Os indios, que são modelos de affeição
pelos filhos, que
os tratão com amizade extremosa, nenhum mal
enxergão
n'esses estupros, de que as victimas vem impreterivelmente
a soffrer em seu organismo e desenvolvimento.
[125]
As mulheres envelhecem com extrema rapidez: aos 14
annos estão na sua maior expansão corporea, aos
20 começão
a desmerecer, e aos 30 são velhas
(
memés), cuja decrepidez
não se faz esperada.
Para sobrestar essa marcha infallivel e temida, procurarão
ellas sempre provocar os móvitos, para o que
usão,
por conselhos de suas proprias mães e velhas da
aldêa,
de hervas
[91],
e sobretudo choques e apertos no ventre.
Assim rara é a india, que tenha tres filhos; quasi sempre
um ou dous, concebidos na idade em que a faceirice não
é de uso.
Nos Morros, havia uma quiniquináo que, com dezesete
annos, abortára já seis vezes.
No ultimo parto o feto, completamente desenvolvido,
havia sido, na sahida do utero, estrangulado pela propria
avó, a qual, desde muito, declarára que
só perdoaria, se
a criança fosse do sexo masculino.
Tambem era uma familia de padres, em que todos os
componentes pae, mãe, filhos e filhas, cantavão
de continuo,
nos atordoando os ouvidos e perturbando as doces horas do
somno. Além d'isso muito se distinguião no brutal
brinquedo
chamado
tadik.
É esse jogo um exercicio a sôcos, á
maneira do
box
inglez
[92].
Para elle enfileirão-se rapazes, mulheres e
crianças
uns defronte dos outros, procurando, com o punho fechado,
[126]
offender a cara do adversario, dando pancadas
sómente
até o queixo. Muitas vezes, furão-se os olhos,
quebrão
o nariz e com o esforço chegão a desarticular o
polegar.
Assistimos ao
tadik entre
quiniquináos e terenas e, ao
prazer do jogo, união-se sentimentos de grande rivalidade.
Entretanto os velhos separavão logo os contendores,
quando estes mostravão animosidade excessiva. Os dous
partidos, havião tomado os nomes de
luzia e
saquarema,
repercussão longinqua das lutas politicas do Brasil!
Où-est-ce
que la politique s'était nichée?!....
Acabou a festança, bebendo-se
garapa fermentada, que
substituia a aguardente.
Cada aldêa tem o seu chefe ou capitão, nomeado, ou
pelo governo imperial ou pelo respectivo director ou pelo
consenso de sua gente. O respeito que elles merecem,
é pouco extenso: a subordinação aos
chefes é muito limitada;
muitas vezes é um mero titulo sem
distincção nem
regalias.
Quanto mais civilisados, tanto menos consideração
os
indios tem pelos seus capitães. Os guanás
não aceitão
mais chefe especial. Os quiniquináos pouco caso fazem
do seu velho capitão Flaviano Botelho. Os laianas
sujeitão-se
mais; emfim os terenas observão tal ou qual
deferencia, respeitando mais os seus cabeças de tribu.
Quando viajavamos na margem direita do rio Aquidauana,
observavamos as relações que existem entre a
civilisação e os filhos das matas.
[127]
Em nossos pousos, representavamos (guardadas as
proporções
e salva a modestia) o centro civilisado: a poucos
passos, com a nossa camaradagem, pousavão alguns
guanás,
mais adiante ficavão os quiniquináos, os quaes,
de quando
em quando, vinhão misturar-se com a nossa gente; n'um
raio duplo, do nosso ponto ao dos quiniquináos,
reunião-se os
laianas e, afinal, a boa distancia, congregavão-se os
terenas.
As relações reciprocas entre esses indios
erão de cordialidade
algum tanto duvidosa; os terenas são accusados
pelos guanás e quiniquináos de máos e
inimigos dos brancos
e elles accusão aos outros de serem falsos e escravos dos
portuguezes
[93].
As raças que habitão o districto,
partírão evidentemente
da margem direita do rio Paraguay, do lugar onde hoje
existe a nação enima, de que ellas são
naturalmente ramificação.
As provas parecem-nos claras e irrecusaveis.
Além da tendencia manifesta que os terenas tem para
fugirem para as bandas do Chaco boliviano a reunirem-se
com outros da mesma tribu que vivem com os enimas,
na lingua existem palavras que demonstrão que a
presença dos guanás
[94]
no districto foi devida a
uma
grande immigração.
[128]
Assim usão
frequentemente
do termo
maiána, que quer dizer
semelhante, quando referem, a objectos familiares, outros
que lhes erão estranhos, por
associação natural de idéas.
Chamão pois ao bority—maiana hérena,
á semelhança
do
carandá; á
anta—maiana camú, semelhante ao cavallo,
etc., o que presuppõe o conhecimento do carandá
e cavallo, anterior ao do bority e anta.
Ora, os boritys existem em grande quantidade em todo
o districto, assim como as antas, e, do outro lado do
rio Paraguay não se os conhecem, sendo pelo contrario
extremamente communs os carandás e cavallos.
A conclusão é facil e vem em soccorro do que
procuramos
sustentar.
A lingua guaná, de formação muito
irregular, provém
evidentemente do guarany: ha n'ella palavras identicas,
iguaes; exemplo: iuquí,
sal; moreví,
anta;—segundo os
laianas: buricá, (guarany) muricá,
(guaná)
burro.
A sua derivação do idioma guaycurú
é clara; não só
alguns vocabulos servem para as duas nações;
exemplo
catépaga,
pacú;
achuánaga, dourado; mas
muitos são
sensivelmente modificações, assim é o
aîca (guaycurú)
e
o
acó (guaná)
que significão
não.
Comtudo a indole totalmente diversa das duas nacionalidades,
as suas idéas, os seus habitos fizerão com que
essas linguas soffressem alteração profunda,
quando falladas.
[129]
A maneira do guaycurú expressar-se é arrogante,
pausada;
as aspirações são energicas; as
palavras, terminando mais
particularmente em
a e
o fechados, são quasi
sempre esdruxulas
ou graves. Ha mais abundancia de consoantes e
essas com som dobrado e guttural.
O guaná falla rapidamente, com ligeiras
aspirações; a
sua linguagem é uma especie de sibilar continuo: os
i
repetem-se com frequencia e as vogaes seguem-se umas
ás outras, com quasi tanta profusão quanto, na
lingua allemã,
as consoantes.
Na phrase do espirituoso escriptor francez Oscar Commettant
«nas palavras germanicas as vogaes se afogão n'um
oceano de consoantes:—Apparent rari nantes in gurgite
vasto».
No guaná é a inversa, com mais
moderação comtudo.
As modificações, que cada uma das tribus
introduzio,
com o tempo, na lingua chané,
constituírão quatro dialectos,
os quaes entretanto são facilmente comprehendidos
pelos indios de toda aquella nação.
A tribu guaná
[95]
falla arrastando a lingua n'uma toada
[130]
de chôro; cantão á maneira do
pronunciar em certas localidades
de S. Paulo, apoiando muito n'uma
syllaba
para
correrem sobre as outras.
Os quiniquináos tem seus idiotismos especiaes: palavras
proprias. Os laianas tambem as tem.
Os terenas, segundo pareceu-nos, usão do idioma com
mais justeza e perfeição.
Os verbos, n'esse dialecto, são mais regularmente formados,
apezar do capricho que presidio em geral á sua
conjugação,
as analogias mais frequentes, as phrases mais
completas.
É por esta razão que os brancos do districto
aprendem
de preferencia a maneira do fallar dos terenas, e os comprehendem
com mais facilidade.
Na lingua guaycurú existe uma particularidade interessante:
os homens fallão por certo modo, as mulheres por
outro. Entre os guanás esta differença existe,
porém não
se estende a toda a phraseologia.
VOCABULARIO
DA
LINGUA GUANÁ OU CHANÉ
A
portuguez |
guaná |
Abobora |
Camé. |
Aborreço |
Bôópi.[96] |
Acarus (bicho da
sarna) |
Tchetchá-uahatí (filho da sarna) |
Adeos |
Biónne. |
Agua |
Unné. |
Agulha |
Tôpé. |
Ai!
(exclamação) |
Vûi, ou acacái. |
Aipim |
Tchupú. |
Aipim
(secco) |
Catchó. |
Aldêa |
Ptiuôcó. |
Alegre |
Elloketí.[97] |
Amanhã |
Ārôti. |
Amar |
Gâchá. |
Anta |
Maiána-camú.[98] |
Anus |
Cicicó. |
Aonde
vai? |
Náiênó? |
[132]
Aprender |
Cequechivó. |
Aracuan
(passaro) |
Uaragá. |
Arára |
Parauá.[99] |
Arroz |
Nacacú. |
Arvore |
Tagatí. |
Avental |
Juláta. |
B
Bala |
Poití-akêtí. |
Banana |
Bánana. |
Barba |
Inguenôió. |
Barriga |
Djurá. |
Bebamos |
Venóutí. |
Beber |
Venóuó. |
Bebo |
Venóuondí. |
Beijo (entre os
guanás) |
Innê. |
Beijo (entre os
terenas) |
Inní. |
Beijo (entre os
quiniquináos) |
Soquirí. |
Bezerro |
Tchetchá-uacá. |
Biuá branco
(passaro) |
Veragajín. |
Biuá
preto |
Veragaiê. |
Boca |
Bahó. |
Bocado |
Iapi-tchá. |
Boi |
Uó-ôi. |
Bom |
Unatí. |
Bonito |
Unatí. |
Borboleta |
Uacá-vacáí. |
Bority |
Maiána hérena. |
Braço |
Daké. |
Bugio |
Coxêagá. |
[133]
C
Cabaça |
Tóróró. |
Cabeça |
Duúti. |
Cahi |
Ingôrôcôóné. |
Cahidor |
Icôróóconó. |
Cahio |
Iricôóné. |
Cahiste? |
Icôrôôcôóné? |
Calça |
Bôoró. |
Camisa |
Iembênó. |
Campo |
Mehúm. |
Canella |
Gô-tchó. |
Cançado |
Meomí. |
Cão |
Tamucú. |
Capoeira |
Içomoikéneti. |
Cara |
Nôné. |
Carandá
(palmeira) |
Hêrena. |
Casa |
Pêti. |
Casar |
Ongôiêno. |
Cascavel |
Ipôcó. |
Cateitú |
Couécó. |
Cavallo |
Camú. |
Cachaça |
Cumâ-á. |
Céo |
Uanukê. |
Cerrado |
Chopotícoti. |
Cervo |
Uá-iá-jó. |
Chão |
Poké. |
Chóro |
Inhondi. |
Chover |
Ennucó. |
Chumbo |
Aketí. |
Chuva |
Ucó. |
Cobra |
Coit-chôé. |
Coitado |
Quixauó. |
Colhér |
Tchurupé. |
Come |
Niké. |
Comer |
Ningá. |
[134]
Comida |
Nicoconóti. |
Comida (entre os
quiniquináos) |
Nicôningá. |
Como |
Cutiá. |
Conhecer |
Indjá. |
Conheces? |
Ietchòá. |
Copular |
Capiú. |
Coração |
Ommindjòn (j espanhol). |
Corpo |
Munhó. |
Corrego |
Notoagá. |
Corta
(imperativo) |
Tetucá. |
Cortar |
Tetócoti. |
Cortaste? |
Iatêtucôá. |
Côxa |
Djuró-kunó. |
Criança |
Calliuônó. |
Cuia |
Pocó. |
Custar |
Côicú. |
