OS
TRIPEIROS.
ROMANCE-CHRONICA DO SECULO XIV.
POR
A. C. LOUSADA.
PORTO:
TYPOGRAPHIA DE J. J. GONÇALVES BASTO,
LARGO DO CORPO DA GUARDA N. 106.
1857.
I.
A mensagem do Mestre.
Alteradas estão do
reino as gentes
Co' o odío que occupado os peitos tinha.
camões, lus.
cant. iv.
Era uma estranha romaria, para quem não tivesse
noticia dos alvoroços a que a morte de Fernando 1.º
e o casamento de Beatriz em Castella tinham dado
causa, a que pelos meados de Maio de mil trezentos
e oitenta e quatro sahia pelas portas da cidade do
Porto que davam sobre o rio, e mais pela chamada
[6]
Porta Nova. Se fosse facil conduzir o leitor a vêr
do alto das torres que a defendiam aquelle gentio,
acreditaria que elle tinha invadido algum arsenal a procurar
disfarce entre o guerreiro e o burlesco. Um
popular cobria a cabeça com um elmo adamascado,
e, mostrando os joelhos através do grosso estofo das
calças, com pés descalços pisava a
areia onde o
montante que arrastava deixava um sulco;
um outro,
parecendo ter em menos conta a cabeça do que
o peito, abrigava este em uma couraça mais que farta,
e deixava aquella ao sol e ao vento; este, vestindo
apenas umas calças, se assim se podia chamar um
cirzido
de trapos, trazia suspenso de funda um escudo
de couro, onde em tempos estivera pintada ou
divisa ou brasão, pois não era já
facil adivinhar
o que fôra; de um cinto leonado pendia de um lado
um estoque, do outro um punhal, e, como se
não bastassem estas armas offensivas, empunhava
um chuço enorme; aquelle levava um bacinete
amassado
e um gorjal ferrujento, e tinha por cinto de grosseira
jornea uma funda, o provimento da qual, como
se não fôra uma arma facil de encontrar a cada
passo, pesava em um sacco lançado aos hombros.
De tempos a tempos o bom povo, como lhe chamava
o mestre de Aviz, abria aqui logar a um cavalleiro
acobertado de ferro desde os pés á
cabeça, seguido dos
seus pagens, ou escudeiros, alem a outros mais exquisitamente
vestidos pelo antiquado das armas, ou
pelo incompleto. Havia capacete que, se Cervantes o
visse, não o deixaria ser original descrevendo o que deu
ao seu heroe no principio das perigrinações;
peitos de
aço polido, espelhando o sol, que disparatavam com
umas grevas desconjuntadas, enegrecidas, remendo
visivel; feixes de armas que desdiziam umas das outras
[7]
pelo valor, casando-se a facha grosseira com um
estoque cuja bainha acobertavam ornatos de prata,
montantes de Toledo e adagas grosseiras. Os cavallos
iam uns cobertos de ferro, outros apenas com
os arreios necessarios para se poder cavalgar, e não
poucos dos cavalleiros, e aos pares até, montavam
em mulas. Os cidadãos que assim sobrecarregavam
os pobres animaes, costume vulgar por esses tempos
e por muitos outros, vestiam em geral a garnacha
negra, distinctivo dos doutores e physicos. Com este
mesmo traje, porém arregaçado pela ponteira da
espada,
deixando vêr a calça de duas cores e o borzeguim
ponteagudo via-se tres ou quatro aspirantes áquella
distincta classe de medicos e letrados, e com
elles alguns monges, que tambem se mostravam affeitos
ás armas pelo modo como seguravam o punho
da espada e cobriam a tonsura com o bacinete. Um
dos cavalleiros mais bizarros da romaria era tambem
um ecclesiastico; pelo menos assim o demonstrava
um roquete, que sobre armas soberbas vestia
em vez de brial.
De burlesco para a gente que guarnecia as muralhas,
as torres, os eirados e soteas nada havia
nesta procissão; de marcial havia muito, tudo, a avaliar
pelo enthusiasmo com que a saudavam, e pelos vivas
que se juntavam ás saudações. Tinha
decorrido
uma boa hora desde que correra na cidade que umas
galés demandavam a barra, e, posto que houvesse
quem affirmasse logo que eram portuguezas, como
dos de casa havia tanto a recear como dos extranhos,
todos se tinham prevenido para as receber. Um pagem
levara já a Ayres Gonçalves e ao bispo D.
João
a nova de que eram expedidas pelo mestre de Aviz;
porém estes senhores eram então authoridades
quasi
[8]
nominaes, e deixavam por tanto, para não perderem
o tempo, fazer a sua demonstração aos bons
populares e aos cavalleiros que não eram de suas casas,
creação, ou serviço.
Ideia de que no seculo decimo quarto era uma
guerra civil, acompanhada de uma invasão estrangeira,
nem todos os que passam os olhos por este capitulo
farão. Hoje hasteam-se duas ou tres bandeiras,
ou mais, se quizerem, mas, o primeiro impeto passado,
a machina civil lá vae funccionando peor ou melhor
por conta dos governos provisorios; naquelles
tempos, porém, ninguem se entendia por vezes. Cada
fidalgo levantava o seu troço de gente e vendia e revendia
a espada; hoje era ao serviço de um,
ámanhã ao
de outro; os alcaides dos castellos, a maior parte
dominando as povoações principaes, juravam preito
e
perjuravam todos os dias, e as municipalidades lançavam,
bom ou mau grado, pela manhã um bando
em favor de um monarcha e á tarde acclamavam outro.
No meio desta bella ordem havia caudilho que
dava em ambos os partidos belligerantes, e sobretudo
nos pacificos, aventureiros que se batiam por si e para
seu proveito. Na menoridade do pae do regedor,
como modesta e arteiramente se appellidara o irmão
bastardo de D. Fernando, e em quasi todos os reinados
antecedentes, a provincia de Entre Douro e Minho
tinha tido a sua amostra destas amabilidades;
mas o que a gente da
ordem chama
revolução e revolução
politica não estalara em tempo algum como
agora. Até ahi o povo contentara-se, salvo um ou
outro caso, com evitar a ponta da lança dos nobres
senhores e o virote dos seus homens d'armas, e ainda
mais de lhe franquear as arcas e de correr os cordões
da bolsa, o que raras vezes conseguia. Os
[9]
burguezes do Porto, o mais desenquieto povo de
toda a provincia e do reino, tinham já dado mostras
da sua força aos bispos Martinho Rodrigues e Vasco
Martins, porém, nestas revoltas se entrava politica era
acobertada: elles não davam por tal. Desta vez o exemplo
da capital fôra-lhes contagioso, e mesmo sem
tão
bons motores como Alvares Paes, desempenháram a sua
tarefa por tal arte, que se póde dizer, que a lei por
que se governavam era a sua. Ayres Gonçalves de
Figueiredo, o governador de Gaya admirára da outra
margem a valentia dos pulmões dos partidarios do
novo governo, e, posto que não estivesse bem seguro
das suas ideias quanto á legalidade da regedoria, e
preferencia de direitos do mestre de Aviz sobre os
do infante, dos deste sobre a irmã, ou vice-versa,
para não lhes avaliar as iras tambem, contemporisara,
soltando as mesmas acclamações. Na cidade havia
um cahos. Os vereadores, governavam; governavam
os juizes do povo e o juiz real; governavam os chefes
das corporações; governava, porém
menos, o bispo
e os seus meirinhos; governavam até, ou mandavam,
os prisioneiros, ou tidos por taes, como era o
conde D. Pedro de Transtamara, que no campo de
Coimbra tivera as suas aspirações á
coroa de Portugal,
e a ser o terceiro marido legitimado de Leonor
Telles; finalmente, mandavam todos, se a mais ninguem
fosse, cada um a si.
Do pequeno povoado que ficava extra-muros,
composto de uma mescla de armenios, que nove annos
antes tinham deixado cahir o throno de Livonio,
o seu ultimo rei, aos golpes de espada do sultão
do Egypto; de gregos da Asia, escapados á furia
dos soldados de Amurath; de flamengos e genovezes
aventureiros, de mouros, os cultivadores da encosta
[10]
em que o bairro se abrigava; da pequena
povoação,
do bairro Armenio, augmentado ainda depois da
tomada de Constantinopla com os piedosos guardas
de S. Pantaleão, ajuntava-se á
procissão sahida da
Porta Nova uma chusma de curiosos, que pela variedade
de vestuarios, lhe vinha dar realce. Como
em taes casos succede, toda esta gente se embaraçava
na marcha, peões a cavalleiros, cavalleiros a
peões;
todos fallavam, todos tomavam e davam concelho, e
perguntavam por novas de que iam dar ao primeiro
encontrado uma versão correcta e augmentada com
reflexões de lavra propria e extranha. O espaço
que se
estendia desde os muros até onde a Arrabida deixava
apenas um caminho de cabras, aberto na rocha
para quem se quizesse dirigir á Foz do Douro, não
foi pois transposto em menos de uma hora, pela vanguarda:
uma grande parte do exercito popular nem lá
chegou. Os primeiros que encontraram uma das
galés subindo o rio, gritaram para os tripolantes que
lhes dissessem por quem vinham, e como estes respondessem
que pelo Mestre, sem mais attenderem, voltaram
atraz, dando vivas, como se fosse aquillo reforço
inesperado, que os viesse tirar de apuros.
Nas galés não vinha reforço algum para
os do
Porto, unica terra de importancia ao norte do reino,
que não acceitára como rei o marido de Beatriz,
e tinha a braços setecentas lanças e dous mil
infantes do arcebispo de Santiago e de outros senhores
castelhanos e portuguezes, sem contar os aventureiros
de Fernando Affonso, que não eram nem
uma cousa nem outra.
D. João de Castella, feita em Santarem a cessão
dos direitos á coroa por D. Leonor, a troco de
vinganças
promettidas no povo de Lisboa, que a respeito
[11]
della e em rosto esgotára um vocabulario immenso
de nomes, de que Fernão Lopes dá uma amostra,
e a mimoseára com pedradas; D. João, resolveu-se,
senão a cumprir o ajuste, pois se malquistára com
a ambiciosa sogra por causa de dous judeus, a destruir
a rebellião, como elle lhe chamava, no fóco,
e avançára até o Bombarral, ao passo
que aprestava
uma armada que, fechado o assedio por terra, cerrasse
tambem as communicações por mar.
Os arredores de Lisboa talados, as povoações
saqueadas não podiam abastecer de viveres os sitiados;
entre elles e Coimbra estavam os arraiaes inimigos,
portanto recorria-se ao Porto, pedindo tambem
um reforço de navios para impedir que o Tejo
fosse bloqueado. D. Lourenço, arcebispo de Braga,
azafamára-se para armar as galés que deviam levar
estes soccorros, e o mestre de Aviz encarregára Ruy
Pereira de uma missiva, em que aos bons burguezes
se promettia mil regalias; pois D. João acceitára
o conselho de dar tudo o que lhe fosse possivel
dar, e prometter até o impossivel.
Os vivas e o appendice a todo o enthusiasmo politico
de morras, naquella quadra aos castelhanos,
aos traidores e aos scismaticos, prolongaram-se até que
as galés em que vinham Ruy Pereira e Gonçalo
Rodrigues
vararam perto dos muros da cidade e principiou
o desembarque destes e outros illustres
personagens,
e ainda maior foi a algazarra quando o
estandarte real appareceu. O conde de Transtamara,
como primo do rei de Castella, não era dos coristas
mais fracos deste grande côro desafinado, e fôra
dos
primeiros cavalleiros que se apearam para receber
os reaes mensageiros, com toda a cortezania. O povo
sem fé naquella conversão e pouco acatador nesse
[12]
momento das esporas de ouro, das cotas bordadas e
cimeiras historiadas; o povo, deixando escapar desses
epygrammas de que elle possue o molde particular,
em vez de lhe abrir caminho, cerrava-se na
sua passagem, fazendo perder ao fidalgo o aranzel lisongeiro
que tencionava prégar a Ruy Pereira. Ruy
era uma notabilidade, como hoje se diz; porque então
ainda se não tinha inventado as notabilidades,
nem muitas outras cousas. Desde que explicára ao
mestre de Aviz a opinião do povo a respeito da rainha
Leonor, notando que quando andava para casar
com sua mulher, fallavam todos em que se queria
casar com Violante Lopes, e depois de casado ninguem
mais de tal fallára; depois, sobretudo, que déra
o golpe de mercê ao conde valido, abaixo de seu
sobrinho, dos homens de espada com valimento na
côrte, era o primeiro, e para quem estava nas circumstancias
de D. Pedro, portanto, pessoa que era prudente
lisongear.
Já então, como se verá no decurso
desta narração,
se attendia a conveniencias.
Em quanto os mesteiraes e burguezes embaraçavam
o conde, Martim Gil, abbade de Paço de Sousa,
substituia-o dignamente com duas rajadas de latim,
a substancia do todo, que o mensageiro perdeu por
não entender a lingua de Cicero, e uma enfiada de
periodos em portuguez garrafal, que entenderia perfeitamente,
se a algazarra tivesse cessado. Ruy Pereira
satisfez-se com vêr abrir e fechar a bocca ao
reverendo, e respondeu a toda esta eloquencia, fazendo-lhe
um ponto no meio do recado, perguntando
onde havia de pousar. Martim Gil indicou-lhe todas
as boas casas da cidade desde os paços da Sé e o
convento de S. Domingos, até algumas das vivendas
[13]
particulares, e o tio de Nuno Alvares escolheu S. Domingos,
mostrando mais pressa de descançar dos encommodos
do mar, que de dar conta da sua missão. O abbade
tentou então dar á entrada na cidade dos
passageiros
e tripolantes da galé de Gonçalo Rodrigues, e
das outras que iam aproando ao longo da praia, um
todo processional, porém luctava em vão; que era
até
difficultoso fazer desembaraçar os sitios de desembarque,
onde o povo se apinhava, se acotovallava
sem
dar descanço ao pulmão. O Douro não
tinha ainda,
nas suas soberbas, arrojando as terras roubadas nas
campinas d'encontro á praia; tornado esta tão
larga
como hoje; nem os homens haviam com parapeitos
avançado sobre o leito daquelle. O espaço
existente
logo além de portas, onde havia povoado, era
tão limitado, que, a distancia, parecia que as
edificações
tinham para a agua serventia, como os da cidade
das lagunas, a rainha do Adriatico; o estado de
exaltação,
e animo revoltoso ou independente dos burguezes
e vilões, porém, até em logares mais
espaçosos
tornava difficil a empresa do abbade.
Ruy Pereira, apesar de ter presenceado em Lisboa
a revolta popular, fazendo-se popular elle mesmo,
não o era tanto que levasse a bem aquella sem-ceremonia
dos portuenses, e lançando sobre os mais
proximos um olhar pouco amavel, reprimindo a custo
a vontade que tinha de mandar abrir caminho a
prancha de espada e conto de lança, lamentava
in
mente os bons velhos tempos―que já
então havia
bons velhos tempos―em que a cousa
«peão» descortinando
a vontade no gesto de um rico homem,
logo obedecia sem mais tugir ou mugir.
Graças á intervenção dos
juizes do povo e real,
que, avisados da chegada dos navios e de quem eram
[14]
as pessoas que elles conduziam, vinham para as
accommodar em pousada decente e fazer todas as
honrarias, que em tal caso competia, o embaraço terminou.
As tres authoridades, duas municipaes, uma
real, duas de muros a dentro, outra ribeirinha, foram
felizes, deve-se confessar, naquella occasião,
por não haver conflicto de poderes, nem
recalcitração
dos governados, o que era raro, e deveram esta
felicidade a estar satisfeita a curiosidade dos burguezes,
e não ser preciso empregar barqueiro ou
pescador algum na amarração dos navios. A
procissão
começou pois a mover-se pelas estreitas ruas da
cidade, e, em vez de parar em S. Domingos, seguiu
até á casa da camara no meio sempre de grandes
acclamações
ao mestre de Aviz, defensor e regedor do
reino, e morras aos castelhanos herejes, scismaticos
e traidores, o que fazia tragar sem réplica a Ruy Pereira
o ceremonial amofinador a que o submettiam
os edis portuenses, e a pressa que tinham de saber
em que podiam servir a sua senhoria, o futuro
rei.
II.
Um rapaz travesso.
He elle um par bem 'scolhido.
gil vicente.―v. da horta
Quando o mensageiro do Mestre era processionalmente
levado pela porta, que tempos depois deu
a um poeta com o nome um trocadilho para um requerimento
em verso, no marulhar de curiosos e patriotas
que se empuxavam, forcejando por abrir caminho
para aquelle gargalo, um burguez que tornava
[16]
respeitavel o sizudo do traje, uma barriga proeminente,
onde batia uma gorda bolsa de couro e um
esguio punhal, cabello branco, patrioticamente cortado,
luctava para não ser levado na corrente, dando
mostras pelo inquieto do olhar que procurava alguem.
A força da corrente era grande, porém, e
arrastou-o
pouco a pouco até junto de uma das torres
de defesa, onde a ressaca o fazia tomar todas as
direcções e posições
possiveis no meio dos gritos
das mulheres abafadas, das crianças trilhadas, do estalar
das armaduras, que, permitta-se a imagem, eram
os crustaceos que as ondas daquelle mar lançavam
d'encontro ás rochas. Mestre Gonçalo Domingues
suava
por todos os póros e formava com os cotovellos
um amparo ao abdomen e quebra-mar á maré,
receando
ser lythographado no muro, resmungando
ao passo uma ladainha contra o causador daquelle
desastre, segundo se lhe affigurava, um sobrinho
que o acompanhára momentos antes, e que perdera
de vista. Resolvido já a deixal-o por sua conta,
pois não estava já em edade de se perder, e a
escapar-se
daquelle aperto, começava a recuar, servindo-se
dos cotovellos como de uma alavanca, quando
sentiu umas mãos callosas pousarem-lhe no hombro,
sustendo-o na marcha. Sentindo aquella resistencia,
sem vêr quem a oppunha, pois lhe era impossivel
voltar o rosto, e receando de novo ser levado
para o muro, empregou contra o individuo que
assim lhe cortava a retirada um cotovellão, que estava
na razão directa da força que o impellia: tudo
isto acompanhado por uma praga:
―Más terçãs te colham,
cabeça de bogalho!
A praga a meio, e uma das mãos a erguer-se
a descer fechada em murro, estourando no costado
[17]
de mestre Gonçalo Domingues, que soltou um regougo,
cambaleou e perderia de certo o equilibrio,
se um mesteiral, que estava na frente, o não amparasse
na queda. O burguez, incommodando com o peso
o seu primeiro ponto de appoio, este o saccudiu para
um dos visinhos, que o recambiou sobre o homem
do murro, appresentando-lh'o de cara.
―Se te apanhára aqui, maldito! tornou a exclamar
mestre Gonçalo, soltando outro gemido: punha-te
as orelhas a fumegar. Tu m'as pagarás!
Esta exclamação a meia voz, dirigida ao ausente
sobrinho, foi interceptada a meio pelo homem de
murro, um marinheiro, que, vendo o rosto afflicto
do bojudo cidadão, se contentou com dar-lhe um
grande encontrão, resmungando, como goso que vê
em perigo o osso que esburga:
―Pois junte lá mais isso á conta, meu baleote.
Mestre Gonçalo estava affeito a ser mais bem
tractado intra-muros: doeu-se da chufa dirigida ao
seu physico pelo maritimo, e fez-se mais vermelho
do que estava; fez-se roixo, se póde dizer, desde
a raiz do cabello até aos queixos, mas não
reagiu.
A sua indole era pacifica, apesar do punhal que o
acompanhava; e demais, não via perto de si senão
caras desconhecidas e rostos queimados pelo ar do
mar, que podiam ser de vassallos da coroa, e estes,
posto nessa occasião estivessem em harmonia com
os vassallos da mitra, e já um pouco apagadas as
divisões antigas, era de crêr que por elle
não tomassem
partido. Comtudo, não se ficou, sem responder:
―Se não está bom, deite-se, ou vá
travar razões
com petintaes, espadeleiros ou outra gente da
[18]
sua egualha; não se metta com quem não se mette
comsigo.
―Olhem o outro! resmungou o marinheiro;
abalroou-me com os cotovellos pelos peitos, e diz
que se não mette com a gente; traz aquella cara
que parece mesmo um odre a rever, e grita que um
homem cá está toldado!
Gonçalo Domingues, doendo-se da nova zombaria,
tornou mais apropriada a imagem do marinheiro,
e cerrando os punhos exclamou:
―Veja como falla!
―Graças a S. Pedro; meu advogado, redarguiu
o homem do mar, levando a mão ao barrete―não
é facil de dizer se em attenção ao
santo-apostolo,
se em cortezia zombeteira, pelo esgar que fez,
ao senhor Gonçalo―graças a S. Pedro, fallo sem
trave.
E não me faça biocos nem arremessos, accrescentou
com ar mais carregado: que, se me sobe a
maré aos cascos?!...
―Que é lá isso, mestre Gonçalo?
perguntou
quasi ao mesmo tempo um cidadão de pouco
menos edade que o interrogado.
―É este excommungado, que se metteu onde
não era chamado, e me poz a paciencia em maior
apuro do que já a trazia.
―Excommungado é elle! resmungou o marinheiro,
recambiando o apódo que lhe fôra dirigido,
e fitando ora o novo, ora o antigo interlocutor.
―Olhe, mestre Gil, tornou o burguez rubicundo,
dirigindo-se ao recem-chegado; ia eu amofinado
por causa daquella cabeça de vento de meu
sobrinho...
―E que tenho lá eu com seu sobrinho? tornou
o marinheiro.
[19]
―Isso mesmo queria eu que me dissesse!
acudiu o senhor Gonçalo.
E, voltando-se para o seu collega, continuou:
―Ia eu, como lhe dizia, amofinado, porque o
maldito do rapaz se me escapou―ora sei eu lá para
onde!―e não sei que digo de mim para mim, quando
essa creaturinha, como se não tivesse da sua egualha
mais com quem desenferrujar a lingua, travou-se
de razões...
―Isso nada vale, mestre Gonçalo! atalhou o
homem a quem vimos dar o nome de Gil, dirigindo-se
para o galeote, que lhe voltou as costas, fazendo
uma careta muito expressiva para um companheiro,
que, com uma mão pousada no hombro
delle, parecia, na posição que tomava, querer
dizer
que alli estava para ir em seu auxilio, se preciso fosse,
que não era.
O gordo burguez, vendo o antagonista voltar-lhe
as costas, desafogou contra elle, com o seu amigo,
a cholera, que o ameaçava com uma apoplexia;
e em seguida desafogou tambem a respeito do causador,
o estouvado sobrinho, que desapparecera. Apesar
de ter escoado a multidão pela porta da cidade,
de estar já desembaraçado o transito,
á volta dos
altercadores havia uma reunião de curiosos, como de
costume, cujo nucleo era uma boa duzia de garotos
pertencentes, pelo que dos trapos vestidos se divisava,
a tres religiões; pelo typo, a tres raças, e ao
qual se juntavam por um segundo, que mais não fosse,
os arrastados daquella procissão e todos os que
por alli o acaso conduzia. Uma velha que regressava
aos lares com os aviamentos para a ceia, comprados
na tenda d'ao pé da porta, soalheiro do bairro,
não
escapou, apesar de carregada, á força attrahente
das
[20]
lamentações de mestre Gonçalo; e,
sabida a causa destas,
se appressou em dar-lhe remedio.
―Quer saber do seu sobrinho que esteve no
convento, mestre Gonçalo? Bem se vê que o rapaz
não tinha queda para os latins e o hábito;
aquillo
é um levantado! Tome sentido com elle, mestre!
Agora o vi eu a correr pela bitesga que vai por pé
da casa de João Ramalho. A modos que elle...
A reflexão da velha, se na phrase ficou incompleta,
não o ficou no gesto. A traducção
deste era
que o rapaz começava a inclinar-se ás
saias. (Como
demos a traducção, ajuntaremos, em nota
intercalada
no texto, que a boa santinha parecia, no ar malicioso
que tomou, recordando-se dos seus tempos, ter delles
saudade.)
Gonçalo Domingues, sem mais attender á mulher
da alcofa, tomou a direcção do sitio indicado
como o
seguido pelo sobrinho, resolvido a descarregar nelle
o mau humor excitado pelo seu desapparecimento,
pelos apertões que levára, o cortejo que perdera,
e,
sobretudo, os apodos e murros do galeote. Em quanto
para lá se dirige, ruminando aquellas passadas
attribulações, saibamos o que fazia o travesso
rapaz.
Como já viu o leitor, no antecedente capitulo,
no tempo em que estas cousas succediam, as
habitações,
em Miragaya, estavam mais perto do rio, ou
melhor, o rio corria mais perto das habitações.
Entre
S. Pedro e os muros, havia, no espaço que abre
a montanha, algumas bitesgas, de que ainda se conserva
uma amostra, povoadas umas, outras correndo
entre cercados e muros; em outros sitios, um fraguedo
deixava apenas o logar preciso para algum carreiro
não muito viavel. A povoação
cerrava-se, apinhava-se
[21]
mais para o pé da velha egreja de S. Pedro,
e rareava progressivamente para o oriente e poente.
Perto dos muros, havia tão sómente uma fieira
de casas á beira d'agua; depois o declive rude do
monte onde se edificou o convento dos Agostinhos,
coberto de silvados e matto, que vinha angustiar
mais o passo para a cidade. Onde se tornava mais
suave a encosta, subia um carreiro, que, depois de
serpear por detraz de algumas das moradas do bairro
do rei, se bifurcava, levando um braço a uma daquellas
ruas, lançando outro pelo monte, serventia
a casaes que se communicavam egualmente com a
cidade pelo lado do Olival. Por este carreiro é que
tomára Fernando, ou Fernão Vasques, o sobrinho do
senhor Gonçalo Domingues, mal viu absorvida a
atenção
deste nas galés reaes e seus passageiros. O
rapaz correu por algum tempo sem tropeçar, para o
que preciso era estar bem affeito a trilhar similhante
caminho, e só affrouxou o passo quando se approximava
de uma casa de boa apparencia, cuja frente
dava para a praia, habitação de uma das
notabilidades
do bairro, e que o foi depois, na historia, do piloto
e mercador João Ramalho.
A casa para o lado do rio nada appresentava
de notavel na fachada: era um edificio de madeira
como muitos dessa epocha; para o lado do monte,
porém, era bastante pictoresca. A parte inferior
escondia-se
em uma moita de arbustos de um pequeno
cercado, onde tambem se levantavam algumas arvores
de fructo, uma das quaes, rompendo, com um
braço lançado á flor da terra o muro
de pedra insossa,
saccudia sobre o caminho a folha, a flor e
mesmo o fructo, se a gula dos garotos esperava pelos
effeitos do tempo. Acima do verde dos arbustos
[22]
descortinava-se uma varanda de pau, onde, no parapeito,
davam passagem ao ar e á luz aberturas symetricas,
figurando folhas de trevo, e na parte superior,
zelozias em xadrez, tudo pintado de encarnado
vivo e verde esmeralda, com que realçava o branco
que tingia o tabique. De ambos os lados da varanda
descia uma escada, cujos maineis se perdiam
entre os arbustos, depois de se ligarem em um patamar,
ao centro, para de novo se separarem, formando
da sorte um corpo saliente na fachada. Por
cima da varanda abriam-se duas janellas, todas lavradas,
ornadas de zelozias tambem, e tendo por baixo,
sobre traves salientes, em cada uma das quaes
artista rude esculpira um animal sonhado, dous caixões
com terra. Em um, apar do qual duas longas canas
formavam um estendal, onde se via roupa a seccar,
a providencia domestica semeára salsa e a
precaução
contra feitiços dispozera um pé de arruda; no
outro, havia um pé de amores perfeitos e outro de
madresilva marinhando por cordões passados para o
guarda-chuva de madeira que os abrigava.
Quando Fernando Vasques se aproximou da casa,
depois de alguns assobios, entre a trepadeira e por
cima dos amores, appareceu, aberta a zelozia, uma
cabeça bem propria para encaixilhar entre aquellas
flores. Imaginae um rosto oval, de uma carnação
que
se não podia dizer branca, mas a que se não podia
chamar trigueira, porque o não era; uma pallidez, sem
ser dessas que denunciam uma natureza enfesada,
doentia; uma pallidez que lhe dava um todo de brandura,
de carinho, que fazia por vezes realçar um carmim
vivissimo e trahia um olhar travesso, de travessura
infantil, innocente; imaginae uma bocca de um
lindo desenho, formando em cada extremo uma covinha
[23]
engraçada; uma bocca que parecia sorrir sempre,
mesmo quando a fronte scismava ou as lagrimas
desciam pelas faces; imaginae que o nariz fôra modelado
pelo de uma estatua antiga, e imaginae, sobretudo,
uns olhos castanhos rasgados, assombrados por
uma franja de cilias tão cerrada, que pareciam negros
como a baga do loureiro; uns olhos, emfim, expressivos,
verdadeiros espelhos d'alma, como lhes chamam os
poetas, e tereis uma ideia das feições de Irene.
Esta
encantadora cabeça enfeitava-se com o mais soberbo
cabello que se póde ter aos quinze annos; negro, longo,
serico, ligeiramente ondeado. Para maior realce
da côr, parecia feita á moda que vogava. As
tranças,
que vinham pousar no collo, alvo como marfim, eram
intermeiadas por fitas de lã de um vermelho vivo, que
se cruzavam depois na cabeça e vinham cahir soltas,
dos lados, terminando em pingentes de metal dourado.
As leis que faziam distinguir, pela cabeça, as solteiras
das casadas e estas das viuvas cahiam em desuso.
A filha de João Ramalho, apesar da curta edade,
era uma bellesa. O sangue de sua mãe, uma dessas
bellas moças da Asia, em que se confundiam dous
typos, o grego e o armenio, predominando, desenvolvera
aquelle corpo garboso; dera-lhe na adolescencia
o acabado, a morbidez que só mais tarde,
em geral, em outra edade se alcança. Com o corpo
desenvolvera-se o espirito: desenvolvera-o a esmerada
educação materna, que distava bem da vulgar
entre a nossa burguezia naquelles tempos, e os
carinhos da boa mulher, que o senhor João não
comprehendia bem, entretido sempre nas suas viagens
e rude, voltados todos para aquella filha unica,
em que se embellezava cultivando-lhe o coração,
[24]
aformosearam-lhe a alma. Uma bella alma faz
um rosto, senão formoso, amavel; a intelligencia reproduz-se
nas feições como aureola que lhes dá
realce; a natureza, já o dissemos, fôra madrinha e
não madrasta para com Irene: a bella menina, reunindo,
pois, todas as formosuras, despertava a admiração
e o amor ao mesmo tempo. A impressão produzida
no sobrinho de Gonçalo Domingues fôra esta,
e que o amor naquelle peito tinha boas raizes, dizia-o
a confusão em que elle ficou, mal á janella
appareceu
a gentil cabeça. Fernando, um rapaz jovial e resoluto,
como o diziam uns olhos castanhos cheios de
fogo, um nariz ligeiramente curvo, os lábios delgados,
accentuados na extremidade por um ligeiro buço;
Fernando baixou os olhos, fez-se vermelho,
sentiu que os joelhos se dobravam, enfraquecidos,
e, sem se attrever a fitar de novo aquella
apparição,
bom tempo gastou em puxar o barrete de um para o
outro lado da cabeça e amarrotal-o nas mãos, nem
creança bisonha que se dispõe a abrir brecha na
bolsa
paterna, ou tem de responder por avaria feita, acabando
por desafivelar o cinto da jornea, como se carecesse
de tomar largo folego para levar a cabo a sua
empresa.
Não era esta a vez primeira em que alli se encontrava
em taes embaraços, porém nunca tão
graves
tinham sido as circumstancias. A gravidade não
provinha da escapula feita a seu tio, que já nem de
tal se lembrava, mas da resolução que
tomára de realisar
as suas ambições e sonhos, as
combinações de
tantas horas; de passar além de alguns gestos e sorrisos
e umas saudações feitas do cimo da encosta,
não fallando em uma enfiada de sons, que palavras
se não podiam dizer, pois nem elle lhes soubera o
[25]
sentido, soltados á porta de S. Pedro entre uns como
arrepios, que attribuiu ao modo porque o encarou
a cultivadora da arruda, a creada a quem o senhor
João Ramalho, por morte de sua esposa, confiára
o governo da casa e a guarda da filha.
Quasi egual á força da
resolução fôra o abalo, como
nestas cousas é de costume, mas Fernando não
estava
resolvido a deixar perder mais uma occasião: puxando
o barrete sobre a nuca, subiu a um comoro,
ao lado da quelha, ergueu os olhos e abriu a bocca,
porém a palavra engasgou-se-lhe a um gesto de
Irene.
O pobre não prevera que prégar a sua confidencia
daquelle sitio fôra, querendo que ella a ouvisse,
mettel-a tambem nos ouvidos dos visinhos, ou pelo
menos das pessoas de casa, e a moça, levando um
dedo aos lábios e indicando-lhe com um gesto que
descia á varanda para encurtar a distancia, se no
enleio, no rubor se mostrava mal affeita áquellas
artimanhas,
professadas pelo amor, ou quem suas vezes
faz, como do sexo a que pertencia, se mostrava mais
prudente. Irene desceu, mas vencido a meio
o inconveniente da distancia, furtava-se, encoberta pelo
cercado da horta, ás vistas de Fernando. Este eclypse,
como diria um poeta, foi que deu ao namorado
um animo de que elle proprio se espantou por muitos
dias depois: atreveu-se a subir ao muro e marinhar pela
arvore que se debruçava sobre a estrada, a esconder-se
entre a ramagem.
Os discursos naquelle dia tinham má sorte: como
o que fôra destinado a Ruy Pereira, o pensado
e repensado do sobrinho de Gonçalo Domingues não
vingou. A erudicção do abbade de Paço
de Sousa
achatara-se de encontro á paciencia do fidalgo; as
flores escolhidas para ornar a declaração feita a
Irene
[26]
(tão rico dellas é o
coração em que rebenta
o amor!) as flores de estylo queimou-as um olhar
lançado ao mancebo, traduzindo tanta cousa, que
só
um desses olhares podia dar bons tres capitulos como
este em que se conta e commenta tanto successo.
O olhar de uma donzella, como a filha do piloto,
nestas confidencias de um primeiro amor―deixem
dizer que o amor, o verdadeiro amor só vem muito
mais tarde, deixem; que elles treleem, e julgam que
o egoismo aquilata a paixão―; o olhar de uma donzella
assim, encerra um mixto de affecto carinhoso,
de volupia indefinivel, de pudor e innocencia, de receio
e ousadia, que, para delle dar uma ideia, a poesia
mesmo é uma linguagem descolorida.
Fernando, mal se viu frente a frente com a moça
namorada, sentiu um formigueiro nos pés, turbara-se-lhe
a vista, e teve de se agarrar aos ramos da
arvore, para não cahir; quiz procurar o cabeçalho
da sua declaração, porém nem uma
só ideia lhe vinha
á mente; por mais de uma vez abriu a bocca,
e teve de a fechar sem formular um unico monosyllabo.
Irene, na varanda, com a approximação
tambem se acanhára, e occultava o seu embaraço,
ou,
antes descobria-o, passando a mão pela fronte,
levantando
uma trança para logo a abaixar, enrolando
e desenrolando uma das fitas, afogando e desafogando
o pescoço com o singelo colleirinho do corpete.
Os minutos que assim passaram não foram poucos.
Recuar depois de ter chegado até alli era desairoso
e difficil.
O sobrinho de Gonçalo Domingues fez o supremo
esforço para não perder tudo.
―Irene, Irenesinha! disse elle, amarrotando o
barrete com a mão que tinha desembaraçada.
[27]
A moça fitou-o, sorriu-se, e ainda alguns minutos
foram desperdiçados, se desperdiçado se
póde dizer
aquelle tempo passado em enleio, rápido na
passagem, mas que depois enche com a recordação
tantas horas de vida.
―Irenesinha! tornou Fernando, continuando a
procurar a musa no barrete.
A moça continuou a fitar o embaraçado rapaz,
aguardando que alguma palavra mais seguisse á
invocação.
O barrete não absorvera, ao que parecia,
os galanteios estudados, amimados por tanto tempo,
pelo que, depois de larga pausa, Fernando desceu das
regiões do amor a cousas mais terrestres, na linguagem;
procurou, se, o que é mais provavel, se
não agarrou á primeira idea visada, um ponto de
partida nos successos do dia, e titubeou:
―Não sabe que chegaram ahi umas galés de
Lisboa?
―Sei; respondeu a joven, baixinho, depois de
olhar para todos os lados a vêr se alguem poderia
ouvir aquella conversação
amorosa. Meu pae para
lá foi.
―Foi? interrogou machinalmente o mancebo.
―Foi, repetiu Irene, debruçando-se pela varanda
e fazendo com uma das mãos junto do ouvido
uma concha para não perder uma só palavra.
―Pois veem nellas muitos fidalgos de Lisboa.
Não os viu desembarcar?
―Vi.
―Disseram-me que iam em procissão á cidade,
e que traziam um recado do senhor D. João!
―E não foi vêr?...
―Olhe, Irene, atalhou Fernando em voz mais
baixa e intercortada, por muito que tenham que vêr,
[28]
eu antes quero estar aqui. A menina é que não sei
como não vai para o lado da praia.
―Para que? Tão longe fica o lugar onde vararam
as galés, e está um gentio...
―Então, se podésse vêr, não
estava ahi.
―Porque não? disse Irene, córando.
―Porque... porque, titubiou Fernando, baixando
os olhos; porque aquelles fidalgos com as jorneas
bordadas, aquellas armas a espelhar são mais
para se verem...
―Da janella, tornou a moça, encolhendo os
hombros; da janella não se podem admirar esses
alindes.
Fernando baixou a cabeça, desconcertado o seu
intento. A moça não vinha para o campo para que
elle a queria trazer: não o entendia, pensava elle,
e se o não entendia é porque o não
amava. Se soubesse
avaliar a entonação de certas palavras
não
pensaria daquella sorte; porém todos os namorados
assim são: não reparam nas rosas e colhem os
espinhos.
―Oh! Irenesinha, e se esses fidalgos viessem
fazer uma leva para a guerra contra os scismaticos de
Castella? tornou o mancebo, procurando levar a
conversação
ao fim desejado.
―Para que pensar nessas cousas!
―E se me levassem? insistiu elle.
―Mas elles não veem para isso; não, senhor
Fernando? disse a donzella com uma inflexão de voz,
que pintava o receio de que uma affirmativa fosse a
resposta.
O sobrinho de Gonçalo Domingues não notou
esta expressão e proseguiu:
―Não se lhe dava que eu fosse?
[29]
―Eu?
―Sim; parece que não teria pena alguma.
―Não diga essas cousas!
―Pois devéras magoava-a a minha partida?
―Devéras; disse Irene, passando a mão pelo
rosto, para occultar as tintas do pejo, que a elle assomavam
com esta confissão.
―Não diz o que pensa, acudiu o mancebo, imprimindo,
cheio de alegria, um tal abalo á arvore, que
esta, oscilando o roçando de encontro ao muro, fez
desprender algumas pedras.
―Jesus! vai cahir! exclamou a donzella, tornando-se
pállida.
―Ai! Irenezinha, só para vêr se o que diz
é
certo, de boa vontade quebrava a cabeça.
A moça, em vez de responder, com um gesto
impoz silencio ao seu conversado. Do lado de baixo
ouvia-se os passos de quem para alli se dirigia, e
pouco depois appareceu Gonçalo Domingues.
―É meu tio, disse Fernando, com voz tão sumida,
que para si tão só parecia fallar, e no momento
em que o rotundo burguez passava distrahido
junto do muro, querendo esconder as pernas que deixava
pender de um e outro lado do galho em que
cavalgava, de novo oscilou a arvore violentamente,
mais arruinando o muro a que se encostava.
―Oh velhaco, que fazes ahi empoleirado?
―Eu, senhor tio? accudiu o pobre rapaz, coçando
na cabeça com toda a furia.
―Sim, tu, Belzebuth! Salta cá para baixo, que
te ensino a andar a roubar fructa pelos cerrados.
―Oh meu tio, a arvore não tem fructo; olhe
bem.
―Então que fazes ahi?
[30]
―Eu estava a vêr...
―O que, rapaz de má morte, cabeça
ôcca?
―A vêr se o via por algures, proseguiu o desconcertado
mancebo.
―Levadigas te colham! Procuraste atalaya bem
longe do caminho. Ora, desce, que eu te vou ensinar
chanças melhores.
―Cuidei que ia pela Aljama.
―Algemia é isso que tu estás a
prégar. Desce,
velhaco!
―Lá vou, tio; disse Fernando, descavalgando,
porém deixando-se suspenso pelas mãos do seu
poleiro.
Mas...
―Mas o que? Por tua causa em boas me vi, e
tu m'as pagarás juntas. Eu farei de modo que não
tenhas mais vontade de ir devassar hortas e cercados.
Se vais por esse caminho, acabas nas mãos da
justiça! exclamou o senhor Gonçalo Domingues, com
sobrecenho provocado pela recordação de
desaguisado
da praia.
Fernando deitou á donzella, que toda trémula
se conservava encostada á varanda, um olhar a furto,
não se attrevendo, por envergonhado de ser assim,
alli na presença della, tractado como uma
creança,
a uma despedida; com outro relance d'olhos avaliou
se as ameaças do tio não teriam, na
execução, algum
desconto, e lentamente, soltando um suspiro, desceu
da arvore em que, ao modo das aves, tinha soltado
as primeiras confidencias do amor. Tão depressa sentiu
nos pés o contacto do pedregulho da bitesga, como
sentiu nas orelhas o da mão de mestre Gonçalo,
que acompanhava cada puxão com um epitheto
pouco amavel, terminando pelo de
«ladrão».
[31]
―Ladrão não! exclamou o rapaz dando um salto,
ferido pela insistencia do tio naquelle ruim conceito.
―Então que fazias alli, rapaz dos meus peccados?
Alguem, não o interrogado, se encarregou de
responder. Á janella onde vecejava a arruda assomou
um rosto encarquilhado, meio occulto em uma enorme
touca de linho a feição das que usam as freiras,
e gritou com uma voz de canna rachada, debruçando-se:
―Menina Irene! menina Irene!
Gonçalo Domingues suspendeu as suas iras, e estendeu
o lábio inferior com um gesto que queria dizer
muita cousa, e, entre outras, que atinava com o motivo
de ter o sobrinho trocado a procissão dos fidalgos
por uma ascensão ás arvores do senhor
João Ramalho.
Lembraram-lhe as palavras e os momos da
velha da praia.
―Já agora vamos pela Aljama, e de passo fallarei
com meu compadre; disse em seguida, dando um
encontrão ao mancebo e indicando o carreiro que subia
a montanha.
Mettendo-se a caminho, voltou a cabeça, como a
voltára Fernando, para a casa do mercador, e viu na
janella do andar superior, por entre a zelozia meia
aberta, o rosto da gentil menina.
―Á fé, disse elle por entre dentes, que o rapaz
não tem ruim gosto; e ella...
A palavra foi terminada por um sorriso, olhando
para Fernando, como desvanecido do seu sangue.
Gonçalo Domingues era um excellente homem,
apesar de toda a sua aspereza apparente.
III.
Os Velhacos.
Aquelles cidadãos nobres praticavam
n'isto com mais deliberação,
como homens, que tinham mais
que perder, que os plebeus que seguiam
o Mestre...
chronica de d. joão
1.º
Uma cidade da peninsula, no seculo XIV, não era
um aggregado de individuos vivendo, como hoje,
debaixo da mesma lei―segundo reza a lei, entenda-se.
Afóra as distincções de classes e
senhorios diversos,
havia a distincção de crenças, e a
separação era
visivel nas grossas cadeias que tornavam ao cahir
[34]
das Ave-Marias incommunicaveis certos bairros. O
Porto tinha de tudo: subditos da coroa e subditos da
mitra, e no tempo em que succedia o que narramos,
moradores que nem reconheciam uma, nem outra;
havia christãos, mouros e judeus. Sobre um
monte alteavam-se as torres da Sé, e os paços
fortificados
do bispo; sobre o outro mais humilde levantava-se
a esnoga, ou synagoga, e na encosta, entre
um e outro, a pequena aljama appresentava-se,
como o symbolo da religião do propheta de Yatreb,
querendo approximar-se do Evangelho e da Biblia,
e lançando depois pela encosta um ou outro casebre,
como transição para alguma morada de heresiarcha
que se occultasse entre os foragidos do Oriente. A
aljama era a mais pobre: a esnoga era a mais rica;
a cruz, mais alta, dominando as duas, era a
mais forte.
Aljama, municipio, cathedral, esnoga, tudo fôra
cintado pela mesma muralha, como para viver em
boa fraternidade; mas esta aguara entre os dous filhos
de Adão, quanto mais entre tanta gente. O judeu
despresava o mouro; o mouro despresava o judeu;
o christão despresava a ambos, e, como fizera
a lei, talhára para si mais regalias e para os outros
mais tributos, reservando, para os que nada tivessem
de seu, o direito de se lamentarem em particular de
algum pescoção de burguez arrufado, gilvaz de
cavalleiro,
pedrada de garoto e praga de rascôa enraivecida,
ou velha rabujenta. Era uma sorte bem
agradavel, feliz, comtudo, aquella, em comparação
á que lhes prepararam, aos judeus especialmente, uns
beatos mettidos em politica, de que se serviam para
ganhar o céu, suppunham elles, e um bando de
togas, garnachas e roupetas que se serviam do céu
[35]
para apanhar dinheiro. Aquella animosidade era a
regra geral, mas toda a regra tem excepção, e na
mouraria era ás vezes recebido com os braços
abertos
o mesteiral; na judearia havia mão que se estendia
ao burguez em prova de amisade sincera, e um ou
outro filho de Israel achava agasalho não chorado na
casa do christão, mesmo quando aquelle não tinha
a
arca cheia de boas dobras; que em tal caso todas as
portas se abriam, desde a do paço régio ou
episcopal
e a do solar do nobre, até á da cella do
reverendo
abbade, e a do leigo, e sobre elles choviam
honras e mercês; como eram prova viva D.
Judas e D. David, duas creaturas, que, fazendo grande
arruido na côrte, jogaram com os destinos do
paiz, como bons ministros de finanças―o nome, o
titulo ainda não estava creado, mas a cousa já
existia―não
se esquecendo de tirar delle todo o succo
possivel. Gonçalo Domingues vivia em boa harmonia
com o arabi, ou arrabi menor, harmonia que o devia
lisongear, pois era até certo ponto uma notabilidade,
como chefe dos judeus da cidade e como
homem de teres, e por isso se resolvera a subir a
encosta, pelo lado do Olival, para fallar em certos
negocios em que desejava servir um seu compadre,
e tractar da compra de porção de gado. O velho
Gonçalo,
forçureiro nos seus principios, reunira o cabedal
bastante para alargar a área do seu commercio:
estendera-o ás carnes-verdes e ensacadas e a pellames
de todo o genero; tornara-se em fim um negociante
de consideração, como um seu collega de
Coimbra, que salvou a patria, emprestando a sua
senhoria, o Mestre de Aviz, alguns punhados de dobras,
serviço que lhe rendeu a doação de
alguns bens
nacionaes e a gloria de ser o tronco de uma nobre
[36]
familia. A nobreza de elmo cerrado atira-se aos fidalgos
do seculo XIX, lançando-lhe em rosto o não ser
com a espada que lavrassem os seus escudos; mas
é porque não teem paciencia ou vagar de revolver
os archivos da familia, senão deixaria de atirar
pedra ao telhado dos visinhos, vendo os seus
de vidro: se por tal de vidro os podem considerar.
Deixemos reflexões, porém, e retrogrademos ao bom
tempo, que assim se chama sempre ao tempo passado,
a apanhar o rico burguez e o sobrinho á porta
do Olival.
No campo, que, extra-muros, por aquelles lados
se estendia, ainda se viam alguns individuos,
que, com os olhos postos no rio, pareciam analysar
as galés chegadas; mas era visivel que, de todos os
portuenses, estes, que assim ainda pasmavam, eram os
menos curiosos, os mais indifferentes á lucta travada.
A boa parte, farrapos, que em bom tempo tinham
formado uma aljuba, denunciavam como decendentes de Tarik; a outros
distinguia-os um circulo de
lã amarella pregado nos grosseiros tabardos; o resto
não se distinguia por cousa alguma da roupa, porque
naquelle cerzido de trapos nada se podia distinguir.
Os curiosos, os verdadeiros curiosos tínham,
como vimos, descido á baixa da cidade, e mais crescera
o numero depois que se soubera que nada havia
que receiar das galés, e que Ruy Pereira e os outros
capitães desembarcaram e seguiram processionalmente
para os paços municipaes. Gonçalo Domingues,
intercalando as combinações de seu negocio
com reflexões sobre a descoberta feita dos amores
de seu sobrinho, reflexões que faziam com que
a este mostrasse gesto carregado, e interiormente se
sorrisse, avivando na memoria os seus verdes annos:
[37]
medindo de tempos a tempos a altura do
sol, que não eram depois de Ave-Marias seguras
certas paragens, passeava de um para o outro lado
do campo: Fernando acompanhava-o, voltando a todo
o instante a cabeça para Miragaya; procurando
aproximar-se de sitio d'onde podésse ao menos vêr
a casa do mercador; reprehendendo-se por não ter
aproveitado melhor o tempo que passára junto de
Irene, dizendo uma fineza daquellas do livro de cavallerias,
que frei Gumeado lhe deixára lêr;
descoroçoado
por aquelle final, que de certo o rebaixaria
no conceito da linda moça. O sobrinho andava
tão embebido, que nem sentia os pés tocar no
chão, e o campo não era jardim areado; o tio
cançava-se
já de aguardar seu compadre, que não
encontrára
em casa, quando a apparição de um personagem
veio pôr em movimento os frequentadores
do campo: uns deslisaram-se, o mais sorrateiramente
que lhes foi possivel, pela encosta e por entre o
arvoredo, outros perfilaram-se, e levaram as mãos
aos
barretes, os que os tinham, mostrando, comtudo, pelo
gesto, que não era a estima, mas o temor que os levava
a esta delicadesa.
O recem-chegado, personagem lhe chamamos,
e mostrava-o ser de conta entre aquella gente, era
uma figura notavel. Um barrete de tela vermelha
de forma exquisita rematava, assentado sobre um capirote,
uma fronte um pouco crescida e saliente, complemento
de um rosto ossudo, moreno, em que dous
olhos desesperados com a proeminencia de um nariz,
que se mettia em tudo de permeio, tinham acabado
por enviar as pupillas, cada uma para o seu
lado, a tomar conhecimento com as orelhas; o lábio
superior era adornado por um bigode esfarrapado,
[38]
de côr duvidosa, ou de todas as côres
possiveis―preto,
branco, castanho, louro e ruivo―e de egual
mescla eram os pellos que deixava crescer no queixo. Da
cabeça não desdiziam o resto do corpo e o
vestuario:
trajava um gibão bipartido preto e vermelho, e uma
das longas pernas enfiava-se em uma calça e borzeguim
vermelho, a outra em calça e borzeguim preto;
do pescoço pendia-lhe uma medalha de metal
amarello, com as armas da cidade, da cinta
um grande punhal e uma enorme bolsa de couro,
e na mão sustinha um bastão, terminado por
uma cabeça de metal cinzelada, ao que parecia, por
artista que tomára a delle por modello. Medalha e
bastão apregoavam que Tello Rabaldo era o pae dos
velhacos, cargo que não tem hoje correspondente,
por não tolerarem as luzes do seculo absurdos. Tello
superintendia, governava tão sómente
cidadãos que
em noites serenas teem o docel do leito recamado
de estrellas, jejuam sem devoção, deixam crestar
o corpo pelo sol de Agosto e gelar o sangue pelo
frio de Janeiro, e chamar-lhes velhacos era alterar
a significação das palavras, se não
era malicia de legislador,
que assim arrebanhava e baptisava alguns
centos de creaturas, para que se persuadissem as de
boa fé que na terra não havia mais, como os
hospitaes de doudos lisongeam muita gente que não
é forçada a não ter lá
moradia. Os velhacos, os verdadeiros,
então, como hoje, não se deixavam governar,
sempre governavam tambem, e havia-os
anafados, vestindo custosas telas e abrigados em paços
soberbos.
―Eh! boa gente! exclamou Tello, dirigindo-se
aos individuos que tractavam de lhe evitar a presença;
então assim querem fugir a seu pae! Vamos,
[39]
venham receber a benção, como bons filhos, e com
a benção uma boa nova. Olá, Pedro
Choca! accrescentou,
depois de honrar com um sorriso a facecia
que servira de exordio, dirigindo-se a um dos que
se desbarretava; que nenhum dos teus falte depois
de ámanhã na Ribeira. Onde está o
João Bispo?
―João Bispo, redarguiu o interrogado, ha dias
que desappareceu.
―O velhaco voltaria para o convento farto de
estar deitado de barriga ao sol, ou se metteu outra
vez com a filha do velho Humeia, e está a fazer penitencia
por ter peccado com moura?
―Ou se foi lançar com os scismaticos...
―Para que? Toma conta em ti! Chegou-me
aos ouvidos que te travaste com elle de razões por
umas nonadas, e se me déste cabo do rapaz, em
boa te metteste! Se não me trouxeres em breve novas
delle, a tua pelle m'as dará. A polé do aljube
está nova, e poderá bem comtigo.
Choca resmungou por entre dentes algumas palavras,
e o pae dos velhacos proseguiu:
―Avisa aos compadres para que ou vão comtigo
e mais a sua gente, ou a levem para as tercenas.
Que não falte ninguem! Quero duzentos homens,
bons pulsos...
―Duzentos homens, bem sabe sua mercê que
não podemos reunir. A melhoria da gente levou-a o
senhor conde Gonçalo; o senhor alcaide tem boa
porção,
e se creanças, mulheres e aleijados não servem...
―E esses perros de cabeça amarrada! exclamou
Tello, designando um mouro que a curiosidade
trouxera para junto de Pedro Choca, capataz de uma
turma de vádios. Quanto aos aleijados, sei de uma
mésinha que os põe sãos como um pero,
ajuntou,
[40]
mostrando o seu bastão; o manco da porta da Sé
que o diga. Vamos: sua senhoria (uma barretada)
appellidou os bons homens da sua boa cidade (outra
barretada) para que o ajudassem a dar cabo dos
perros de Castella, e os alvazires dão-vos honra
mettendo-vos
na conta dos bons homens... fazendo-vos
trabalhar. Que ninguem falte, e viva sua senhoria!
―Viva sua senhoria! repetiram os vádios e com
elles Gonçalo Domingues, que se approximára da
roda
formada ao pae dos velhacos, roda desfeita a um
signal por este dado com a vara, deixando a importante,
incansavel e incorruptivel auctoridade, como lhe chamariam
hoje, que todos os encargos teem um ou mais adjectivos
annexos, face a face com o burguez, que abria
a bocca para indagar quaes os serviços que o filho
de Thereza Lourenço reclamava dos portuenses.
A interrogação não foi formulada.
Tello Rabaldo,
cheio da sua importancia, fez uma leve saudação,
carregou o barrete sobre um dos olhos em
rebeldia, e girou sobre os calcanhares ao mesmo
tempo que um outro individuo assentava nos hombros
do forçureiro uma grande palmada. Gonçalo
Domingues
voltou-se a vêr quem segundava a amabilidade do marinheiro,
e se não reconheceu logo o seu compadre,
foi porque um abraço de metter costellas dentro
o suffocou. O bom homem vinha lisongeado com a carta
de que Ruy Pereira fôra portador, lisongeado
em extremo no seu patriotismo de localidade, e expandia
o seu contentamento daquella sorte e em
exclamações,
que fizeram suspeitar ao tio de Fernando,
que não estava em bom arranjo aquella cabeça. D.
João chamava aos portuenses o seu bom povo,
mimoseára-o
além disso com outros epythetos taes como―leal,
esforçado, etc., e o portador, resolvido, apesar
[41]
do seu enfado, a ser amavel e popular, pintára a
amisade e reconhecimento do Mestre, pela espontaneidade
da sua acclamação na cidade da Virgem, com
taes côres, descera da sua dignidade prodigalisando
sorrisos
ao corpo municipal, batendo no hombro de Luiz
Giraldes de um modo, que o nosso homem esteve por
um triz a deixar cahir uma lagrima de commoção.
Era uma alma candida e enthusiastica, apesar do involucro
grosseiro, o compadre do senhor Gonçalo
Domingos; tão candida que acreditava no desinteresse
do Mestre de Aviz, suppondo que defendia a coroa
para a entregar ao filho de Ignez de Castro; tão
enthusiastica e patriotica que, quando, á força
de lhe
perguntar o marchante se encontrára o arrabi, seccas
as goellas e já sem alento para descrever a
reunião nos
paços municipaes e mais epysodios da embaixada,
se recordou do seu negocio, era tarde. O sol ia quasi
a mergulhar no oceano, e era provavel não só que,
na judearia estivessem fechadas as ruas, mas até que
se lá fossem, encontrassem as portas da cidade cerradas
no regresso. Os dous burguezes separaram-se, pois: o
patriota, compadre de Gonçalo Domingues, seguiu pelos
campos em direcção ao povoado de Cedofeita;
est'outro, despertando o sobrinho de pensamentos em
que não entravam nem compras, nem vendas, nem
os direitos que os filhos de Henrique 2.º de Castella
e D. Pedro 1.º de Portugal, podiam ter á
terra que pisava, tomou com elle o caminho de
casa.
As nuvens, que o norte espalhára no ar, como
flocos de algodão, ornadas pelas tintas que formam
a gradação entre o rubro e o amarello vivo, davam
ao céu a apparencia de um marmore, um todo que
em pintura seria inverosimil; os edificios de Villa
[42]
Nova e de Gaya cortavam com o perfil o horisonte,
vestindo pouco a pouco uma côr uniforme, o cinzento-escuro.
De um destes edificios, o que mais se
avantajava, do castello de Gaya, as janellas esguias
voltadas para o poente pareciam dar sahida aos fogos
de um incendio. De que não era, porém, este
chamejar
mais que um reflexo do sol no occaso, se poderia desenganar
quem, mesmo nunca tendo presenceado este phenomeno,
se nos anticipasse na residencia do tenente
do conde D. Gonçalo, onde uma hora depois lhe
provariamos que a reflexão, ao appresentar Tello
Rabaldo, não fôra de leve feita: velhacos
não eram
só os que não tinham nem leira nem beira.
Em uma das salas que no castello serviam de
apposento ao alcaide, revestida de apainelados de
carvalho, em que a luz do dia, coada pelos miudos
vidros de côr, formando losangos, embaçava, e
embaçava
egualmente a que davam as tochas sustentadas
por braços de ferro, passeava de um para outro
lado um homem de alguma edade já, magro e
de estatura mediana. No peito de uma especie de
camisola de panno de curtas fraldas, cujas mangas,
farpadas nas orlas, pendiam até ao joelho, viam-se
bordadas
a verde com nervuras de ouro tres folhas de figueira;
o mesmo distinctivo se reproduzia em uma
bolsa de couro, que, do lado contrário ao estoque,
acompanhava um punhal, nos fartos reposteiros
das duas portas, que para a sala davam serventia,
e na manga da jornea de um pagem, creança
de dez annos, que cabeceava com somno a
um canto. O barrete adornava-se com duas pennas
de aguia, presas em fecho de ouro, e os borzeguins
apresentavam uns longos bicos, moda que
um epysodio da guerra travada deixou assignalada
[43]
na historia. Encostados, no vão de uma janella,
conversavam, em voz baixa, uma dama e um
individuo que se tornava notavel por usar crescido
o cabello, raro e de côr avermelhada, e por uma
longa espada, de que affagava o punho. Do lado opposto
havia seis individuos, um dos quaes vestia
hábito monastico, e outro se acobertava com uma
velha armadura de malha.
O homem que passeava era Ayres Gonçalves de
Figueiredo; a dama era a esposa deste, D. Catharina;
o individuo, que lhe fazia companhia, o irlandez
Guilherme Down-Patrick; os restantes eram quatro
cavalleiros, homens de solar de Entre-Douro-e-Minho,
o capitão de besteiros, Pero Bedoido, e frei
Garcia.
As passadas do alcaide soavam mais alto do que
as poucas palavras que toda aquella gente trocava entre
si, e visivelmente preoccupava-o negocio, que não
era para os outros estranho, a não enganar o modo
porque de tempos a tempos se fitavam e a
meditação
que se seguia. Duas pessoas se subtrahiam á influencia
geral, a castellã e o irlandez: se se calavam
era, ella para amimar uma galga branca, que se enroscava
sobre um escabello, elle para com a vista
percorrer a laçaria e penduróes do tecto.
Segredos e silencio, aquelles olhares e gestos
tinham um todo mysterioso, que houve por bem quebrar
Ayres Gonçalves.
―Que me dizeis, senhores? exclamou, estacando
no meio do passeio, como a procurar alvitre que
viesse pôr termo á sua
irresolução, parecer que se
conformasse com o que tinha na mente.
Ninguem respondeu, porém, e o castellão,
lançando
á volta de si um olhar de quem queria lêr
[44]
nas physionomias dos hospedes as suas intenções,
proseguiu:
―Sua senhoria quer em volta de si todas as
lanças do reino, e não se lembra, ou
não se quer lembrar
de que fica desguarnecida uma terra tão importante
como esta, e cercada por tantos senhores que levantaram
voz pela rainha D. Beatriz. Deixa a cidade
aos peões, aos peões, que tracta como a gente de
prol?!