Custar (entre os
quiniquináos) |
Ocôòcorí. |
D
Dá-me |
Pêrétchá. |
Dar |
Boritchá. |
Dedo do
pé |
Guiiri-djêvé. |
Deita |
Imêcá. |
De
mim |
Nuti. |
Dente |
Onué. |
Deos |
Iandeará. |
Deos |
Echāiuánukê. |
Depois |
Poinú. |
Depois
d'amanhã |
Poinú-arôti. |
De
tarde |
Kiacátche. |
Devéras |
Quâti. |
Dia |
Cátche. |
Diga |
Iocó-iucuá. |
Digo |
Gôe. |
Dinheiro |
Ararapeti. |
Doente |
Carineti. |
[135]
Dormes? |
Imé-coné? |
Dormir |
Móngoti. |
Dou |
Boritchá-pi. |
Dourado
(peixe) |
Achuánaga. |
Dous |
Pïátcho. |
E
Egoa |
Senó-camú. |
Ema |
Kipāé. |
Espada[100] |
Annāiti-piritáo. |
Espelho |
Nochiògueti (sc. olhador) |
Espingarda |
Capuiá-igapêtí. |
Espirrar |
Andiicotí. |
Esposa |
Iêno. |
Escravo |
Hangahá. |
Está
aqui |
Anníe. |
Estás
alegre? |
Ellóketi-iôcouó? |
Está
alegre |
Ellóketi-ôcouó. |
Estou
alegre |
Ellóketi-ongôuó. |
Estás
bom? |
Iúnati? |
Estou
bom |
Unnandí. |
Estás
cançado? |
Meomí? |
Estou
cançado |
Memondí. |
Estás com
fome? |
Epê-cati-cimágati? |
Estou com
fome |
Hapê-canú-cimágati. |
Está no
chão |
Annêgó poké. |
Estrella |
Hêquêrê. |
Eu |
Ondí. |
Excrementos |
Ciquêé. |
[136]
F
Faca |
Piritáu. |
Fallo
comtigo |
Iundzāi-copí. |
Farinha |
Tutupāi. |
Farinha (entre os
terenas) |
Ramucú. |
Faze |
Itticá. |
Fazer |
Ittuketí. |
Febre |
Tchikiití. |
Feio |
Cãunati (sc. não bonito). |
Filho |
Tchétchá. |
Fogo |
Iucú. |
Fouce |
Tchápilócoti. |
Frio |
Câssati. |
Fumo |
Tchâhím. |
G
Gallinha |
Tâpihí. |
Gallo |
Oiênó-tapihí. |
Garrafa |
Limetá. |
Gato |
Maracaiá.[101] |
Gordo |
Kínnati. |
Gostar |
Gâchá-á.[102] |
Gostas? |
Queachá? |
Gostas de
mim? |
Queachá-nuti. |
Gosto |
Gâchá. |
Gosto de
ti |
Gâchá-piti. |
Gostoso |
Uchetí. |
[137]
Grande |
Annáiti. |
Guaná
(tribu) |
Uaná ou
Tchòuórô-ônô. |
Guaycurú |
Uaicurú ou
Mãiápenó. |
H
Historia |
Chêti. |
Hoje |
Cohoihênné (os h
aspirados). |
Homem |
Oiênó. |
Hontem |
Tiipó. |
I
Idioma
(lingua) |
Nhumdzó. |
Irmã (entre os
terenas) |
Haîlê. |
Irmão (entre os
terenas) |
Lêlê. |
Irmã mais
velha |
Luké. |
Irmã do
meio |
Moguêtchá. |
Irmã mais
moça |
Atí ou Anndí. |
Isto |
Aará. |
J
Jaburú
(passaro) |
Côjó. |
Jacú-tinga
(passaro) |
Maiána-uaragá. |
Já foi
embora |
Piônne. |
Jaty (mel de abelha) |
Tchulí-tchulí. |
Já
veio |
Annègò. |
Jaú
(peixe) |
Muiôti. |
Joelho |
Buiú. |
[138]
L
Lagarto |
Iunãi. |
Laiána
(indio) |
Láiana.[103] |
Lambary
(peixe) |
Chivôupè. |
Lavar |
Angicãuotí. |
Lavemo-nos |
Uachicapú. |
Linguagem |
Iundzó. |
Lingua |
Nahênê. |
Lua |
Co-tchêé. |
M
Machado |
Pôhóti. |
Macho |
Oiênó-muricá. |
Maduro |
Itóuónné. |
Mãe |
Mêmê.[104] |
Mãe |
Hennó. |
Mais |
Poí. |
Magro |
Uporití. |
Mamma |
Iênné. |
Mandary
(mel) |
Rôoró. |
Máo |
Cáunati. |
Mão |
Uon-húm. |
Marido |
Immá. |
Matar |
Inzucôti. |
Mato |
Uó-hi. |
Mecher |
Ivirikê. |
Meche
(imperativo) |
Ivirikêá. |
[139]
Mel |
Mópó. |
Melancia |
Andiá. |
Menos |
Calliánna. |
Mentira |
Ninicó. |
Menstruo |
Ittiná. |
Meu |
Induguê. |
Milho |
Tuupí. |
Miolo de palmeira |
Namuculi. |
Milho
fôfo |
Sóbóró. |
Muito
(adverbio) |
Opôicoati. |
Muito (adjectivo) |
Tapuiá. |
Muito
bom |
Unati-âtcho. |
Muito
gostoso |
Uchêti-âtcho. |
Mula |
Senó-muricá. |
Mulher |
Senó. |
Mutum |
Maiána-uatutú. |
N
Nadar |
Alaongôati. |
Não |
Acó. |
Não
custa |
Acó-cõicú. |
Não custa (entre os
quiniquináos) |
Acó-ocô-ocorí. |
Não
quero |
Acon-gâchá. |
Nascer |
Ipuchicá. |
Nariz |
Guiirí. |
Negro |
Hahóóti. |
Ninho |
Nôcó. |
Nós |
Uutí. |
Nosso |
Utiguê. |
Noute |
Ihotí.[105] |
Nuvem |
Capací.[106] |
[140]
O
Olhos |
Unguê ou uké. |
Onça |
Sêni. |
Orelha |
Inguênó. |
P
Padre |
Côchômònetí. |
Pae |
Tatá. |
Palmito |
Momoôn. |
Papagaio |
Coêrú. |
Panella |
Tchôrôné. |
Parente |
Iningôné. |
Passaro |
Chohopennó. |
Passeiar |
Iapacicá. |
Pato |
Pohahí. |
Pé |
Djèvé. |
Pega
isto |
Oiá-aará. |
Peito |
Djahá. |
Peixe |
Chojé.[107] |
Pensar |
Iquichá. |
Perdiz |
Itidichú. |
Perna |
Gônú. |
Pescoço |
Annúm. |
Penis |
Kiú. |
Pennas |
Kipahí. |
Pimenta |
Têité. |
Pinto |
Tchétcha-tapihi. |
Piolho |
Aná. |
[141]
Pirapitanga
(peixe) |
Araraitti-issí.[108] |
Piriquito |
Tchulí-tchulí. |
Polvora |
Poití. |
Porco |
Gôré. |
Porco do
mato |
Kimão. |
Prato |
Uutá. |
Preguiçoso |
Tchuléketi. |
Prompto |
Oçoné. |
Pulga |
Anatamacú.[109] |
Q
Quando |
Namanó. |
Quatí
(animal) |
Còtéchú. |
Quebrar |
Heocoti. |
Queixo |
Nónhí. |
Quem
sabe? |
Emó? |
Qente |
Cótotí. |
Quero |
Gâchá. |
Queres? |
Queachá? |
Queria |
Gácha-niní. |
Quiniquináo |
Koinu-kunó.[110] |
R
Rapaz |
Omoheháu. |
Rede |
Toití. |
Regrada |
Ittiná. |
Remar |
Ivirikê. |
Rio |
Uêhó. |
[142]
S
Saber |
Indjá. |
Sabes? |
Iétchoa. |
Sangue |
Iti. |
Sapo |
Tôrumó. |
Sarna |
Uahatí. |
Saudades |
Inanguòró. |
Seu |
Iutí ou iú. |
Sentar-se |
Iavapoquehí. |
Seriema
(ave) |
Uatutú. |
Siga
(imperativo) |
Tchicá. |
Sobrancelha |
Indjêukê. |
Sol |
Cátche. |
Soldado |
Andâru. |
Sombra |
Epêuôgôpê. |
Sonhar |
Chapuchatí. |
Sonhas? |
Chaputchôné. |
Sonho |
Indja-putchatí. |
Sovaco |
Umbêkêcu. |
Sucury |
Oiênaga. |
Suruby
(peixe) |
Apópaga.[111] |
Sua |
Itiguê. |
T
Tatú |
Copohé. |
Taquara |
Hetágati. |
Temos |
Hape-utí. |
Temer |
Bicuátine. |
Tens? |
Iapê? |
[143]
Ter |
Hapê. |
Teréna |
Térena.[112] |
Terra |
Marihípa. |
Testa |
Inucú. |
Tolo |
Ietôré. |
Tomar |
Mambatí. Namacá. |
Touro |
Tôôró. |
Trazer |
Iamané. |
Tres |
Mopoá. |
Trovão |
Unobotí. |
Tu |
Iti. |
U
Um |
Poichácho. |
Umbigo |
Unró. |
Unha |
Djiipó. |
Urubú |
Uarututú. |
V
Vá |
Pehehévo. |
Vamos
comer |
Nicotiúti. |
Vamo-nos
embora |
Peháoti.[113] |
Vamo-nos
lavar |
Uachicapú. |
Vás
buscar? |
Viapána? |
Veado |
Tiipé. |
Veio (do v. vir) entre os
quiniquináos |
Simêné. |
[144]
Vem
cá |
Iôcó. |
Vento |
Onauotí. |
Verde |
Aõitapú. |
Via
lactea |
Chamôcôé. |
Vim (entre os
quiniquináos) |
Simôné. |
Vim (para
ficar) |
Intzioponné. |
Vim (para
voltar) |
Indzimonné. |
Você |
Ití. |
Vou
buscar |
Veaponotí. |
Vou-me
embora |
Bohoponé. |
Vulva |
Iusí. |
No incendio e saque de Nioac, a 2 de Junho de 1867, perdemos
um diccionario guaná com perto de dous mil vocabulos. Nos
papeis
que encontrámos esparsos pelo campo e podémos
ajuntar, achavão-se
algumas folhas com as palavras, ainda não em ordem
alphabetica,
d'este incompleto vocabulario.
Algumas
indicações
Os pronomes possessivos isolados são:
Induguê |
Meu |
Itiguê |
Teu |
Iuti ou iú. |
Seu |
Utiguê |
Nosso |
Entretanto são quasi sempre contrahidos nas palavras, como
por exemplo:
[145]
Possessivos da 1ª
pessoa |
|
Possessivos da 2ª pessoa |
|
|
|
|
|
Minha
cabeça |
Duutí. |
|
Tua
cabeça |
Totihé. |
Minha testa |
Inucú. |
|
Tua
testa |
Inicú. |
Meu
nariz |
Guiirí. |
|
Teu
nariz |
Quiirí. |
Minha
boca |
Bahó. |
|
Tua
boca |
Pehahó. |
Meu
dente |
Onué. |
|
Teu
dente |
Iahoé. |
Meu
queixo |
Nónhí. |
|
Teu
queixo |
Neôió. |
Meus
olhos |
Ungê. |
|
Teus
olhos |
Iuukê. |
Minha orelha |
Inguênó. |
|
Tua
orelha |
Keinó.[114] |
Meu
corpo |
Munhó. |
|
Teu
corpo |
Muió. |
Meu
pescoço |
Anúm. |
|
Teu
pescoço |
Ianúm. |
Meu
braço |
Daké. |
|
Teu
braço |
Tiakí. |
Meu
peito |
Djahá. |
|
Teu
peito |
Tchiní. |
Minha
mão |
Uonhúm. |
|
Tua
mão |
Veaú. |
Minha barriga |
Djurá. |
|
Tua
barriga |
Iurá. |
Minha
côxa |
Djuró-cunó. |
|
Tua
côxa |
Chiró-cunó. |
Minha canella |
Gôtchó. |
|
Tua
canella |
Guetchá. |
Minha
casa |
Imbenó. |
|
Tua
casa |
Pinó. |
Meu
pé |
Djêvê. |
|
Teu
pé |
Hiné. |
Meu dedo do pé |
Quiri-djêvê. |
|
Teu dedo do pé |
Kiriúêvê. |
Meu
filho |
Indjétchá. |
|
Teu
filho |
Tchi-tchá. |
Nossa
casa |
Vuóvogú. |
|
|
|
Os possessivos da terceira pessoa são quasi sempre formados
com os pronomes
iú.
Os adjectivos numeraes vão só até
tres:
Um |
Poichâcho.[115] |
Dous |
Piátcho. |
Tres |
Mopoá. |
Os indios continuão presentemente
[116] com as palavras
portuguezas,
algum tanto adulteradas:
Quatro |
Uátro. |
Cinco |
Cinquê. |
Seis |
Siês. |
Sete |
Siéte. |
[146]
Oito |
Otcho. |
Nove |
Nôie. |
Dez |
Iéce, etc. |
Os pronomes pessoaes são os seguintes:
Ondí
eu. |
Ití
tu. |
Uutí
nós. |
Nôê
elles. |
Nutí de mim. |
Ni de
ti. |
Com os verbos emprega-se a particula
pi em lugar de
ondi.
Esses pronomes vão sempre depois do verbo.
A conjugação dos verbos é
irregularissima e difficil senão impossivel.
São sempre defectivos.
presente do indicativo
do verbo ter (hapé)
Eu tenho |
Hapê ondí. |
Tu
tens |
Iapê. |
Elle tem |
Hapê. |
Nós temos |
Hapé utí. |
Elles tem |
Hapé noé. |
Para a formação do imperfeito
accrescentão
nini.
Inindjoa, nini ondi |
Eu tinha. |
Innitchiécô |
Tu tinhas, etc. |
Outro exemplo:
Eu
quero |
Gâcha pi. |
Tu
queres |
Queachá. |
Elle
quer |
Gachá. |
Nós
queremos |
Gachá uti. |
Elles querem |
Gachá nôê. |
imperfeito
Eu
queria |
Gachá nini ondi. |
Tu
querias |
Queachá nini. |
Nunca pude organisar a conjugação de outros
tempos.
[117]
[147]
Phrases e exemplos
Sonho
comtigo? |
Chaputchononetí
(sc. penso na tua cara). |
Tenho saudades de
ti |
Inangoró
gopi ni (sc. saudades eu pi, de ti ni). |
Dá-me
noticias |
Iticá
chetí (sc. faze historia). |
Nada
sei |
Acó
índja. |
Não
estás
contente? |
Acó
elloketí? |
O que tens?
Estás incommodado? |
Cuti
iapê? Calliána
unatí? |
Estou doente dos
olhos |
Carineti
ukê (sc. doente olhos) |
Desde muitos
dias? |
Tápuiá
cátche? |
Desde ante
hontem |
Poinú
tiipó. |
Coitada |
Quixauó. |
Adeos |
Biónne
(Eu vou indo). |
Adeos |
Pehehêvo
(Pois vá). |
Estás
com
fome? |
Epê cati
cimagatí? |
Sim |
Aspiração
guttural não exprimivel. |
Senta-te e come.