―Em boa confusão vae pondo as cousas! Um
dia, veremos, senão lhes pozer cobro ás ousadias,
vir arraya tomar-nos os solares; atalhou, abanando
a cabeça com ar sentencioso, um velho fidalgo de
Riba-Tua. Bem altaneiros andam já burguezes e mesteiraes!
―Deixae, accudiu Affonso Darga, as encamizadas
dos peões, que terão seu cabo. O Mestre precisa
de sustentar a guerra, e lisongea por isso quanto
mercador tem a arca bem provida de boas dobras,
tornezes, gentis, florins e pilartes. Aos do Porto pede
elle agora uma armada, mantimentos e dinheiro.
―Armada que nos levará a vêr o rosto
ás hostes
de Castella; tornou Ayres Gonçalves.
―Se se fizer.
―O povo do Messias de Lisboa a arranjará.
Não viram como os alvazires propozeram logo uma
derrama, e juraram a Rui Pereira que teriam antes
de um mez a nado algumas naus e outras se armariam
dos melhores navios do commercio com Flandres?!
Estão inchados com o valimento que lhes dão.
―Por ahi se conhecem os vilões...
―É que dão elles ao Mestre? Grande cousa!
Em campo se verá de que servem, e no campo é que
a contenda tem de se decidir. Irão com béstas,
[45]
virotes e azevans fazer frente ás lanças de
Castella?
Lingua teem elles; mas brio é que nem toda
a algaravia desses mestres em leis e clerigos, que o
regedor tomou para seus conselhos, esses falladores
de Pisa e Bolonha, poderá metter nessa gente.
―Mas nella se estriba D. João, disse, meneando
a cabeça, um dos cavalleiros.
―Para elles appella com boas palavras; a nós
manda-nos, não recado, mas ordem! exclamou o
alcaide. É dessas garnachas sahidas do nada que vem
a desconsideração em que nos tem.
―Tempos do rei D. Fernando! suspirou Down-Patrick,
recordando-se talvez de quando as hostes
do duque de Lencastre faziam, entre os alliados portuguezes
e os inimigos de Castella, de tudo roupa
de francez.
―Era um bom rei o que Deus tem! ajuntou
frei Garcia, fazendo uma momice de piedade.
―Rei, e creado como rei, bem sabia elle onde
estava a força e grandesa do reino e sua.
―E melhor agasalho não nos fazem sempre no
campo do marido da rainha D. Beatriz. Aos de sua
casa aconselhou D. Leonor que fossem para o Mestre,
que ao menos não era soffrego.
―Com isso perdeu D. João: perdeu-o a altivez.
―E ao Mestre não approveitarão as
mercês rastejadas.
―Elle não precisa de nós, tornou o velho, o
mais desappontado dos hospedes do alcaide, ao que
perecia; faz cavalleiros a seu capricho do primeiro
peão que se lhe antolha.
―Bons cavalleiros! observou, rindo, o mais moço
da reunião. Por lá andam montados em mulas
[46]
fazendo rir com os seus ares de importancia. Não
será preciso, para os derribar, erguer clava ou montante:
andam tão mal a geito com arnez e grevas, tão
abafados pelos elmos, os que os teem, que ao primeiro
arranco das azes vão ao chão.
―Em se tractando de lançadas é comnosco que
se haverão, bem o vêdes, disse Ayres de
Sá.
―E ireis, senhor alcaide? interrogou Affonso
Darga.
―Eu, senhores, respondeu Ayres depois de
alguma hesitação, levantei voz pelo Mestre, mas
recebi
o castello do conde D. Gonçalo: obedecerei a
sua senhoria em tudo, mas só abandonarei o castello...
A phrase do alcaide não terminou. D. Catharina,
approximando-se de seu marido, e impondo-lhe
com um relance d'olhos a conveniencia de não proseguir,
atalhou:
―Largos dias tendes para tomar conselho, cavalleiros;
alegrae o sarau com outros contos. Cousas
de tanta importancia não se devem tractar de salto: o
tempo que se leva a pensar em casos taes não é
perdido. Tomai exemplo de D. Gonçalo Telles, ajuntou
mais baixo, dirigindo-se ao esposo.
D. Catharina de Figueiredo era, até certo ponto,
uma dona prudente, como chama um historiador,
por egual conselho fabiano, a Beatriz Gonçalves
de Moura, aia depois da excellente rainha D. Philippa.
O exemplo do conde era um grande exemplo,
pois era de homem que sabia, ou parecia ter de memoria
o
Sic vos non vobis de Virgilio, e
dar-lhe o valor
devido nas cousas do mundo. D. Gonçalo fechara-se
em Coimbra, jogára com sua irmã um
jogo pouco
leal e parecia aguardar que a sorte decidisse qual
[47]
dos pretendentes á corôa tinha razão e
direito, ou
força e geito para a segurar na cabeça. O alcaide
approveitou
o conselho e abandonou o thema em que o lançára
o mau humor causado pela mensagem de Ruy Pereira.
Palestra sobre outro assumpto era naquella occasião
difficil de sustentar. Os cavalheiros pouco a
pouco deixaram a sala, e quando só restavam o aventureiro,
Henrique Fafes, o mais moço dos da reunião,
e frei Garcia, indicou este ultimo com o olhar
o pagem quasi adormecido, tirando ao mesmo tempo
da manga uma tira de pergaminho dobrada. Ayres de
Figueiredo, sacudindo com violencia a creança de
quem o reverendo parecia recear a indiscripção, a
poz,
extremunhada, fóra da porta, ordenando-lhe que se
recolhesse, e em seguida percorreu com os olhos o
escripto, que lhe appresentaram.
―O alcaide de Monsaraz veio? disse elle terminando
a leitura e dirigindo-se ao frade.
―Senhor, sim, veio.
―E não desconfiaram de nada?
―Penso que de nada. As galés castelhanas
não
appareceram.
―E de boa fonte houvestes esta proposta?
―Do irmão do arrabi-mór, esse judeu a quem
sua real senhoria acaba de fazer mercê.
―Misser Guilherme, senhor Henrique, disse o alcaide
depois de fitar os dous por um momento, se pouco
caso se faz de nós em Lisboa, no campo dos que
a sitiam teem-nos em apreço. D. João
não é tão soffrego
como o pintavam, e a prova é este pergaminho.
Down-Patrick fez uma visagem e soltou um «oh»
guttural, que expressava a pouca admiração que
lhe
causava o apreço em que o poderiam ter, como certo
dos seus muitos merecimentos.
[48]
―Gonçalo Rodrigues vos fallará depois
d'ámanhã
em S. Domingos, disse frei Garcia, attrahindo o alcaide
para junto de uma das portas, a opposta áquella por
onde sahira o pagem. E depois, accrescentando algumas
palavras em voz baixa, sahiu pelo outro lado.
Ayres de Sá, chamando Henrique Fafes e o irlandez,
seguiu-o.
Quando a sala ficou deserta, o reposteiro, junto
do qual frei Garcia fallára com o alcaide de Gaya,
oscillou e appareceu entre elle e a hombreira da porta
um rosto, onde a curiosidade e a malicia se pintavam.
―A mulher tem razão, disse, referindo-se
ás
palavras de D. Catharina, o curioso, depois de ter
o ouvido á escuta por alguns segundos; o tempo que
se gasta em certas cousas não se perde, e eu não
perdi
o meu. Ah! Garifa, minha pobre Garifa! exclamou
em seguida, mudando de expressão e ajuntando
á exclamação um suspiro, de ti
é que não apanho
novas.
IV.
Dous namorados.
... Donde amor se atraviesa
No hay padres reverenciados.
(romances de gazul.)
Fernando, chegando a casa, o melhor predio da
rua dos Pellames, ao toque de Angelus, viu seu tio
devorar com todo o appetite uma grande posta de
carneiro e um tassalho de toucinho, capaz do pôr em
debandada um exercito mahometano, regado tudo com
o summo da uva. Gonçalo Domingues, se dava
descanço
[50]
aos dentes, não o dava á
lingua, pois incetou,
ao
benedicite, um sermão,
que, ao
gratias, ainda
não
estava concluido. O velho fallou na creação do
seu
tempo, na obediencia da gente moça á mais idosa
em geral, e em especial áquella de quem se recebe
o pão do corpo e o pão do espirito; discorreu
sobre
as passadas travessuras do sobrinho, e foi cahir na
ultima, terminando pela ameaça de um sevéro
castigo,
em caso de reincidencia. Fernando, ao inverso do
tio, não tocava sequer em uma mealha do pão alvo,
que a criada com um prato de figos passos servira por
mimo, e, com os olhos fixos na toalha, não soltava
uma palavra de desculpa. O bom velho, notando
aquelle extraordinario fastio e sizudez, tomou tudo por
effeito da sua eloquencia, conversão e
compunção do
rapaz, e por um triz esteve, no final, a addicionar
ao sermão um palliativo, tirando o exemplo de casa,
pois que o podia fazer; mas a necessidade da disciplina,
de conservar sempre perante o sobrinho um
todo de soberania, um sobrecenho, que julgava indispensavel,
embora não quadrasse com a affeição
que
lhe tinha, o detiveram. Fernando era, segundo elle,
um estouvado, um leviano como seu pae, do que déra
já provas exuberantes, abandonando, depois dos estudos,
o convento de S. Francisco, então extra-muros, para
onde um outro parente o chamára, a fim de o metter
na estrada do céu e do mundo pela clausura. O que nisto
amofinava mais o forçureiro era a boa
disposição
que mostrava o mancebo para as letras, a intelligencia
desenvolvida, que nos primeiros tempos fizera dizer
a frei Gumeado, grande sabedor para aquellas epochas,
que bem podia vir a aspirar a grandes dignidades
da egreja e do seculo, a ser geral, bispo, ou
chanceller. Todo o rigor, pois, que empregasse era
[51]
pouco, e despediu-se do mancebo com toda a solemnidade,
para dizer á cuvilheira que, como por seu
voto e lembrança, lhe levasse ao quarto alguma cousa
de comer.
Se Gonçalo Domingues soubera qual a
attenção
que lhe dava o sobrinho, de certo não fizera semelhante
recommendação. É bem certo que os
annos
trazem, ás vezes, experiencia e algum saber; mas
não é menos certo que á
proporção que vão passando
se esquece muita cousa egualmente: aos sessenta
perde-se a memoria dos vinte, senão das
acções
praticadas, dos pensamentos havidos; um mancebo
póde muito bem avaliar o que não
apreciará, não
conseguirá distinguir um homem a quem o inverno da
vida tenha gelado o coração. A prédica
entrava tanto
na absorpção de Fernando, como entrava a mensagem
do Defensor: as palavras do tio eccoavam-lhe
aos ouvidos como sons vagos, que se não reproduziam
no machinismo regulador chamado intelligencia
e outros nomes, segundo a face por onde é visto,
porque sons diversos o impressionavam. As fallas de
Irene, as inflexões, os mais leves gestos preoccupavam-no:
de uns e outros tirava esperanças agora,
logo motivos de amofinação; traduzia agora
uma phrase,
das poucas obtidas de Irene, por um modo que
o coração trasbordava de alegria, e logo
parecia-lhe
que o timbre de voz, um nada sonhado lhe dava
bem diverso valor; assignalava aquelle dia como
o mais feliz da vida, e recordando-se do desfecho do
colloquio, em seguida; entristecia-se e amaldiçoava o
tio, que o fizera descer do galho da arvore e dos
braços da felicidade. O puxão de orelhas,
sobretudo,
doia-lhe, quando o recordava, mais do que lhe doera
em Miragaya, julgando-se aos olhos da sua namorada
[52]
deshonrado... mais que deshonrado, ridiculo. Este
combate entre o desejo e o receio, durou, trazendo
a insomnia, até altas
horas da noite; mas, a final,
venceu
o desejo, e a alegria espelhou-se-lhe no rosto.
Fernando, nas azas da imaginação; voava do
passado
ao futuro, e deste áquelle, amontoando as pedras do
seu castello de felicidade. Deitando-se e apagando a
luz sorria a todos os sonhos creados; sentia como
nova vida a inflar-se no peito, e parecia querer affogar-se
em ar, tanto era o que respirava de momentos
a momentos. Junto com a imagem da linda filha de
João Ramalho toda a natureza era risonha naquella
miragem: as arvores reproduziam-se mais verdes, mais
cheias de perfumes e mais bellas as flores; as aves
nos cantos diziam todas―alegria; o céu transparente
deixava adivinhar além do manto azul uma segunda
vida toda amor. O mancebo vira, bem o podem
acreditar, bastantes vezes o céu, as arvores e as
flores, mas nunca se lhe tinham affigurado assim: como
á estatua de Pygmalião, faltava-lhe o fogo no
peito. A lavareda ateára-se naquelle dia, posto que
incubasse havia muito.
Fernando Vasques amava Irene desde que a vira,
e vira-a nessa edade em que se sente um vacuo
no coração; a si mesmo confessára
já esse amor;
mas definido, claro, só então
rebentára: o vácuo enchera-se,
e a trasbordar, e para o encher talvez o amaldiçoado
puxão de orelhas, a primeira grande contrariedade,
entrasse por muito: «talvez» dizemos, e podiamos
dizer «certamente.» O amor vive de contrariedades,
de luctas, diz um phisiologista; e como um malicioso
accrescentou que por isso só elle nas mulheres
se creava, saibam, acreditem as leitoras que
todo o homem tem no coração o seu tanto ou quanto
[53]
de mulher, na mocidade sobretudo, e por isso não
perde. As mulheres lucram menos com o que
recebem
do homem em geral: não as compensamos.
Como diziamos, porém, deixando reflexões, a
correcção
de Gonçalo Domingues, e ainda, se quizerem,
as poucas palavras trocadas entre os dous namorados,
tinham ateado a lavareda no peito do mancebo,
e um dos effeitos della fôra, de fazer acordar
homem quasi quem se deitára creança.
Fernando, no dia seguinte, não era o mesmo
rapaz; o tio notou aquella differença e attribuio-a ao
jejum da vespera, com a mesma prespicacia com que
attribuira a causa delle á sua predica; e para contentar
o rapaz, levou-o de manhã, depois de tractar dos seus
negocios e da politica do dia, a visitar frei Gumeado,
que o costumava regalar, apesar da sua deserção,
com gulodices, em que não tocou dessa vez, e de
tarde, a passeio até aos Carvalhos do monte, que
assim se chamava o local onde o cabeçudo parodiador
do marquez de Pombal no Porto, o corregedor
Almada, edificou um theatro. O effeito destas amabilidades
é facil de adivinhar. O namorado de Irene,
que, voltando com a luz da madrugada á lucta de
esperanças e receios, anceava por occasião de ir
buscar
um desengano nos olhos da donzella, preso assim
todo o dia, revoltou-se interiormente contra a
tutella do tio e desappontou-o com desabrimentos.
O velho pasmou, benzeu-se, e da compaixão, do arrependimento
da aspereza da vespera cahiu com um
mau humor verdadeiro, tomando aquelle procedimento
por
ingratidão,
protestou que a severidade, que
até ahi lhe ficava nos lábios, ia ser posta em
acção,
e como assim se revoltára pelo leve castigo de uma
travessura, elle trataria em primeiro logar de as impedir,
[54]
não lhe deixando uma hora para folias, nem
arredar pé da loja de pellames; em segundo, se se
furtasse á sua vigilancia, de passar além do
puxão de
orelhas, dando causa verdadeira a amuos.
No outro dia, um domingo, não se esqueceu do
seu protesto o velho forçureiro, e o desespero do sobrinho
augmentou, tanto quanto augmentava o receio
de perder o amor da linda moça; que, se até
ao dia em que conseguira trocar algumas palavras
com Irene, muitos se passaram em que não descera
a Miragaya, sem que tanto se amofinasse, aquella
meia declaração e o desfecho mudára as
circumstancias:
daquellas em que se encontrava bem
podem fazer ideia as leitoras e os leitores, aos quaes
a memoria ainda conserva vivas as paginas da mocidade.
Depois de jantar,
porém―refeição que se tomava
nessas epochas, mesmo entre aristocratas,
desde as onze ao meio dia, exactamente á hora em
que hoje almoça muita gente―quando Gonçalo
Domingues
executava, dormindo a sesta, uma musica
que se assemelhava a tempestade em chaminé na
combinação de assobios e notas de contrabasso,
appareceu
Luiz Geraldes, o mais respeitavel individuo
da burguezia, a procural-o para irem a S. Domingos,
onde se devia tractar do meio de corresponder
á confiança que o mestre de Aviz
depositára nos bons
cidadãos da terra, assumpto em que o alvitre do
forçureiro era valioso, por se poder traduzir na linguagem
sonora das boas dobras de el-rei D. Pedro;
appareceu Luiz Geraldes e com elle a occasião que
desde madrugada esperava e provocára á sombra de
todos os pretextos. Mestre Gonçalo, pois, a sahir, e
Fernando
a procurar na arca o seu melhor gibão e o
[55]
barrete, a alindar-se, e a bater com a porta da rua
na cara da velha creada, que lhe recordava as ordens
dadas pelo tio, avivadas segundos antes, e a trovoada
que sobre elle e sobre ella descarregaria se ou o
encontrasse na rua, ou o não achasse em casa, regressando.
O namorado moço deitou a correr; mas, como
em certo apologo, a pressa foi causa de vagares. Tal
era o estado daquella cabeça que tomou o caminho
seguido por seu tio e o grande amigo do Mestre, e
ao cabo da rua da Bainharia esbarrava com elles se
um encontrão de um homem d'armas o não obrigasse
a uma pausa, e na pausa a um espadeiro, que se
sentava em um desses balcões ou mostradores que
fechavam uma das portas das estreitas e escuras lojas,
conservando nas ruas mais estreitas e não menos
escuras os freguezes, não ouvisse dizer para um
visinho que deitava a cabeça por uma adufa:
―Lá vae em cata de mestre Gonçalo, que dobrou
agora mesmo para o terreiro, o sobrinho... o
filho de Vasco, que Deus haja.
Fernando, quiz retroceder; porém, como o bom
do espadeiro lhe gritasse que perto ia Gonçalo Domingues,
se o procurava, não teve remedio senão
responder que ia a recado para as Aldas, e enfiar
pelo arco de Sant'Anna, tomar caminho pelo lado da
judearia e descer aos Banhos, onde lhe tolheu o passo
o personagem que no capitulo antecedente vimos
no castello de Gaya, surdir por entre o reposteiro.
―Vindes de S. Domingos? interrogou elle, pondo-se
diante do mancebo.
―Oh! és tu João Bispo! exclamou Fernando,
depois de examinar o rosto do individuo, assombrado
[56]
por um farto capuz. Ha muitos dias que te não vejo.
―É verdade, redarguiu o recem-chegado, dando
pelo nome, que ouvimos já da bocca do pae dos velhacos.
É verdade, repetiu; e á palavra ajuntou um
profundo suspiro.
―Que tens, tu? Estás tão triste como quando
nos tinham no convento.
―D'onde nunca devêra ter sahido! tornou João,
soltando outro suspiro.
―Bem mudado estás, meu folião, ou é
isso momice
nova?
―Antes fôra, Fernando! antes fôra! mas finaram-se
as alegrias.
―Mas, ao que parece, a vida não te vae peor.
Gibão novo de barregana... boa adaga! disse o mancebo,
medindo-o de alto a baixo.
―Vesti isto; mas embrulhade em almafega
respirava
melhor: o saio e as calças riam-se por todas as
costuras, mas eu tambem ria, e agora bem vedes....
―Vejo que estás sizudo como eremitão, ou
mestre em leis, é verdade... Mas onde assim te
pozeram? d'onde vens?
―Do castello.
―Do castello? Tomaste lá moradia e serviço?
―Ou cousa parecida... que não se pode assim
dizer de praça...
―Segredo! Ora vejam João Bispo feito escrivão
da puridade do alcaide! exclamou o mancebo, sorrindo
e dando alguns passos para seguir seu caminho.
João segurou-o por um dos braços, e encolhendo
os hombros respondeu á zombaria:
―Mofai, que a vez a todos chega. Algum dia haveis
de querer bem a alguem....
―E por isso te amofinas, quando não tens quem
[57]
te empeça de a vêr a todo o momento! redarguiu
Fernando, que se não recordou naquelle instante de
outro contratempo em amores, senão do que com elle
se dava.
―Vêl-a!... vêl-a! exclamou, tornando a suspirar o
vadio. Oh! minha pobre Garifa!
―Garifa, repetiu Fernando; Garifa... ora espera...
Garifa não era aquella rapariga moura que
vinha ao terreiro vender fructa?
João Bispo fez com a cabeça um aceno affirmativo.
―Uma rapariga sempre alegre, que na
procissão
de
Corpus tangia pandeiro e
dançava com tanta
desenvoltura, trazendo o vestido cheio de cascaveis?
―Sim.
―Que tão bem cantava umas cantigas castelhanas?
―Sim.
―Pois bonita era... pena que fosse moura! E
tu, João...
―Eu quero-lhe, quero-lhe como se em noite de
S. João me fizessem feitiço...
―E feitiço foi de certo; porque uma moura...
―Não sei se é grande peccado o querer-lhe
bem; mas cá para mim tenho que não. Ella
é moura,
é; mas...
―É por isso que tão magoado te vejo? Querial-a
christã, e casavas.
―Não é, não; é porque m'a
roubaram!
―Roubaram-ta?
―Roubaram. Ha uma semana, no sabbado,
estava eu na encosta do Olival, ao pé do regato,
á espera
della, e eis que vejo o pae, o velho Humeia, vir
direito a mim. O pobre homem chorava como uma
[58]
creança; as lagrimas eram como punhos pela cara
abaixo e os soluços pareciam affogál-o; cortava o
coração!
disse João Bispo, limpando com a manga do
gibão os olhos, sensibilisado ou pela
recordação da
scena, que narrava, ou pela desapparição de
Garifa.
O velho proseguiu, quando pôde começar a fallar, a
pedir-me a filha, dizendo que lh'a entregasse; que bem
tinha visto andar-lhe no seguimento, e na vespera
a encontrára ainda alli mesmo a fallar commigo.
Olha, Fernando, fiquei como quando me vieram dizer
que meu pae―Deus o tenha―era finado, e jurei
áquelle pobre homem que não fôra eu que
lhe tirára
a filha... e commigo pela hostia consagrada jurei
tambem descobrir-lhe a rapariga. O velho acreditou-me,
e disse-me cousas, que não poderei repetir;
que não sei bem o que foram; mas que pelo modo
de as dizer me deram um nó na garganta: parecia
que tinha engolido uma maçã inteira. Procurei
Garifa.
Dous homens foram vistos a passar o rio nessa
noite com uma mulher, me disse um petintal, e corri
tudo em Gaya; alistei-me no troço de Pero Bedoido,
para ter occasião de esquadrinhar todos os cantos do
castello; mas vêl-a... vêl-a... ainda a
não vi! Desconfio,
porém, que lá esteja, e se lá estiver,
ai do
rausador! Olhai, elles deram-me esta adaga, e eu trago-a
bem afiada, os ouvidos attentos e os olhos abertos!
João Bispo, ao soltar estas ultimas palavras,
baixou a voz e um veo sinistro lhe assombrou a fronte;
por alguns instantes permaneceu calado, e proseguiu
depois, vendo que o sobrinho de Gonçalo Domingues
parecia atterrado com semelhante confidencia:
―A alegria não póde durar sempre. Desde que,
[59]
morto meu pae, que por força me queria vêr
tonsurado,
fiz uma reverencia ao guardião, dei um cascudo
no porteiro e me fiz velhaco, visto que no convento
não apprendi officio e de sujeição
estava farto,
bem vestido, mal vestido, mais trapo, menos trapo,
barriga mais cheia ou menos, tinha quasi todo o
santo dia os dentes á amostra; agora veio um revez...
―Não és só tu, João, que
os tens; eu...
―Que lhe fizeram, atalhou o vadio; diga, que
eu dou uma ensinadella, e...
―É negocio em que nada podes. Não sabes,
João, disse o mancebo, pondo a mão no hombro do
seu antigo companheiro, e chegando-lhe a bocca perto
do ouvido, como em segredo; não sabes... eu
tambem quero a uma rapariga como ás meninas dos
meus olhos. Oh! é mais bonita que a tua!
―É, disse João Bispo, com um meio sorriso.
―Muito mais; porém, meu tio, tenho eu para
mim...
―Não quer?
―Parece-me que não.
―É pobre?
―Pobre!... repetiu Fernando Vasques, encolhendo
os hombros.
―Mestre Gonçalo Domingues é rico, e...
O namorado de Irene, ouvindo o nome do tio,
lançou em torno de si os olhos, como se receiasse
que alli apparecesse; lembrou-se que passava o tempo
e elle podia, de volta a casa, não o encontrar,
se fosse grande a demora; recordou a causa do seu
passeio, e fazendo um gesto de despedida, deu alguns
passos em direcção á porta da cidade.
―Se fôr necessario o antigo companheiro das
[60]
folias, não o poupeis. Os meus trapos nunca vos fizeram
voltar o rosto, quando nos encontramos, e hei
de mostrar que não tendes feito mal, Fernando, disse o
ex-noviço, estendendo ao mancebo um pulso que não
era fraco. Ah! exclamou em seguida; não vindes
do lado de S. Domingos?
―Não.
―Nem pelo caminho vistes o alcaide de Gaya?
―Não.
―E que tens a vêr com o senhor alcaide, meu
velhaco? disse uma voz, que logo João Bispo reconheceu
por ser de Tello Rabaldo.
―Ah! sois vós! murmurou o interpellado, visivelmente
contrariado por aquella apparição, em
quanto Fernando deitava a correr pela rua abaixo.
―Vosso servo, tornou o pae dos velhacos, tirando
com ar zombeteiro o seu barrete e segurando
pelo capuz a João Bispo. O fidalgo de certo que
só
com fidalgos tem tracto e por elles procura; porém
como está em behetria, para não haver
desaguisado,
pondo-o fóra, dou-lhe companhia mais chã; mas que
lhe fará bom agasalho. Vamos! exclamou mudando
de tom; para as tercenas já!
―Senhor Tello, porém...
―Vais seccar a goella sem proveito.
―Senhor Tello, quizera fallar a Ruy Pereira.
―Agora é com Ruy Pereira! Grandes são os
negocios! Bravo! continuou o pae dos velhacos, medindo
João Bispo de cima abaixo, como minutos antes
fizera o sobrinho de Gonçalo Domingues, e como
elle admirando a mudança que na roupa havia; bravo!
Parece que vamos ter contas graves a ajustar!
Cortaste bolsa, ou arrombaste a porta a mercador ou
algibebe para vires assim garrido?
[61]
―Sou bésteiro do rei.
―Bésteiro do rei desde quando, velhaco? desde
que fugiste com a filha do velho Humeia?
―Está excommungado! crédo! gritou uma velha
do pequeno ajuntamento que se fizera á volta
dos dous interlocutores. Ter contractos com aquella
condemnada moura, aquella...!
A mulher disse nome que lhe valeu de João
Bispo um murro, que levava a força proporcional á
raiva que lhe causára a abelhuda comadre, insultando
Garifa.
―Olhem o maldito! gritaram duas companheiras
da aggredida. Onde está a justiça? Que faz o
senhor bispo que o não manda açoutar bem
açoutado?
E attreve-se em rosto do senhor Tello...
―Calem a bocca, serpentes! berrou o pae dos
velhacos, fazendo um gesto e meneando o seu bastão.
―Serpentes? grunhiu a velha, segurando com
a mão os dentes que o socco pozera em vesperas de
despedida.
―Serpentes? pipilou uma das novas,
esganiçando-se.
―Serpentes? resmungou a outra, ferrando os
pulsos nas ancas.
―Serpentes! gritaram, grunhiram e pipitaram
entre gargalhadas e em todos os tons os garotos que
já embaraçavam o transito.
Tello Rabaldo viu a sua dignidade compromettida,
o que não poucas vezes acontecia, e tractou de
a salvar pelos meios usados ainda hoje em embaraços―pela
força; e como á mão não
tivesse se não a
sua, foi dessa que se serviu. Segurando sempre o
namorado da moura pela extremidade do capirote,
[62]
fez rodizo com o seu bastão; tomando-o pela parte
superior, e uma escala salteada de «ais» e
«uis» sahiu
dentre a roda de curiosos e curiosas, que augmentava.
―O senhor alcaide! Ahi vem Ayres Gonçalves!
gritaram duas vozes quasi ao mesmo tempo.
―Tolhido sejas tu, maldito! resmungou João
Bispo, lançado em apuros com semelhante
apparição.
―Senhor Pero! senhor Pero Bedoido! berrou o
pae dos velhacos, para o capitão de bésteiros,
que, seguindo
o alcaide de Gaya, se dispunha a embarcar
para o castello, e desepparecia por um
dos postigos.
―Já nada faço, disse comsigo o
ex-noviço deitando
o olho a vêr se o capitão accudia ao chamamento.
A pelle corre-me agora grande risco, se
desconfiam de mim. Com a bocca no pixel não os
apanho já!
―Olé, senhor Pero! sua mercê não me
diz se
este velhaco tomou serviço? proseguiu Tello, querendo
arrastar comsigo João Bispo, mais talvez para á
sombra
do capitão dos bésteiros se fazer acatar, do que
pela curiosidade de saber se o namorado de Garifa
lhe mentira, ao que estava bastante affeito, para regular
a sua justiça pelo humor em que o apanhavam e
não por depoimentos e confissões. Em materia de
confissões
dava fé ás feitas em potro, ou de borzeguins,
quando estava de boa feição, e felizmente
não
era isto raro.
―Grande velhaco! continuou, dirigindo a palavra
ao seu prisioneiro; ainda ha pouco não tinhas
que dizer a todos os fidalgos? Mais depressa se pilha
um mentiroso do que um côxo.
[63]
Pero Bedoido, ouvindo a voz do pae dos velhacos,
parára junto do postigo, que dava sobre a
margem do rio, e retorcendo o bigode piscava os
olhos para concentrar os raios visuaes afim de melhor
reconhecer quem o chamava. Ayres de Figueiredo parára
igualmente.
Quem não deve não teme. João Bispo
sentia
os seus arripios pelos lombos, porque um pensamento,
que o leitor experto, e que de certo se
recorda do dialogo apanhado atraz do reposteiro, adivinhará,
o punha, na consciencia, em hostilidade com
o nobre alcaide, e se na presença delle Tello Rabaldo
de novo se referisse á entrevista que pretendia ter
com o tio de Nuno Alvares, a vida corria-lhe grave
risco. João não tinha, porém, cursado
em vão os estudos
em S. Francisco e a eschola pratica de velhacarias
dos terreiros, praças e bitesgas da cidade da Virgem, para
não achar um expediente bom ou mau com que se
sahisse de apuros, momentaneamente que fosse. Tello
segurava-o, tendo-o quasi esganado pela extremidade
do capirote, e o cabeção deste fechava no peito e
garganta por meio de quatro grossos botões. Desabotoado
estava livre.
―Senhor Tello, senhor D. Tello?! murmurou o
rapaz, levando as mãos já aos botões,
e esgotando
no submisso, no plangente da voz, e naquelle «dom»,
o ultimo recurso oratorio.
―Ah! perro, velhaco! Eu te...
O pae dos velhacos não concluiu a phrase: um
cascudo que preparava como paga da nobilitação
dada
ao seu nome, deu-o no ar, e com o costado no
mesmo momento apalpou o chão, depois de abalroar
com as canellas de alguns curiosos.
Um côro formado de um unisono de
gargalhadas
[64]
e de gritos ensurdeceu os visinhos que enchiam
as janellas e atulhavam as portas. As gargalhadas provocara-as
o desastre de Tello; os gritos soltaram-nos os
que abriam caminho a João Bispo. O amante de Garifa
deixando o capirote na mão do pae dos velhacos,
que perdera o equilibrio, mettera mãos á adaga
e corria na direcção da Ferraria.
Ao passar em frente do postigo um acontiado da
behetria tomou um virote para lhe embargar o passo.
Ayres Gonçalves, ao mesmo tempo que Pero Bedoido,
reconhecendo no fugitivo um dos seus homens,
lhe sustava o arremesso, gritou em voz bem alta para
chegar aos ouvidos de João:
―Perro, villão, se tocas n'um dos meus homens!...
E a mão do fidalgo pousou como complemento
de phrase no punho do estoque.
O acontiado fez uma careta de despeito, baixou
o virote, e quando o fidalgo voltou costas, deu com
elle com uma força tal d'encontro á parede, que o
fez voar em hastilhas, resmungando:
―Perros e villões... perros e villões! A nossa
vez ha de chegar, traidores, scismaticos!
V.
Irene.
Ma son, mentre ella piange, i suoi lamenti
Rotti da un chiaro suon oh'a lei ne viene...
tasso.
Ger. lib.
cant. VII.
E a linda Irene, a filha de João Ramalho?
Irene, das primeiras fallas trocadas com Fernando,
colheu um resultado quasi igual ao que este
obtivera. A impressão primeira foi a da alegria. Deslembrada
da apparição de mestre Gonçalo, quando
foi ao encontro da cuvilheira, que a chamára, a physionomia
[66]
illuminára-se, reproduzindo toda a felicidade
que lá ia por dentro naquelle coração.
Á pergunta
que lhe fizeram, mas não ouviu, respondeu
com um abraço na velha, que, mal affeita, pela sua
rabuje, a taes carinhos, abriu grandes olhos, e o
espanto desta subiu ainda, levando-a a benzer-se,
quando viu que, sem lhe prestar attenção, a
moça
começou a entoar uma copla de amores, desses cavalheirescos
amores da epocha. Aquella alma de virgem
saudava o enfloramento da nobre paixão que
no seio lhe germinára, e a velha, como Gonçalo
Domingues
a respeito de Fernando, nem se quer pensou
que nessa exaltação entrasse por alguma cousa
o mancebo, de quem já havia notado os passeios
em frente da casa―o que a levára a fazer-lhe carrancas
de sobrecenho capazes de affugentar qualquer
outro que não fosse um namorado.
―A menina Irene namorar! a menina que depois
da morte da nossa ama tenho creado com todos
os cuidados?! pensava ella com os seus botões,
quando lhe vinham desconfianças, ou as visinhas,
pela sésta, no cavaco quotidiano que tinha depois
de arranjados prateis, agomias, sartã, pucaros
e mais aprestes de cosinha, notavam o volver d'olhos
de um ou outro alindado da terra.
A tia Genoveva tinha de si para si que o coração
de Irene se abriria só quando ella, ou o senhor
João Ramalho muito bem quizessem.
As tias Genovevas ainda hoje não são raras.
A linda moça, quando a deixou a cuvilheira, insensivelmente
começou a reflectir nas palavras de
Fernando, e pouco a pouco no semblante e no
coração
começou a tristeza a vencer. A pobre não sabia
que o amor se não traduz bem em palavras, e
[67]
esmorecera pensando que podia não ser amada, ao
passo que bem sentia definir-se-lhe no seio a paixão;
e quando, noite cabida, a velha trouxe para
o quarto de trabalho um velador do qual pendia um
graúdo candil, não respondeu ás
«boas noites» dadas,
possuida de sentimento bem diverso do que horas
antes a distrahira. Ainda mais: a tia Genoveva, ao
espiar a roca e terminar a ultima ave-maria da coroa
que todas as noites rezava á Senhora da Silva, para a
ter por sua intercessora; a tia Genoveva notou uma
lagrima a balouçar-se nas cilias da linda joven, como
aljofre matutino nos estames de uma flor.
―Porque chora, menina? perguntou a velha
criada tomando-lhe o rosto entre as mãos, para melhor
se certificar de que não era illusão sua aquelle
pranto.
―Chorar... eu? murmurou Irene, limpando os
olhos.
―Sim, a menina. Então não veem o espanto
que faz?
―É que eu não choro... Porque havia de chorar?
―Porque? Ora sei eu o porque?
―Nem eu...
―Credo! Anjo bento da minha guarda! Feitiço
por certo lhe fizeram! De tarde a rir e a cantar
como uma louquinha, e a fazer-me momices carendeiras;
agora a choramingar sem que nem para
que! É quebranto, menina... é
feitiçaria; e bem fará
em pôr esta noite debaixo da almadraquexa um ramo
de arruda.
A velha atinava: que maior feitiçaria que a do amor
não póde haver. Só elle tem o
privilegio de dar a uma palavra ecco que, por vezes,
dura até com elle se casar já bem fraco
o das ultimas preces: de perpetuar
[68]
uma imagem ante os olhos até que os cerre o
frio osculo da morte.
Pranto e risos, succedendo-se rápidamente sem
explicação para quem os vê, sem
explicação mesmo
para quem os sente humedecer as faces, ou descerrar
os lábios, são em geral o resultado vulgar
do toque da vara do grande feiticeiro: emquanto o
feitiço conserva toda a força, o pranto
é como os
chuveiros de Maio, que veem como para fazer
ressaltar
o sol que lhes succede, ou como os orvalhos de
Junho, que refrigeram as flores; quando o feiticeiro
se ausenta, o riso é como o luar em noites de Fevereiro,
quando tudo é silencio: contrista como elle,·
traz melancholia. As lagrimas da linda filha de João
Ramalho eram chuveiros de Maio. Correndo á vontade
sobre o travesseiro, em que não pozera a arruda,
não lhe imprimiam nas faces a aridez; regavam,
permitta-se mais esta imagem entre tantas, o
amor que, como no sobrinho de Gonçalo Domingues,
repetimos, se definira naquella tarde.
O amor na juventude, no sexo que chamamos fragil,
porque nós, que nos dobramos a todo o momento
a seus pés, lhe esmigalhamos o coração
em
um circulo de ferro chamado positivismo, realidade
e conveniencia, quasi sempre nasce entre lagrimas,
lagrimas das que chorava Irene quando repetia baixinho,
comsigo, o nome de Fernando; lagrimas
que rebentam espaçadas, se demoram nas palpebras,
e descem lentas pelo rosto.
No outro dia muitas vezes correu a moça namorada
á janella da praia, muitas á que dava para
o lado do monte, e impacientou-se e entristeceu-se
quando viu cahir a tarde sem apparecer o sobrinho
do forçureiro; no domingo, durante a missa do dia,
[69]
na velha igreja de S. Pedro, fez cochichar umas poucas
de comadres, que lhe ficavam na rectaguarda,
tantas foram as vezes que voltou, durante o officio,
a cabeça para o lado da porta, e ainda mais se impacientou
e entristeceu quando, feitas ante todas as
imagens as estações que eram da
devoção da senhora
Genoveva, regressou a casa sem vêr uma sombra
rastejando ao lado della (que olhar face a face, de
perto, para Fernando, nunca a gentil menina olhara)
sem ouvir certas passadas, que distinguia de todas
as outras e lhe causavam uma impressão nervosa
agradavel.
Neste descontentamento, sentada na varanda, que
tentamos já descrever, prestava
attenção a todos os
ruidos, quando a velha criada com quem João Ramalho
havia conferenciado depois de jantar, arrastando
um tamborete de pau e umas contas com que
se entretinha todas as vezes que não trabalhava ou
dava á lingua, lhe veio fazer companhia. Genoveva
engorolou um
pater e tossiu;
engorolou outro
pater
e tossiu outra vez; terceiro
pater a
meio e mais
prolongada foi a tosse, e, ao findar, a esta juntou um
arrastar de tamborete e um suspiro. Era evidente
que rebentava por fallar; porém a sua joven ama estava
bastante distrahida para notar todos aquelles
preparativos oratorios. A velha ainda se resignou a
fazer passar mais algumas contas, a mudar o tamborete
da direita para a esquerda e a passar na
tosse do
piano ao
forte, do
moderato ao
vivace e até
á
furia; mas vendo que
era trabalho perdido, pousou
o rosario, puchou a touca, crusou os braços sobre
a barriga e exclamou:
―A menina que tem?
―Nada, respondeu Irene, olhando pela abertura
[70]
da zelozia para o céu, que mostrava um azul
soberbo.
―Nada! Então eu estou cega; ha dias que não
sei o que tem... anda triste!...
―Triste? atalhou Irene, com um desses sorrisos,
que se denunciam como contrafeitos. Ainda
esta manhã me disse que andava com a cabeça no
ar, e achou que ria como louca... não sei quando...
―Sim, sim: veja se me engana com esses risinhos
sêccos, menina. Por mais que faça não
me
faz acreditar que não está magoada. Eu desconfio
que...
―De que? interrogou Irene, fazendo-se vermelha,
julgando ser do sentimento dominante no seu
coração que lhe iam fallar.
―Nada, nada. O senhor seu pae não lhe fallou...
não lhe deu a entender...
―Meu pae, tornou a joven sobresaltada, não me
disse cousa alguma...
―É que... pensei...
―O que, Genoveva? Que tinha meu pae a dizer-me?
―Nada, nada; respondeu a velha, recomeçando
de novo o rozario.
―Não, alguma cousa era! Diga, diga, Genoveva;
meu pae está de mal commigo?
―De mal! elle que não vê outra cousa, que
a traz nas palminhas das mãos, apesar daquelle modo
assim de poucas palavras?! Se se amofina é...
―Acabe! supplicou a joven.
―Triste já está a menina; para que a entristecer
mais? disse a criada mastigando.
―Não me quer entristecer mais? Pois que ha?
[71]
exclamou a filha de João Ramalho, erguendo-se com
a anciedade pintada no rosto.
―É... nada, nada, redarguiu a velha. E baixo
accrescentou, tornando a carregar a roca:―Cala-te, bocca.
Ora, não ia eu já dizer tudo?
O áparte da cuvilheira, por uma mania que tinha
de sempre dar á lingua para que a ouvissem,
pareceu-se com todos os ápartes do theatro, e mais
anciosa ficou Irene.
―Jesus, Genoveva! Succedeu alguma cousa?
―Nada: é que...
―Acabe por uma vez.
―Como tem de ser... porém, olhe, triste já a
menina está, e quanto mais tarde...
―Está a fazer-me mal, minha boa Genoveva!
exclamou Irene, juntando e erguendo as mãos em
acção de supplica.
―Ora vejam! mal é que eu lhe não queria
fazer; mas visto que teima... sempre lhe digo: seu pae
embarca por estes dias.
―Embarca... disse a joven tornando a sentar-se.
Julguei que fosse outra cousa. Não estou já
affeita
a vêr partir meu pae, todos os annos, uma, duas
e tres vezes para essas terras de Christo? Se podésse
fazer com que não andasse sobre aguas do mar,
exposto;
porém...
―Ao mar, atalhou Genoveva, já o senhor
João
Ramalho está affeito. Parece que tem todos os santos
e santas por elle... e merece-o, que não ha
tempestade
que mal lhe faça; e mais dizem que são bem
más
as da Inglaterra e Flandres! Mas não é agora
só o mar...
―Então que mais é, Genoveva?
―É... que... que volta a Lisboa... e...
―Jesus! agora... que anda a guerra por lá!...
[72]
―Deus ha de querer que nenhum mal lhe venha,
e eu hei-de recommendal-o muito á Senhora
da Silva e á Senhora do Amparo, as duas santas de
mais valimento que ha no céo... de maiores milagres
pelo menos... ao Senhor S. Pedro, advogado da gente
do mar, e ás almas milagrosas! redarguiu a senhora
Genoveva, fazendo uma especie de mesura a
cada nome dos beatos patronos que proferia.
―Bem me dizia o coração que destas
náus e
galés chegadas me viria mal, disse Irene recordando-se
naquelle instante das palavras de Fernando.
―Mal... mal? Tenha fé em Deus, que é grande
peccado descoroçoar assim. O senhor João Ramalho,
seu pae, se anda cuidadoso é por si, menina Irene: como
está já uma moça... eu cá
me entendo... quer
deixal-a bem amparada, em logar seguro; que nestes
tempos revoltos, e nos que o não são, todo o
cuidado é pouco. Como não vae lobo a redil nem
raposa
a gallinheiro senão quando acha a porta mal
cerrada e não ha mastins para açular, queria
deixal-a
em abrigo seguro, e lembrou-se de um convento.
Já dei recado para uma prima, que tenho, sergente
em Entre-Rios, a vêr como poderei ir fazer companhia
á menina...
―Então, Genoveva, vamos para tão longe! exclamou
a linda moça com voz magoada.
―Ainda não é de certo. É precisa
licença do senhor
D. João Affonso, e não sei que outras
requestas...
e como não é para já o caso... por
estes dias...
―Genoveva! Genoveva! gritou do andar terreo
o senhor João Ramalho, fazendo estacar a falladora
cuvilheira, que incetando um Padre-nosso em um tom
de voz que, sem offensa da boa da beata, se podia
comparar ao rosnar de um cão, desceu as escadas.
[73]
―Virgem santa, valei-me! murmurou a joven
fechando uma na outra as mãos, brancas e delicadas,
e deixando sobre o seio pender o rosto, que não
desfeiavam os assomos de tristeza.
Irene assim permaneceu longo tempo, e quando
ergueu os olhos orlava-lhe as palpebras uma côr
mais rosada que de costume, e as lagrimas borbulhavam
mais intensas do que as trazidas pela desconfiança
de que Fernando Vasques não correspondesse
ao affecto por ella consagrado. Eram mais intensas,
porque junto com as arrancadas pelo amor
filial―pois bemqueria a joven a seu pae, com um
extremo inexplicavel, attenta a rudesa apparente do
piloto, se é que uma força occulta a
não fazia corresponder
ao sentimento por elle votado ao unico ente
que na terra lhe restava, á imagem de uma esposa
adorada com o fogo que empregam essas almas reconcentradas,
os homens que jogam a vida sobre o
mais terrivel dos elementos, e passam dias e noites
seguidas a soletrar no livro da natureza a pagina do
infinito, em circulo fachado por
céo e mar;―junto com
as saudades e receios por seu pae, se ligavam penas
avultadas pela sua imaginação,
suppondo-se já separada,
longe de Fernando, clausurada para a vida talvez;
que no amor tudo é coado por um prisma que engrandece
e multiplica os objectos.
Ás lagrimas do travesso moço succedera a
resolução:
Fernando fizera-se homem; ás lagrimas de
Irene succedia o anniquilamento: póde-se dizer tambem
que se fizera mulher a pobre menina porque:
a coroa do seu sexo é formada por essas perolas nascidas
no coração, perolas que resgatam a propria culpa
e a alheia. Para o resgate da humanidade Deus,
tornado homem, deu o seu sangue; para completar
[74]
essa regeneração, para abrir ás
mulheres as portas da
vida, inflar-lhe no seio uma alma, verteu lagrimas
uma virgem.
Irene chorava pela segunda vez, depois que se
apoderára do seu coração a imagem de
Fernando,
quando lhe veio ferir os ouvidos um som distante
e confuso; confuso porque era grande o arruido
que petintaes, espadeleiros e galeotes faziam na
praia, sanctificando o dia do descanço com
libações
frequentes de verde e maduro, cidra e outras bebidas.
Era o som de um toque de caça, assobiado por
um valente folego. A moça estremeceu, quando se
lhe afigurou reconhecel-o; estremeceu e a alegria repelliu
naquella fronte as nuvens de tristeza com tanta
ou mais rapidez de que nos leva a dar uma ideia
dessa mudança. Ergueu-se e correu ao extremo da
varanda, encostou á adufa o ouvido attento a linda
namorada; mas calára-se a marcha, e os berros da
chusma iam em um
rinforzando
prodigioso. Alguns
minutos de anciedade assim passou, com o seio a arfar,
os lábios meio-abertos, deixando vêr uma enfiada
de dentes alvos como o fructo das camarinhas,
com os olhos brilhantes, fixos, até que com novo sibilo
rompeu um grito da joven, um grito de alegria, e
deixando a varanda subiu a assomar a cabeça por
aquella historiada janella das flores, onde com ella
travamos conhecimento.
A cabeça appareceu e desappareceu logo.
Irene soltou outro grito, porque os seus olhos
encontraram os de seu pae, irados, em vez de outros
que de certo procurava carinhosos.
Junto com o sibilo, com os gritos, com o bater
das adufas da varanda e portadas da janella―junto,
[75]
se póde dizer, tal foi a rapidez da
successão―ouviu-se
um grande fragor.
A arvore do cercado oscillára e o muro da quelha
fôra a terra.
A filha de João Ramalho deixou-se cahir no estrado
em que costumava costurar; o piloto soltou
uma praga, e a cabeça da tia Genoveva, que da cosinha
presenceára parte desta scena, appareceu de
bocca aberta no quarto da donzella, persignando-se
e abanando a cabeça como um manequim, pintando
em toda esta gesticulação o seu pasmo, e
terminando
por entre dentes com esta phrase, que havia de
ser, como já fôra, repetida milhares de vezes:
―Ora fiem-se lá nas innocencias deste tempo!
O mundo vai perdido!
VI.
Causa publica e cousas particulares.
A nenhu era ouvida rezão,
nem escuza, que por sua parte
dar quizesse, mas como hum
falava dizendo: que fohão he
delles; não havia cousa que
lhe desse vida, nem justiça
que o livrasse das suas mãos:
e isto era especialmente contra
os melhores e mais honrados,
que havia nos logares, dos
quaes muitos foram postos em
grande cajão de morte...
fernão
lopes.―Chronic.
Em quanto Irene soluçava, Tello Rabaldo vociferava,
sacudindo a poeira do gibão, e João Bispo
evitava na rêde de bêccos e escadas do bairro a
sanha
do bésteiro e de alguns mesteiraes, que o suppunham
réo de crime grave, ou queriam nelle desacatar
o alcaide, que viam, como a grande parte
[78]
dos nobres, com maus olhos, no terreiro de S. Domingos
havia grande ajuntamento de povo, e na portaria
do convento e claustro da igreja se reuniam os
homens bons da cidade, burguezes e
cavalleiros; que
a ordenação de D. Diniz era desattendida durante
aquelles transtornos, como o tinha sido por vezes,
e depois havia de ser.
Ruy Pereira e a edilidade portuense combinavam
os meios, já o sabemos por via de Luiz Giraldes,
de corresponder ao appello do Mestre, e corriam
as cousas ás mil maravilhas. Affonso Eannes
Pateiro e Alvaro da Veiga, bastante compromettidos
com a acclamação do novo governo, juntamente com
o rico mercador que fôra despertar Gonçalo
Domingues
sopravam em pequenos conciliabulos o enthusiasmo
de amigos e conhecidos, e não perdiam o tempo.
Os periodos mais ou menos bombasticos, mais
ou menos curtos, tinham, depois de um ou outro commento,
como ponto, a deslocação de dous ou tres
individuos,
que se dirigiam a uma mesa cercada de tamboretes
e cadeiras, onde dous homens vestidos de
negro, um redondo, de nariz globuloso e vermelho,
outro côr de pergaminho e de feições
angulares, se
viam ao par de alguns vereadores, afagando este
com a rama da penna os lábios ressecidos, abanando-se
aquelle com um caderno de papel. Um dos
patriotas segredava tres palavras ou quatro ao ouvido
de um dos alvazires; os burguezes diziam outras
tantas; os homens negros traçavam algumas letras
e algarismos, que liam em voz alta, e de tudo
isto sahia, póde-se dizer, a Milheira, a Estrella
e a Sangrenta, o levantamento do cerco e bloqueio
de Lisboa, a dynastia de Aviz e―quem sabe?―a
salvação
e civilisação da Europa. Se julgam paradoxal
[79]
a ultima parte, provem como sem os donativos daquelles
bons homens se accudiria ao Mestre; se este
não se veria obrigado a tornar real o fingido embarque
para Inglaterra; se, simples João Pires, casaria
com a exemplar filha de João de Ghaunt; se haveria
quem formasse um viveiro de navegantes tão destemidos,
arrojados, para devassar a costa d'Africa
e penetrar na Asia pelo Oceano, como o infante D.
Henrique; como sem o córte dado naquellas paragens
ao poder ottomano, se lhe sustaria a carreira
victoriosa dos seus estandartes, que chegaram a tremular
junto dos muros de Vienna, na costa da Italia,
na Hungria e na Bohemia, que pendiam bafejados
pelas tépidas aragens de Aldjesireh, da Arabia, e
açoutavam
os ares impellidos pelos ventos gelados na Polonia,
se espalhavam nas aguas do Mediterraneo, no
mar-Negro, no golfo Persico e no Oceano, e acobertavam
os recebedores de pareas até ao Dekan.
Se algumas circumstancias concorreram tambem
para este gigante resultado foram as narradas nos
antecedentes capitulos, desde as dos namoros de Irene
com Fernando e de Garifa com João Bispo, até
á daquelle
virote quebrado.
Não cuidem que um escriptor consciencioso escreva
uma linha só com o fim de encher papel; que
invente um episodio por seu alto recreio: tudo aqui
vem a pello desde o mais somenos facto ao de mais
vulto, e os leitores phylosophos, que esquadrinham
os fins moraes, procuram o succo de todo o livro e
folheto, farejam uma ideia em cada letra impressa,
acharão neste romance demonstrações de
que grandes
successos, que pasmam do mundo, são como os
nevões: um floco de neve, que rola do cimo dos Alpes,
ao chegar ás fraldas destroe casas e plantios;
[80]
uns bigodes cortados em 1152, ainda no seculo em
que viviam estes nossos heroes, destruia cidades, assim
como as bagatellas acima apontadas salvavam
este canto da terra de ser hoje em dia... um pachalik
ou cousa peior.
E João Bispo, Fernando Vasques, e até para
muita gente João Ramalho, Affonso Eannes, Alvaro
da Veiga, Domingos Pires das Eiras, Luiz Giraldes e
outros com quem o leitor tomará ainda conhecimento,
estavam no olvido?!
Lamentemos esta má sina de ingratidão pelos
grandes homens... que em vida não tiverem condados
d'Ourem, nem terras do Alfeite; lamentemos, e vamos
de novo para S. Domingos.
Ao passo que os burguezes davam que fazer a
Gonçalo Pires, escrivão de chancellaria e ao seu
companheiro,
na casa do capitulo, bocejavam os poucos
cavalleiros que tinham adherido, como hoje se diz, ao
pronunciamento do Porto, por vontade, ou circumstancias.
Dissemos que bocejavam; pois movimento,
acção em poucos se notava, a não ser
um alguns dos
recem-chegados de Lisboa, dos quaes o mestre soubera
captar a benevolencia com aquella largueza
de mãos, que o deixaria rei das estradas de Portugal,
se não fossem depois as garnachas, de que
já se queixavam então, e em alguns pobres
infanções
e simples cavalleiros. Ruy Pereira reunia
em volta de si, os dous sobrinhos do rei de Castella,
D. Pedro e Affonso Henriques de Transtamara,
misser Manoel Pessanha, João Rodrigues Guaday,
Ayres Pires de Camões, Affonso Furtado e os
irmãos
d'Alvalade, e em uma das extremidades da quadra segredavam,
ou antes fallavam quasi por signaes o alcaide
de Monsaraz, Affonso Darga, o irlandez Down-Patrick
[81]
e o velho fidalgo de Riba-Tua. Do resto, faziam
uns retinir pelo sobrado os acicates dos seus sapatos
de ferro, que vinham em traje de guerra não poucos,
outros descançavam nas grandes cadeiras de espaldar,
que os reverendos para alli tinham feito conduzir.
De tempos a tempos um pagem ou um leigo entravam
com recado para o tio do condestavel, ou este
fallava a alguns dos seus homens, que estanceavam á
porta, e elles partiam ás carreiras para diversos pontos.
Ruy Pereira tractava de aproveitar o tempo o melhor
possivel, como bom cabo de guerra e bom politico,
depois de ter conferenciado com os influentes
da cidade, conferencia que déra em resultado decidir-se
que se chamasse ao partido do defensor o conde
Gonçalo, combinação que não
era mais do que
uma lisonja aos bons burguezes: pois, soprada pelo
mensageiro de sua senhoria a Domingos Pires, e por
este appresentada, fôra já decidida nos
paços de S.
Martinho. D. João resolvera comprar o conde com os
bens pertencentes á irmã desthronada, bens que
já
tinham servido de engodo a outros. O escolhido para o
ajuste do balsão do nobre senhor, de quem tinham
sido já indagadas as ambições―que se
iam encontrar
com as de Nuno Alvares, felizmente bastante patriota
para ceder ás circumstancias;―o escolhido fôra
o alcaide de Monsaraz, Gonçalo Rodrigues de Sousa,
e devia seguir logo com alguns navios para a Figueira,
emquanto outros iriam correr a costa da Galliza,
inquietar em casa o inimigo, e nos seus barcos,
pescarias e alfandegas procurar um reforço para as
arcas exhaustas do thesouro.
O movimento dos pagens, dos sergentes do convento,
dos bésteiros e homens d'armas tinha produzido
[82]
o ajuntamento da pequena praça ou terreiro,
que ficava em frente do convento, e das tortuosas
ruas visinhas. Na praça, vistas do alto, as
cabeças
dos curiosos formavam uma massa, que ondeava como
as espigas de trigo sazonado, impellidas pelo
vento, e no meio de borborinho constante, especie
de gemer de tempestade em praia cheia de recifes,
surgiam ora estrepitosas gargalhadas, ora gritos, apodos
e vivas. As gargalhadas eram provocadas pelo bôbo
da cidade. O Porto não era uma terra de pouca
monta para não ter um bôbo seu, como qualquer
principe, mesmo no meio daquellas calamidades e
sustos, e tinha-o até que não ficava nada a dever
aosque se importavam de França, por aquellas epochas,
com o mesmo cuidado com que se haviam de
importar cabelleireiros―o que, entre parenthesis, não
quer dizer que para escolha dos primeiros se expedissem
tão gordas personagens como para o dos segundos―.Voltando
ao nosso caso, ao bôbo da cidade:
os leitores que comnosco fazem esta viagem ao seculo
XIV e ao terreiro de S. Domingos, devem confessar
que a verba votada no orçamento municipal,
verba insignificantissima, não devia ser chorada. D.
Golias era uma raridade; uma creatura de seis palmos
de alto, se tanto, comprehendendo esta medida
uma desmarcada cabeça, cortada de lado a lado no
terço inferior por uma bocca, cousa unica que correspondia
naquelle todo ao nome com que o tinham
baptisado. D. Golias áquella bocca, mais do que ao
infésado da estatura e uma mobilidade de
feições extraordinaria,
devia o seu emprego e a sua popularidade.
Os mesteiraes e burguezes que o encontraram,
vindo do acampamento, onde exercia as suas
funcções,
tinham-lhe feito um acolhimento brilhante,
[83]
uma ovação, e elle, escarranchado sobre um
vádio
espadaúdo e meio idiota, com o seu vestido
variegado
e o seu capirote, notavel por duas immensas orelhas
asininas, correspondia a tanto extremo disparando,
entre esgares e tregeitos, epygrammas para a
direita e esquerda, na portaria do convento.
Uns bons dous terços destes gracejos, dos mais
pesados, eram dirigidos a nobres senhores ou a alguns
ricos burguezes, o que os fazia ser acolhidos com
prazer pela gente da praça.
―Olé, mossem Methusael, D. Methusael, tio
Methusael! ginchou elle sacudindo os cascaveis do vestido
e da palheta, dirigindo-se ao arrabi-menor, que
por entre a multidão abria caminho; o vinho que á
socapa comprastes a mestre Manoel do Arco, subiu-vos
á cabeça, ou foi exconjuro que vos trouxe aqui?!
Mossem Methusael, as vossas dobras vão tinir como
a minha jornea, e o vinho vae desfazer-se em lagrimas!
Não é verdade, manos, que vai haver juderega
dobrada e tresdobrada. Mossem Methusael antes quer
que elles roubem a pequena Lea do que um punhado
das boas barbudas da arca!
O arrabi resmungou algumas pragas, que se perderam
entre as risadas do povo, e appressou o passo,
seguindo um cavalleiro, na direcção da portaria,
a
fim de em tal companhia ter mais facil accesso.
―Guarda! berrou o bôbo, attravessando a palheta;
guarda! Se queres entrar pede a frei Roque
que te lave em agua-benta!
―Tira a tua vara, truão, gritou o cavalleiro, ao
pousar o pé no limiar da porta.
―Arreda, Portugal! tornou Golias; arreda, que
ahi vem Castella em peso! Passe lá, don cavalleiro;
eu levanto o meu sceptro e arredo-me, porque não
[84]
quero tocar em scismaticos. Don cavalleiro, tornou,
quando o fidalgo subia já a escadaria, tendes novas
do mano Garcia Manrique? Quando lhe ides dar a
mão?!
E voltando-se para o leigo porteiro, que, depois
de fazer uma grande reverencia ao nobre recem-chegado,
o fitava, espantado da ousadia, proseguiu:
―Eh! beguino de má morte, se cuidas que te
estás a vêr a espelho de Veneza, enganas-te: estas
orelhas são do capirote. As tuas são mais
compridas
e mais felpudas!
Estes e outros gracejos, que não é licito
escrever,
pois não curava o truão da polidez da linguagem,
nem eram por esses tempos malsoantes palavras
que o são hoje; estes e outros gracejos eram a
pedra de toque da popularidade dos individuos a quem
os dirigiam: a gargalhada e os assobios, as palmas,
os grasnidos e murmurios que provocavam, diziam
a conta em que eram tidos. Quando a vaia partia,
e o povo se calava, não insistia o bôbo, certo de
que era a personagem aggredida estimada por aquella
boa gente, e não teria, por isso, defensor, se algum
syllogismo contundente fosse servir de censura
ás suas burlescas reflexões. Regulando por este
thermometro,
o piloto e mercador João Ramalho e Gonçalo
Domingues eram bemquistos na cidade da Virgem.
O forçureiro, sahindo açodado pela porta do
convento,
esbarrára em cheio com o piloto que entrava,
e do choque resultou a oscillação dos dous
corpos,
que procuravam o equilibrio, e um regougo abafado
do burguez. A risada foi inevitavel, pois as pequenas
desgraças teem sempre o riso por caudatario;
mas um olhar do pae de Irene engasgou nas fauces
de Golias o motejo.
[85]
João Ramalho não
vinha para graças.