Toma arroz
com carne. Queres
farinha? |
Iavapoquê,
niké. Viá nacacú
cuanê uacá. Queachá
ramucú? |
Não,
senhor: quero aipim e aboboras. |
Acó,
unãi: gachá tchupú
iocó camé. |
Traz facas e
farinha. |
Iamané
piritáu, cuané
ramucú. |
O seu jantar
está muito bom.
Sua mulher sabe cosinhar
muito bem: na minha casa
nunca comi assim. |
Unati
niké. Cuáti êchotí
itucôati nica ienô. Auó
ningá onuongú cutiá
ionogú.[118] |
[148]
Come
mais
então. |
Niké,
igopó. |
Não,
obrigado. Agora quero
agua e vou-me
embora |
Acó
mondóuané. Poiáne
unné gachá. Behopótine. |
Quando has de
vir? |
Namõ
kenaacá. |
Outro
dia |
Poinu
cátche. |
Quem sabe se
amanhã? |
Etchuáne
coecú arôti.[119] |
É
facto |
Ennómone. |
Pois e
porém vão
sempre depois da primeira palavra, exemplo:
pois toma;
nemucá toma,
copó pois;
porém come;
niké come
copoé
porém.
Quando,
namanó, vem
sempre antes. Quando has de vir?
Namanó
kinoôké.
NOTAS
A
Já tivemos a occasião de dizel-o officialmente: a
estada do Coxim
foi um lento martyrio, no qual todos extremárão
em resignação e
calma. A esse respeito diziamos, depois de examinarmos as fontes
de abastecimento que poderião fornecer viveres ao
acampamento
do Coxim e reconhecermos a impossibilidade em que se
achavão de satisfazer tal compromisso:
«N'este estado desesperado a força achou-se a
braços com a
mais completa mingoa. Reduzida a simples carne, por espaço
de
mais de mez, muitas vezes faltou-lhe aquella
alimentação exclusiva,
que deu em resultado o apparecimento de varias molestias.
Os generos de primeira necessidade chegárão a
preços exorbitantes,
aproveitando-se a ganancia e o espirito de lucro abusivo, da
desgraça, a que todos se vião reduzidos. Um
conjuncto, comtudo,
de factos tão tristes fez mais realçar as
virtudes que imperão no
soldado brasileiro, patenteando o seu caracter eminentemente soffredor
e resignado, a subordinação e disciplina, que lhe
são naturaes.
[150]
«Depois de dias, em que nada se distribuia, nenhuma queixa se
erguia, nenhuma exigencia se ouvia: todos se penetravão das
difficuldades
que presidião a qualquer providencia que tomar, e calmos
esperavão pelo que lhes reservava a sorte. Não
nos compete a
apreciação dos factos que derão em
resultado esta ordem de cousas:
consignamos simplesmente as phases por que passou a
expedição,
nas quaes sempre presenciámos o comportamento altamente
recommendavel do pessoal que a compunha; galhardo nas marchas
e prompto para todos os trabalhos, supportando, emfim, as
maiores privações, a que póde ser
sujeito o homem na guerra,
sobretudo nas condições difficeis, que
proporcionão distancias
immensas e sertões inhospitos. Depois da mais penosa marcha
por centenares de legoas, rodeada de perigos e incommodos, na
qual de continuo lutava-se com circumstancias imprevistas, acompanhadas
de innumeras afflicções, veio a estada prolongada
do
Coxim pôr á prova a
abnegação e o sentimento intimo do dever,
de que tantos exemplos brilhantes tem dado o brasileiro, que enverga
os distinctivos da vida de privações e de
soffrimentos».
Relatorio geral da commissão de engenheiros nas
forças em operações
ao sul da provincia de Mato-Grosso, 1866 pag. 48 (Annexo
ao relatorio do ministerio da guerra, 1867).
Quadro exacto da triste situação que apresentava
a expedição de
Mato-Grosso, atirada a um canto da provincia, que vinha soccorrer,
reduzida á inacção por obstaculos
invenciveis de um lado,
do outro pelos poucos meios, de que dispunha, para, sómente
sobre si, emprehender a offensiva. De nenhum consolo lhe servia
o titulo pomposo, com que, a pedido, a havião agraciado.
Forças lhe
faltavão;
operações era
uma ironia cruel para um espirito
philosophico e o sul da provincia de Mato-Grosso é
tão vasto,
tão medonhamente erriçado de difficuldades,
sobretudo n'aquella
época, quanto o erão os sinistros
paúes da Germania em que se
abysmárão as bizarras legiões de Varo.
Assim, pois, não nos illudiamos
sobre o presente; e o futuro, como derivação
natural,
não nos abria horisontes de flôres.
[151]
B
Na viagem, que levámos, nunca podémos fazer
senão estudos
perfunctorios d'aquillo que acompanha o caminho: da
vegetação
só vimos a fita que segue o trilho, em mineraes,
só o que se
achava em seu percorrer. Por isto não nos julgamos
habilitados
para avançar uma proposição fixa e com
força de regra; entretanto,
certo cuidado na observação permitte termos por
certo um
facies especial, que distinga, mais ou menos, os
cerrados de S. Paulo,
Minas-Geraes, Goyaz e Mato-Grosso, que fomos atravessando. Na
primeira d'estas provincias pareceu-nos predominarem as
cassiaceas
e
terebinthaceas; na segunda, ao
menos na nesga que atravessámos,
myrtaceas, na terceira,
especialmente
malpighiaceas
(murecys)
até a villa dos Aboboras, e, d'ahi por diante, de envolta
com ellas,
uma
myrtacea, a
cagaiteira. Em Mato-Grosso, para os
lados do Piquiry,
a quantidade de
guabirobas nos
cerrados é prodigiosa, e,
entre o Coxim e o rio Negro, na zona em que nos achavamos,
figurão com especialidade os
araticús e
rollinias. Em todos os
cerrados,
todas aquellas familias se achão representadas,
porém o que procuramos
fazer notar, é o predominio de uma d'ellas ou pelo menos o
de um genero.
Debaixo do ponto de vista do desenvolvimento, em iguaes
condições
apparentes, os mais vistosos são os de Mato-Grosso; os
menos, os de S. Paulo: ahi chega o aspecto d'elles a ser
senão
desolador, ao menos contristador. Talvez lhe achemos a causa na
maior frequencia de queimadas de campos, que annualmente são
feitas, na approximação das chuvas.
Os terrenos arenosos apresentão os mesmos typos botanicos;
entretanto, mais desenvolvidos do que nos argilosos. Os areaes
entre Bahùs e Coxim e nas immediações
de Sant'Anna do Paranahyba
são prova do que avançamos; assim tambem certos
pontos
da provincia de Goyaz, quasi ao chegar á villa das
Dôres do rio
Verde (Aboboras).
[152]
Nos verdadeiros cerrados até Mato-Grosso,
observámos a pouca
frequencia das
melastomaceas,
comtudo tão facil de distinguir. Ao
entrar, porém, n'essa provincia, tornão-se ellas
muito frequentes,
apresentando bellos exemplares, pelo seu desenvolvimento geral.
Em todos os cerrados sempre notámos a bem conhecida
canella
de ema.
As arvores dos
cerrados
são quasi todas tortuosas; a casca
sempre escamosa, fendida irregularmente, grossa, merecendo
por isso muitas d'ellas o nome de
jacarés, devida, ao que
nos
pareceu, á acção annual do fogo que
provoca esse desenvolvimento
do
liber, obstaculo á
carbonisação que permitte ao vegetal
poder continuar o seu penoso crescimento. As
cassias,
sobre todas, são notaveis por essa
alteração da camada cortical.
C
A folhagem verde-escura da
mauritia,
abre-se como um leque,
sustentado por longos peciolos alveolados no topo de um
estipite liso e pardacento claro, no qual se notão os
traços parallelos
formados pela quéda das voltas semi-amplexicaules das
folhas.
Ao lado d'aquella formosa monocotyledonea, a
macaybeira
(acrocomia sclerocarpa) parece acanhada e fica completamente
offuscada; das palmeiras, cujas folhas são todas revestidas
por
foliolos, a unica que rivalisa em elegancia e altaneria é o
auassú
que os guaycurús chamão
chatellôd.
Do bority extrahe-se um succo saccharino, usado, depois da
fermentação, como bebida e do qual se
póde tirar excellente assucar,
como o fez um official das forças. Os fructos dão
em compridos
cachos; são ovoides, com casca rija, amarello-avermelhada,
escura e brilho metallico, todos cobertos por escamas rhomboidaes,
que encobrem uma polpa pouco saborosa, ainda quando
preparada com assucar. A amendoa acha-se n'uma loja monospermica.
Em épocas de fome, de muito servírão
aos soldados
que procuravão não só os
côcos, em concurrencia com as
aráras,
[153]
como em razão do miôlo que chupavão com
grande gosto. Os
boritys são sempre indicio de agua, nascendo só
em lugares humidos.
No caminho para Uberaba apparecem, pela primeira vez, no pouso
dos Boritys (a 84 legoas do littoral), nas proximidades do rio
Grande, divisa entre as provincias de S. Paulo e Minas. D'esse
ponto em diante, acompanhão a trilha, que
seguírão as forças,
atravessando Minas, Goyaz e Mato-Grosso. Até o rio Negro, a
abundancia de boritys é extrema; d'ahi por diante,
vão-se tornando
menos frequentes e, para os lados de Nioac e sul do districto
de Miranda, vêem-se raramente.
D
Comprehendendo, de ante-mão, as difficuldades com que
lutarião
os nossos collegas na promptificação de
canôas, sem as ferramentas
precisas nem trabalhadores habilitados, fizemos lembrada a conveniencia
em transportar aquella barca para junto áquelle rio. As
nossas previsões realizárão-se
completamente e os obstaculos que
embaraçárão os engenheiros, no
desempenho da commissão a este
respeito, justificárão a importancia que haviamos
dado áquella conducção.
E
O
aucury, do genero attalea,
affeiçôa, como os boritys, os lugares
humidos, apparecendo só n'aquelles que são
commummente encharcados.
O seu aspecto é baixo; o estipite fino, ás vezes
engrossando
extraordinariamente junto ao coroamento das folhas, as
[154]
quaes tem longos foliolos delgados. Os fructos (cujos côcos
tem 3
bagas monospermias) com uma bonita côr amarello-alaranjada, e
revestidos por uma casca filamentosa (que não tem
máo sabor,
sobretudo assada), dão em cachos, que ás vezes
pendem junto
ao chão, servindo de pasto aos porcos do mato, que os
procurão
com avidez.
Por isso, quando atravessavamos os aucurisaes do rio Negro,
onde a abundancia d'esses côcos era extrema, grandes varas de
queixadas (dicotyles labiatus)
fugião diante de nós, sendo facil a
um dos soldados derribar alguns d'elles.
F
Qualquer depressão de terreno, qualquer encontro de declives
transforma-se n'essa zona em profundas sanjas, que quasi sempre
vírão em escoantes para os rios. Eis a
corixa ou o
corixo.
A retenção da agua, por muitos mezes, desenvolve
então uma
vegetação palustre no meio de moutas de capim,
reunindo-se
n'ellas frequentemente as terriveis
piranhas (myletes macropomus),
que tornão essas passagens perigosas, pelos lados do
Piquiry.
G
A qualidade de mel que dá o jaty é boa, perfumada
e clara;
entretanto a quantidade é commummente muito diminuta.
A colmêa é no tronco das arvores, quasi sempre
junto ao chão.
Pelo contrario, sempre na parte superior, na
dichotomia ou
bifurcação
de ramos, faz o seu cortiço a abelha
mandory ou
mondori:
[155]
mondé, colher,
ira, mel, o qual é
superior ao do jaty, rivalisando
com o do
cacheta em sabor e
limpidez. A abelha
mandory
é especie grande, preta, rajada de amarello.
Seguem-se em qualidade: o
achupé (grande e preta),
o
sanharão,
o
borá (grande e
amarella), o
uruçú, o
lambe-olhos, etc.
D'essas abelhas, fomos, no seguimento da viagem, encontrando
individuos. Além d'isso frequentes arvores, cortadas nos
lados do
caminho, mostravão-nos a copiosa colheita que fazem os
indios, os
quaes, justamente n'aquella época, recolhião o
mel para fermental-o,
o que dá lugar ás festas religiosas, em que
estavão empenhados,
quando chegámos á aldêa da Piranhinha.
H
Levavamos então um chapéo que
compráramos na aldêa: era de
palha de
carandá
(copernicia cerifera), e muito bem trançado. Esta
palmeira, bastante frequente no norte da provincia, é mais
rara
no districto. Pela primeira vez a tinhamos visto quasi ao chegarmos
ao Tabôco, occupando um vasto barreiro com lindos specimens,
cujo aspecto era-nos totalmente novo. Mais alto que a
carnaúba, com quem tem
muitos pontos de relação (se não
fôr
ella propria), com estipite, porém, mais fino e ligeiramente
flexuoso,
tem as folhas supportadas por longos peciolos erectos, que
fórmão um coroamento em leques, como o do
bority, mas cujos
foliolos são rigidos e terminados por pontas espinhosas.