Ao olhar sevéro dirigido ao bôbo seguiu-se outro
lançado a mestre Gonçalo, que lhe estendia a
mão
com a costumada lhaneza, e o piloto começou, quasi
sem tomar folego, uma lenga-lenga de
recriminações,
que fizeram abrir os olhos do burguez desmarcadamente.
Porque se espantava um, adivinha-o o leitor,
porque desabafava o outro a sua cólera, se o não
sabe, aventa-o: Fernando sahira contra ordem expressa
da rua dos Pellames e fôra colhido em flagrante
delicto de namoro, acompanhado das aggravantes circumstancias
de escalada e destruição de um muro.
O piloto deduzira de tanto ruido peccado mais gordo
do que sonhára o mancebo, e, como este se lhe tinha
salvado da furia, valendo-se da sua agilidade na carreira,
avinha-se com o tio. Mestre Gonçalo Domingues,
se naquelle instante apanhasse a geito o travesso
rapaz, de certo o punha em maus lençoes, tal era a
indignação e raiva, traduzidas nas faces em uma
côr
arroixada, que lhe incitava a narração deste
successo,
feita pelo rude marinheiro. O sangue subia-lhe á
cabeça e ameaçava-o com uma apoplexia. Sem o
querer,
applicou-lhe o pae de Irene o remedio; porém,
continuou a aggressão tão viva contra o travesso
rapaz;
chegou a taes ameaças, que o forçureiro julgou
dever fazer algumas observações a esse respeito,
e
as observações fizeram desviar o raio de uma
cabeça
para outra. A culpa daquelle attentado, tão grave para
o cego piloto, era de Gonçalo Domingues, que não
soubera morigerar o seu pupillo; que lhe déra largas
illimitadas; que lhe deixára damnar alma e corpo
com ruins paixões. Quem ouvisse aquella
recapitulação
de queixas e accusações tomaria o namorado
de Irene por um D. Juan, se Tirso de Molina já
[86]
tivesse modelado no
Burlador o typo
famoso, que,
com um arrebique para aqui, uma limadella para
acolá, um nariz de cartão, uma cabelleira
empoada,
ou os tezos e cortantes colarinhos de um mylord tem
servido a tanta e tão boa gente. O bom do tio, posto
que chofrado, e duvidando de tanto aggravo, julgou
o caso de consciencia, comtudo, e mentalmente resolveu
a questão por um dos lados; por onde a lei, se
fossem veridicas as supposições do
forçureiro, a resolveria,
mesmo naquelle tempo, visto que não havia
desigualdade de castas. O rico burguez não mettia
em linha de conta a vaidade do piloto, não se recordava
tambem de que o commercio e industria com
que se locupletara eram marcados com despreso tradicional,
despreso ecclipsado para as maiorias pelo
brilho das dobras, é verdade; porém
não de todo
para os mais pechosos. João Ramalho, á primeira
phrase em que o forçureiro dava a entender a sua
resolução, feriu-o vivamente no fraco, e
emcambulhando-se
as palavras em dialogo alternado, a voz
do tio de Fernando chegava ao diapasão da do pae da
linda namorada deste, quando arruido maior lhes abafou
as vozes, e uma onda de povo os separou, lançando
um para um lado, outro para outro.
Para explicar esse alvoroço voltemos outra vez
ás assoadas de D. Golias, o bôbo da cidade.
Como em baile de etiqueta annunciava o maninelo
quanto individuo de seu conhecimento se approximava
do mirante semovente, em que se empoleirara,
quando um claro se fez do lado do arco,
que dava serventia para as Cangostas, rua que não
desmente ainda hoje o nome posto, para a Bainharia
e almuinhas, e appareceu açodado o nosso conhecido
João Bispo. Se a pressa, que mostrava trazer,
[87]
e o conservar na mão a adaga não fizessem notada
a pessoa do ex-subordinado de Tello, chamariam sobre
elle a attenção os gritos de Golias.
―Upa! acima sineiros da maldição, berrava
elle. Os sinos não tangem? Beguino, frei velhaco!
campas e sino grande, tudo a chocalhar! Venha toda
a monjaria de cruz alçada, que chega o senhor bispo,
o bispo João! Sua mercê traz pressa; mas nem
por isso deve ser recebido sem as honrarias de usança.
Vá: deitem-lhe agua benta aos olhos, para que não
veja por ahi moura perdida pelas celas!
E terminando a exclamação imitava com a bocca
o repique de sinos, baloiçando-se sobre os hombros
do espadaudo vadio, em quanto este, que não
tinha a insensibilidade de campanario, grunhia incommodado
pelo revolver dos pés do bôbo ante os
olhos, e arrepelões dados na hirsuta cabelleira.
A cidade ficava de certo sem o importante Golias;
pois que o vadio estava já disposto a sacudil-o
no lagedo, como o besoiro, que lhe fizesse cocegas
no cachaço, e de certo o estatelava, senão se
ouvissem
gritos no meio da praça, e o novo bésteiro
de Gaya se não viesse embaraçar, tentando
penetrar na
portaria, nas pernas da victima do bôbo, ao mesmo
tempo quasi que o acontiado do municipio.
―Castelhano! gritou este, deitando as mãos
ao namorado de Garifa, castelhano, aqui não te valem
os fidalgos traidores!
O homem do virote, que sentira subir-lhe o
sangue á cabeça com a ameaça de Ayres
Gonçalves,
correra, mal este embarcára, a procurar desafogo
em João Bispo, e mais desesperado pela velocidade
da carreira deste e pelo emmaranhado dos beccos
por onde seguira, quando o encontrou, ao dobrar o
[88]
arco, sentiu o despeito renascer; o nosso bésteiro,
porém, deitou-o no chão com um cambapé
e seguiu
caminho. A vontade de tirar desforço do novo
desappontamento trouxe aos lábios do homem do
virote aquella palavra «castelhano».
João Bispo correra
menos risco quando lhe chamaram ladrão, entre
os bons burguezes, na baixa, do que baptisado com
semelhante nome.
―Castelhano?! exclamaram alguns mesteiraes
correndo para junto dos dous soldados, emquanto
João se desembaraçava do seu aggressor.
E um sussurro indicador de que a tempestade,
as iras populares estavam eminentes se levantava no
terreiro, ao passo que a portaria era invadida.
―Mata, mata! gritaram em seguida alguns garotos
do outro extremo da praça; mata o castelhano!
João Bispo sentiu um suor frio correr-lhe pelo
corpo todo, e murmurou dando um salto, encostando-se
a uma das hombreiras da porta, e cobrindo o
peito com a adaga:
―Castelhano... castelhano? Quem falla aqui em
castelhano? Affastar, proseguiu em voz mais forte,
affastar! Em castelhanos vou eu pôr o dedo.
―Mata, mata! berraram com os garotos alguns
dos homens mais esfarrapados da chusma; e
uma pedra veio ferir fogo nos umbraes do convento.
O amante de Garifa, metteu a mão no seio e tirou
uma pequena tira de pergaminho, ao passo que
o bôbo, atterrado com o arremesso de projectis em
semelhante direcção, julgava dever intervir:
―Sús, boa gente; quem chama castelhano a
João Bispo? Frei João não foi sagrado
pelo papa
dos scismaticos... foi pelo papa dos velhacos.
[89]
―Oh! é João Bispo? perguntaram duas ou tres
vozes d'entre a chusma.
―João Bispo, ou o bispo João, tornou o
bôbo,
fazendo mesuras ao publico, ao qual soubera modificar
as iras com o seu gracejo.
O homem do virote via de novo escapar-se-lhe
a victima.
―Vêde, vêde, gritou elle apontando para o
pergaminho,
que o bésteiro segurava na mão, e tentando
apoderar-se delle: vêde como quer esconder aquillo.
João Bispo levantou o braço para furtar o
escripto,
que trazia a Ruy Pereira, á mão do
bésteiro
do municipio, ao mesmo tempo que Golias estendia
o braço e o apanhava.
―Ui que esgaravunhos! pipitou elle desenrolando
a tira. Isto é esconjuro de bruxa, ou pacto de
venda de alma de judeu?
―Ou mensagem para os do arcebispo! resmungou
um dos mesteiraes.
―Mensagem para os do arcebispo... disseste a
verdade, mal-cuidando! accudiu o bésteiro de Gaya,
soltando ao mesmo tempo uma praga, e com a raiva
pintada no rosto dando um salto para rehaver o
pergaminho.
O escripto voou das mãos do truão assustado
para junto de João Ramalho, que, levantando-o,
passou pelos olhos as primeiras linhas:
―Traidor, Gonçalo de Sousa?! exclamou elle.
―Traidor, sim, disse João Bispo; e ainda ha
pouco aqui tramou não sei que outras villanias! Estes
cães que trouxe ás pernas não me
deixaram...
João não proseguiu. O alcaide de Monsaraz
desembocava
no pateo, acompanhado de Affonso Darga,
vindo do lado da casa do capitulo. Entre os mesteiraes
[90]
entrados na portaria reinava profundo silencio. O
joven cavalleiro fallava com o commandante da flotilha
enviada pelo Mestre de Aviz ás aguas do Douro:
―Senhor Gonçalo de Sousa...
Como João Bispo não acabára a phrase
não a acabou
tambem Affonso Darga. João Ramalho dirigira-se
para o alcaide, e batendo-lhe com uma das mãos
no hombro, appresentou-lhe o escripto. Aquelle pergaminho
apanhara-o o ex-noviço ao
capellão de Ayres
Gonçalves. Scismando nas palavras ouvidas atraz do
reposteiro, quando, ao regressar de uma visita á ucharia,
se perdera nos lanços de escada e corredores dos
paços de Gaya, pensou que no aposento do frade
lhe acharia a explicação. A prova de que
não pensou
mal era o ter encontrado alguma cousa, e essa cousa―o
pergaminho―fizera perder a côr ao alcaide de
Monsaraz.
Á pallidez, seguiu-se o rubor, e depois de novo
a pallidez. Gonçalo de Sousa sacudiu a mão do
mercador, como se fosse um reptil, que lhe tivesse
pousado nos hombros; quiz fallar e a voz prendeu-se-lhe
na garganta; a espuma produzida por um accesso
de bilis appareceu-lhe aos cantos da bocca. O
nobre senhor, nesse instante, temia menos as iras das
turbas, sentia menos a deshonra, se deshonra via na
sua traição, do que a ousadia do homem do povo,
que
assim se arvorava em seu juiz.
―Arreda, villão! gritou, mal a voz se
desembaraçou.
―Villão! repetiu João Ramalho, refece
é quem
assim atraiçoa a terra que o viu nascer; não
é, senhor
alcaide?
A voz do piloto tremia; mas não de susto. Gonçalo
Rodrigues de Sousa arrancou-lhe das mãos o
[91]
pergaminho, e rasgando-o, lançou-lhe os pedaços
ao
rosto.
―Quereis resposta? disse elle com um sorriso
nervoso, symptoma de um excesso de raiva;
quereis uma resposta? Eil-a... Outra só a darei
quando o meu accusador não fôr da tua
ralé.
O punhal de João Ramalho lampejou no ar. O
alcaide de Monsaraz contára aquella hora como a
ultima da vida, se uns poucos de mesteiraes e bésteiros
do municipio não fizessem o mesmo, lançando-se
sobre elle, embaraçando-se uns aos outros.
A onda popular, levantada pelas primeiras palavras
do homem do virote, pela accusação feita ao
namorado
de Garifa, crescera furiosa, estuara no meio
dos gritos de «morra o traidor, o castelhano». A
portaria
do convento fôra invadida, esmagado quasi o
porteiro, apeiado e pisado o pobre D. Golias, e azevans,
ascumas e agomias luziam ameaçadoras por
cima daquellas cabeças inquietas, como na crista das
vagas os flocos de espuma feridos pelos raios do
sol. Quatro braços possantes seguraram o alcaide,
mais já lembrado de que era homem do que fidalgo:
Affonso Darga e uns dous monges, que o quizeram
cobrir com o corpo, foram repellidos em um
abrir e fechar d'olhos.
―Ao pelourinho, ao pelourinho! gritou um dos
mesteiraes arvorados em justiceiros. Açoutado e
enforcado!...
―Jesus! gritou o dominico, tentando salvar
Gonçalo Rodrigues; Jesus! o que ides fazer é um
homizio,
e o sangue...
―Vamos fazer justiça. A traidor como a traidor!
Peões, não temos cepo nem cutello; mas temos
boas cordas de canave.
[92]
―Ao pelourinho, ao pelourinho!
―Morram os traidores!
―Bésteiros, a mim bésteiros! gritou o alcaide
de Monsaraz, vendo apparecer do lado do claustro
dous acontiados da esquadra.
―Quem é aqui por traidores?! exclamou um
dos que empunhára o alcaide.
Os bésteiros não se moveram. A celeuma na
praça crescia.
―Por Christo crucificado! tornou o dominico
pacificador, erguendo a cima da cabeça a imagem
do Redemptor. Quem com ferro matar, morrerá pelo
ferro...
―Ide-vos, homem de Deus; ide-vos, senão
quereis que vos tomem por traidor.
A voz de Ruy Pereira, avisado do risco em que
estava Gonçalo de Sousa, trovejou por cima daquella
celeuma:
―Quem falla aqui em traições? Traidores, se
os ha, deixai-os á justiça do regedor. D.
João vol-a
fará boa e prompta, bons homens! Senhor meirinho,
senhor meirinho!
―O povo do Porto sabe fazel-a tão bem e tão
boa como o de Lisboa.
―Senhor meirinho, senhor meirinho, gritava
o tio de Nuno Alvares, barafustando para se approximar
do commandante das galés do Mestre, e procurando
com o vista o meirinho da cidade, que abafava
entre os mesteiraes.
―Ao pelourinho! vozeavam estes.
Um bésteiro neste momento atravessava o terreiro,
soffreando o cavallo em que montava, para
não pisar o povo, nessa occasião soberano em
verdade.
Conhecido de alguns dos amotinados, abaixara-se
[93]
a fallar-lhes, e pouco e pouco, á
proporção que
se approximava da portaria do convento, ao berreiro
de «morras» succedia um borborinho destas palavras
trocadas em voz baixa:
―Os gallegos! os gallegos!
―Os gallegos! exclamou o mesteiral que segurava
o alcaide e parecia ter grande influencia nos
seus companheiros; os gallegos veem? Boa idéa:
mandar-lhe-hemos este bom cavalleiro para o arraial.
As machinas que estão do lado das Hortas podem
com pesos maiores. É uma boa lança que enviamos
aos do arcebispo. Não é para elles que se queria
partir?
Uma gargalhada saudou a lembrança, apesar de
não ser original.
Gonçalo Rodrigues de Sousa estava salvo com
aquelle addiamento das vinganças populares.
VII.
Recontro de Leça.
Todo oro que se afina
Es de mas fina valia,
Porque tiene mejoria
De cuando estaba en la mina,
Ansi se apura y retina
El hombre y cobra valor
En la fragoa del amor.
gil vicente.―fragoa
d'amor.
―Bofé, por aqui?!
―É verdade, João.
―Mas como? Se o não vira com estes olhos
que a terra ha de comer...
―Pois eu sou.
―Como S. Thomé, parece-me que será
preciso
[96]
tocar-vos para crêr. E como vindes armado! Nem
moço escudeiro vos leva as lampas! Mas ainda o
não
posso acreditar. E mestre Gonçalo?
―Meu tio...
―Sim! O bom do velho veio tambem na arrancada.
É o que faltava vêr... elle que não
é para
estas cousas, apesar de bom portuguez. Mas, em fim,
está ahi o Porto em peso; velhos e cachopos...
até
mouros. Por pouco vinham as mulheres! Ala fé,
mestre Gonçalo Domingues...
―Meu tio não veio...
―Então...
―Ai, João, se souberas?!
―O que?
―Estou como tu; sem leira nem beira.
―S. Jorge e todos os santos batalhadores sejam
commigo! Que foi o que vos succedeu, Fernando?
Morreu mestre Gonçalo?
―Não morreu, não... nem Deus queira
tal.
―Então, que foi?
―Ai, João, hontem foi um dia bem de mau
sestro!
―Para mim tambem: por um argueiro duas
vezes escapei á morte!... Pois não vi, ao sahir
de Gaya,
nem gato preto, nem chapim de sola para o ar, nem
velha varrendo lixo: nem ouvi piar a coruja, nem
uivar os cães! Valeu-me o anjo da Guarda...
―A mim não me quizeram matar; mas... parece-me
que me foi peior...
―Peior?!
―Sim, João: lembras-te de me encontrares nos
Banhos, e de te fallar em certos amores? ..... Fui
vêl-a.
[97]
―Ah! fostes vêr a tal menina, e estava arrufada...
―Não, João; Irene...
―Irene? chama-se Irene? é um nome que não
é feio.
―E ella é mais linda; mas, como te ia contando,
fui vel-a. Ia a subir a um muro do lado do
quintal para lhe fallar―queria tirar um peso que
tinha no coração; dizer-lhe que, apesar de meu
tio
ralhar, lhe havia de querer muito e... nem eu sei
o que mais; mas queria-lhe fallar, vel-a―ia a subir
ao muro, e o muro... zas... no meio do chão,
e cara a cara dou com o pae...
―Ora! E por tal é essa amofinação?
―Olhe, João, que não é o caso para
folgar!
Como não ralharia elle á minha pobre Irene, elle,
que não tem ar de palavras de mel, e ficou com
um senho... que descarregou nella... de certo...
―Isso de nada vale, Fernando.
―Ainda não ficou ahi o mal. Deitei a correr...
eu sei lá para onde! Quando me lembrei de voltar
para casa era tarde; pouco faltava para o sol
posto. Appressei o passo, lembrado de que se meu
tio me não encontrasse nos Pellames, elle, que me
guardava má tenção por me haver
encontrado já na
maldita arvore, faria de sorte que eu não tornaria a
pôr pés na rua. Ao chegar quasi a S. Domingos,
havia uns alaridos, um grande vozear, e parara ao
pé do arco, quando mestre Duarte, o nosso visinho,
veio aonde eu estava, e contou que vira o pae
de Irene fallar com meu tio, e que ambos esbravejavam,
por palavras que lhes ouvira, contra mim.
Voltei a Miragaya...
―Para que?
[98]
―Nem o sei dizer. Receiava de meu tio... e
não receiava. Quando de novo me dirigi á porta da
cidade estava fechada. Do lado da Esnoga via-se um
grande clarão, e continuava o alarido...
―Era a chamusca da casa de mossem Moysés,
o irmão de D. David Algaduxe; era o escote dos
judeus.
―Assim me disseram de manhã.
―Passastes a noite ao relento?!
―Passei, João, e se visse sequer uma luz á
janella, parece-me que ficava consolado. Ao alvorecer,
como depois daquella noite assim corrida maiores
razões tivesse para não voltar aos Pellames, subi
a encosta em cata de mestre Pedro, e, como o
não encontrei, fui pelas Hortas. No campo, a chusma
das galés, os acontiados da cidade, e a gente de
armas dos ricos homens vindos de fóra, estava tudo
em movimento; chegava povo a todos os momentos
e sahia no meio de vivas; ao pé da torre, junto á
porta, do lado de dentro, distribuiam armas. Um
anadel deu-me um encontrão, e disse-me que fosse
buscar tambem alguma cousa, e fui; pozeram-me a
caminho para aqui, e puz-me a caminho tambem...
―Amores! amores! E agora que ides fazer?
―Boa pergunta, disse, erguendo e cabeça com
certo enthusiasmo, o namorado de Irene, Fernando
Vasques, de certo já reconhecido, bem como João
Bispo desde as primeiras linhas deste dialogo; agora
é batalhar, e ou ficar para ahi, ou fazer
acção
de fama; e depois...
―E depois ides pôr a espada aos pés da vossa
dama, como naquelle conto da Tavola-Redonda ou
naquell'outro que tinha frei Gumado... Ama... Ama...
―Amadis, queres dizer?
[99]
―Isso é: um em que havia combates de gigantes
e uma princeza muito formosa: deixai vêr se
me lembra o nome... Oriana!...
―A dama de Amadis.
―Bonitos contos, Fernando, esses de cavallerias
e amores; pena é que hoje nada succeda assim
de geito.
―Pena que não haja quem tenha a vontade
de boas acções e famosas! O senhor Nun'Alvares,
tem-se, ainda assim, havido como alguns dos mais
pintados, e ouvi contar a meu tio, que o viu simples
pagem, acompanhando a rainha Leonor, pela
qual depois foi armado.
―Tomou o leão para o fazer lebreo de estrado;
mas elle, mal chegou a idade, mostrou-lhe os
dentes todos, e foi para o monte a monteal-a. Desde
nado trouxe boa sina Nuno Alvares. Mestre Thomaz,
grande astrologo, que andava em casa de seu pae,
leu nas estrellas, e viu que empresa em que se mettesse
seria boa, e elle sahiria vencedor, se fosse para
bem sua tenção.
―Por isso deixou elle a rainha Leonor; pois
em serviço della não andava bem, e podia-se
quebrar
o encanto com que foi fadado.
―A mim tambem me leram a sina; porém a maldita
da moura que o fez disse uma tal embrulhada,
de que só percebi que havia de entrar em grandes
batalhas, e salvaria um rei...
―Não ouvis? atalhou Fernando, sobresaltado.
―Ouço.
―Além do rio...
―Um como tropear de gente, e quebrar de
ramos. Estas fogueiras não deixam vêr bem. As
vigias dormirão?
[100]
―Não... olha, não vês alli ao
pé daquelle fraguedo,
onde bate o luar, aquella que se move? está
bem desperta. Ainda ha pouco se recolheu uma rolda,
a que acompanhou frei Patinho.
―Escutai, tornou João Bispo, deitando-se no
chão para melhor distinguir a direcção
do rumor,
depois de retesada a corda da sua besta.
A noite descera havia muito; os galos de algumas
choças visinhas tinham já annunciado que ia
alta, a meio do seu curso, e a lua erguia-se redonda,
avermelhada, semelhando um escudo candente,
por entre as ramas dos pinheiros, que fechavam
ao nascente o horisonte, fazendo destacar a uns
por contornos negros, cobrindo de uma luz phantastica
os curutos de outros, e projectando sombras
immensas pelas clareiras. Á proporção
que
ella minguava no céu, tornavam-se mais vivos os
reflexos azulados com que tingia alguns objectos,
fazendo contraste com os fogos dos dous acampamentos
áquem e álem de Leça―fogos que em
pontos
ainda se mostravam vivos, fazendo ressaltar vultos
negros, tocados, sobretudo nos arnezes, braçaes e
grevas dos homens d'armas, de linhas ardentes, vermelhas
quasi; em outros quasi extinctos, mostrando, através
de uma luz vaga, fórmas indecisas, movendo-se,
tregeitando. Aqui o ferro de uma azevan, volteando,
espelhava um raio da lua, e imitava os fogos fátuos;
acolá o bacinete polido de um bésteiro de
polé lampejava,
ao cruzar rápido por pé dos fogos das vigias.
De vez em quando o relincho dos cavallos se reproduzia
nos eccos; as vozes das roldas se alteava;
erguia-se aqui uma risada, alli um clamor, e depois
recahia tudo em um silencio, que só interrompia,
[101]
alguma conversa a meia voz, como a que cortaram
os nossos dous namorados.
Pela bocca de um delles já todos sabem que os
combatentes de que podia dispôr a cidade da Virgem,
homens e rapazes se tinham nessa dia de madrugada
posto a caminho de Leça, e se estão lembrados
da noticia dada pelo bésteiro em S. Domingos,
noticia que tirou Gonçalo Rodrigues das mãos
dos populares e o entregou á justiça, que lhe fez
grande
favor em o reter preso em Gaya; se se lembram
de que D. João Manrique, arcebispo de Santiago,
abalára de Braga com setecentas lanças e dous mil
infantes, portuguezes, partidarios de D. Beatriz, e gallegos,
e quando chegára a mensagem do Mestre acampava
perto da cidade, atinarão qual o intento que ahi
os levava. Alguns corredores do bando inimigo tinham,
ao tempo que pecuniariamente se salvava a
patria, chegado a Paranhos, alarmando os poucos
camponezes não recolhidos á cidade, e os bons
burguezes,
que já os tinham esperado duas vezes sem
verem apparecer uma só lança, haviam resolvido
affugentar
estes hospedes importunos.
Seis a sete mil homens, pois, acampavam áquem
do Leça, occupando uma extensa linha.
Esta tropa, superior á do arcebispo em numero,
era, encarada por outro lado, talvez inferior. Dos nobres
que com os seus homens d'armas tinham seguido
as hostes populares, em alguns não eram firmes as
crenças de partido, como vimos; nos outros, em geral,
havia certa má vontade por vêrem ao seu lado
cavalleria
burgueza, para a qual olhavam pouco mais ou menos
com os mesmos olhos com que ainda hoje, no seculo
XIX, olha o militar para o miliciano que marcha
ao seu lado. Os bésteiros da behetria, trezentos ao
[102]
todo, era gente de animo resoluto, porém fracos atiradores,
e os quinhentos, tirados da esquadra e de Gaya,
tinham os outros quasi na mesma conta que ás
lanças
que rodeavam a bandeira onde entre torres a
Virgem apparecia mostrando Jesus inda menino, aquelles
que seguiam balsões historiados, e mesmo
ainda ao mais historiado labaro, museu de imagens santas
ideado pelo futuro condestavel.
Cinco mil homens, exceptuando a chusma da armada,
pertenciam a essa gente que parecia entregue
a uma mascarada, quando levamos o leitor aos adarves
que tinham vista para Miragaya. Eram porém estes,
era o povo e os acontiados do municipio que tinham
de fazer retirar os muito esforçados cavalleiros
Lopo de Lira, Fernão Gomes da Silva, Martim
Gonçalves de Athaide, Gonçalo Pires Coelho e
outros
nobres, que seguiam com elles o arcebispo de Santiago.
As ascumas e os mangoaes affaziam-se, a passar
aquellas entre o gorjal e a barbuda, a malhar
estes em cimeiras; amestravam-se para a grande tarefa
de Aljubarrota.
Como dissemos, os defensores do Mestre estendiam-se
na margem do Leça por bom espaço. João
Bispo e Fernando Vasques encontravam-se em uma
das extremidades da linha, ou acampamento, quando
extranho ruido vindo de uma mata visinha os
fez interromper o dialogo que ahi fica exarado. O
amante de Garifa, depois de se conservar por alguns
segundos deitado, com o ouvido attento, ergueu-se,
fez um signal ao seu companheiro, e, empregando
o maior cuidado possivel para não fazer rumor,
dirigiram-se ambos para o lado do poente, onde
de novo se pozeram a escutar.
―São os nossos, disse o bésteiro novel a
Fernando;
[103]
são os nossos, que estão abrindo caminho
no
bosque.
Palavras não eram ditas, um grito sahia da selva,
e um bésteiro levantava quasi debaixo da cara
do sobrinho de Gonçalo Domingues a sua besta armada,
mirando-o.
―Eh! Gil! abaixa lá isso, gritou João Bispo:
guarda os teus virotes para os
gallegos!
Que
desbravar
de matto é esse?
―Eramá! estás ahi, João? tomei-vos
por esculcas
desses condemnados! Abrimos caminho na mata,
e vamos passar o rio. João Ramalho está
lá em
baixo com trezentos dos da cidade.
―Começa o folguedo?
―Boa festa! Vamos fazer dançar os do arcebispo
ao som de assobiar de virotes, e ranger de
polés e garruchas. Os malditos deste lado dormem,
ao que parece, e não é mau despertal-os.
O amante de Garifa deu alguns passos para se
internar na mata. Fernando reteve-o.
―Espera, João, eu sei um sitio onde se póde
passar melhor do que ahi.
―Sabes?
―Além, abaixo daquelle casal que está a alvejar,
pelo açude.
―Bom discorrimento teve o cachopo! exclamou
o bésteiro, com um sorriso de escarneo. Vão
lá passar
pelo açude! É o mesmo que fazer caminho para o
outro mundo. Dous homens na outra margem tragam-vos
uma hoste, como a uma tigella de migas.
―E se de lá não houver ninguem?
O bésteiro, como unica resposta, voltou as costas,
encolhendo os hombros; João Bispo, depois de curta
[104]
reflexão, tomando a mão do seu companheiro,
exclamou:
―Vámos ao açude!
O desbaste do arvoredo continuou com affinco,
e uma hora passada, havia uma soffrivel clareira
aberta, onde tinham já penetrado alguns homens
d'armas. No campo inimigo, em frente, não se ouvia
senão o ciciar da aragem. Um troço de
bésteiros e
populares, armados estes com toda a sorte de armas,
desde o montante farpeado e o machado, a maça de
puas, até ao chuço e mangoal,
começaram a passar
o pequeno rio pouco abaixo do mosteiro dos Hospitaleiros.
Cem homens teriam tomado pé na outra margem,
quando um sibilo se ouviu, e um virote se veio
cravar em um velho roble, ao pé do qual João
Ramalho
dava ordens aos acontiados da cidade. Em seguida,
a outro sibilo juntou-se um grito, o som da
queda de um corpo na agua, e logo um alarido immenso.
Bésteiros de pé e a cavallo, burguezes e
mesteiraes,
que se tinham lançado ao Leça, recuaram.
Do campo do arcebispo haviam notado o movimento
da gente do Mestre, e o silencio guardado fôra
alliciente para os chamar além.
Cem homens estavam
na outra margem prisioneiros, se o grosso da força
não avançasse.
―Santiago! Santiago! gritaram os castelhanos;
e a margem appareceu como por encanto coberta de
frecheiros, e d'ahi a momentos o relinchar dos ginetes
e o som das trombetas eccoava pelos valles.
―S. Jorge e Portugal! gritou João Ramalho,
arrebatando a bandeira da cidade das mãos de um
cavalleiro do municipio, e lançando-se ao rio.
Ávante,
filhos, ávante!
[105]
Um troço de mesteiraes lançou-se em seguida
do caudilho popular; porém recuou de novo.
As folhas das arvores cahiam, como varejadas,
e os troncos lascavam aqui e alli, que os bésteiros
de Garcia Manrique faziam a sua obrigação.
―Assim deixaes os vossos nas mãos daquelles
perros?! exclamou Nicolau Domingues, apontando
para a outra margem onde havia um concerto de
pragas, vivas e morras. Bésteiros! bésteiros,
pela
Virgem de Vandoma, ávante!
―Ávante! responderam alguns mesteiraes e
acontiados, seguindo o exemplo de João Ramalho.
A lucta travada além do Leça era uma temeridade.