A reunião de muitas d'essas palmeiras, cujo tronco
é aproveitado
para construcção de casas e curraes, cuja palha
é muito
utilisada para chapéos e cujos fructos, pequenos e em cachos
compridos, dão algum azeite, chama-se um
carandal.
Ahi fórmão ellas moutas compostas de palmeiras
rasteiras, no
meio das quaes surge alguma mais desenvolvida, levando agarrados
cipós e parasitas, que vivem nos sulcos das folhas cahidas.
Algumas nopaleas, sobretudo a
opuntia, com o aspecto
tão original,
e uma ou outra dicotyledonea, cuja folhagem agrada tanto
[156]
pela disparidade, constituem, ao redor dos elegantes
carandás,
grupos, como que arranjados pela mão artistica de algum
horticultor
intelligente.
O
carandá, que vimos pela
primeira vez perto da Piranhinha,
apparece, com abundancia, entre Nioac e a colonia de Miranda.
Talvez, no districto de Miranda, possão ser, por meio de
linhas
longitudinaes, assignaladas tres zonas de palmeiras predominantes:
a dos
boritys, do Coxim á
villa de Miranda; dos
carandás,
da villa á colonia de Miranda, e das
macaúbas; da colonia ao
Apa.
I
Nas proximidades do Aquidauana e na localidade de refugio no
cimo da serra de Maracajú, distante d'aquelle rio cinco
legoas,
vimos em
aves, além das
mencionadas: na familia dos
accipitres,
muitos
urubús
(percnopterus jota), alguns dos quaes completamente
brancos (urubutingas)
gaviões e innumeros
caracarás (polyborus
chimango) que esvoaçavão, com estridentes pios,
por cima
das queimadas, para agarrarem as cobras e reptis, acoçados
do
fogo. Na familia dos
trepadores,
avistámos: a
arara azul
(ara ararauna)
com as costas e cauda azul, peito amarello-alaranjado,
a
vermelha (ara aracanga), a
rôxa (ara hyacinthinus),
á qual convinha
mais o epitheto de ararauna (arara preta), côr que, de longe,
parece ter;
tucanos de papo branco
(rhamphastos toco) especie
grande e rara, de
bico preto
(rhamphastos ariel),
de papo
amarello
(ramphastos discolorus), que são derribados, mal lhes toque
um
bago de chumbo o bico: nas arvores, o desconfiado
alma
de gato
(coccyzus cayanus) se esgueirava ligeiro por entre os galhos e o
lindo
jacamacira (galbula viridis)
n'elles pousava gravemente,
emquanto os
pica-páos
(picus melachloris, robustus, etc.) em zig-zag
se atrepavão, agarrados aos troncos. Entre os
passaros figuravão
os
sabiás (turdus
flavipes,
una, e rufiventer,
larangeira), o
bemtevi (tyrannus sulphuratus), o
serra-serra (carduelis nitens), o
canario da terra (carduelis
brasilienses), o
avinhado (pitylus
nasutus),
[157]
os
caraúnas ou
virabostas (icterus violaceus) os
mais animados
e barulhentos cantores do sertão, os
encontros (xanthornus
tristis) e muitos outros notaveis pela plumagem e canto que
não
conheciamos e viamos pela primeira vez.
Nos campos ha poucas
perdizes e
codornizes: na planura de cima
da serra não as vimos: em compensação,
a volateria é sobremaneira
importante em outras qualidades, como já
mostrámos.
Entre os
reptis, além dos
ophidios já apontados,
avulta o
lagarto:
os
bactracios são os
conhecidos geralmente.
Entre os
insectos todas as
subdivisões são mais ou menos bem
representadas: entre os
nevropteros
apparece com abundancia o
térmes
(cupim), nos
hymenopteros, muitas
especies de
maribondos, de
formigas e
abelhas: poucos
lepidopteros: nos
dipteros muitos
mosquitos,
muriçocas,
mucuins ou
polvoras,
moscas, etc., em alguns pontos do
rio, em outros são rarissimos.
Entre as
arachnides, não
pode ser esquecido o
acaride-arachnide,
carrapato (ixodes) um dos grandes
incommodos de quem viaja
pelas matas. No Aquidauana eramos flagellados pelo
rodeleiro ou
estrella (especie grande),
ruivo (especie menor) e
piolho de gallinha
(especie mui pequena).
N'um dos affluentes do Aquidauana encontrámos curiosos
molluscos,
com a conformação do
mechilhão (mytilus) e com
o interior
da costa calcarea brilhante, a modo de madreperola. «O
Pacheco e o Valerio, diz uma de minhas notas de viagem,
affianção que, em certo ponto do rio Paraguay, ha
muitos d'esses
restos, sendo até uma bahia denominada das
Conchas».
Achámos
tambem d'essas conchas no ribeirão do Euagaxigo, a 3
1⁄2
legoas
da villa de Miranda.
APPENDICE
APPENDICE
Memoria descriptiva do reconhecimento
do caminho entre os rios Taquary
e Aquidauana, feito pelos engenheiros capitão bacharel
Antonio Florencio
Pereira do Lago e 2º tenente bacharel Alfredo d'Escragnolle
Taunay,
ajudantes da commissão de engenheiros junto ás
forças em operações
no sul da província de Mato-Grosso.
I
Exploração entre os rios Taquary e Negro
No dia 13 de Fevereiro passámos, defronte do acampamento
goyano, o rio Taquary e margeando-o á esquerda,
fomos, pela necessidade de descanço em consequencia do
grande nado a que tinhão sido obrigados os animaes, pousar
junto ao ribeirão da Fortaleza, com 20 minutos em tempo
de distancia percorrida. A sua margem esquerda é
escarpada e necessita ser rampada para a descida de carros;
a direita é baixa e arenosa como o alveo d'este tributario
do Taquary, que, depois de grandes chuvas, nega
passagem a váo. Conta de largura 50 palmos, de profundidade
3, 1
1⁄2
por segundo de velocidade e a elle segue-se
[162]
uma mata onde existem varias rampas que podem ser
facilmente vencidas. Deixando pelo lado esquerdo o Taquary
e seguindo parallelamente ao seu confluente, o Coxim,
que, pouco depois, desapparece, começámos a
acompanhar
o Taquary-mirim, o qual ora afasta-se, ora approxima-se
muito perto do caminho, transpondo-se com 32 minutos
de marcha um pequeno corrego, cujas ribanças
necessitão
ser modificadas, e d'ahi a 43 milhas, outro nas mesmas
condições. Com mais 41 minutos
passámos um ribeirinho
cujos barrancos devem ser cortados para facilitar a passagem,
e pouco depois chegámos á cachoeira do
Taquary-mirim
(pouso dos Boritys), junto á qual existem vestigios
de um acampamento dos paraguayos e onde pernoitámos.
A distancia percorrida foi sempre em terreno secco,
de base argilo-arenosa, entre cerrados em que predominão
anonaceas (araticús do
campo) e varias especies de
byrsonima:
o caminho é uma simples trilha, muito visivel
porém
e sempre seguido.
Tempo
gasto |
4 horas e 32
minutos. |
[120]Distancia
percorrida |
8,265
braças, ou 2 3⁄4
legoas proximamente. |
Deixando o pouso dos Boritys que offerecerá um acampamento
regular para as forças em marcha, com 36 milhas
[163]
de marcha fomos ter ao corrego da Porteira, a 77
minutos do qual passámos outro, chegando ao
ribeirão da
Mata depois de caminharmos mais 95 minutos. A 50 braças
antes d'esta corrente, existe um terreno baixo que ha
de tornar-se alagadiço com a
continuação de chuvas, podendo
ser praticada, n'este caso, uma extensa estiva pelo
muito mato, que cobre as margens do ribeirão.
O leito d'este é arenoso; a largura média de 50
palmos,
2 de profundidade, chegando a negar váo no tempo de
grandes enchentes. Ahi podérão acampar as
forças depois
de ter sido facilitada a passagem, rampando-se a margem
esquerda.
Tempo
gasto |
4 horas e 0
minutos. |
Distancia
percorrida |
7,285
braças, ou 2 8⁄2
legoas proximamente. |
A 16 minutos do ribeirão da Mata, existe uma casa
abandonada,
proxima a um capão, denominado Tapera, assim
como o corrego, que, pouco adiante, dirige-se para E. entre
margens pouco firmes, permittindo porém a proximidade
do mato fazer-se de prompto uma estiva para a passagem
de cargueiros e carros. D'ahi a 8 minutos passámos um
pequeno pantano de 30 braças, que póde dar boa
passagem,
se as chuvas não augmentarem e o tempo tornar-se
secco; devendo ser este espaço estivado no caso contrario.
Continuando, atravessámos o ribeirão Claro, cujas
margens
altas e nemorosas precisão ser melhoradas, com leito
pedregoso,
largura de 35 palmos e profundidade de 1
1⁄2.
Depois
de chuvas continuadas impede o transito. Depois de
110 minutos chegámos ao ribeirão Verde que tem
margens
[164]
abruptas, cobertas de mato, leito de grandes lages,
váo pessimo para a passagem de animaes carregados.
Tem de largura 65 palmos, 3
1⁄2
de profundidade, augmentada
porém, durante as aguas, a ponto de vedar o
transito.
A força póde acampar em sua margem direita depois
de rampados os barrancos que encanão este
ribeirão.
Tempo
gasto |
3 horas e
0
minutos. |
Distancia
percorrida |
5,463
braças,
ou 1 1⁄3
legoas proximamente. |
Sahindo do ribeirão Verde, passámos com 63
minutos
de marcha um bosque e d'ahi a 30 minutos a mata ou
capoeira do Major com abrupta descida que vai ter a um
pantano, em que gastámos 5 minutos, seguindo-se nova
mata e outro almargeal cortado tambem por mato. O terreno
começa a subir: torna-se pedregoso e entra-se no
Portão de Roma: pessima e difficultosa passagem
embaraçada
com grandes lages e rochas que se achão na trilha
que serve para a viação. As carretas dos
paraguayos passárão
por este desfiladeiro: entretanto será necessario um
trabalho preliminar ou um desvio para conseguir-se facil
transito. Continuando a caminhar, margeámos um lugar
pantanoso logo abaixo do serrote e com mais 44 minutos
fomos pousar no Lageadinho, onde um pequeno lagrimal
dá agua em toda esta estação.
Tempo
gasto |
3 horas e
49
minutos. |
Distancia
percorrida |
6,951
braças, ou 2 1⁄4
legoas proximamente. |
[165]
Deixando o Lageadinho, passámos um lagrimal depois
de 65 minutos de marcha e com mais 65 o corrego do
Castelhano, entrando d'ahi a 15 minutos n'uma mata,
atravessada por um filete d'agua, seguindo-se outras, cortadas,
de distancia em distancia, por campos dobrados até o
corrego da Volta, onde poderá formar-se o acampamento
das forças.
Tempo
gasto |
5 horas e 19
minutos. |
Distancia
percorrida |
9,683
braças, ou 3 3⁄2
legoas proximamente. |
Do corrego da Volta, com 41 minutos de marcha passámos
n'um matagal, e com mais 32 minutos o ribeirão
do Perdigão, cujas margens hão de necessitar de
concertos
para a facil transposição.
D'este ribeirão, com 44 minutos, entrámos na mata
dos Jaós, de 3 minutos de extensão, onde os
paraguayos
deixárão uma canôa, que
poderá servir para a passagem
do rio Negro, caso seja concertada e transportada para
aquelle ponto. Com 65 minutos chegámos ao corrego da
Cachoeirinha, e, d'ahi ao corrego Fundo, gastámos mais
de 40 minutos. Poderá acampar a força, depois de
feita
uma estiva nas margens pouco firmes d'este corrego.
Tempo
gasto |
3 horas e 46
minutos. |
Distancia
percorrida |
6,860
braças, ou 2 1⁄4
legoas proximamente. |
Com 119 minutos de marcha fomos do corrego Fundo
a um pequeno olho d'agua, d'ahi a 77 minutos a um lagrimal
e com mais 81 minutos ao rio Negrinho, passando
[166]
antes por um terreno baixo e alagado. O rio dá
váo commodo
no tempo secco: n'esta estação, porém,
a profundidade
é de 7 palmos, sendo a sua largura de 63. Uma
arvore cahida, de uma margem á outra, servio-nos para
a passagem das cargas, e com pouco trabalho ter-se-ha
uma boa pinguela. O váo acha-se a 30 braças mais
ou
menos acima do lugar em que está a arvore, subindo
pela margem esquerda. O acampamento na margem direita,
depois de passar a mata, é melhor, ainda que mais
distante da agua.
Tempo
gasto |
4 horas e 37
minutos. |
Distancia
percorrida |
8,408
braças, ou 2 3⁄4
legoas proximamente. |
Deixando a margem esquerda do rio Negrinho, depois
de passarmos pela sua mata (onde existem depressões,
chamadas
corixas, que ficão cheias
d'agua e dão nado durante
as enchentes), fomos ter, com legoa e meia de viagem
ao Potreiro, pequeno rancho na fazenda dos cidadãos
Antonio Alves Ribeiro, e Tiberio, onde não
encontrámos
além do gado, que não póde ser reunido
por falta de cavalhada,
recurso de qualidade alguma para a força, nem pessoal
para trabalhar na construcção de canôas
para a passagem
do rio Negro. D'este ponto até o rio, o caminho
apaga-se quasi completamente; é apenas uma trilha mal
aberta por alguns fugitivos de Miranda, a qual atravessa
grandes pantanaes, duas corixas cheias, charcos e mata
muito cerrada. Se os meios para passar o rio estiverem
promptos, deverá a força ir acampar na margem do
rio;
no caso contrario, demorar-se-ha junto ao Potreiro.
[167]
Tempo
gasto |
4 horas e 48
minutos. |
Distancia
percorrida |
8,742
braças, ou 3 legoas proximamente. |
A passagem para a infantaria é sempre commoda e
facil até o Potreiro; para os carros, porém, e
bagagem
será necessario rampar as margens das correntes que
atravessão
o caminho e fazer estivados em differentes pontos.
Nas matas, e nos cerrados, ha páos e taquaras que
embaráção
o transito; pelo que deverá ir, sempre dianteiro
á
força, um certo numero de homens armados de machados
e fouces, para removerem estes obstaculos. Do Potreiro,
porém, ao rio Negro, até para homens a
pé, o caminho
é de difficil viabilidade, e necessita ser aberto e
melhorado
para o transito.
Com excepção do Portão de Roma,
proximidades do
Lageadinho e margem dos corregos e ribeirões, os declives
do caminho são sempre bons: o leito é uma
estreita
trilha, argilo-silicoso, quasi sempre secco até pouco
adiante
do Potreiro.
Achamo-nos hoje na margem do rio Negro, sem termos
encontrado guia para o caminho que segue a fralda da
serra de Maracajú até a aldêa da
Piranhinha, o qual os
soldados desconhecem, e vamos encetar viagem á tôa
e
sem indicações certas.
Margem esquerda do rio Negro, 25 de Fevereiro de 1866.
[168]
POUSOS PARA A FORÇA
Ao pouso dos
Boritys |
|
2 |
3⁄4 |
legoas |
Ao ribeirão da
Mata |
|
2 |
1⁄2 |
» |
Ao ribeirão
Verde |
|
1 |
3⁄4 |
» |
Ao
Lageadinho |
|
2 |
1⁄4 |
» |
Ao corrego da
Volta |
|
3 |
1⁄2 |
» |
Ao corrego
Fundo |
|
2 |
1⁄4 |
» |
Ao rio
Negrinho |
|
2 |
3⁄4 |
» |
Ao rio
Negro |
|
3 |
|
» |
|
|
|
|
|
Somma |
20 |
3⁄4 |
» |
Do rio Taquary ao rio Negro |
|
20 |
3⁄4 |
» |
A planta topographica indicará outros pousos, caso
não
convenhão estes, e dá os accidentes de terreno e
direcções
magneticas.
II
Exploração entre o rio Negro e os Morros
No dia 25 de Fevereiro, passando o rio Negro n'uma
pelota, transportámo-nos para a sua margem esquerda,
baixa, paludosa e coberta da mesma vegetação que
já tinhamos
achado do outro lado. Por espaço de um quarto
de legoa lutámos n'ella com os obstaculos provenientes das
enchentes do rio, sendo obrigados a novas passagens, em
[169]
pelota, de corixas cheias e pyrisaes (lugares inundados)
e á marcha em terreno sempre humido e atoladiço.
Abre-se
depois o campo com cerrados ao longe, e achámo-nos
na base da serra de Maracajú, que era o nosso unico meio
de direcção na procura da trilha, que
dizião ter sido aberta
pelos fugitivos de Miranda, na invasão d'este districto no
anno passado. Com effeito avistavamos uma longa e continuada
serrania que tinhamos de deixar á esquerda, fraldejando
a sua aba e fugindo ás aguas que cobrião a
estrada
seguida no tempo secco até o rio Aquidauana.
A questão era examinar a qualidade de terreno, em que
tinhamos de marchar e saber das vantagens da abertura de
um caminho para a força nos seus primeiros movimentos
para o Baixo-Paraguay.
Seguindo pois o rumo S., desde as primeiras horas de
marcha, reconhecemos as difficuldades que tinhamos de vencer
na procura d'aquella supposta trilha e dos vestigios
da passagem, bem que recente, de um homem a cavallo,
apagadas de todo ou pelas chuvas ou pelas pégádas
do
gado que vaguêa pelos campos, indo a final esbarrar em
uma mata tão cerrada que roubou-nos boa
porção do dia, não
nos permittindo caminhar mais de legoa e meia. No pouso
verificámos que a carne secca, que haviamos preparado
no Potreiro para a nossa viagem, calculada em oito dias,
pelas passagens nas corixas e pela muita chuva dos dias
anteriores, achava-se de todo deteriorada. A impossibilidade
de termos recursos d'aquelle lugar, pois que a ultima
porção
de gado recolhido, fôra levado da fazenda do Retiro para
o Coxim e a esperança de podermos matar alguma das
rezes que encontravamos,
não nos permittírão duvida sobre
[170]
o que deviamos resolver. Dous dias depois caminhando
sempre, ora em terreno pantanoso e atoladiço, até
a fralda
da serra, ora em cerrados de difficultosa passagem, achavamo-nos
com todos os recursos de boca completamente
esgotados e com a certeza desesperadora da quasi impossibilidade
em matarmos á bala rezes, completamente selvagens
e ariscas.
Os nossos males crescêrão com a fuga de todos os
animaes,
o que nos reteve nas mais crueis necessidades, junto
ao corrego da Afflicção, durante dous dias nos
quaes sustentámo-nos
de fructos silvestres, que os soldados podérão
colher. Conseguindo no terceiro dia alguns dos animaes,
proseguimos viagem deixando quatro d'elles perdidos e
canastras escondidas na mata proxima, alimentando-nos
desde então por oito dias de miôlo de palmeiras e
de
alguns fructos do mato, soffrendo sempre chuvas torrenciaes
e contrariedades. Em todo este tempo fizemos apenas 11
legoas, apezar de andarmos dias inteiros, ora rodeando
charcos perigosos, ora abrindo picadas em cerrados de
intrincadissima taquára. Em parte alguma viamos uma
trilha seguida: quando nos suppunhamos perdidos, deparavamos
algum rancho abandonado, uma arvore cortada,
um signal que indicava acharmo-nos no rumo
seguido pelos fugitivos, os quaes, sem duvida, tiverão
interesse em occultar os seus vestigios, acoçados dos
paraguayos, que demandavão o mesmo caminho, como o
vimos pelos signaes de acampamento de forças. Tomando
afinal o rumo O. fomos trilhar a parte, transitavel
hoje, do caminho do pantanal, onde podémos dar fim
aos nossos soffrimentos, conseguindo carnear uma rez.
[171]
No dia 10 passámos o rio
Tabôco que
achámos de nado
e, visitando no dia seguinte o aldeamento dos indios na
Piranhinha, chegámos no dia 11 ao arranchamento do
cidadão João Pacheco de Almeida, onde tivemos
recebimento
hospitaleiro e sympathico e onde nos achamos
agasalhados.
CAMINHO QUE A FORÇA DEVE SEGUIR
Não existe trilha alguma junto á fralda da serra
de
Maracajú. O pantanal que vai até a base d'esta
serrania
é em terreno fôfo e de perigoso transito,
sobretudo
para grande numero de cargueiros e carros: nos cerrados,
o sapé alto, capins e taquaras maltratão os
infantes
e canção sobremodo os animaes. Só nos
principios
de Maio poderão, segundo informações
de pessoas praticas,
achar-se estes lugares seccos; época em que o caminho,
chamado do pantanal, conhecido por muitos e
trilhado, dá excellente passagem por occasião da
retirada
das aguas. A vantagem de ser a trilha do pantanal
sempre firme, não póde deixar duvida sobre o
caminho
a seguir, escolhido que seja um guia, conhecedor d'estes
lugares que dê indicações dos lugares
em que se encontrão
boas aguadas. O
capataz da fazenda
do
Tabôco,
o cidadão Antonio Maria Tonhá, é muito
proprio para
este serviço.
CONTINGENTE PARA A FORÇA
Guarda nacional.—Os guardas
nacionaes, que existem
[172]
debaixo das ordens do tenente coronel Albuquerque,
não podem perfazer o numero de 100: melhores
informações sobre seu armamento, fardamento e
municiamento,
teremos depois de recebermos resposta ao nosso
officio de 17 do corrente ou conversarmos com o tenente
coronel commandante; o que tudo havemos de communicar
com a brevidade possivel.
Indios.—No aldeamento dos indios
terenas, da Piranhinha,
encontrámos a melhor disposição na
gente do capitão
José Pedro: apresentárão-se-nos 60
moços bons atiradores e
proprios para servirem de excellente tropa em sorprezas e
emboscadas.
No aldeamento de Francisco Dias ha 40 homens robustos,
em estado de pegarem em armas: achão-se armados, e
só
lhes falta cartuxame.
Da gente quiniquináo, acampada em diversos pontos,
póde-se contar com 30 homens.
São ao todo 130 indios que estão no caso de
servir de
contingente á força. Falta-nos comtudo visitar, a
oito ou
dez legoas d'aqui, dous aldeamentos, um quiniquináo e
outro laiana, que devem augmentar o numero de homens e
dar alguns alqueires de arroz e milho. Áquem de Miranda
ha tambem outros pontos em que existem indios foragidos.
A indole dos indios é guerreira: votão odio
encarniçado
aos paraguayos e estão com estes em continua guerra de
emboscada, em que a crueldade e ferocidade de ambos os
lados tem trazido
A indole dos indios é guerreira: votão odio
encarniçado
aos paraguayos e estão com estes em continua guerra de
emboscada, em que a crueldade e ferocidade de ambos os
lados tem trazido temor e receio reciprocos; entretanto a
inconstancia de genio e a impossibilidade em confiar na
disposição
de espirito e firmeza para arrostarem no campo e de
[173]
frente o inimigo, os torna apenas proprios para atiradores
em matas e guerrilheiros.
RECURSOS COM QUE DEVE CONTAR A FORÇA
Gado.—Desde o rio Negro
até a Piranhinha vimos immensa
quantidade de rezes, vagando pelos campos em grandes
manadas. Entretanto a necessidade, para o fornecimento,
de bons cavallos para rodear-se o gado, obrigará
á espera
da terminação da peste que grassa entre os
animaes até fins
de Abril, e que tem destruido toda a cavalhada desde o
Coxim até estes lugares.
Um contractador, de posse comtudo de bons animaes,
poderá com facilidade, em todos os pousos da
força, reunir
a quantidade precisa de rezes nas fazendas de Joaquim Alves,
Fialho, capitão Pires (prisioneiro dos paraguayos),
José
Alves de Arruda e outros.
Os cidadãos que pelas informações
colhidas, poderão se
encarregar do fornecimento são: Joaquim Alves e Canuto
Virgolino de Faria (no Coxim); mas deverão de
antemão
comprar cavallos para se acharem em circumstancias de cumprir
com os seus compromissos.
Calcula-se em 13,000 cabeças o gado que existe nas fazendas
apontadas acima, e só póde haver difficuldade na
obtenção de rezes com a falta de cavallos, para o
que devem
ser tomadas providencias acertadas.
Cereaes.—As
plantações dos refugiados de Miranda,
além das limitadas proporções em que
forão effectuadas para
[174]
proverem unicamente á subsistencia particular,
não derão
colheita satisfactoria. O milho veio muito falhado; o arroz
abaixo da expectação: são comtudo os
dous generos que
mais avultão. Ha grande difficuldade em reduzir-se o milho
existente á farinha, ou á cangica, pela falta de
um monjólo;
promettem alguns alqueires á custa de braços.
Não ha nenhum feijão recolhido: apenas algumas
quartas
plantadas, que comtudo pouco podem dar pela falta de chuva
e má época em que forão
lançadas em terra.
Sal.—Ha grande carencia de sal:
apenas existem 2 ou
3 alqueires que estão sendo vendidos.
Os dados que seguem forão todos colhidos com a maior
minuciosidade, e são o resumo de quantidades parciaes, como
se vê do mappa annexo:
Milho |
|
50 |
alqueires |
Cangica |
|
57 |
» |
Farinha |
|
10 |
» |
Arroz com
casca |
|
110 |
» |
Arroz
socado |
|
155 |
» |
|
|
|
|
|
Somma |
382 |
» |
FORÇA INIMIGA
Interrogando diversas pessoas e indios, que têm, desde
Janeiro até fins de Fevereiro, visitado os lugares ainda
occupados por forças, colhemos as seguintes
informações:
[175]
Na fazenda do
Souza |
|
50 a
150 |
homens |
No
Espenidio |
|
200 |
» |
Na
Forquilha |
|
100 |
» |
Em
Nioac |
|
360 |
» |
|
|
|
|
|
Ao
todo |
810 |
» |
No porto do Souza existe um entrincheiramento a menos
de meia legoa do rio, e entre estes dous pontos uma guarda
rendida diariamente, que serve para vigiar o Aquidauana.
N'este entrincheiramento houve ultimamente augmento de
força, pois que ouvem-se agora rufos de tambores e toques
de corneta, o que não acontecia até fins de
Janeiro: ha uma
peça de artilharia para defendel-o e uma palissada de
grossos
madeiros de aroeira. Iremos com as precauções
precisas
visitar estes pontos, communicando logo o que tivermos
observado.