O luar alto já, allumiava o necessario para o
inimigo vêr o inimigo que tinha junto de si, para
uma lucta quasi corpo a corpo; e os homens d'armas do
arcebispo, avançando sobre o ponto invadido, iam dar
cabo dos attrevidos portuenses; demais, os fundibularios
e bésteiros d'aquem temiam ferir os seus,
ao passo que os gallegos, prolongando-se de lado opposto
pela margem, enviando tiros mesmo ao acaso,
difficultavam a passagem. Martim Correia, o escrivão
da chancellaria, Gonçalo Pires, e o filho do Mestre
de Santiago, D. Pedro de Transtamara, com alguns
escudeiros e um troço de cavalleria da cidade,
forcejavam em vão por enfiar mais além a estreita
ponte, ainda hoje existente naquellas paragens. O
grosso dos homens d'armas e cavalleiros embaraçavam-se
uns e outros, nos vallos, fraguedos e silvados,
pelos sitios onde tinham acampado, alarmados pelo
rebate extemporaneo.
No rio, se se ouvia o chapejar, era o de um ou outro
burguez fugitivo; no bosque o estallar dos ramos,
o rumorejar dos fetos não era só produzido pela
[106]
queda de virotes; era tambem pela queda de homens.
Nicolau Domingues gritava a bom gritar; mas a chusma
da esquadra, vinda de reforço, não se resolvia a
ir juntar-se aos acontiados do Porto, quando um sucesso
inesperado deu um fim brilhante ao que até
então não se podia dizer mais que uma imprudencia
do pae de Irene, e da sua gente.
O mosteiro dos Hospitaleiros appareceu illuminado
por uma luz avermelhada: nas ameias da egreja
e das torres veria quem dellas se approximasse
vultos negros correndo de um para outro lado açodados,
e um alarido immenso se casava ao fragor
do combate da margem.
Fernando Vasques e João Bispo tinham passado
o açude e approximado, fazendo um rodeio, do acastellado
mosteiro, pelo lado do norte, lado desguarnecido,
e bastante custára ao namorado da filha do
velho Humeia a suster o seu companheiro, que na
effervescencia do seu amor, cheio de enthusiasmo,
imbuido de mais na leitura dos livros de cavallerias,
para conquistar renome se dispunha a commetter
temeridades, que serviriam apenas para alarmar
os castelhanos e arriscar a vida. João persuadiu-o
a voltar á outra margem, a procurar reforço
para uma ideada surpresa, e não tinham do lado de
áquem dado muitos passos quando lhes chegou aos
ouvidos um vozear confuso, e toparam com uma mulher,
que, soluçando, com os olhos arrasados de lagrimas,
conduzia pela mão uma creança, chorosa tambem.
Guiados por essa mulher, a quem Fernando,
condoido, perguntára a causa daquelle pranto, foram
ter a um casal. As portas todas da casa estavam arrombadas:
por uma sahia um grande clarão. Uma velha
arca e outros trastes ardiam ao canto de uma
[107]
adega, e á volta das pipas tripudiava um troço de
bésteiros.
O vinho derramado em uma grande celha de
pau, e que, trasbordando, se esbanjava pelo chão, mostrava
em que estado tinham as cabeças, e mais ainda
o modo porque recebiam as admoestações de micer
Guilherme: dançavam, tregeitavam, grunhiam e berravam
em várias linguas e dialectos, chegando alguns
dos que se mostravam menos firmes nas pernas ao
nariz do nobre aventureiro uma escudella a trasbordar.
Para bem da verdade deve-se dizer que o irlandez,
pretendendo conter os seus patricios, os inglezes,
escocezes, gascões e normandos, que, recrutados
pelo chanceller em Londres, tinham vindo nas
galés, deitava á escudella um olhar
tão terno, que
não era para delle esperar grande sanha contra os
indisciplinados, nem grande vontade de se metter á
agua.
João Bispo via no meio de gargalhadas e motejos
desfazer-se o plano combinado com o sobrinho
de Gonçalo Domingues, quando este se lembrou de
notar aos nossos fieis alliados por palavras e gestos
que o vinho dos cavalleiros de S. João devia de ser
cousa muito superior ao de pobre lavrador. Um hurrah
saudou Fernando, e, cambaleando, a turma tomou
o caminho do açude, apesar dos protestos de
Down-Patrick.
Vinte homens, se tanto, seguiam aos dous namorados:
uma duzia de archeiros de Gilles de Montferrand
e alguns subordinados de Tello Rabaldo, encontrados
tambem na adega do casal: os demais, embriagados,
tinham ficado pelo caminho, e uns dous
ou tres afogados no Leça. Bésteiros e
vádios penetraram
na cerca com o maior silencio em quanto João e Fernando
rodeavam um páteo junto da igreja, onde os
[108]
do arcebispo tinham amontoada bagagem, carros e
grande porção de escadas, com que
ameaçavam um
assalto á cidade. A sentinella, posta desse lado, dormia,
cabeceando, encostada á lança, quando Fernando
deitou mão de uma das escadas para a encostar
ao muro. O pobre archeiro, extremunhado, abriu os
olhos, esgaziados logo pelo terror, e a bocca para
dar o signal de alarme; porém aquelles embaciaram,
e desta sahiu apenas uma golphada de sangue; deu
umas outras duas passadas, cambaleando, estendendo
as mãos como a procurar appoio, e cahiu no chão
soltando um som rouco e um assobio, como de homem
que desperta de pezadello. O castelhano, não
despertava; adormecia para sempre: aquelle estertor
sahia pela garganta e feridas abertas no peito por
João Bispo.
―S. Jorge e Portugal! exclamou o namorado de
Irene,
abraçando-se ás ameias do eirado, e arrancando
a bandeira dos partidarios de D. Beatriz, que tremulava
ao pé da vermelha dos cavalleiros. S. Jorge e
Portugal!
―Estamos perdidos! resmungou João, ouvindo o
grito do mancebo; e estropeando o nome do aventureiro
irlandez, gritou: Micer D. Patrico! micer D.
Patrico, por aqui! por aqui! A mim, bésteiros!
Nas torres ergueu-se um alarido immenso: alguns
penedos cahiram do eirado no páteo, e uma nuvem
de virotes sibilava nos ares. Ao chamamento
de João apenas tinham acudido Pedro Choca e tres
vádios. O sobrinho de Gonçalo Domingues, com a
haste
da bandeira defendia-se dos castelhanos, que, alarmados,
mais tratavam de lançar a escada a terra do que
de se desfazerem do temerario inimigo.
[109]
―Abaixo, Fernando, abaixo! gritou João; e no
alto das torres appareceram algumas luzes.
―Viva o Mestre de Aviz! gritou o mancebo quasi
ao mesmo tempo que lhe fugia a escada debaixo dos
pés, deixando-o suspenso das ameias e estribado
em uma enorme salamandra de granito, que servia de
goteira ao eirado.
―Ahi vem ginetes, disse Pedro Choca, fazendo
um esgar. Recommendemos a alma a Deus!
―Se elle t'a quizer! redarguiu um dos vádios
soprando a uns tições alli deixados em rescaldo,
que
embrulhára em uma pouca de palha.
―Fernando! exclamou João Bispo, encostando
outra escada ao muro, apesar dos arremessos; afferra-te,
Fernando, que eu sou comtigo.
―S. Jorge! S. Jorge! se ouviu do outro lado
do mosteiro em altas vozes.
―A mim, bésteiros, a mim! tornou João Bispo,
em quanto o seu amigo se defendia na goteira,
procurando saltar no eirado.
―Hurrah! S. Jorge!
―Malditos! aquelles odres onde estarão! Micer
D. Patrico!
―Arriba, João, arriba! accudiram os vádios,
marinhando
pela escada, que de novo tinham erguido.
Aquelle endemoninhado cachopo vai morrer!
Uma grande lavareda, de repente, illuminou a
lucta travada entre Fernando Vasques, os seus companheiros
e alguns homens d'armas do eirado. Pedro
Choca tinha lançado fogo a uns carros de palha,
e este ateava-se aos enormes pavezes de vime,
proprios para assalto, amontoados entre as escadas
e bagagens. Era uma fogueira soberba que
dentro em pouco faria estalar o travejamento dos aposentos
[110]
de D. Mafalda, ao mesmo tempo que os
castelhanos abandonavam o eirado da egreja.
―Os do Mestre! os do Mestre! se ouvia
por todos os lados; e nas torres, besteiros e fundibularios
perdiam os seus tiros.
―Hurrah! continuavam, já roucos, a berrar,
do outro lado da cerca, os inglezes.
―S. Jorge e Portugal! gritaram algumas vozes,
com boa clara, pronuncia portugueza, do lado
do rio, apparecendo por entre os castanheiros, retirando
os homens d'armas de Garcia Manrique.
―Ter! gritou um dos seus caudilhos, ameaçando
com o estoque os mais medrosos; ter, rapazes!
Não se diga que retiramos diante de meia duzia de
villões!
―Ter, ter! exclamou o guerreiro arcebispo, apparecendo
no meio dos fugitivos.
―Os do Mestre estão no bailiado! disse uma
voz d'entre a multidão. Vêde, o mosteiro
está a arder,
e foi derribada a bandeira!
―Por Sanctiago! tornou o arcebispo para os
seus companheiros, espantado da audacia dos portuenses,
embrulhados já com os gallegos, e suppondo-se
cortado por forças immensas; estes excommungados
estão decididos a morrer, e trazem comsigo
o poder do mundo. A caminho de Braga, senhores!
Temos tempo sobejo para desforra.
―Covarde! resmungou João Rodrigues Portocarreiro,
esporeando o seu ginete para se lançar
sobre os do Mestre. Covarde! repetiu; e o fogoso
animal, ferido nos peitos por um virotão, ergueu-se
com as mãos no ar, e cahiu, arrojando com
ruido o portuguez rebelde a alguns passos de distancia,
[111]
abollando-lhe a armadura e o capacete e fracturando-lhe
o craneo.
―Covarde! repetiu tambem o arcebispo com um
sorriso de mofa, voltando-se para um dos seus capitães,
e designando o fidalgo portuguez: temeridades
não aproveitam.
A ponte tinha sido forçada ao mesmo tempo
quasi, e a cavallaria de D. Pedro de Transtamara
cortava já pelo meio dos gallegos, atterrados.
―A caminho de Braga! tornou a gritar o arcebispo
D. João, que, lançando-se na estrada partiu, a
galope,
seguido de grande porção de cavalleiros, e pouco
depois de todo o exercito, deixando os apprestes
d'assalto, viveres e bagagens nas mãos dos burguezes
do Porto.
―Senhor conde, senhor conde, aqui está a bandeira
de Castella, exclamava momentos depois, attravessando
no meio de vivas por entre as hostes do
Mestre, o sobrinho de Gonçalo Domingues, com as
mãos cheias de sangue, de feridas do corpo e da
cabeça,
mas tão contente, que nada lhe doia naquelle
instante, e, em vez do perigo corrido, se recordava
tão sómente de Irene, alegrava-se por saber que o
seu nome lhe havia de chegar aos ouvidos na historia
daquelle recontro.
Era um heroe feito pelo
amor .............................................................
O mosteiro dos Hospitalarios tinha sido abandonado,
mal o incendio mostrou aos seus guardas as
hostes portuenses além já do Leça,
abatida a bandeira
e em fuga Garcia Manrique. No entanto, ainda
do lado da cerca, sol já nascido, as mesmas vozes
roucas gritavam:
―Hurrah! S. Jorge!
[112]
―Onde demonio estarão estes bargantes? perguntou
o namorado de Garifa, procurando o sitio
donde sahia aquelle vozear.
Uma gargalhada estrondosa se seguia, pouco depois,
á pergunta. Os besteiros encontrados no casal,
não se esqueceram, chegados ao mosteiro dos cavalleiros
de S. João, que vinham para humedecer a
garganta com bom vinho, e foi a adega a primeira
cousa que procuraram. Era de lá que tinham, com
os seus hurrahs, ajudado a alarmar os gallegos.
Desta vez micer Guilherme Down-Patrick não
resistira á tentação.
VIII.
Torneio.
E elles no Porto por ledice
de sua vinda ordenarão hum
torneo vespora de S. Iohão,
que era em que os moradores
daquella cidade costumavam
fazer gram festa.
(fernão
lopes. Chronic.)
Por uma tarde de mez de Junho, pouco mais
de uma hora seria, caminhavam em direcção
ás Hortas,
no meio de extraordinario concurso, mestre Gonçalo
Domingues e Fernando Vasques. O feito de Leça,
tornando um heroe, entre os patriotas da terra,
o moço namorado, os gabos por elle publicamente
[114]
recebidos de Martim Correa e do conde D. Pedro, a
ovação feita pelos populares, que em charola, o
conduziram,
quando perdidas as forças, pelo sangue derramado,
cahira ao voltar do recontro; tudo fizera passar
por alto ao bom tio a fuga da loja. O velho abraçou-o
enthusiasmado tambem, com o riso nos labios
e ao mesmo tempo umas duas lagrimas nos olhos
e só se lembrou de fazer algumas reflexões sobre
as imprudencias da mocidade, quando em casa
notou a necessidade de chamar um medico, ou physico,
como então se dizia.
Gonçalo Domingues tinha, como muita gente, na
cabeça uma boa dóse de ideas em
opposição com
as inspirações e sentimentos do
coração, sobretudo a
respeito de seu sobrinho. Se dissessemos que queria
ao mancebo tanto como ás suas dobras, diriamos
que lhe tinha affeição de pae; porém,
ia mais
longe o velho: queria-lhe mais; pois bom dinheiro
sem dó com elle tinha dispendido. E comtudo dava-se
de vez em quando a perros por causa de certas
travessuras e inclinações do filho de seu
irmão, sobre
as quaes fazia observações muito sisudas, cheias
de um positivismo tal, que obrigava a dizer aos que o
ouviam que elle era um homem de grande tino e prudencia.
Reflexões e ralhos, terminavam quasi sempre
por aquelle sorriso que lhe viram os leitores quando
elle voltava de Miragaya.
Fernando vinha ainda alguma cousa pállido, debilitado,
ao que no corpo mostrava; porém nos olhos
havia um fogo extraordinario, uma alegria pintada
em todo o semblante, e nos movimentos uma força,
uma rapidez, que não parecia de quem entrára
pouco
havia em convalescença. O tio bem lhe dizia que
moderasse o passo, pois lhe fazia mal aquella violencia,
[115]
e elle mesmo a custo o poderia seguir sem
correr; mas o mancebo, se o affrouxava, era por instantes.
O sol, ainda quasi a prumo, podendo, dardejar
os raios por entre as esguias e altas edificações
das
estreitas ruas, que percorriam, rarefazia o ar, appresentando
nos terreiros á vista a illusão de um como
doudejar de átomos no ambiente, um tremor que fere
os olhos; porém Fernando nada sentia. Ia vêr
Irene,
Irene que não vira desde o esboroamento fatal do
muro; Irene, que João Ramalho, em vesperas de se
fazer de véla para a Figueira, d'onde seguiria para
Lisboa, recolhera ao castello de Gaya, recommendando-a
a D. Catharina. A nobre senhora era
bastante astuciosa para não affagar em quanto fosse
conveniente um homem popular como o piloto
mercador, e fallando elle em metter a joven em um
convento, em quanto ia servir o Mestre, para a guardar
dos riscos a que a idade a expunha, se offerecera
para a tomar como donzella sua «e tel-a como filha»
palavras della. D. Catharina devia ir ao campo
das Hortas nessa tarde, e por João Bispo soubera o
mancebo que á sua namorada fôra concedida a honra
de formar parte do seu cortejo. Em logar do sol
que fazia, podia queimar o dos tropicos, que o mancebo
o sentiria tanto como a aragem fagueira por
sesta do outomno, ou a gellos de hinverno.
O recontro de Leça deixára desassombrada a
cidade,
e os bons burguezes entregaram-se todos aos
cuidados de aprestar as embarcações e mais
soccorros
pedidos pelo Mestre de Aviz, posto em apuros
pelo aperto do sitio e bloqueio. Em quanto o abbade
de Paço de Sousa se dirigia a Coimbra, transtornada,
como vimos, a embaixada do alcaide de Monsaraz,
[116]
as galés vindas de Lisboa e outras do Porto,
já prestes, para não perderem tempo
tinham-se feito
de véla pela costa da Galliza, capitaneadas pelo conde
D. Pedro, lançando contribuições aos
povos que
não queriam experimentar o nosso ferro. Destruido
completamente o Ferrol e queimadas algumas naus,
pelos fins de Junho de novo a frota appareceu nas
aguas do Douro, rebocando umas sete presas, e carregada
de despojos.
Os sinos de todas as torres da cidade balouçaram-se,
atroando os ares; berrou-se em todas as
escalas os vivas do costume, e os edis, no fogo do
enthusiasmo, decretaram uma festa esplendida, como
appensa á de S. João, santo sempre popular e mais
nessa quadra, por ser o do nome do Mestre, que o
povo tinha por um Messias, como diziam os partidarios
de D. Beatriz. A vespera da commemoração
do nascimento do Baptista, morto por ter desdenhado
da dança, devia ser celebrada com danças,
guinolas,
touras, momos e por um vistoso torneio, que
tinha de ser o assombro da terra, pouco affeita a tão
graúdos folguedos.
Desde o amanhecer do dia 23 o campo das
Hortas estava cheio de gente embasbacada para o tablado
levantado na vespera, que alguns operarios cobriam
com tapeçarias, em quanto outros davam a ultima
demão ao circo, ou estacada, adornando-a com
bandeiras, panoplias e festões de ramagem.
Aos gritos e cantigas dos trabalhadores, aos commentos
dos curiosos, ás risadas pouco e pouco se
juntavam os pregões das vendilhonas de fructa, dos
taberneiros, fritadeiras e padeiras, que assentavam
as suas mezas, as suas tendas, ou os carros enramados
por todos os lados, que o circo deixava devolutos,
[117]
e pouco antes do meio-dia era já difficil
mover-se
no campo, apinhando-se além disso um gentio
immenso nos adarves e torres da cidade, por aquelle
lado, e na encosta dos dous montes do Olival
e Batalha. Se até ahi os bons burguezes tinham
aberto a bocca para as tapeçarias onde a agulha ou
a lançadeira traçara os episodios dos contos de
cavallerias,
mostrando o rei Arthur, Amadis, Lisuarte,
Galaor, a duqueza Iguerna, Mabilia, Oriana, Urganda,
Brisena e outras muitas personagens, que para maior
illucidação dos seus feitos e ditos tinham a
sahir pela
bocca o texto da
«illustração»; se ficavam
embellesados
nos grandes pannos de ouro, trazidos da cathedral
para enfeitar o esperavel do estrado das
damas, nos estandartes, onde havia divisas de toda
a sorte, bordadas ou pintadas, mais pasmaram quando
começaram a apparecer os mantenedores das justas,
os improvisados arautos, mestres e juizes de campo,
passavantes, sergentes, menestreis e trovadores,
que para a festa tinham sido igualmente apenadas as
musas.
O Porto, behetria havia muito, entregue todo ao
commercio, quando não se divertia a jogar as cristas
com os seus bispos e a pugnar pelas suas liberdades,
o Porto tinha visto passar os cortejos de alguns
reis e principes; mas de fugida, meios envergonhados,
como o de D. Fernando, ou em som de guerra, e
em devota romagem e peregrinação: cortejo assim,
festa egual nunca se déra, pois nunca, como
então,
se reuniram de muros a dentro tantos e taes elementos:
tinha uma côrte de seu. Os mesteiraes e os
burguezes nesse dia, tão enlevados estavam nas
louçanias
que se desenrolavam, que abriam caminho com a
melhor vontade aos cavalleiros, e alguns mesmo suspiravam
[118]
por que fosse levantado o interdicto a quem
com tanto garbo soffreava um ginete, vestia tão airosamente,
e fazia tão acabadas mesuras.
Tinham as corporações apparecido com as suas
bandeiras, precedidas pelas figuras que davam para
abrilhantar o acto, como na procissão de Corpus:
tinham-se
reunido, amontoado os trajes mais variados, desde
as vestes negras, compridas dos juizes, alvazires e
meirinhos, as jorneas partidas, de panno bristol, de
seda e velludo, os briaes blasonados, as marlotas dos
mouros dançarinos, as olandilhas, as opas dos
foliões
e jograes, os arnezes polidos, espelhando o sol,
adamascados ou tingidos de vivas cores, os vestidos
de brocado, de panno de ouro e prata, os arminhos
e zibelinas das damas e donzellas, a almafega e o
burel de certos momos; casavam-se os preludios de
todos os instrumentos; o arrabil e o tiorba, a charamela
e o clarim, o tambor e o pandeiro, estrugiam,
chiavam, rangiam; mas tudo aquillo dava vida e
animação,
afinava, no meio da sua desafinação, permitta-se
dizer, com o ressalte das côres, que como
em brazão pareciam postas, com os alaridos, as risadas
e os vivas, quando Fernando penetrou no palanque,
onde seu tio, como notabilidade da terra,
conseguira bom logar.
O mancebo, mal entrou, estendeu a cabeça, a
procurar com a vista não os arautos improvisados,
que se pavoneavam de ambos os lados da liça, vistosamente
trajados de branco e azul, com as armas
da cidade bordadas no peito, nem os mestres de
campo, montados já em bem ajaesados corceis, e correndo
de um para o outro lado: foi para o estrado
ou cadafalso das damas. Estava porém cerrada a cortina,
e, que não estivesse, no palanque era tal o
reboliço,
[119]
tanta gente estava de pé, que
não seria facil
descobrir lá alguem, a não estar em logar
eminente.
Mestre Gonçalo Domingues, parte por natural
curiosidade,
parte por desejo de ostentar perante os visinhos,
como os paes costumam, quando se embellesam
nas prendas dos filhos, inquiria a significação
de todas aquellas tapeçarias, e amofinava-se por ver
que o sobrinho mal lhe prestava attenção,
respondendo
de tal sorte, que facil era ver que nem sequer
olhava para o sitio indicado.
De repente notou-se um marulhar de cabeças, e
á algazarra succedeu o silencio. Os alvazires appareceram
no estrado para elles preparado, e em outro,
contiguo ao das damas, os juizes do campo―Ruy
Pereira e Ayres Gonçalves de Figueiredo.
As trombetas soaram; alvazires e juizes tomaram
assento, e depois de feitas as costumadas ceremonias,
um dos trovadores ergueu-se, desenrolou
um pergaminho cheio de illuminuras, e começou em
voz alta a recitar o seu poema, que era nada menos
que um elogio aos guerreiros da espedição
maritima.
A poesia nessa epocha era tida em grande conta, e
as attenções, por tanto, da assemblea voltaram-se
todas
para o bardo. Uma cabeça, uma só se volvia
attenta
para outro lado, e esta cabeça era a de Fernando.
A cortina de cadafalso das damas fora corrida
por dous pagens, e D. Catharina e mais umas
oito damas da nobresa das visinhanças da cidade
tinham apparecido rodeadas pelas suas donzellas.
Os trovadores podiam dizer bocados de ouro sobre
façanhas militares, que as palavras eccoavam como
sons vagos aos ouvidos do namorado moço; os
versos de amores, esses, como se affinados pelo sentimento
que o dominava, ligados por uma corrente
[120]
magnetica, faziam-no sorrir e córar, sem comtudo desviar
os olhos do estrado.
Depois que as palmas de todos os lados, e as
trombetas soaram, quando o vencedor proclamado, appresentando
o seu manuscripto a Gonçalo Pires, escrivão
da chancellaria, com uma corôa de louros, recebeu
em soberba bandeja um bonito sacco de argempel,
rico pelo bordado, e mais ainda pelas boas dobras
que o pejavam, premio votado pela municipalidade,
segundo antigas usanças, appareceu no meio
da liça o mantenedor das justas.
D. Pedro de Transtamara vinha, sobre garrido,
aprimorado, formoso.
Bem fraca figura fazem hoje nas nossas festas
e folguedos, com a esguia casaca preta e a gravata
branca de rigor, os alindados do seculo XIX á vista
da que faziam os nossos avós. Para o namorado de
hoje em dia no baile não ha meio de se distinguir,
de lisongear o amor da sua dama,
como então nos
torneios, nos jogos de cannas e argolas, nos bafurdios
e cavalgadas; não apparecem hoje os vistosos
trajes de seda, ouro e prata, as mangas bordadas,
de honra, as charpas ou bandas, nas quaes em cores
preferidas pela donzella querida se via a tenção
ou divisa, que recordava a ambos um protesto,
uma confidencia, ou descobria um pensamento. O
amor tinha, sobretudo no cavalheiresco seculo a que
transportamos o leitor, um culto, que hoje não tem,
hoje em que arrancaram a aljava a Eros, o facho ao
Hymeneo, e a ambos deram por distinctivo um saquitel
de lona, como a imagem globulosa de bemfeitor
de confraria. (Entre parenthesis, faço aqui
excepção
dos meus leitores: os que são casados, o são
por amor, e os solteiros e as solteiras ainda não deram
[121]
um sorriso, um olhar a dote algum de boa somma,
simplesmente pelo dote e nada mais. São a nata
das creaturas.)
O conde D. Pedro vestia sobre ricas armas de
Toledo cheias de relevos, esmaltes e
embutidos,
um
brial côr de cereja, onde, em vez do brasão
proprio,
havia bordadas chammas de ouro, e no escudo, esmaltado
da mesma côr rubra, e taxeado de ouro,
lia-se a palavra
«
Cuydado» entre
duas palmas, que
enramavam um sol feito de espadas. Um malicioso
notou que o desenho do escudo podia figurar a roda
de navalhas de Santa Catharina, e que a esposa de
Ayres Gonçalves trajava um corpete de tela, da côr
favorita do mantenedor do torneio, adornado com
um peitilho e fraldilhas de arminho; todos poderiam
notar egualmente que, quando, ao fazer caracolar o
seu ginete, o conde deu uma volta á roda do circo,
antes de tomar das mãos do escudeiro que o seguia
o elmo, a lança e o escudo, entre elle e a nobre
castellã se cruzára um olhar expressivo;
porém,
o governador de Gaya mostrava-lhe um sorriso de
agrado, e eram tão sabidos os recentes amores, que
o tinham feito abandonar a côrte de seu tio, que a
maledicencia achava-se um pouco embaraçada nos
vôos.
O mantenedor do campo foi saudado com tanto
enthusiasmo ou mais que o trovador, e da mesma
sorte foram acolhidos, em seguida, os contendedores,
que se appresentaram: Vasco Martins de Mello,
Gil Esteves, Affonso Darga, Henrique Fafes, um dos
irmãos Alvalade, micer Manoel Pessanha, Affonso Henriques
de Transtamara, e outros mancebos, todos tão
adornados e vistosos, que á multidão iam-se-lhe
os
olhos nelles, não sabendo a qual dar primazia. Depois
[122]
das ceremonias do costume e de um bafurdio,
jogo em que cada um mostrava a destreza no arremesso
das lanças, diversão tomada dos arabes,
começou
o combate. Vasco Martins, Henrique Fafes e
Alvalade perderam a sella, não supportando o embate
das lanças; micer Manoel, como mais affeito ao mar
que á terra, ao dar a volta em um dos extremos da
liça, para arremetter contra o seu antagonista, o fez
de sorte, que, roçando pela barreira com o cavallo, o
arremessou este para o outro lado, deixando-o menos
maltractado que a uns dous burguezes, que lhe amacearam
a queda com o corpo.
As damas debruçavam-se curiosas na balaustrada
do cadafalso, e mais curiosas do que as damas as
donzellas de honra e as burguesas, para quem tudo
aquillo era inteiramente novo e de fortes impressões,
como hoje se diria. D. Catharina de Figueiredo, entre
as do seu sexo, era a excepção, como Fernando
entre
os homens. Alguma cousa lhe prendia a attenção,
e essa cousa ficava perto da bancada onde estava
o mancebo. Seguindo a direcção dos olhares
frequentes da bella dama, encontrar-se-hiam as vistas
do sobrinho do forçureiro, e ao primeiro relance
dir-se-hia que se provocavam e comprehendiam.
D. Catharina notara Fernando; notara nos olhos
os reflexos do incendio ateado no coração, e
illudira-se,
como se poderia illudir muita gente. Extranhar
a audacia a principio, podia-a extranhar; porém,
mulher, havia de achar-lhe indulgencia, por virtuosa
que fosse. Não o era. De sangue ardente, fogosa
por temperamento pertencera, demais, á corte de
Leonor Telles; era uma das damas com que a astuta
rainha jogara, para formar partido, cativar a benevolencia
dos cavalleiros a principio um pouco do parecer
[123]
do povo que apedrejara os paços de apar S. Martinho,
e não desdissera depois da escóla em que se
criara. Nos seus galanteios não encontrara nunca um
olhar de adoração como o que interceptava;
Fernando
Vasques fizera-lhe mesmo uma impressão mais
que extraordinaria: fizera-lhe não só, alli,
esquecer
o conde; mas, depois, ainda mais, a distancia em que
estava ella, dama de alta linhagem, de um simples
burguez, um peão.
A illustre dama não contava com Irene, que se
occultava, córando, atraz da poltrona em que se sentava:
o filho do mestre de Santiago não contava tambem
com o sobrinho de Gonçalo Domingues; mas
via claramente que as côres e divisas que tomara
podiam ser taxadas de vaidade, presumpção e nada
mais.
Quando um novo contendor entrou na liça, estava
tão preoccupado o nobre mantenedor, a procurar
quem lhe podia roubar completamente as attenções,
que não reparou que era esse o mais destro de
todos, affeito aos jogos dos arabes de Granada, a
medir-se com os cavalleiros da Africa ao serviço dos
Alhamarides; que era seu proprio irmão, Affonso Henriques.
O moço castelhano, passando junto do conde
guiou tão destramente o cavallo, que lhe roçou
pelas
joelheiras, e dando um geito á lança, na
carreira,
desviou completamente a do seu antagonista
e tocou com a sua no escudo de tal sorte, que o
braço que o segurava, estendeu-se; a mão abriu-se
e aquella arma defensiva foi ao chão. D. Pedro, ao
ouvir os applausos levantados a seu irmão, e com a
cabeça perdida pela distracção da sua
dama, ergueu-se
furioso nos estribos e arremetteu contra elle.
A sua lança desfez-se desta vez em hastilhas no
[124]
arnez do mancebo; porém este não saltou da sella,
e em poucos instantes estava outra vez em frente
do conde. A lucta tornou-se então um verdadeiro
duello, e as regras do cartel apresentado no principio,
consentindo tudo que fosse destresa, e mandando
parar ao primeiro ferimento ou queda, pois
que não era justo que grande mágoa enlutasse
tão
grande festejo, foram despresadas. O conde tinha sido
desappontado nos seus galanteios como homem, e nos
seus brios como cavalleiro. Ás lanças succedeu a
espada; e as espadas como a lança quebraram, amolgando
os elmos, disjuntando e torcendo peças dos
braçaes. Tomaram um a maça, outro o machado, e
furiosos correram um para outro.
O tio de Nuno Alvares Pereira e Ayres Gonçalves
de Figueiredo, estavam tomados de assombro para
intervirem na lacta; os mestres de campo, que a
principio haviam tentado manter com os arautos as
condições do cartel, tinham-se,
embaraçados, por noviços,
retirado para junto das bancadas, e olhavam
uns para os outros e para os juizes, procurando
conselho, que não viam nos olhos de ninguem. Os
espectadores, homens e mulheres, esses applaudiam
os epysodios da lucta.