A Forquilha e o Espenidio achão-se no caminho de Nioac
á villa de Miranda. Este ultimo ponto está
presentemente
abandonado, todas as casas forão queimadas e não
ha mais
guarnição. É
informação de André José
dos Santos, que
nos ultimos dias de Janeiro, com 6 companheiros foi reconhecer
o inimigo, voltando no dia 4 de Fevereiro.
A Nioac chegou, a 3 de Fevereiro, Agostinho Joaquim
Coelho, assistindo, de uma mata proxima, ao exercicio de
um batalhão de infantaria pesada, formado em 6
pelotões
de 30 filas pouco mais ou menos. A gente que se acha na
fazenda do Souza é aguerrida e regular, o resto dizem
constar de
soldados ainda bisonhos. A cavalhada, de que elles
dispõem, é boa, como vimos por alguns cavallos
roubados
pelos indios.
[176]
Usa a infantaria de espingardas á Minié de 1,000
passos,
e a cavallaria de lanças que manejão com muita
destreza,
de clavinas e espadas. Nas cartuxeiras trazem os soldados
80 cartuxos: os indios afianção que
são máos atiradores,
fazendo comtudo justiça completa á coragem e
valor nunca
desmentidos do inimigo.
Os paraguayos desde Maio do anno passado não
fizerão
mais correrias na margem direita do Aquidauana; provêem-se
de gado, abundantissimo no outro lado, e considerão o rio
divisa do territorio brasileiro.
Existe uma estrada, chamada do Canastrão, pela qual, de
Dourados, onde ha força, e da fronteira podem vir soccorros
para coadjuvarem os contingentes espalhados no districto
de Miranda.
Esperão-se aqui cartas de um fazendeiro de Nioac, preso
dos paraguayos, que foi visitado pelo indio laiana Joaquim
da Silva em Fevereiro, o qual dá noticia de mais
destacamentos
na Ariranha e no Esbarrancado, a 8 legoas além
de Nioac.
Suppõe-se que os destacamentos no Souza e Espenidio
têem ordem para concentrar-se, com o apparecimento de
nossas forças, em Nioac, afim de, attrahindo-as
até este
ponto, poder ser cortada a nossa retaguarda pelo caminho
do Canastrão, que vem do Paraguay a Miranda.
RESUMO
O movimento da força brasileira póde effectuar-se
nos
primeiros dias de Maio, tomando o caminho do rio Negro, e
[177]
depois o do pantanal, que deve de estar completamente secco,
reunida que seja boa cavalhada para o fornecimento de
gado durante a marcha. Com poucos generos póde contar
dos Morros e dos indios. Nas operações,
além do Aquidauna,
deve esperar encontrar mais de 1,000 inimigos, entrincheirados
o mais das vezes, e dispostos á resistencia.
RIOS QUE PASSÁMOS
O rio Negro, no lugar de nossa passagem, tem 18 braças:
entretanto como a força deverá vir pelo caminho
do
pantanal, indicado no nosso trabalho pelo traço colorido que
vai ligarse ao caminho do roteiro do
primeiro reconhecimento,
além do Potreiro, é necessario visitar o rio mais
baixo e conhecer
a sua largura.
O rio Tabôco tem 30 braças de largura.
Meios de passagem.—Para o rio Negro
devem-se
promptificar barcas, pois que as margens baixas e atoladiças
não facilitão a construcção
de uma ponte. O rio
[121]
tem lugares de bom váo, como o afiança o pratico
Tonhá,
que conhece-os perfeitamente. O rio Tabôco é
vadeavel.
Para o Aquidauana precisão ser trazidas ao porto do
Jatobá,
ou ao de D. Maria Domingas, as canôas do tenente
coronel Albuquerque da sua fazenda do rio Negro e a
prancha do cidadão Cardoso Guaporé, o qual
já foi examinar
[178]
o estado em que ella se acha, por estar escondida,
ha mais de anno, n'uma volta do rio.
DISTANCIA QUE PERCORREMOS
Do rio Negro
á entrada do Pantanal |
|
13 |
|
legoas |
D'ahi
á
Piuva. |
|
1 |
1⁄4 |
» |
Da Piuva aos Dous
Corregos. |
|
1 |
1⁄2 |
» |
Dos Dous Corregos
ao
Tabôco. |
|
3 |
1⁄2 |
» |
Do
Tabôco á ponta do morro
d'onde o caminho segue para
o
Aquidauana. |
|
1 |
3⁄4 |
» |
D'aquella ponta |
á
Piranhinha. |
|
1 |
1⁄4 |
» |
» |
» |
a João
Pacheco. |
|
3 |
1⁄4 |
» |
De
João Pacheco a Francisco
Dias. |
|
|
1⁄2 |
» |
|
|
|
|
|
|
|
|
|
Somma |
26 |
|
» |
A volta pelo caminho do Pantanal não póde exceder
de 4 legoas.
Morros, 20 de Março de 1866.
[179]
III
Exploração á margem direita do rio
Aquidauana
A necessidade de visitarmos dous aldeamentos de indios
e reconhecermos a margem direita do rio Aquidauana
e seus diversos portos que derão passagem aos
paraguayos, na invasão do anno passado, fez-nos emprehender
nova viagem, effectuando a nossa partida para
aquelles pontos, no dia 24 do mez proximo passado.
Seguindo ás vezes a base da serra que viemos fraldejando,
desde o rio Negro, outras cortando-a em diversas e profundas
depressões, visitámos a 7
1⁄4
legoas de nosso
ponto
de partida o acampamento dos laianas, onde apenas
encontrámos
20 homens em estado de pegar em armas, e viveres
em quantidade insufficiente, até para sustento proprio.
No aldeamento do Oauassú, a 3 legoas do outro, ha igual
carencia de mantimentos e só 9 indios para augmentarem o
contingente, que dá a tribu dos quiniquináos.
Tomando d'ahi
rumo S., procurámos o Aquidauana, indo acampar junto
á sua margem direita que, desde então, seguimos
até a tapera
do Pires, d'onde fizemo-nos na volta dos Morros.
Achão-se junto á borda do rio, que
margeámos, differentes
casas abandonadas por occasião da entrada dos
paraguayos, as quaes tem cada qual a sua passagem para
o outro lado e porto no rio.
Assim são os portos do Canuto, até onde chegou
uma
partida inimiga vinda do Taquarussú, de João
Dias,
[180]
Maria Domingas, Francisco Dias, etc., que vão apontados
no reconhecimento topographico. Examinando cada um
d'elles com cuidado, para indicarmos a passagem mais
conveniente para a força, pareceu-nos o porto de D. Maria
Domingas o que satisfaz a todas as condições
precisas.
É o unico que dá váo em toda a
extensão (30
braças) com profundidade de 4 a 8 palmos, facilitando
assim não só a passagem da infantaria, como
tambem
o serviço das barcas, que será feito com muito
mais
presteza, tocadas e puxadas á mão.
Além d'isto a força, occupando a margem esquerda,
corta
a communicação entre o entrincheiramento do porto
do
Souza e o do Espenidio e impede qualquer movimento
de concentração que os inimigos procurem fazer.
Do largo
da Piranhinha deverão as forças dirigir-se para o
porto
de D. Maria Domingas, tendo á frente um bom pratico
d'estas localidades, caso não seja tomada outra
determinação.
D'este porto ao do Souza, pela margem esquerda contão-se
4 legoas de trilha completamente secca e, a não
querer cortar campo, é d'elle que partem caminhos para
Miranda, Forquilha, Nioac, etc.
Do porto de D. Maria Domingas ao
Eponadig |
4 |
legoas |
Do Eponadig á
Forquilha |
7 |
» |
Da Forquilha a
Nioac |
10 |
» |
|
|
|
Do porto a
Nioac |
21 |
» |
Alguns d'estes pontos e mais o Espenidio e o Souza,
[181]
occupados pelos paraguayos, fórmão uma linha que
fecha
em circulo a villa de Miranda; razão por que foi ella
abandonada e queimada, reforçando-se os pontos estabelecidos
em derredor. Assim pois a retirada de Miranda
não tem significação de
evacuação de forças, parecendo,
pelo contrario, dever indicar a tenção de melhor
defender
o territorio, em que se achão e que
fechárão por um
cordão de destacamentos desde o Apa até o Souza.
A este ultimo ponto não podémos chegar, pois que
um desencontro na remessa de cartuxos, que tinhamos
requisitado do Illm. Sr. tenente coronel Albuquerque,
obrigou-nos a não effectuar este reconhecimento arriscado
e que só póde ser feito á
mão armada, pela vigilancia
que, sobre a outra margem, exercem os paraguayos. Mandámos
comtudo uma partida de indios
[122]
reconhecer, de
dentro da mata, a estacada e, apezar de seus habitos
e habilidade na espionagem, não
podérão passar além
do piquete que, como já participámos, existe
entre o
rio e o entrincheiramento. Este piquete compõe-se de
10 a 12 praças, que se achavão montadas em burros
(o
que indica a falta de cavallos) para cercarem as rezes que
conservão, encostadas á margem do rio, para o
consumo. Na
frente ha uma bandeira vermelha, junto a um
mangrulho,
d'onde uma sentinella devassa grande extensão de terreno.
(Os paraguayos chamão
mangrulho a uma guarita elevada
sobre 2 ou 4 esteios de 40 a 60 palmos, d'onde a
vista se estende muito ao longe).
[182]
Descendo o rio pela margem direita, chega-se com 4
legoas de marcha ao porto do Jatobá, que dizem ser
vadeavel, depois de um pequeno nado e que dista do
Souza, pela margem esquerda, 2
1⁄2
legoas.
Em geral todas as trilhas achão-se apagadas pelo
muito capim e falta de transito: devem ser preparadas
quando a força tiver de dirigir-se ao porto escolhido
para a sua passagem.
Distancia que
percorremos |
23
legoas. |
CONTINGENTE PARA A FORÇA OPERADORA
Guarda nacional.—Segundo as
informações, que nos
prestou o Illm. Sr. tenente coronel Albuquerque, commandante
do batalhão n. 7 da guarda nacional, existem
85 praças mal armadas e sem fardamento e poucos
officiaes, tendo-se retirado a maior parte d'elles para
diversos pontos longinquos d'esta provincia. Achão-se os
guardas espalhados n'uma larga zona e são elles os que
preparão a maior quantidade de mantimentos, o que
deve ser attendido por occasião de sua reunião
que desfalcará,
pela falta de braços, o numero de alqueires de
mantimentos com que poderia a força contar.
Estão tambem qualificados guardas nacionaes indios
quiniquináos e terenas que melhores serviços
prestarião
englobados nas suas respectivas tribus, como por exemplo
o indio José Pedro, capitão dos terenas, que deve
ser
conservado á frente de sua gente pelo respeito que tem
sabido infundir e obediencia que lhe prestão os seus
companheiros.
[183]
A guarda nacional acampou, de 3 a 22 de Setembro
do anno passado, junto ao capão dos Boritys, tendo-se ahi
reunido 66 praças desarmadas, que forão
licenciadas
para cuidarem em roçados e plantações.
Existe algum
cartuxame para seu municiamento: entretanto ha muitos
cartuxos deteriorados e inserviveis.
Indios.—Informações
frescas colhidas do Sr. João da
Costa Lima, que chegou das aldêas além Aquidauana,
dão-nos
os meios de apresentar o total de indios que, além dos
guaycurús, cujo capitão Nadô consta
vir-se apresentar com
toda a sua tribu, poderá coadjuvar a força.
Terenas |
216 |
|
Quiniquináos |
39 |
|
Laianas |
20 |
|
|
|
|
|
275 |
homens. |
Estes indios mostrão a melhor
disposição, offerecendo-se
com espontaneidade e servindo com toda a
dedicação, como
verificámos nos nossos ultimos reconhecimentos.
Achão-se
muito atemorisados com a chegada da força, pois que
repetidas
ameaças dos fazendeiros, refugiados aqui e em
outros lugares, por causa das rezes que elles são obrigados
a matar para a sua alimentação, tem incutido o
temor de
que as forças virão escravisal-os e tratal-os com
todo o rigor
da guerra. Procurámos tranquillisar esta pobre gente que,
nos calamitosos mezes de invasão,
portárão-se com moderação
não natural na esphera e condição em
que
vivem.
Os
cadiuéos, inimigos
figadaes dos paraguayos, não merecem
[184]
confiança alguma e têem, em varias
occasiões, causado
tantos damnos aos brasileiros como aos inimigos.
RECURSOS
Insistindo ainda sobre a importantissima questão de
fornecimento
e acquisição de gado, que se tem tornado muito
difficultoso, depois da peste dos cavallos, levámos ao
conhecimento
do commando das forças a falta absoluta de cavalhada
desde o Coxim até os Morros, onde os fugitivos de
Miranda se achão desprovidos de carne para sustento proprio,
pela destruição completa de todos os animaes,
desde
Dezembro do anno passado. O tenente coronel Albuquerque
indica os cidadãos, de que fallámos na nossa
ultima participação,
prestando-se-lhes os meios para munirem-se de cavallos.
Ao numero de alqueires, dado no mappa dos mantimentos,
que se podem obter dos habitantes dos Morros, devem ser
addicionados mais 45 de arroz, e de cangica 22. Ponderamos
comtudo de novo que o chamamento dos guardas nacionaes
ao serviço das armas, deve diminuir a quantidade de viveres
indicada n'aquelle mappa, por não se achar a colheita
concluida, e pertencerem quasi todos os seus possuidores á
guarda nacional. A requisição que, segundo as
nossas instrucções,
fizemos de homens para a construcção de
canôas
no rio Negro, impossibilita varios cidadãos de
promptificarem
os mantimentos que tinhão promettido.