A massa ressoou na armadura de Affonso Henriques,
e a um rugido, um regougo seguiu-se um
fio de sangue a correr por entre as fendas do gorjal
sobre o arnez. Os contendores tinham-se esquecido
de que eram irmãos. D. Pedro, sobretudo,
estava cego. O brial do conde fez-se em farrapos,
enrodilhado pela machadinha; o ginete em que montava
D. Affonso, ferido na cabeça, apesar de acobertado
de ferro, cahiu na arena levando o cavalleiro.
[125]
Os gritos da multidão, como nos circos romanos,
eccoaram pelos montes visinhos.
―A pé, a pé! gritaram alguns cavalleiros
enthusiasmados,
exigindo a egualdade de combate.
Não foi preciso repetir a exigencia: ou melhor
fôra ella escusada: o conde de Transtamara
lançara-se
abaixo do cavallo, e corria direito para o irmão, que,
já erguido, com o machado no ar o esperava.
―Cavalleiros, cavalleiros! exclamou Ruy Pereira
ao mesmo tempo que Ayres Gonçalves, querendo
sustar o combate.
Os passavantes e o mestre de campo correram para
a arena, porém quando chegaram junto dos irmãos,
um delles, D. Pedro, soltáva um grito doloroso,
e cahia com todo o peso do corpo, fazendo
ranger e estallar todas as peças da armadura.
O guante de ferro que lhe guarnecia a mão direita
estava despedaçado, e despedaçado o pulso. O
sangue tingiu a areia da liça.
―Jesus! se ouviu do lado das damas e depois
uma borborinha correu pela assemblea; pois a queda
do sobrinho do rei de Castella, tomada como o baquear
extremo, produzira no povo uma impressão desagradavel.
Aquelle rumor e assombro fizeram cahir em si
Affonso Henriques.
Os momos que se seguiram ao torneio foram sem
interesse para os espectadores entretidos a commentar
o combate extraordinario dos dous nobres castelhanos.
Se recrearam alguem foi a Fernando Vasques
e a Irene, e pela duração; não por
outra cousa.
D. Catharina não havia tambem despregado os
olhos do mancebo. Ao cavalleiro que a invocára no
torneio, se concedera um olhar, fôra de curiosidade.
[126]
Quando este tornára a si do desmaio em que a dôr
e o sangue perdido o haviam feito cahir, passando
junto delle, ao entrar para as andas em que viera
de Gaya, teve algumas palavras; mas ainda, se não
dirigidas, allusivas ao sobrinho de Gonçalo Domingues,
que tratára de seguir Irene, apesar das
exclamações
do velho forçureiro, pouco amigo de se metter em
apertos, lembrado do desembarque de Ruy Pereira.
―Bello pagem se fizera daquelle mancebo... se
fôra de linhagem! Não é certo, micer
Guilherme? disse
ella.
―Bello pagem! disse o irlandez, que de certo
devia ter achado a festa menos divertida que o recontro
de Leça, e sem mesmo olhar para o joven que
D. Catharina designava com a vista.
Fernando, perto da linda filha de João Ramalho,
mais formosa agora e esbelta com as galas que lhe
consentira a castellã, embellecido o rosto pelo amor;
Fernando não ousára erguer os olhos, e
sustentára
assim a illusão para a antiga donzella de Leonor Telles,
que repetio:
―Bello pagem!
IX.
Garifa.
Cade in tanto dolor, che si dispone
Allora allora di voler morire......
Ariosto―Orland.
fur. cant. V.
Maravilhou a todos o spectaculo
Inesperado...
Que será? disse emfim um rumor surdo
De vozes dos que tremulos pararam...
Garrett―D.
Branca―cant. I.
―Para longe o agouro! Ora esta! dizia, horas
depois do torneio, em Gaya, junto da fonte do rei
Ramiro, a mulher de um galeote.
―Pois que é, tia Dordia? interrogava outra.
―Que ha de ser? Vindo ás vozes do lado do
monte, ouvi fallar em affogado, e bem sabe que o
meu Manoel anda por esses mares!
[128]
―Para longe o agouro, repetiu a outra mulher.
Isto de agouros nem sempre são certos. Fé em
Deus,
que elle fará as cousas pelo melhor.
―Fé em Deus tenho eu; mas bem mau é que em
noite de S. João se ouçam cousas destas! A velha
Mafalda, o anno passado, ouviu, ao passar ao arco de
S. Domingos, fallar em um justiçado, e bem sabe o
que aconteceu ao filho.
―São signaes que cada um traz ao nascer.
Mas ainda não é meia-noite, proseguiu a mulher,
querendo
consolar a senhora Dordia da crença ainda hoje
existente junto da foz do Douro, de que, quando, vespera
de S. João, ao cahir da meia-noite, se procura
um prognostico, ou noticias da sorte de pessoa ausente,
as dão as primeiras palavras de qualquer conversa.
―Deus a ouça, visinha... Deus a ouça; mas
parece-me
que já será: o sete-estrello vai alto!
―Não é, não.
Ólá, João Canhoto, meia-noite
será?
―Não é, tia Luiza. Quer ir saltar as fogueiras?
―Eu não: forças para tal Deus as
déra. O meu
tempo já passou. Quando rapariga!...
―Então deitou ovo em escudella?
―Para que?
―A vêr se lhe sahe arco de egreja, respondeu
o homem, que dava pelo nome de João Canhoto,
rindo.
―A mim agora só se me sahir tumba. Isso é
bom para cachopas.
―Vamos, vamos, tia Luiza; ainda está féra,
rija como um virote, e um noivo agora era mel pelos
beiços.
[129]
―Seu bargante! exclamou a velha, mostrando
no rosto que a mofa do galeote não era inteiramente
recebida como tal.
―Então, ainda não é
meia-noite? tornou a perguntar
a senhora Dordia, bastante impressionada pelo
agouro tomado, para delle tirar o sentido, não obstante
os gracejos dirigidos pelo galeote á sua amiga.
―Qual meia-noite! Ao cantar do gallo toda
a chusma, que anda por ahi, ha de vir em descante.
É uma festa de estrondo cá da gente.
Verá se lá os
da cidade nos levam as lampas! Só violas é uma
meia
duzia, e os rapazes que as tangem são mestres acabados.
É de se abrir a bocca. E o Safio? Se ha por
ahi quem saiba deitar uma cantiga como elle, que
eu beba agua toda a minha vida! O Safio vem no
rancho.
―Então, temos grande descante? interrogou uma
outra mulher.
―É esperar para ver.
―O sitio não é lá dos melhores.
―Dizem que por aqui...
―O que?
―Que em noite de S. João apparece na fonte
uma moura encantada... Ora uma moura de não sei
que rei...
―Bôa, bôa! exclamou o galeote. As mouras
não se vem metter assim com um homem do mar,
por mais tresloucadas que andem. Se ella quizesse
bailar na festa...
―Credo! Não diga isso, que o póde ella ouvir!
exclamaram duas ou tres mulheres ao mesmo
tempo.
―Ai, senhor João, bem se vê que
não é da
terra, e não sabe que é certo o apparecer
ás vezes ahi
[130]
a maldicta. Minha avó, que Deus haja, quando era
rapariga, viu-a, disse a tia Luiza.
―E vi-a eu, vai em tres annos, com estes que
a terra ha de comer, accudiu a tia Dordia.
―E eu, disse outra.
―E eu, exclamaram em seguida mais cinco ou
seis.
―Então, como é a moura?
―Ora como ha de ser a moura? É uma figura
branca, toda branca, muito branca, com os cabelos,
nem fios de ouro, soltos pelas costas; e apparece
a bailar na agua de um para o outro lado...
―Hoje quebra-se-lhe o encanto, atalhou o galeote,
que era para o seu tempo um grande incredulo ouvindo
um desfinar de instrumentos do lado da povoação.
―Alli vem a festa! Lenha para ahi! exclamou
em seguida, dirigindo-se a um rancho de creanças de
ambos os sexos, que saltavam por cima do brazido
deixado pela fogueira.
A festa annunciada não tardou com effeito a apparecer.
Uma grande porção de galeotes, petintaes
e espadeleiros de Gaya e Villa Nova arranhavam em
violas, tocavam tamboril, ou cantavam, fazendo coro, a
canção entoada por um rapaz alto e de ar jovial,
que era nem mais nem menos o Safio apregoado por
João Canhoto. Para se dizer toda a verdade, deve-se
accrescentar que a desafinação dos instrumentos
não destoava das vozes, um pouco roucas, como as de
todos os embarcadiços, e demais ressentindo-se de
brodio feito em tasca.
Uma voz cantava:
Em noite de S. João
Até no mar traiçoeiro
[131]
Accendem anjos ou fadas
Em cada vaga um luzeiro.
E, velas de seda ao vento,
Passa a galé encantada;
Remos de ouro batem n'agua
Ao som de branda toada.
No ceo bailam as estrellas
Bailam as mouras nas fontes...
...........................................
―Jesus! exclamou uma mulher, pallida, com os
olhos espantados, lançando-se a tremer no meio da
festa.
As violas calaram-se, o cantor, que desta vez
dizia versos, que não eram de sua lavra; os coros,
que repetiam no fim de cada estrophe um estribilho
maritimo, calaram-se tambem; os rostos tornaram-se
de finados, como se tornara o da mulher. Esta,
com o braço estendido, designava a fonte de D. Ramiro.
Se vós, leitora, que talvez por mais de uma
vez apregoastes que não credes em muita cousa natural,
quanto mais nas que o não são, visseis o
que Safio e os festeiros de Gaya estavam vendo, a
côr do rosto vos fugira, como a elles lhes fugiu, e
talvez, como a vossa organisação não
é a de qualquer
petintal, um desmaio vos tirasse de sustos.
A lua no extremo da sua carreira, redonda, mergulhava
no mar, marcando nas aguas uma esteira
tremula, de um brilho duvidoso. O disco, meio embaciado
pelos vapores do occeano, podia servir para
uma imagem funebre: dir-se-hia que era o espectro
[132]
do sol. Na outra margem, para o lado da cidade, por
entre fogos vermelhos, appareciam e desappareciam
figuras negras, como possuidas de uma vertigem, de
frenesi, e a aragem trazia nas azas humidas pelo
orvalho, um concerto de rizadas em todas as notas
possiveis da escala, e uma discordancia de instrumentos,
como em ronda de feiticeiras. O rosto tornava-o
negro uma immensa fogueira feita na praia. Os reflexos
da luz davam ao rosto dos marinheiros de Gaya,
tomados de assombro, um todo phantastico, assustador.
Toda esta scena momentos antes era alegre.
Uma só cousa bastára para a transtornar. Entre o
fundo escuro em que se mergulhava a margem opposta,
em consequencia da fogueira que fizera avivar João
Canhoto, e o lanço do rio tocado pelos derradeiros
raios da lua, junto da fonte, á beira da agua, via-se
uma figura branca, indefinida em tudo que não era o
contorno, movel, conforme as oscillações e
intensidade
dos fogos, accesos que parecia, mais do que a pousar
na terra, suspensa do ar, baloiçada por fio invisivel.
Aquella apparição, como transtornára o
aspecto da
scena, como déra aos cantos e aos risos um tom sobrenatural,
tornára immoveis quasi os collegas de Safio.
Se não fosse o movimento que faziam para se
aconchegar uns aos outros, dir-se-hia que ella os havia
petrificado. O suor innundara-lhes a fronte, e o frio
corria-lhes pela espinha dorsal.
A campa do convento de Corpus-Christi dobrou
compassada marcando a meia-noite, e ao mesmo tempo
quasi uma nota plangente vibrou no ar. Marinheiros,
que tinham affrontado a tempestade com
o coração
sereno, que nas galés reaes ouviram
sibilar
os pelouros, sentiram perto do craneo o embate do machado
[133]
no machado tremeram como as folhas dos alamos.
Das mulheres nem fallamos. Todas as orações,
todas as fórmas de esconjuros se lhes embaralhavam
na memoria, e os lábios negavam-se a pronuncial-as.
―Meia-noite, tartamudeou João Canhoto, momentos
antes emprazador de phantasmas, e fazendo
ao soar a ultima badalada o signal da cruz ás avessas.
―Valham-me os santos e santas do céu!
―Jesus! bento nome de Jesus!
O silencio que estas exclamações interrompiam
era tal que se ouvia o respirar não muito
desembaraçado
daquella boa gente, e o terror tambem
era tamanho, que as passadas e mesmo a apparição
de um homem junto do rancho dos festeiros não foi
por elles notada. Daquelle pasmo pasmou o recem-chegado,
mas não por muito tempo.
―Ui, Canhoto, exclamou elle; que mau olhado
vos deu, e em toda essa gente, que tendes cara de
quem viu o trêpo em encruzilhada?!
―Jesus! bento nome de Jesus! repetiram as
mulheres, deitando a correr para o lado da
povoação,
como se a presença daquelle homem quebrára
o encanto de terror em que estavam.
―Ui! tornou elle, que demonio se lhes metteu
no corpo?! Nem bando de cotovias que farejaram
besta armada. Eh! Canhoto, que feio esgar que
estás a fazer! Estás mudo, homem? Aquelles
pergaminhos
velhos de saias que fugiram a grasnar eram
bruxas? Em noite de S. João...
João Bispo, pois era o nosso conhecido o recem-chegado
calou-se, e recuou espantado, fitando
um gesto dos galeotes de Gaya a apparição
phantastica
que os atemorisára, e quasi ao mesmo tempo
[134]
dous gritos se confundiram com o baque de um
corpo no rio. O phantasma branco, a moura encantada
durante a enfiada de perguntas de João Bispo,
approximara-se da margem do Douro, erguera os
braços ao céo, como em supplica, e precipitara-se
na
corrente. Durante este movimento o bésteiro reconhecera
naquelle vulto um ente querido, e ao grito,
soltado como em adeus extremo ao mundo, juntara-se
outro de angustia tambem. O pasmo produzido
pelo reconhecimento feito em taes circumstancias não
foi longo, porém; ao baque na agua do corpo da
moura seguiu-se outro, o do bésteiro.
―João! João! exclamaram alguns galeotes
perplexos;
sem saber como traduzir na sua intelligencia
o passo do condiscipulo de Fernando.
João não ouviu sequer aquelles gritos.
―A moura saltou ao rio! disse um espadeleiro,
que se attrevera a procurar com a vista a causa do
terror geral.
―Foi para casa de
Brazabu!
redarguiram dous
ou tres, tomando de um folego o ar necessario para
cem homens, e limpando com as costas da mão
o suor frio que lhe banhava o rosto.
―João! João! tornaram os que mais perto estavam
da praia.
―Arrastou-o a maldita. Não viram os olhos que
ella deitava. Eram dous luzeiros.
―Guay delle! Aquillo não era moura; era o
tinhoso, resmungou o espadeleiro, fazendo o signal
da cruz, o vigessimo talvez nessa noite.
―A modo que sim, tio Vasco. Cheira aqui a
não sei que.
―Olhem! olhem! disse com voz abafada outro
marinheiro, que se attrevera a approximar-se da margem,
[135]
e de novo recuára atterrado. Olhem! olhem!
Não veem na agua aquelle marulhar? A moura filou
o bésteiro.
―A Virgem santa seja com elle! murmuraram
tres ou quatro a um tempo, dando o nosso homem
como perdido de corpo e alma.
No rio, mesmo na esteira que prateava a lua,
com effeito apparecia e desapparecia, para de novo
surgir á flor d'agua, um vulto, a bracejar. De uma
das vezes não veio só. O vestido da moura
alvejou,
tocado por um raio de luz, e a crença, dos marinheiros,
de que João Bispo era arrastado por um espirito
ou pelo demonio, mais se confirmou, levando-os
a novos esconjuros. O bésteiro sobraçando o
corpo e segurando com os dentes as vestes da infeliz,
embaraçado nos movimentos, luctava com a corrente
afim de alcançar a margem.
―A mim! a mim! gritou elle de uma das vezes
em que veio ao lume d'agua; porém os marinheiros
olhando espantados uns para os outros não
se moveram em seu auxilio.
―S. Pedro seja com sua alma, murmurou o velho
Vasco, recuando ao passo que o bésteiro se approximava
da margem, um pouco escarpada naquelle
sitio e então mais do que hoje. Que se apegue com
a Virgem, não com a gente, que nada póde com
encantos.
―Oh de terra! soccorro, por Deus, que se me
fina esta desgraçada! tornou João Bispo com uma
inflexão
de voz, que denotava o desespero que ia naquelle
coração.
Safio e Canhoto, por um impulso sobre o qual
nem tempo tiveram de reflexionar, correram á
praia. Safio approximou-se da rocha junto da qual
[136]
o bésteiro se debatia, segurando sempre a mulher
de branco.
―Uma mão a esta pobre, que já mal respira.
―É uma rapariga! exclamaram os dous marinheiros,
estendendo os braços a segurar aquella que,
momentos antes, tomavam todos por um ente sobrenatural.
Os petintaes, galeotes e mais festeiros pouco a
pouco se tinham approximado, ouvida esta
exclamação,
e vendo que se não tratava de mais do que
de arrancar á morte uma creatura, o exemplo de Safio
e Canhoto foi seguido, e, instantes depois, João Bispo
a depositava em terra a sua preciosa carga.
De novo reinou o silencio. Os marinheiros atordoados
com as sensações diversas experimentadas em
tão curto espaço de tempo, formaram roda ao corpo
da mulher, que inane, desmaiada haviam conduzido
para junto de uma fogueira, e deitado sobre um
monte de trevo, alfombra improvisada das moças da
terra, dispersas pouco havia. João Bispo com o olhar
fixo, espantado, as mãos pendentes, os lábios
entreabertos
contemplava o rosto da moura, pois moura era
a desfallecida. Parecia ter-se-lhe apagado completamente
da memoria o que acabava de se passar: o
corpo alli prostrado era uma surpresa. De repente
deu um grito; lançou-se de joelhos junto da moura,
tomou-lhe a cabeça no regaço, e palpou-lhe as
faces
e o seio, a vêr se encontrava o calor da vida, e,
curvando-se, entre carinhos, como se com elles a
quizesse acordar daquelle lethargo, exclamou:
―Garifa! Garifa!
Garifa não respondeu. Os lábios contrahidos,
lividos, perdido o fogo que animava aquelle rosto moreno,
quando, pelas grandes festas, nas danças e
[137]
folias, com que as da sua raça contribuiam, fazia
girar sobre a cabeça o adufe, ou agitava os cascaveis
que lhe adornavam o curto saio; os olhos cerrados;
as longas cilias cheias de gotas d'agua, como se a
morte a surprehendesse entre prantos, nem um suspiro
desprendia; nem um movimento, por leve que
fosse, se lhe notava.
―Morta! tornou a meia-voz, atterrado, o bésteiro,
tirando do cinto o punhal, e chegando-lhe a
folha aos lábios depois de a ter limpado.
Um raio de luz, um raio de alegria passou pelos
olhos do magoado amante, quando o fraco alento da
moça formou uma mancha na folha luzidia.
―Garifa! Garifa! tornou elle a exclamar.
―É viral-a de cabeça para baixo! resmungou
o velho Vasco; é a mésinha dos afogados.
―Garifa... minha pobre Garifa! murmurava o bésteiro.
―Safio, chega-lhe vinho; um trago não lhe fará
mal, gritou João Canhoto; e em seguida, tomando o
pichel que o seu companheiro trazia á cinta, derramou
algumas gotas sobre os lábios da desfallecida
moça, ao passo que este resmungava, vendo correr
o licôr a que não parecia
desaffeiçoado:
―Boa cera com ruins defuntos!
João Bispo lançou-lhe um olhar terrivel,
e fez
um movimento, como se tentasse desafogar em cólera
contra o imprudente marinheiro todo o peso do
coração, e estallar, quando Garifa moveu os
lábios
fazendo um gesto de repugnancia.
―Basta, Canhoto, basta! acudiu Safio, que não
reparara no bésteiro; vais fazer perder a alma á
rapariga.
No céu dos mouros... que é o inferno,
accrescentou por entre dentes... não entra quem prova
do sumo da uva, ouvi dizer.
[138]
O bésteiro arredára
Canhoto, e, com um braço
debruçando-se sobre o corpo da sua namorada, tomava-lhe
as mãos entre as suas, quando ella abriu
os olhos, murmurou algumas palavras inintelligiveis,
e tornou a fechál-os, soltando um suspiro.
―Garifa! Garifa! tornou a exclamar o amigo
de Fernando.
―Quem me chama? perguntou a moura, como se
acordára de um somno, com voz fraca, descerrando de
novo as palpebras, e fazendo um esforço para se erguer.
―Eu, eu, Garifa! acudiu João Bispo cheio da alegria.
―Porque me não deixaram morrer? murmurou a
filha de Humeia cobrindo o rosto com as
mãos.
―Morrer, Garifa?! E que querias depois que
eu fizesse no mundo! exclamou o mancebo affastando-lhe
com brandura as mãos do rosto. Que faria
eu? proseguio... Morrer... morrer tambem!
A moura meneou a cabeça; fixou a vista, como
admirada no besteiro; estremeceu toda, e dos olhos
rebentou-lhe o pranto ao mesmo tempo que os soluços
do peito. João Bispo, que, em alguns minutos
apenas experimentara os mais contrariados affectos,
a extrema dôr e a alegria, redobrou os seus carinhos,
as palavras affectuosas; mas as lagrimas continuavam
a correr em fio dos olhos de Garifa.
―Garifa, minha Garifa, porque choras? Deixa
esse pranto com que me amofinas. Eu estou aqui,
Garifa, e ninguem nos ha de agora separar. Tu cumpres
a tua promessa... e teu pae, que não espera já
vêr-te...
―Oh, meu pae, exclamou a moça interrompendo-o,
e de novo cobrindo as faces; com que rosto
lhe poderei eu apparecer?!...
[139]
―Elle perdoará tudo, Garifa; esquecerá tudo...
e que não perdôe, eu...
―Nem elle, nem tu; João... Oh! porque me não
deixaram morrer!
―Eu? Garifa? Eu não te entendo...
Que
mal
me fizestes? porque te hei de malquerer?...
João Bispo estacou, e de um salto ficou de pé.
O que se passara causara-lhe um violento abalo, para
dar logar a reflexões, e esquecera-se de que a mulher,
que assim tentava pôr termo á vida, tinha, duas
semanas havia, desapparecido; esquecera-se do que
lhe dissera o petintal e das suspeitas que o levaram ao castello de
Gaya. Tudo, porém, resumido em uma idea
unica acabára de lhe passar pela mente.
―Rausada?! exclamou, abaixando-se a arredar-lhe
de novo as mãos das faces, procurando vêr
se dos olhos mais depressa do que dos lábios obtinha
uma resposta.
A moça só redarguiu:
―Porque me trouxeram á vida... porque?
―Rausada! tornou João, passando uma das
mãos pela fronte, em quanto com a outra apertava
o cabo do punhal. O nome desse homem, e pela hostia
consagrada juro que dentro em dias o repetirão
em resa de finados. Falla, Garifa: o nome desse homem?
Vilão ou cavalleiro que seja, eu me pagarei em
sangue de quanto elle me roubou. Garifa, Garifa!
Soluços e lagrimas foi a resposta que obteve da
filha de Humeia.
―Garifa, não respondes? Dize... dize que não
te pozeram mão, dize, proseguiu o mancebo fóra de
si; livra-me desta idea que me faz perder a cabeça;
livra-me della ou aponta-me um homem em quem
desafogue todo o desespero que sinto. Tu não me
[140]
atraiçoaste, não; não era possivel...
Empregaram a
força; empregarei a força, e hei-de esmagar quem
quer que seja o rausador. Garifa, não respondes?
Uma palavra!
―Que queres que te diga, João? Esmagaram
o nosso amor, tornando-me indigna de ti: a filha de
Humeia não póde mais apparecer com a face
descoberta!
―E o refece, o maldito?! gritou o bésteiro
apertando com violencia os pulsos da moura.
―A aguia vôa tão alto que não a
alcança a garrocha,
murmurou meneando a cabeça, depois de alguns
instantes de silencio, a namorada de João Bispo.
―Quem foi, Garifa, quem foi?
―Deixa-me, João.
―O nome desse homem!... o nome desse homem!
―Não, não posso.
―Não pódes?...
―Não, não posso: dizer-te o nome era fazer-te
açoutar ámanhã no pelourinho... era
matar-te...
―Ayres Gonçalves... Henrique Fafes!... gritou
João Bispo.
―Não... não m'o perguntes...
―Qual delles, Garifa; qual delles? Affonso Darga?
―Ninguem!
―Ninguem?! O nome desse homem, ou tu és
tão vil como elle!
―Serei, João... sou. A moura do Olival, que te
queria tanto como á luz dos olhos, morreu no dia
em que lhe pozeram uma mordaça na bocca e ataram
os pulsos: atiraram depois o corpo ao monturo...
como de moura que era. Garifa morreu, João:
[141]
o que aqui está é uma desgraçada
corrida por palafreneiros...
a quem a lançaram...
―Calai-vos, calai-vos! exclamou o moço bésteiro,
pondo a mão na bocca da sua namorada. Não
póde ser... é impossivel!
―Antes fôra!... murmurou Garifa.
―Em má hora vim ao mundo!
João Bispo calou-se e deixou pender a cabeça
sobre o peito. Quando de novo a ergueu, as palpebras
estavam vermelhas, mas seccas; os olhos vagavam-lhe
incertos; o rosto estava pállido, e uma
contracção
nervosa dos musculos parecia emagrecer-lhe,
avelhentar as feições. O amigo de Fernando
Vasques,
occultava sob as vestes grosseiras um grande
coração,
cheio de fogo, de energia, e toda essa energia empregára-a
no amor da filha de Humeia. A moura
do Olival era tambem a unica mulher que topára no
seu trilho capaz de não esfriar essa paixão.
Não prendia,
não captivava sómente com a bellesa do corpo;
captivava com os dotes do coração, da
intelligencia.
Garifa tivera na infancia faixas bem superiores ás
telas grosseiras dos vestidos que trajava no Porto.
Para corresponder á exaltação, que a
vida ociosa e
ao mesmo tempo cheia de sobresaltos e de incertesas
produzia na mente do escolar de S. Domingos,
era necessaria a exaltação do sangue arabe,
fervente
nas veias de Garifa. É facil de avaliar qual o abalo
que o mancebo recebeu no caes de Gaya. Aquella
desventura, receara-a, temera-a; mas não se afizera
á
idem de que se realisásse; achára sempre a
providencia
a estender a mão á sua namorada, a protegel-a.
Na maré mais negra seguindo-a com o pensamento,
depois que ella desapparecera do Olival vira-a morta;
mas se encontrasse no Douro o seu cadaver, a mágoa
não fôra tamanha como a que sentia.
[142]
Mesteiraes e marinheiros fitavam commovidos
os dous amantes, que se conservavam mudos affastando
as vistas um do outro: João de pé, sombrio,
pensativo; Garifa de joelhos, lacrimosa, tremulla, branca
como a roupa que vestia por baixo do roto gabão, que
um marinheiro lhe lançara aos hombros.
―Rausada! murmurou passados momentos o
mancebo, sacudindo a cabeça, como se assim podesse
repellir aquella ideia.
Depois, estendendo a mão á pobre moura, ajuntou:
―Vem, Garifa; já não sou tambem o mesmo que
era. Vem commigo.
A moça, levada pela solemnidade da voz e do
gesto do mancebo, e ajudada por elle, levantou-se
machinalmente, e com passos mal seguros, seguiu-o,
perdendo-se os dois na escuridão da estreita rua
que guiava ao povoado.
Os marinheiros ficaram olhando uns para os outros.
―Pobre rapaz! murmurou um delles.
―A rapariga era a que chegou a noite passada,
quasi nua e toda magoada á taberna do tio Pero,
e que elle abrigou por caridade, e livrou de dous
mal encarados que a seguiam.
―Deu-me os seus ares della.
―Era a mesma, sem tirar nem pôr.
―Mal a puzeram em terra, conheci-a: era a
moura do Olival.
―Coitado do Bispo, resmungou o velho Vasco.
Bem enfeitiçado o traz a tal moura. Estas condemnadas
teem taes artes, que, se vos lançam olhado,
fica-se perdido de todo. Teem feitiços para tudo.
Um rapaz conheci eu no meu tempo, que se myrrou
[143]
de todo, e morreu por causa de uma destas maldictas.
Em casa da rapariga, uma moura, e linda até
alli, encontraram uma figura de cera feita a imagem
d'elle com os olhos pregados, e um alfinete enterrado
no sitio do coração.
―Qual feitiço, nem meio feitiço! resmungou
João Canhoto.
―Não acreditas! accudiu outro mesteiral. As
mouras todas sabem de feitiçaria, e quando querem
querem que um
homem lhes queira,
a ellas ou
a quem isso lhe pede, apanham um sapo, e cozem-lhe
os olhos.
―Não digo que se não façam desses
maleficios;
mas a rapariga do Bispo...
―Homem, é moura e basta.
―Moura ou christã, se enfeitiçava, era com os
olhos. Não precisava de outra cousa, accudiu João
Canhoto. A bôa gente vi ficar de bocca aberta para
ella, este anno ainda na procissão de Corpus, e depois
não tem sido nem a um, nem a dous senhores
de alta linhagem que tenho visto seguil-a, todos requebrados.
A um dos que está no castello ainda
ha semanas encontrei em seu alcance pela aljama,
era já noite cahida. Não disse nada ao Bispo, por
que elle faria alguma!
―Feitiços, feitiços, para nos perder a alma,
resmungou o velho.
―Ora, mestre Vasco! Tambem enfeitiçou ella a
quem o poz naquelle estado? A pobre, que se queria
finar por se vêr assim, é porque não
foi por sua
vontade que a tiraram de casa. Christãs conheço
eu,
como as palmas das mãos, que não a valem. Se
mestre Vasco estivesse mais novo, e ella lhe dissesse
palavras de bem querer...
[144]
―Credo! era um peccado!
―Deus me perdôe; mas eu não o tenho por
peccado; se o é, muita gente pecca.
João Canhoto não deixava de dizer a verdade:
as mouras por aquelles tempos roubavam ás
christãs
bastantes corações, tanto de nobres, como de
peões,
o que as obrigava a crêr em poderes occultos, para
não se confessarem derrotadas nos encantos. Nos
paços
dos cavalheiros e ricos-homens, muita descendente
de Agar, forjava dos ferros que lhes lançára a
escravidão
cadeias para os seus senhores: nas cidades
as mais jovens e formosas eram como Garifa forçadas
quasi a mostrarem as suas graças em publico
nas grandes solemnidades: eram as bailarinas da epocha,
e as bailarinas teem feito dançar muita cabeça
desde Herodiade até aos nossos dias. Os escrupulos
do velho Vasco não eram partilhados senão pelos
que
se viam no seu estado. Os legisladores, entretendo-se
a impedir relações ou
ligações entre as duas raças com
penas mais ou menos sevéras, não quizeram, ao que
parece, mais do que deixar prova de que ellas eram
um pouco frequentes, e que já então se faziam
leis
para ficarem letra morta, salva uma ou outra
excepção
feita com algum pobre de Christo. Nos
principios
do
seculo XVI ainda apparecem trovadores, que,
apregoando o seu affecto por descendentes de Azharat
e de Shobeia, não nos deixam ficar por mentiroso.