Indagando de diversos pontos d'esta provincia ou de outra
que poderião mandar viveres para as forças no
districto de
Miranda, apontárão-nos a villa de Santa Anna do
Paranahyba,
[185]
que dista de Camapuam 60 legoas, ficando este ultimo
lugar, hoje completamente abandonado, a 50 legoas da villa
de Miranda; por agua fallárão-nos na
communicação muito
frequente antes da invasão, entre Porto Feliz, em S. Paulo,
e o acampamento de Nioac, descendo canôas carregadas os
rios Tieté e Paraná, e subindo o Ivinheima e
Brilhante até
Sete Voltas, d'onde, com cinco dias, chegavão carros a
Nioac.
Esta viagem, que fazião em 4 mezes, ida e volta,
póde fornecer
abundante provimento ás forças no caso de sua
demora
no Baixo-Paraguay: indicamol-a por ser esta hypothese
possivel e dever cuidar-se quanto antes na reunião de
viveres
que, de mais á mais, hão de tornar-se escassos em
territorio devastado e sem recursos.
MEIOS DE PASSAGEM DO RIO NEGRO E AQUIDAUANA
Guiando-nos pelas nossas participações
anteriores, que
aconselhão a marcha das forças do Coxim nos
primeiros dias
de Maio, requisitámos a 6 do corrente 12 guardas nacionaes
e indios para irem construir barcos para a passagem da
expedição.
Com difficuldade, apezar das ordens do tenente coronel
commandante, estão-se reunindo as praças pedidas,
faltando
completamente toda a especie de ferramenta. Estes homens,
como melhores trabalhadores, são os que preparão
a maior
quantidade de mantimentos para a força, não se
achando
ainda terminada a colheita de milho e arroz, e sobretudo
não tem meio algum de conduzir viveres que cheguem
para alimentação, durante o mez necessario de
parada
n'um local totalmente falto de recursos como é o rio Negro.
[186]
Apezar de tudo vamos tratar de apressar a remessa d'estes
guardas, requisitando mais 12, á vista das
instrucções que
nos mandão preparar meios de passagem nos differentes
rios, para o trabalho que temos de fazer nas canôas que
servirão no Aquidauana.
Para este ultimo rio deverão subir as canôas do
tenente
coronel Albuquerque, do seu acampamento no rio Negro,
ficando nós aqui para mandarmos preparar, com uma serra
e um machado, taboas e barrotes que formarão as
barcas na occasião da approximação da
força, pois que
qualquer trabalho precipitado póde ser inutilisado pelo
inimigo, o qual parece ultimamente vigiar mais cuidadosamente
as margens do rio.
Força maior nos impede de acompanhar os homens que
vão ao rio Negro: levarão para dirigil-os um
official carpinteiro
habilitado na factura das canôas. Para guia das
forças até o Aquidauana recommendamos denovo o
pratico
Antonio Maria Tonhá, homem utilissimo por conhecer
perfeitamente
os caminhos e campos por onde se possão abreviar
as marchas e saber dos lugares onde existão boas aguadas.
Para Miranda e Nioac há n'esta localidade muitas pessoas
proprias para servirem de guia.
DISTANCIAS ALÉM DO AQUIDAUANA
Do porto do Souza a
Miranda |
10 |
legoas |
De Miranda ao
Eponadig |
9 |
» |
Do Eponadig á
Forquilha |
7 |
» |
Da Forquilha a
Nioac |
10 |
» |
|
|
|
Do porto do Souza a
Nioac |
36 |
» |
[187]
FORÇA INIMIGA
Duas extensas cartas, cuja integra remettemos, que
recebêrão os moradores d'este lugar do
cidadão João Barbosa
Bronzique, prisioneiro dos paraguayos em sua fazenda, desde
o anno passado, derão-nos informações
do estado a que se
achão reduzidos os inimigos e da força espalhada
em diversos
pontos: tem elles nas colonias de Dourados e Miranda 100;
no Brilhante 100; Sete Voltas 10; Vaccaria 100; Agua
fria 30; Nioac 500; Taquarussú 200; Porto do Souza 200.
Ao todo 1,240 homens, a que se devem acrescentar os 50 de
Miranda que vierão para o Espenidio e Souza e outros que
existem junto do Apa e morro do Canastrão, onde possuem
boa cavalhada. Desde o Porto do Souza até o de Maria
Domingas, os paraguayos têem ultimamente lançado
fogo
a todos os campos e desbastado as margens, parecendo ter
assim conhecimento dos proximos movimentos de nossa
força.
Morros, 16 de Abril de 1866.
Notas:
[1]
Tacoára hy, (tupi).
[2]
Não
é o
marmeleiro de que trata
Saint-Hilaire, sob o nome de
Maprounea brasiliensis (euphorbiacea).
[3]
Temos
o desenho d'ella no album de viagem. Folhas
oppostas;
corolla monopetala com um labéolo; antheras didynamas;
ovario sobre disco hypoginio. Flôr com 2
1⁄2
pollegadas de
comprido;
Stygma bipartido.
[4]
Folhagem
muito delicada; folhas tomentosas e ovario livre;
sementes ovoides.
[5]
Em
fórma de colher (cochlear).
[6]
Calophyllum
brasiliense, (Saint-Hilaire). Oanandim, lantim
ou
olandy; excellente páo para canôas.
[7]
As folhas d'esta planta são muito
desenvolvidas. No corrego
da Pontinha (a 8 legoas de Camapuan) vimos algumas com um
palmo de largura e palmo e meio de comprido, lustrosas e completamente
glabras.
[8]
Acacia
maleolens de
Freire Allemão.
[9]
É
conhecido nos sertões do norte por
cajueiro bravo ou melhor
çaimbahiba
(
çaimbé
aspera,
yba arvore). Curatella
çaimbahiba.
(Saint-Hilaire).
[10]
Bority
ou mority.—Do tupi,
mooro, nutrir,
ty, succo.
(
Mauritia
vinifera. Mart.
flexuosa. Lin.)
[11]
A
6 legoas do rio Piquiry;
picá, pomba; (r)
hy, agua (L. T.)
[12]
Esta palavra derivada do tupi
(
caa-poam, ilha) é com
razão
geralmente empregada em todo o Brasil.
[13]
O sertanejo Perdigão.
[14]
Fourcroya gigantea.
[15]
Gua, baga;
yrob, acre (lingua tupi). Psidium
Vell.—Eugenia
Mart.
[16]
Familia entre as rosaceas e magnoliaceas.
[17]
Autor do poema
La
Gastronomie, publicado em 1800.
[18]
Amaca, rede;
yva, arvore (lingua tupi).
[19]
Ara Ararauna (especie particular aos sertões de
Goyaz e
Mato Grosso).
[20]
Ara Aracanga.
[21]
Ara Hyacinthinus (Descourtils).
[22]
Crypturus noctivagus.
Começa a piar apenas descamba a tarde.
Martius chama-a
tinamus nocturna. Em
algumas partes do imperio
é conhecida por
sabelé.
[23]
Os banhos das folhas d'esta plantinha são
efficassissimos nas
orchites. (Davilla elliptica, Saint-Hilaire).
[24]
Sapindus (Saint-Hilaire).
[25]
Lugares empantanados, pascigos do gado.
[26]
Em lingua tupi quer dizer
páu
de cajú (mara-cajú). Segundo
alguns
cascavel ao pé
(maracá jub) da serra. (Glossario).
[27]
Toda audacia é permittida em hypotheses.
Impressionárão-nos,
de passagem, sem estudo, aquellas linhas que correm parallelas
por muitas legoas. Serão na realidade
indicação do que acima
tocámos, ou simplesmente effeitos de
infiltrações vagarosas em
estratificações, erosões, etc.?
[28]
Amambahy ou
Ambaibahy—
Hy,
agua.—
Ambaiba ou
embauba
(urticacea do genero Cecropia). Castelnau dá á
porção de serra,
que conhecemos, o nome muito apropriado de serra da Chapada:
entretanto nunca o ouvimos nas localidades, onde os moradores
usavão só da denominação de
Maracajú.
[29]
Na provincia de Minas chama-se
paratudo a uma
amaranthacea,—gomphrena
officinalis. A causa do paratudo (bignoniacea)
tem grandes propriedades febrifugas e sudorificas.
[30]
Os indios Guanás o chamão
namuculí.
[31]
Esta arvore,
hymenæa, abundantissima no
rio Negro, ia-se
tornando cada vez mais rara. Os seus fructos, quando maduros,
são supportaveis e muito nutrientes: os nossos soldados, no
acampamento
do rio Negro, sustentavão-se quasi exclusivamente d'elles.
[32]
Contracção de ipé, uva
(arvore).
[33]
O que, no interior do paiz, se chamão tijucaes,
palavra brasileira
tirada da lingua tupi,
tyjuca
(lama). Usa-se tambem muito
do verbo
entijucar por enlamear.
[34]
Mureci penina ou
pintado. Em Mato Grosso assim chamão o
mureci do pantano. Será com
certeza—chrysophylla—a
especie?
Em todo caso, o genero é
byrsonima, bem caracterisado. Com
ser malpighiacea,
vêm-se os pares de glandulas bem apparentes; ás
vezes
desenvolvidas em extremo, em cada sepala. Do fructo do
mureci,
diz com justeza Pison:—Fructus maturi gratissimi quidem acore
pulatum vellicant, sed stuporem tandem dentibus inferunt simulque
astringendo intensè refrigerant. (De facultatis simplicium
Lib. IV).
[35]
Em Mato-Grosso quasi todos pronuncião esta
palavra grave.
[36]
Ciconia Maguari (G. Temm).
[37]
Vimos nas
mimosaceas
dos barreiros myriades de
vira-bostas,
(Icterus violaceus, Desc.);
encontros (Xanthornus tristis,
Desc.) e
anús (Crotophaga,
Marcgravio).
[38]
Cateitus (dicotyles torquatus) e porcos do mato (dicotyles
labiatus).
[39]
Na bahia Negra, abaixo do porto de Coimbra. A
proporção de
sal para a terra era, n'um alqueire de mistura, tres quartas partes.
[40]
As salinas da margem direita do rio Paraguay
são muito mais
ricas em sal, do que as da margem esquerda. Antes da
invasão,
havia prohibição de tirar-se sal da bahia Negra,
por estar o barreiro
em territorio contestado entre o Brasil e a republica do Paraguay.
[41]
Na margem esquerda do rio Paraguay, defronte de
Corumbá.
[42]
É palavra geralmente usada nas fazendas de
gado.
[43]
Devida a uma intoxicação paludosa.
[44]
Aspidosperma.
[45]
Os nossos amigos os Srs. tenente João Faustino
do Prado e João
Mamede Cordeiro de Faria.
[46]
Caapi-iára,
dono do capim (Gloss.). Com mais razão, diz
Gonçalves
Dias
capi-uara, derivando
uára de goára (habitante que mora, em
determinada parte, por vontade propria). Das capivaras, diz Marcgrav
com exageração notavel:—Noctu ingentem
clamorem
excitant et
horribile fere, ut Asini solent.
[47]
Vanellus cayennensis (Vieill.).
[48]
Em Agosto, deviamos de apreciar a magestosa florescencia
d'aquellas
bignoniaceas;
ipés,
Tecoma speciosa Vall.,
para-tudos e
carobinhas
(jacarandá procera) ostentavão então
massiços amarellos e
azues da maior belleza.
[49]
Obteve em fins de 1867 esta
distincção e em Janeiro do anno seguinte
falleceu na cidade de S. Paulo, onde se achava, depois de uma
viagem ao Rio de Janeiro, com alguns de sua tribu.
[50]
Pery, junco (tupi).
[51]
Desde Maio de 1865 não fazião
senão raras incursões, na margem
direita do rio Aquidauana.
[52]
Denominação indigena do rio Miranda
ou Embotety e Embotetiú,
das palavras,
enimbo
laço,
tui
periquito—laço para piriquito.
Tambem tem nome de Aranhahy, Guaxihy e alguns
escriptores
portuguezes lhe dão o de Mondego, ainda que
pareça este só convir,
depois da confluencia com o Aquidauana.
[53]
Uma carta de João Barbosa Bronzique,
prisioneiro dos paraguayos,
em sua fazenda do Bonito, deu noticia d'essa
prohibição
devida, ao que elle suppunha, aos ataques repetidos dos indios,
que se occultavão nas matas do lado direito do rio.
[54]
Ilex congonha, familia das Illicineas
(Aquifoliaceas de
de
Candolle).
Das congonhas fazem os habitantes uma agradabilissima
infusão.
[55]
Cama mama,
apuam redonda (tupi).
[56]
Os oauassús, chamados pelos guaycurus
chatellôd, são
as magestosas
palmeiras de que já temos fallado: os grupos que ellas
fórmão, são imponentes. Os troncos
lisos, ligeiramente engorgitados
na base, as cópas erectas e compridas folhas, com um
prateado
fugaz, as distinguem de muito longe. Os côcos de bom tamanho
dão amendoas com o valor approximado ás da Bahia
e
constituem durante certas épocas a
alimentação quasi exclusiva
dos indios. Pelo systema phyllotaxico, preconisado pelo professor
Agassiz, a fracção
1⁄3
representa a
disposição das folhas, occupando
os intervallos, as espadices da inflorescencia.
Assemelhão-se
os oauassús ás magnificas
oreodoxas, tão em moda no
Rio de Janeiro:
Martius deu-lhes o nome de
attalea
spectabilis. Em lingua
tupi significão folha grande:
oau ou
oba folha,
assú grande.
[57]
O laiana pertence á numerosa familia
chané: a sua linguagem
é a mesma que a dos quiniquináos, terenas e
guanás
com algumas alterações: os seus costumes
identicos. O seu typo
é caracteristico; a physionomia muito menos expressiva que a
do terena e menos delicada que a dos quiniquináos; elles
têm o
nariz afilado, ás vezes pontudo, os olhos algum tanto
divergentes,
os labios finos e apertados.
As suas plantações consistião em
arroz, milho, feijão; porém as
chuvas falhadas impedião que ellas tivessem aspecto
satisfactorio;
por esta razão, não podérão
os seus possuidores prometter cousa
alguma para as forças.
[58]
O corrego da
Pontinha,
perto de
Camapuam, é uma
das cabeceiras
mais afastadas.
[59]
Uacôgo,
corrego dos Couros (guaycurú).
[60]
As
aracuans, Penelope
aracuan (Spix.), são aves de plumagem
escura, pernas curtas, bico preto e forte. É caça
procurada pela
alvura e sabor da carne. Este passaro offerece uma particularidade
singular. Quando um grita, é logo acompanhado por todos os
companheiros,
de modo que, por qualquer ruido, levanta-se grande alarido
em ambas as margens, o qual vai-se propagando e crescendo. É
muito applicavel o—
Vires acquirit
eundo.
[61]
Esta ave conhecida tambem por
inhuma-póca canta com
regularidade,
de modo que, dizem, póde marcar as horas e tambem
annunciar mudanças de tempo. Tem como a
palamedea cornuta excrescencia
na cabeça. Marcgravio diz do canto: Terribilem clamorem
edit—
vihu vihu—vociferando.
[62]
O
tuyuyú
(micteria americana) é a maior das aves ribeirinhas:
todo branco com uma colleira vermelha, tem um bico longo e tubulado.
Nutre-se de peixe e anda no lodo das bordas de rios. A sua
altura, fóra o pescoço, é de 1, m. 2.
[63]
O
tabuyayá
(ciconia maguari) é maior que a garça; tem azas
pretas malhadas de branco: o bico e pernas compridos. Em guarany
chama-se baguary (Martius).
[64]
Na no
Na nossa passagem do Aquidauana, um soldado foi arrebatado
por um jaù.
[65]
Pison diz com razão da carne: «Edulis
non solum caro ejus
albissima, sed quod friabilis et sicca optimi saporis».
[66]
Familia dos Aproterodontes—Gen. boa—Esp. murina
(Principe
de Neuwied e Sellow): boa scytale (Lin.) Estas serpentes
apparecem raras vezes nos affluentes do rio Paraguay, ao passo
que abundão nos do rio Paraná. O grito d'ellas,
ê, dizem, estridente.
Nunca ouvimos esse ronco de que tanto se falla no sertão.
[67]
Entre as absurdas historias, tocantes a essas serpentes,
sobresahe
a referida por Charlevoix, na sua historia do Paraguay, o
qual diz que os sucurys se atirão sobre as mulheres com
outro
fim, que não o de devoral-as e cita o testemunho do padre
Montoya
que confessára, em certa occasião, uma india
in extremis: «laquelle
étant occupée à laver du linge sur le
bord d'une rivière,
avait été attaquée par un de ces
animaux, qui lui avait fait,
dit elle, violence: le Missionaire la trouva étendue par
terre au
même endroit, etc.»
[68]
Relatorio geral da commissão de engenheiros
(pag. 22 e 31).
[69]
Spix chama-o
pacú-argenteus,
não sabemos se com razão; o pacú
pouca semelhança tem com o corimbatá.
[70]
Contra ella tambem bate o rio Aquidauana, formando uma
curva
apertadissima. Além, no outro lado, eleva-se o
Morro Azul, seguindo
de novo a serra até Nioac e para os lados do Apa; baixa,
porém, e
com disposição de morretes.
[71]
Citaremos uma lindissima
apocynea (nerium?), varias
salvia, a
ardísia
(
Ardisacea), a curiosa
aristolochea galeata, que se enrosca
nos
mais flexiveis encostos; a fragrante
saudade do campo
(scabiosa-dipsacea),
hyptis (labiadas),
malpighiaceas
rasteiras com cambiantes
samaridios, a vistosa
gomphrena
officinalis (o para-tudo de Minas)
malvaiscos, etc.
[72]
Erão os restos da abundantissima colheita
paraguaya; esses
campos, poucos mezes antes, havião contido muitos milhares
de rezes. O districto de Miranda possuia 150,000
cabeças de gado: d'essas,
segundo o testemunho de vista de João Barbosa Bronzique, o
infeliz
prisioneiro de que já temos fallado, 60,000
passárão para a republica
do Paraguay em varias pontas e ainda no tempo em que viajavamos
pelo Aquidauana continuavão amiudadas as remessas. A carne
do
gado d'essas vargens è
saborosissima.
[73]
Palavra tupi, usada geralmente: significa
casa abandonada.
[74]
Momordica operculata (Velloso), charantia.
[75]
Quasi todos os habitantes de Miranda
fugírão embarcados,
descendo o rio Miranda, entrando no Aquidauana e subindo por
este até perto do porto do Souza. Ahi se
refugiárão nas fragosidades
da serra de Maracajú (Morros); alguns
tomárão caminho
de Sant' Anna do Paranahyba. A villa ficou deserta a 4 de Janeiro
de 1865: a 12 entrárão os paraguayos que n'ella
estiverão até fins
de Fevereiro d'aquelle anno.
[76]
Das outras tribus que refere Castelnau, não
ouvimos fallar.
Talvez estejão extinctas ou confundidas com estas.
[77]
Tanga, avental.
[78]
Muito aprecião o
tarumá (Vitex
montevidensis) que em Dezembro
de 1866 constituia a principal alimentação da
gente quiniquináo
dos Morros.
[79]
Bixa orellana.—Genipa americana.
[80]
Léry faz esta justiça ás
indias em geral, quando diz: «qu'á toutes
les fontaines et rivières claires, qu'elles rencontrent,
s'accroupissans
sur le bord ou se mettans dedans, elles jettent, avec les deux
mains de l'eau sur leur teste et se lavent et plongent ainsi tout leur
corps comme cannes, tel jour sera plus de douze fois»
(Histoire de
l'Amérique, pag. 128).
[81]
Quasi todos os nomes de lugares e rios do districto de
Miranda
são de origem
guaycurú.—
Euagaxigo,
significa bando de
capivaras;
Eponadigo, bando de
trairas;
Lauiád, campo
bello;
Nioac, clavicula quebrada.
[82]
Esses lindissimos lugares forão explorados a
vez primeira pelo
intrepido sertanejo José Francisco Lopes, o qual encontrou,
n'uma
de suas viagens, uma numerosa partida de cadiuéos, que o
acompanhou
até terras do Paraguay.
[83]
Palavra guarany que significa Nosso-Senhor. Os terenas
usão
d'esse vocabulo. Os outros guanás dizem
Echāi-uanuké (que está
no céo).
[84]
Herpethoteres. Azara chama
Macaguá: alguns
acauan ou
oacaoam.
[85]
O mesmo fazião os medicos entre os guaranys
(Padre Loçano).
[86]
Não sabemos se deve merecer fé o que
diz Castelnau sobre assassinatos
dos padres.
[87]
O mesmo dava-se entre os padres dos guaranys (Padre
Montoya).
[88]
Léry diz dos
tupinambás:—«Ils lamentent de telle
façon, que si
nous nous trouvions en quelque village où il eust un mort,
ou il ne
fallait pas faire éstat d'y coucher, ou ne se pas attendre
de dormir la
nuit. Mais c'éstait merveille d'ouyr les femmes, lesquelles
braïllent
si fort et si haut que vous diriez, que ce sont hurlemens de chiens et
de loups» (Histoire de l'Amérique, pag. 392).
[89]
Léry refere: «Si elles se
ressouviennent de leurs feus parents,
ce sera, faisant les regrets accoutumez, á hurler de telle
façon,
qu'elles se font ouyr d'une demi-lieue (H. de l'Amérique,
pag. 400).
[90]
A que chamão na provincia
lavrados.
[91]
Principalmente o
timbó (paullinia pinnata)
que tem violentas
propriedades toxicas.
[92]
Batem-se a punho secco, ainda mais geitosamente que os
albiões
(M. Ayres de Casal C. B. pag. 234).
[93]
Todo o homem branco, pardo ou preto, é
portuguez; os indios
nunca usão da denominação de
brasileiros: os paraguayos são
ainda para elles castelhanos.
[94]
Temos por vezes usado d'essa
denominação de uma das tribus
da nação chané, como que abrangendo a
todas as outras, porque no districto de Miranda conhecem-se todos os
indios
chanés por
guanás. Entretanto perguntando eu, certo dia, a um terena se
elle era guaná:
Acó
chooronó, chané cuané
téreno enómone;
guaná
não, chané ou terena na verdade (litt.).
[95]
Esta tribu habitou primitivamente quasi toda junta
á serra
chamada do Chané, no lado direito do rio Paraguay, acima da
do
Albuquerque, dando a cordilheirasinha o nome da
nação a que
pertence? Ou lá esteve toda a nação?
Nas minhas notas encontro
ainda uma confirmação de que a
denominação de chané, é
valiosissima.
Disse-me um quiniquináo:
Humnāi quechatí cequexivó
nhumzó
chané? O senhor quer aprender a minha
lingua chané? e acrescentou:
Encre nhumzó acó
ocohocorí iaquexovói
chané. Pois minha
lingua não custa aprender o chané
(litteralmente). Ao illustrado
viajante Henrique de Beaurepaire Rohan não escapou esta
particularidade
importante.
[96]
O ultimo accento é o tonico: os outros
modificão o som das vogaes.
[97]
Os dois
l
soão claramente.
[98]
Os laianas dizem
moreví, como em guarany.
[99]
Na lingua tupi
paraguá, papagaio; d'onde
paraguá hy, rio dos
papagaios.
[100]
Castelnau no seu inexactissimo vocabulario
guaná exprime esta
palavra
por
annāiti que significa
grande, ignorando a sua qualidade de
adjectivo, o
qual vai modificar
piritáo, faca.
Não merece confiança a
traducção dos
outros vocabulos.
[101]
Os indios chamavão-me
ungê-maracaiá,
olho de gato. Os guaranys
dizem
mbaracaiá; na
lingua tupi
maracayá ou
maracajá.
[102]
Talvez se devesse escrever
ingâchá-á:
em todo o caso não se pronuncia
claramente o
in, fazendo
só soar o
g,
arrastando-o.
[103]
A palavra é esdruxula: não sabemos
porque se a pronuncia grave.
[104]
Mámá em lingua
caiuá, muito approximada ao guarany, senão o
proprio.
[105]
Os
h são
todos aspirados com energia.
[106]
Noné
capací, cara de nuvem, era a antonomasia
de um de nossos soldados,
por causa da guedelha desgrenhada.
[107]
Este
j sôa,
como em hespanhol, gutturalmente.
[108]
Significa
peixe de rabo de
sangue (vermelho).
[109]
Quer dizer
piolho de
cão.
[110]
Vê-se claramente que quiniquináo
é alteração da palavra india.
[111]
Os nomes de peixes são, como este e muitos
outros, guaycurús.
[112]
Esdruxulo, quando em portuguez é grave.
[113]
Os quiniquináos dizem
pahapáti.
[114]
Observa-se a irregularidade de
formação. São novas palavras.
[115]
Esta palavra é de mui difficil pronuncia. Nunca
a podêmos escrever
conforme a ouvimos.
[116]
Além de tres dizem
tápuia muito, ou
opôicoati. Para marcarem
épocas,
serve-lhes a florescencia do
para-tudo. Um indio disse-nos:
«Já o para-tudo
deu flôres duas vezes e os castelhanos ainda estão
em Miranda».
[117]
Os imperativos, que elles empregão muito,
terminão quasi todos em
ca, exemplo:
iticá faze,
tetucá corta,
nicá come,
angicá lava; dos verbos
ittuketi fazer,
tetocoti cortar,
ningá comer,
angicóati lavar.
[118]
Litteralmente
unati
bom,
niké comida.
Cuati deveras,
echoti sabe,
itucoati fazer,
nica comida,
ienó sua mulher.
[119]
Tambem diz-se
emó? quem sabe?
[120]
Tomámos para estimativa da distancia vencida a
média, em
diversas observações, do tempo gasto por um
animal carregado em
percorrer uma certa extensão medida; sendo a unidade o
minuto
que achámos correspondente a 30 braças, 355.
[121]
O rio pareceu-nos profundo e suppomos nunca poder dar
váo
bom á artilharia e cargueiros.
[122]
Commandada pelo capitão José Pedro
de Souza, o qual sempre
se prestou a coadjuvar-nos efficazmente em todos os nossos
trabalhos.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
Quando
há
indicações de data em que o
ano
não se encontra
completo, optámos por apresentá-lo como no
original.
Mantiveram-se versões da palavra Aquidauana, tais como
Aquidauna.