Para crédito das nossas avós christãs,
attribuamos
a maior recato dellas, as conquistas das moças
do Islam. O leitor, comtudo, não fique pensando
que estas não tinham sobre a virtude, sobre o
pudor e sobre o amor ideas
identicas ás professadas
por aquellas. Garifa não era uma
excepção unica feita
[145]
para João Bispo: as ideas com que hoje são
creadas
as mulheres no Oriente, não eram as das mulheres
arabes de Hespanha. Com pequenas excepções, o
amor
no seculo XIV tinha em Granada as mesmas leis que
na côrte da condessa de Champagne.
O leitor poderá agora dizer-nos o mesmo que Safio
a Vasco e João Canhoto:
―Deixemo-nos dessas cousas.
O marinheiro accrescentou:
―Vamos: a noite de S. João é para descantes
e folias! Venham as moças para o terreiro. Eia!
mãos á obra: avivar as fogueiras e tanger as
violas, que
as cachopas acudirão! Ehuh! Mafalda! Joanna!
Pouco depois ninguem diria que na praia da velha
Cale se tinha passado uma scena de lagrimas; que uma
pobre rapariga tentára pôr termo aos seus dias;
que um
coração se despedaçára. Um
bando de raparigas, de marinheiros
e mesteiraes, dando as mãos uns aos outros,
dançavam, ou melhor, giravam, formando circulo,
em volta de uma grande fogueira, e entoavam todos
esta cantiga, que os musicos da festa faziam por
acompanhar:
«Todas as hervas são bentas
Em noite de S. João
Só o trevo, coitadinho!
Anda a rasto pelo chão.»
E o sol, nascendo, ainda os encontrava no mesmo
local.
X.
Uma idea.
Não falta com razões quem desconcerte
Da opinião de todos na vontade.
Em quem o esforço antigo se converte
Em desusada e má deslealdade.
Camões.
Lusiad. Cant. IV.
Os burguezes do Porto tinham desempenhado a
sua palavra: os navios promettidos estavam a nado
nos aguas do Douro, promptos para dar á véla. Os
cavalleiros e ricos-homens nem todos procediam do
mesmo modo; o fogo do amor da patria era em alguns,
tibio, em outros nullo. Ayres Gonçalves de Figueiredo
[148]
era deste numero. Approveitara os conselhos
de sua mulher, e fazia todo o possivel por aguardar
que a situação se definisse para entrar com
segurança
na contenda. Martim Gil, mandado pelos portuenses,
ao conde D. Gonçalo, delle recebera uma resposta favoravel,
depois de feita, entende-se, a concessão das
terras da rainha D. Leonor a sua mercê, e a das de
Lordello e Bouças seu filho D. Martinho, fóra
outras miudesas, taes como dinheiro e peças de panno;
porém o conde adiava, sob pretexto de aprestes, a
sua partida, quanto lhe era possivel. O Mestre lembrava
continuamente os apuros em que estava a sua boa
cidade de Lisboa; mas os nossos homens não se queriam
metter tambem nelles, sem a certesa de bom resultado.
Ayres Gonçalves tinha os olhos no conde de Neiva;
Affonso Darga e outros cavalleiros aguardavam a
resolução
do alcaide de Gaya. Ruy Pereira, no entanto,
enfastiara-se de tanta delonga, e tendo Alvaro
da Veiga, Luiz Giraldes e Domingos Pires lembrado
que se enviasse a armada receber o conde á
Figueira, o alvitre fôra acceite, com grande
amofinação
dos Fabios politicos, que trataram logo de procurar
embaraços á sua realisação.
Uma circumstancia os favoreceu.
Quando, pouco depois do S. João, a municipalidade
tratava não só de abastecer as galés,
mas até de enviar
alguns viveres para os sitiados, como fôra requerido,
alguns companheiros de Fernando Affonso de Zamora,
deslembrados da lição dada em Santo Thyrso, ou
outros aventureiros similhantes appareceram nas visinhanças
da cidade. Mal a noticia se espalhára, frei
Garcia fora ter com Pedro Choca, e causára
nas tercenas um alvoroço extraordinario, pintando
as cousas o mais feias possivel. Este alvoroço,
graças
[149]
a outros individuos, se tornou contagioso; o temor
calou nos animos fracos, e na tarde desse mesmo
dia nas ruas, terreiros e praças
lamentações
não faltavam.
―Eis de novo esses malditos gallegos! más
terçães
os colham! dizia um mercador. Não nos deixam tomar
folego os hereges, e em bem mau estado vão já os
negocios. O tempo vai bom para espadeiros; que os
outros não veem pogea. Tudo são guerras, agora, e
desordens. Dantes não era assim. No tempo do rei
D. Pedro!... suspirou o bom homem, e concluiu meneando
a cabeça, e fitando os olhos no tecto da loja.
Este gesto queria dizer que no tempo do pae do
Defensor a paz florescia na terra, e era, talvez, copiado
de outro identico, feito pelo senhor seu progenitor
quando o amante de Ignez de Castro talava o Douro e
o Minho, e mesmo de algum feito por seu avô, affectado
pelas desavenças de D. Diniz com o pae do rei
D. Pedro.
―Não foram bem sangrados, e veem por mais
esses castelhanos ou acastelhanados, redarguia um visinho;
pois terão o seu escote, como o teve o de Zamora
e o arcebispo.
―Mal haja quem mal faz!
―Ruy Pereira, Ayres Gonçalves, ou qualquer
os receberão como merecem.
―Assim creio; e por isso, como me dizia ha
pouco mestre Lourenço, é que não acho
muito acertado
mandarem para Lisboa quanta bôa lança ha por ahi.
É dever acudir ao proximo; mas em primeiro logar
estão os da casa.
Quasi todos os dialogos, travados em diversos
pontos appresentavam, espremidos, o mesmo succo
que o do bom mercador quando pelo lado das
[150]
Hortas entrava uma grande manada de bois, e rebanhos
de ovelhas e cabras, destinados ao abastecimento
das galés. Alguns ociosos, encontrando-se com
a manada fizera-lhe cortejo; alguns mesteiraes, vendo
os ociosos, pousaram a ferramenta e engrossaram-no;
os garotos, que possuem o faro dos grandes
ajuntamentos, conhecendo que se formava um,
surdiram de todos os bêcos, para o completar. Ao
chegar o gado a S. Domingos, caminho das tercenas,
onde deviam os carniceiros preparar as carnes,
a procissão era solemne pelo numero. A ideia
que presidia a todas as lamentações ia ser
formulada de
outra sorte: frei Garcia e alguns outros apaniguados
do alcaide, achavam-se entre as turbas; Pedro Choca,
desembocára do lado da Esnoga, sahido de uma taberna,
onde, junto com individuos que deviam estar
debaixo da jurisdição de Tello Rabaldo, tinha
enxugado
algumas medidas de vinho, e não era pelo menos
destituido da manha necessaria para certas empresas.
Se o concurso era grande, tambem era ruidoso.
Os conductores da manada gritavam, vendo que uma
ovelha tresmalhava, picada por algum rapaz travesso, ou
um boi estacava, atemorisado por negaças; os homens
d'armas da escolta praguejavam no meio de
tantos embaraços; aqui uma mulher queixava-se de
que a pizavam; além alguns homens altercavam com
os bésteiros, que os repelliam do transito; mais longe
chorava uma creança. Os garotos e os vádios
praguejavam,
gritavam, riam-se, assobiavam, cantavam e
imitavam o balido de ovelhas e cabras, e o mugido
dos bois, como se os animaes se recusassem a tomar
parte naquelle concerto.
Entrando no terreiro a multidão, crescera a algazarra.
[151]
Uma chusma de homens cobertos de andrajos,
bem similhante á que estacionava no Olival,
no dia da chegada da mensagem, correra para as boccas
das ruas que iam dar ao rio, obstruindo-as
completamente. Quando os guardas dos rebanhos quizeram
abrir caminho para as tercenas, os vadios
demonstraram
a sua má vontade com apodos a que responderam
os acontiados da behetria com os contos
das azevans, ou as béstas, manejadas em ar de clava.
Nesta destribuição de pancadas foram, como
succede muita vez em casos taes, contemplados bastantes
innocentes. Um bésteiro, querendo chegar a
um velhaco, feriu no rosto uma mulher, levada para
o centro do motim pelas ondas de povo. O sangue,
correndo pelas faces da
pobre creatura,
indignou alguns
circumstantes, que só a curiosidade alli trouxera.
―Fazei praça, exclamou d'entre elles um burguez,
fazei praça, mas com tento. Guardai os virotes para
castelhanos
escismaticos. Em recontro ou batalha talvez o
braço não ande tão destro.
O acontiado fez um gesto como de quem ia empregar
syllogismo contundente; mas a prudencia o aconselhou
melhor, e contentou-se com redarguir:
―Cuidai no vosso mester, bom homem, e deixae-me.
Onde pozeram a mira estes velhacos sei eu.
Não lhes passa ha mezes pelas goelas bocado de cabrito,
e querem fazer bôdo com algum que filem.
―Olha o outro! gritou um petintal. Se não
comemos cabrito todos os dias, comemos pão; mas
amassamol-o com o nosso suor: não o vamos roubar
pelas padeiras. Os tagantes do aljube ainda teem
a pelle de dous dos vossos! Nós não nos servimos
das adagas para cortar escarcellas de mercadores
encontrados fóra d'horas.
[152]
―Muito nos custa a viver! acudiu uma gôrda
cidadôa,
e mais custará agora que levam todo isso para
Lisboa.
―E não parará ahi, disse um dos companheiros
de Pedro Choca do meio da turba: vai quanto
mantimento se encontra pela redondesa e ha na
cidade.
―Se os de Lisboa estão cercados pelos de Castella,
que façam como fizemos em Leça: se por
lá
estão minguados de mantimentos, tambem não nos
sobejam.
―E os do arcebispo ainda não foram desta
tão malferidos, que não possam voltar, disse uma
voz.
Alguns corredores teem sahido de Braga.
―É verdade, é verdade! berraram ao mesmo
tempo dez ou doze mesteiraes. Os de Lisboa que se
avenham como poderem.
―Teem braços como nós.
―E não havemos de finar-nos á mingua. Os
mercadores mandam boas dobras.
―E a prata da Sé vai tambem!
―Já os alvazires carregaram uma galé de armas,
e de Coimbra e Montemór vieram outras.
―Que se contentem com isso, e com o biscouto
e farinha que embarcaram!
―Deixai que não faltará, louvado Deus,
mantimento
na cidade, embora levem tudo isso ao Mestre.
―Fallais assim redarguiu um dos queixosos,
voltando para o ordeiro, que proferira estas ultimas
palavras, porque se um pão de praça vos custar
dous reaes brancos, tendel-os na arca! Nem mealha
deixaremos embarcar.
―Nem mais tanto como uma unha negra!
Este dialogo, ou esta scena, que se passava ao
[153]
pé do arco, como nas tragedias antigas tinha o seu
côro n'uma gritaria descompassada de que seria difficil
dar uma ideia. O que sobresahia no meio de
tudo, eram os
vivas e os
morras.
Se se perguntasse
a cada um dos coristas em separado porque
davam essas vozes, nenhum talvez vol-o diria,
a não ser que confessassem que sentiam a necessidade
de gritar, e que na falta de melhor cousa,
aquellas palavras serviam perfeitamente para tudo:
enthusiasmavam, animavam o tumulto, e de mais
apregoavam que eram muitos bons patriotas. Os
vivas eram ao Mestre; os morras aos scismaticos:
levar a mal aquella berraria, ninguem podia levar.
Do lado opposto a algazarra era a mesma, com
pequenas variantes.
Os conductores de gado e os guardas embrulhados
pela chusma não tratavam já senão de
se deslimdarem
della, e de acudir aos rebanhos.
Alguns amotinados tinham, para desembaraçar
o terreiro, conduzido a maior parte do gado graúdo
para as azenhas: ovelhas e cabras, essas corriam
em todas as direcções. Para cumulo da
confusão,
quando Pedro Choca e os seus companheiros persuadiam
o povo a que se dirigissem ao paço episcopal
ou á casa do municipio, dous touros, enfurecidos ou
assustados pelo ruido e negaças d'alguns garotos, tinham
aberto caminho para o lado da Esnoga, derribando
e maltractando algumas creanças e mulheres.
A culpa do desastre era dos amotinados; mas
todos elles á uma tinham procurado origem mais remota,
e lançaram aos vereadores e bons homens que
tinham ordenado a remessa dos mantimentos. Um velhaco
lembrara-se de juntar aos «morras» da ordem
um aos «alvazires, que queriam matar o povo á
fome»
[154]
e entre multidão, mesteiraes, que horas antes teriam
dado a sua ultima pogea, se para sua senhoria
lh'a pedissem, repetiram aquelle grito.
Uma voz ampliou-o:
―Morram os traidores, que querem dar cabo da
arraia miuda para entregar a cidade aos de Castella!
―Morram os traidores! uivou a chusma.
E apparecia já o alvitre de se ir em procura de
alguns alvazires, e até mesmo de os tractarem como
ao arrabi-menor, quando dois daquelles appareceram
no terraço do arco de S. Domingos. Ruy Pereira, que
vira rebentar o alvoroço, mandara-os chamar e a alguns
bons homens para que socegassem os animos
como podessem. O tio de Nuno Alvares, a principio
tivera, ao ouvir o arruido, vontade de baixar ao terreiro
e cortar naquella villanagem, que de cabeça
tão levantada, insolente e turbulenta trazia o Deffensor;
mas, apenas mandara sellar o seu cavallo,
a reflexão lembrou-lhe a inconveniencia de um tal passo,
e a reminiscencia poz-lhe diante dos olhos os tumultos
de Lisboa e Evora e tantas outras terras do
reino. O mensageiro do mestre, contentou-se, pois,
em desabafar em pragas, em dar duas grandes punhadas
sobre a mesa, e desappareceu pelo lado da cerca
do convento onde pousava, para não se ver obrigado
a aturar o bom povo, deixando as authoridades
municipaes em apuros. Não eram fortes em rhetorica
os bons homens, e a pouca que lhes concedera
a natureza fugira assustada.
Os velhacos, dando por elles saudaram-nos
com uma ladainha de apôdos que faria pasmar
ao leitor pela quantidade e pelo desusado.
A arraia do terreiro tinha grande vantagem sobre
[155]
os burguezes do arco: para o attaque bastavam
palavras soltas, ou mesmo gritos inarticulados; para
a defesa, para satisfazer as exigencias de Ruy Pereira,
era necessario um discurso, pequeno ou grande,
mas um discurso.
Os alvazires e mais cidadãos que os acompanhavam,
depois de se empuxarem e acotovellarem uns
aos outros, por bom espaço de tempo, tinham resolvido,
ou antes forçado o mais bojudo e o mais
endinheirado d'entre elles a tomar a palavra, e o nosso
homem depois de um gesto bastante solemne feito
ao bom povo; depois de tossir e escarrar, como o
faria, ao encetar um sermão, o frade mais sabedor do
convento de a pár, balbuciára uma ou duas duzias
de
palavras. É de crêr que fossem boccados de ouro;
mas
asseverál-o ninguem, a não serem os collegas, o
poderia
fazer, pois, quasi nada perceberam no terreiro os que
lhe quizeram prestar attenção. Uma grande parte
não
lh'a dava, e continuava a formular as suas queixas
ou accusações.
―Querem dar cabo do povo, e entregar a cidade
aos de Castella!
―Morram os traidores!
―Morram os scismaticos.
―Amigos, tornou o alvazir levantando a voz,
logo que a tempestade popular serenou mais; o Mestre
nosso regedor e defensor se encomendou ás vossas
boas lealdades, e vos mandou dizer que, como este
reino andava todo revolto com desvairadas
tenções...
―E bem desvairadas são as que tendes! exclamou
cortando a palavra ao orador, um amotinado,
pouco reverente para com o plagio da mensagem de
Ruy Pereira, de que em apuros aquelle se valera.
O pobre homem, olhou em torno de si espantado;
[156]
limpou o suor, que lhe corria em bagas pela
fronte; tossiu de novo; poz a mão no peito para tomar
um ar mais solemne, e começou novo aranzel:
―Todos vós sabeis que esta cidade levantou
voz pelo Mestre...
―Viva o Mestre! Alcacere por sua senhoria!
gritou a chusma...
―Todos vós sabeis, repetiu o alvazir, que esta
cidade deu voz pelo Mestre, que jurou defender-nos
e amparar-nos, e tambem sabeis que el-rei de Castella
veio sobre Lisboa com toda a sua gente...
―Morram os castelhanos! gritaram do terreiro.
O illustre orador, como hoje lhe chamariam, se
ele vivesse, as gazetas, orgãos ou respiradouros do
partido em que se tivesse lançado; o illustre orador,
vendo que não havia com tal gente meio de atar
duas phrases sem uma interrupção, tratou,
já desesperado,
de resumir o seu discurso:
―O regedor mandou pedir a esta boa cidade
que lhe enviassem todas as galés e barcos que fosse
possivel armar e equipar, e bem assim mantimentos
e dinheiros, os quaes―ajuntou o bom do alvazir, como
se entre os amotinados houvesse alguem que com
tal se importasse―como filho de el-rei que é, por
toda a sua verdade jurou pagar muito bem...
―E ressuscita os que tiverem morrido á fome?
perguntou um velhaco, que subira acima de um
poial, arrimado ao arco, e de braços cruzados, com
gesto zombeteiro encarava o orador.
―Morram os traidores!
―O regedor não quer que matem o povo!
―Viva o Mestre!
―Fora os alvazires, gritou Pedro Choca.
[157]
―Fora, fora! vozearam d'entre a multidão.
O orador tornou a limpar o suor, que se tornava
copioso e frio cada vez mais, e ainda tentou proseguir;
mas a sua má estrella quiz que ao examinar o
seu auditorio désse de novo com os olhos no velhaco
do poial. O maldito riu-se, e fez-lhe um esgar;
e risada e esgar seccaram-lhe completamente a prosa
na garganta. O bojudo cidadão bateu com a lingua
nos dentes, soltou dous ou tres sons, estendeu os
braços, e meneou-os, como se pertencesse á seita
dos mestres pedreiros que, pouco havia, tinham concluido
os muros da cidade, ou quizesse nadar em
secco; mas nem uma palavra mais conseguiu formular,
nem com todos aquelles tregeitos exprimir uma
ideia.
A atrapalhação do orador deu incremento ao
alvoroço, e os bons-homens que tentaram substituir
aquelle na tribuna, não conseguiram um momento
de attenção. Era este o estado das cousas,
quando Gonçalo Domingues e Fernando, appareceram
no terreiro, vindos do lado do Palmeirim. Mestre Gonçalo
e o compadre, que já encontramos no campo do
Olival, tinham sido os encarregados de arranjar o gado,
e portanto a sua apparição trouxe
áquellas cabeças desorientadas a ideia de que uma
boa parte da culpa
dos males que receiavam, delles provinham. O acolhimento
foi pois o menos amavel possivel. As relações
de mestre Gonçalo com o judeu Moyses, em quem
o povo já fizera justiça a seu modo, foi a
primeira
pecha que lembrou a alguns dos amotinados, e mal
lhes lembrou, logo foi lançada em rosto. A chusma
fez côro, como fazia a todas as lembranças, e o
bom
burguez ficou perplexo: fez-se vermelho e fez-se amarello
quasi ao mesmo tempo, e o caso não era para
menos. Quem não respeitava nem bispos, nem abbadessas,
[158]
não era muito que desacatasse um
forçureiro,
por mais endinheirado que fosse. Não era mesmo
naquellas circumstancias o dinheiro carta de seguro;
bem pelo contrario: era mais uma razão para temores.
Gonçalo Domingues, impallidecendo, agarrou-se ao
braço do sobrinho e quiz retroceder; mas a rectaguarda
estava-lhe já cortada, e entre ameaças foi levado
pela
multidão até junto do paiol, onde se
empoleirára o vadio
que seccára a eloquencia ao orador do arco. Fernando
tomado de assombro seguiu o tio. O sangue
do mancebo, porém, não era o do velho, e a
vozearia,
os insultos bem depressa o fizeram ferver. O
primeiro impulso do namorado de Irene, recuperada
a exaltação que o dominava desde o recontro de
Leça, e levado por assomos de cholera foi o de se
lançar contra os amotinados.
Desembaraçando-se das
mãos de seu tio, atirou-se a um mesteiral, que junto
do rosto daquelle erguera o punho cerrado, e ia
ser victima talvez dos seus brios, quando dous braços
musculosos seguraram o seu antagonista, e uma
voz, que devia ser conhecida de alguns dos que se
mostravam mais enfurecidos contra mestre Gonçalo,
exclamou:
―Ter mão rapazes!
Pedro Choca vira Fernando Vasques ameaçado
e correra em seu auxilio. O velhaco, apesar de tudo,
não deixava de ser um bom patriota, de ter o seu
enthusiasmo pelos defensores da arraia meuda. Conhecia
Fernando do assalto ao bailiado, e o denodo
do mancebo fizera com que elle o tivesse na conta
de um heroe, contra o qual não levantára
mão, nem
consentira que se levantasse por todo o dinheiro que
lhe dessem.
As suggestões e os tornezes do capellão de
[159]
Ayres Gonçalves, e mesmo o prazer de fazer arruido
não eram as unicas causas que o tinham feito
estafar os pulmões; frei Garcia gastára tempo e
algumas
malgas de vinho para o convencer de que entre
os alvazires havia partidarios de Castella, que tinham
tido o negregado pensamento de se vingarem
do povo, por meio da fome, fingindo que serviam ao
mestre. Que Fernando pactuasse com traidores não acreditava
porém, o velhaco, e por isso repetiu com ar
ameaçador, vendo que alguns animos ainda se mostravam
hostis ao mancebo:
―Que ninguem lhe toque em um cabello da
cabeça, senão commigo tem de se haver!
―A traidor, como a traidores! gritou o mesteiral,
querendo desembaraçar-se da prisão em que
estava.
―Traidor, quem tomou uma bandeira aos gallegos,
quem eu vi atirar-se a esses perros como se
os virotes fossem palheiras?!
―Se não é traidor, é por elles, que
vale o mesmo.
Que tem elle com esse forçureiro de má morte!
―Que enriqueceu furtando ao peso.
―E mais sabe Deus se era cabrito ou cão o
que dantes vendia!
―E agora comprou o gado todo, para nos deixar
á fome!
―Mentis! exclamou Fernando, respondendo a
estes capitulos de accusação; mentis!
―Ahi o tendes! ponde a mão no fogo por
elle! resmungou um dos vadios, dirigindo-se a Pedro
Choca.
―Se tão bom é um como o outro! ajuntou uma
mulher. O rapazelho é filho, ou cousa que o valha do
forçureiro.
[160]
Pedro Choca coçou a cabeça, e olhou para Fernando
com ar indeciso, mas logo formulou este raciocinio:
―O mancebo era incapaz de pactuar com os inimigos
do Defensor, e protegia Gonçalo Domingues
logo a não quadrava tambem o appellido de traidor.
―Se é pae do meu homemsinho é outro caso,
exclamou em seguida, voltando-se para os circumstantes.
Deve ser dos nossos.
[**P1 texto reconstituído a partir do original do Google]
Gonçalo Domingues, vendo que alguem mais de
que o sobrinho vinham em seu auxilio, tartamudeou.
―Domingues Pires ou Affonso Eannes, se aqui
estivessem vol-o diriam!
―Que resmunga elle?
―Acoberta-se com o trato que tem com Domingues
Pires?
―Sim, sim; mas tambem era dos amigos do
perro Moyses! se ouviu dentre a multidão.
A arraia meuda, como se baptisára o povo naquella
quadra, tresvairada, estreitára o circulo formado
á volta do burguez e as suas intenções
pareciam
ser bem pouco pacificas, quando Fernando,
saltou acima do poial, abandonado pelo companheiro
de Pedro Choca. A vis oratoria, molestia que se
dá em quadras revoltas como sezões em terrenos
alagadiços, acommettera tambem o namorado de Irene.
O rapaz emprehendia tarefa espinhosa, como os
respeitaveis edis o podiam attestar, commettia, pode-se
avançar uma loucura; mas é sabido que neste
mundo por vezes as loucuras aproveitam mais do
que as cousas pensadas. Fernando tivera uma idea,
que vos fará rir talvez leitor, e que podia ter entre
os amotinados o mesmo, ou peior acolhimento;
[161]
porem que foi agua em fervura, como diz o povo.
Fora uma idea feliz, uma idea luminosa a do mancebo.
―Metteram-vos em cabeça que vos queriam
matar á fome... porque se embarca alguma carne
na esquadra! exclamou elle: mas não se lembrou ninguem
de que todos os miudos cá ficam.
―É verdade?! acudiu com outros Pedro Choca,
que desfazia agora, por causa do seu heroe, a obra
para que concorrera; é verdade!
―E depois? interrogou um mesteiral, embasbacado.
―E depois com tanta forçura, com tanta miudagem
de todo esse gado não se morre á fome.
―E a carne não é cousa que engasge a arraia
muita vez no anno! observou o vadio.
―Demais, proseguiu o mancebo, aos corredores
gallegos nós os ensinaremos, e haverá ahi
mantimentos
de sobra. Para dez scismaticos basta um portuguez.
A gente que foi a Leça e Santo Thyrso está ahi,
e antes da chegada das galés os do Porto esperaram
a pé quedo os do arcebispo, sem que elles se atrevessem
a vir ás mãos comnosco. Deixai ir as
galés...
―Quem as quita? exclamou um mesteiral, a
quem aquellas palavras tinham inflamado o orgulho
patrio. Se os de Lisboa carecem de nós, nós
não carecemos
delles. Não nos atraiçoem os de casa...
―De casa... aqui neste boa cidade não ha traidores,
atalhou o namorado de Irene; aqui, ninguem
põe o seu braço em almoeda: as lanças
e ascumas dos
populares não teem preço!
―Como certas espadas.
O mancebo apesar das interrupções, de
approvação
agora, não se calou. Surprehendendo, como
[162]
vimos, os amotinados com a primeira lembrança que
tivera, lançando por instincto mão dos argumentos
melhores em taes circumstancias, proseguiu appellando
para os brios do povo, appellando com a convicção
de ser attendido, e o rumor levantado pouco
a pouco em torno de si provar-lhe-hia, se a isso
désse attenção, se elle mesmo
não se enthusiasmasse
com as suas palavras, que senão havia enganado. Quando
terminou o descontentamento da arraia, estava convertido
em abnegação civica, em enthusiasmo patriotico.
O povo tem, como o oceano, destas mudanças
repentinas. Pedro Choca, cuja bossa decididamente
era a de vivorio, encarregou-se de dar expansão aos
sentimentos que o agitavam.
―Viva Fernando Vaz! que... gritou elle; mas não
pôde proseguir, porque o distrahiu e engasgou uma
pancada em um hombro e uma voz zombeteira, que
lhe dizia ao ouvido:
―Assim é que sua mercê trabalha nas tercenas?
O impulso estava porém dado, e Choca, desapparecendo,
pois bem reconhecera pela amabilidade da
pancada e da voz a presença do pae dos velhacos,
deixava de novo o rico forçureiro em suores nos
apertos da ovação do sobrinho. O nome de Fernando
Vasques era bastante popular desde o recontro de
Leça... pelo que demonstravam os successos, mais do
que a pessoa.
Quando Pedro se eclypsava com os seus companheiros,
os acontiados do municipio, ha pouco apupados,
arrebanhavam sem a menor opposição o gado
que se espalhára pelos campos das azenhas. Os planos
de Ayres Gonçalves goravam completamente, graças
sobretudo ao namorado de Irene. O rapaz, tivera,
[163]
repetimos, uma ideia feliz, e soubera tocar no fraco dos
amotinados melhor do que os alvazires, que no convento
ainda discutiam, embaraçados, a maneira de darem
conta da sua missão. Falho o expediente do alcaide
de Gaya, as indecisões dos seus nobres companheiros
tinham de ser cortadas pela emulação dos
caudilhos.
Os portuenses davam o primeiro passo para
obterem em chrisma uma alcunha que tinha de durar
seculos; mas a honra da cidade estava salva. O
pae dos velhacos capitaneava os vadios, que, juntos
com os besteiros, levavam o gado ás tercenas, e os
mesteiraes,
que momentos antes tão descontentes se mostravam
acompanhavam-nos, berrando:
―Viva o Mestre de Aviz! Viva a arraia meuda
do Porto!
FIM
PREÇO 300
REIS.
LIVRARIA DE IGNACIO
CORREA,
Rua de Bellomente, n.º 65 e
66―Porto.
Louzada.
Rua Escura―1
vol. |
500 |
Na Consciencia―1
vol. |
500 |
Camillo C. Branco
Anathema, 2.ª
edição |
500 |
Duas
Epochas da vida,
poesias―1
vol. |
600 |
Duas
horas de leitura―1
vol. |
400 |
Espinhos
e flores.―1
vol. |
300 |
Lagrimas
abençoadas―1
vol. |
400 |
Livro negro―1
vol. |
400 |
Marquez (O) de Torres Novas,
drama―1
vol. |
400 |
Mysterios de Lisboa―2
vol. |
1$000 |
Neta do Arcediago (A)―1
vol. |
400 |
Onde está a felicidade?―1
vol. |
500 |
Purgatorio e Paraizo, drama―1
vol. |
300 |
Que (O) fazem mulheres―1
vol. |
500 |
Scenas Contemporaneas, contendo a
«Poesia e dinheiro» drama, e outros―1
vol. |
500 |
Scenas da Foz―1
vol. |
500 |
Um homem de brios―1
vol. |
400 |
Um Livro, poesias―1
vol. |
360 |
Vingança―1
vol. |
500 |
A. Gama
Genio do Mal (O)―4 vol.
8.º |
1$920 |
Honra ou Loucura
8.º |
500 |
Poesias e
Contos―8.º |
800 |
E. Sue
Avareza (A)―1
vol. |
300 |
Gula (A)―1
vol. |
240 |
Inveja (A)―3
vol. |
720 |
Ira
(A)―in-12.º |
300 |
Judeu Errante (O)―10 vol.
8.º |
2$000 |
Luxuria (A)―2 vol.
in-12.º |
480 |
Martim o Engeitado―6 vol.
8.º |
1$600 |
Preguiça
(A)―in-12.º |
240 |
Soberba (A)―4 vol.
in-12.º |
960 |
Souza Lobo
O Emparedado,
drama―8.º |
300 |
A Cigana,
drama―8.º |
200 |
A Moura,
drama―8.º |
200 |
Os
tres dramas
reunidos |
500 |
P. J.
Conceição
Mysterios do Porto.―2
vol. |
480 |
Amante e
Irmã―drama |
200 |
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos: